Tecido
Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos
- RN
N.
013 – 24/11/03
EDITORIAL
Povos indígenas: os esquecidos do Brasil
A
invisibilidade é o mecanismo através do qual a mídia afasta
da consciência pública, do conhecimento por parte da sociedade
os sujeitos sociais não funcionais à reprodução do poder econômico
e político que ela sustenta. Daí que os pobres, a imensa legião
daqueles que não produzem e não consomem, não compram e não
vendem, não gastam e não recebem, são quase totalmente invisíveis
no Brasil.
Só
ganham os refletores da mídia quando são autores - nunca quando
são vítimas - de crimes (para mostrar o quanto os "marginais",
os que moram nas favelas são perigosos para a sociedade e o
quanto é necessário reduzir as garantias constitucionais e prescindir
dos direitos humanos em nome da segurança de quem tem dinheiro),
quando são alvo de algum programa de marketing social de alguma
empresa ou de alguma autoridade pública (os vários "programas
sociais compensatórios" típicos de todo Governo, que destinam
as migalhas do orçamento público aos pobres e bilhões de reais
ao pagamento dos juros da dívida externa, ao crédito a empresas
estrangeiras para favorecer as privatizações, a manter a taxa
de cambio favorável à especulação financeira internacional,
etc.; e os vários programas sociais de caráter eleitoreiro ou
propagandístico de Governos estaduais ou municipais - geralmente,
com dinheiro das instituições creditícias internacionais que
gera dívida e impõe um modelo econômico anti-social - ou de
empresas públicas ou privadas em parcerias com alguma ONG),
quando geram "baderna" (como as "invasões"
de terras do MST ou as de prédios vazios dos Sem Teto) ou quando
fazem parte do folclore nacional.
Porém,
se algumas categorias de pobres ainda têm o "privilégio"
de sair, de vez em quando e só pelos motivos mencionados, da
invisibilidade midiática, tem uma realidade que no Brasil é
simplesmente inexistente para a maioria da população: a dos
povos indígenas.
Os
habitantes das favelas e os excluídos do campo têm uma função
decisiva na organização social brasileira: a de mão de obra
barata. Portanto, mesmo não querendo, a presença deles é percebida:
não sabemos o que acontece nas favelas, não sabemos como são
as casas e as ruas onde eles vivem, mas os vemos todo dia na
rua, nas nossas casas e nas nossas empresas. São a legião de
garis, faxineiras, empregadas, moto-boys, garçons, pedreiros,
engraxates, mendigos, meninos de rua, etc. com quem convivemos
todo dia. Mesmo não "os vendo", não os considerando
mais do que instrumentos funcionais à satisfação de nossas exigências,
eles estão ai, e às vezes até a mídia fala deles.
Mas
as comunidades indígenas... quem sabe quem são estes povos,
onde vivem e, sobretudo, COMO vivem? Quem sabe que as terras
dos índios são roubadas e inteiras comunidades exterminadas
há décadas em nome dos interesses econômicos de empresas multinacionais
e oligarquias locais? Quem sabe que os direitos mais elementares
dos seres humanos - saúde, educação, respeito pela própria cultura,
etc. - para os povos indígenas do Brasil simplesmente não existem?
Quem sabe que milhões de hectares de terras pertencentes aos
índios ainda não foram devolvidos pelo Governo aos legítimos
próprietários?
Primeiro
vítimas de um genocídio, escravizados, considerados seres inferiores,
obrigados com a violência a renunciar às próprias culturas e
religiões e humilhados de todas as maneiras imagináveis, depois
vítimas de um "progresso" que para eles só significou
extermínio, expoliação das terras e dos recursos dos quais viviam
e exclusão de todos os benefícios da sociedade ocidental, os
povos indígenas são os últimos dos últimos, os esquecidos totais
da sociedade brasileira.
Não
só não produzem e não consomem, mas muitas vezes representam
um "estorvo" para os interesses das classes dominantes
do Brasil rural e do capital estrangeiro, que têm interesse
em mantê-los totalmente invisíveis.
Confinadas
em reservas ou em aldeias e povoados amiúde isolados do mundo
externo por falta de qualquer infraestrutura de comunicação,
os índios só existem - na percepção da maioria da população
urbana brasileira - como elementos de folclore nacional. A mídia,
as raríssimas vezes que fala deles, nem sequer menciona as condições
subumanas nas quais são obrigados a viver, o extermínio sistemático
do qual são vítimas, os roubos de terra e dignidade aos quais
são submetidos: os povos indígenas só servem para reportagens
"de costume" ou para serem mostrados como selvagens
que fazem guerras entre eles.
O
falso mito da "democracia racial" com o qual a elite
branca brasileira limpa sua consciência da responsabilidade
pela exclusão de negros e pardos, com os índios nem precisa
ser usado: para a elite econômica e política do país, a sociedade
brasileira não exclui o índio, simplesmente se desenvolve INDEPENDENTE
dele... o Brasil e os índios são dois mundos paralelos e incomunicáveis..
Porém,
ninguém diz que este desenvolvimento tem sido sempre e continua
sendo às custas das vidas, as terras, os direitos, a cultura
e a dignidade dos habitantes originários do Brasil.
Um
dos problemas centrais é a questão das terras. Todas as terras
indígenas deveriam ter sido demarcadas há pelo menos 30 anos
quando foi promulgada a lei 6001, conhecida como Estatuto do
Índio. Mais tarde, a Constituição Federal de 1988 determinou
que as terras que pertencem aos povos indígenas deviam ser demarcadas
em um prazo de cinco anos pelo Governo. Passaram 15 anos e os
sucessivos executivos se negam a cumprir esta determinação constitucional.
O
Governo Lula, do qual todos esperavam mudanças estruturais que
na sua grande maioria não foram realizadas e estão muito longe
de serem sequer vislumbradas (haja visto, pelo menos, as tendências
de política econômica mantidas até agora), sobre a questão indígena
agiu, neste primeiro ano de mandato, de maneira idêntica aos
seus antecessores: negociar os direitos dos povos indígenas
com as oligarquias locais em troca de apoio político.
Sobre
a demarcação das terras, o Governo Federal estabeleceu um diálogo
com os setores anti-indígenas em Roraima, Santa Catarina, Rio
Grande do Sul, Pará e Mato Grosso. O Ministério da Justiça negociou
a redução da terra indígena Baú, do povo Kayapó, e pretende
fazer a mesma coisa com outras terras como Cachoeira Seca, no
Pará, Raposa Serra do Sol, em Roraima, e Xokleng, em Santa Catarina.
No
Sul do Brasil, terras dos Kaingang e Guarani estão sendo objeto
de negociações com setores anti-indígenas. Estes pretendem usá-las
para uma "política da compensação", ou seja, dar benefícios
assistenciais aos índios em troca de menos terra demarcada ou
trocar terras tradicionais por áreas devolutas distantes do
que o Ministério da Justiça caracteriza como "focos de
conflitos" entre índios e brancos.
A
Casa Civil da Presidência da República ameaça mudar o sistema
de demarcação para favorecer a participação de políticos, militares
e outros setores historicamente contrários aos interesses dos
povos indígenas na definição do que são terras indígenas a serem
demarcadas.
O
Governo Lula manteve os decretos e portarias do Governo anterior
que permitem o livre trânsito de militares nas terras indígenas,
e editou novos que continuam nesta tendência.
No
aspecto da saúde, o executivo manteve a política de terceirização
construída no governo de Fernando Henrique Cardoso. O Ministério
da Saúde pretende tercerizar através de convênios com as Organizações
da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). A conseqüência
disso é que todas as entidades prestadoras de serviço (ONG's)
terão que se adequar ao modelo da terceirização, transformando-se
em empresas.
A
FUNAI, órgão responsável pela execução da política fundiária
para os povos indígenas, não está funcionando por falta de interesse
do Governo, que também não permitiu que houvesse uma discussão
sobre a formulação de uma outra política indigenista e que se
rediscutissem o papel, a função e os objetivos do órgão. O Governo
também se recusou, até agora, a discutir com os povos indígenas
(através de suas organizações e as entidades de apoio) novos
rumos para a política de assistência às comunidades nas áreas
de saúde, educação e atividades produtivas - três coisas que,
de fato, não chegam às populações indígenas - nem a de demarcação
das terras.
Como
se isso tudo não bastasse, desde o começo do ano se verificaram
24 assassinatos de lideranças indígenas. Uma parte destes assassinatos
ocorreu como conseqüência da luta pela terra e uma outra parte
por causa da discriminação contra os povos indígenas, especialmente
em Santa Catarina e Rio Grande do Sul, Estados caracterizados
por uma alta difusão do preconceiro racial contra o índio.
Três
destas mortes se destacam pelo alto grau de barbárie de origem
puramente racista. Leopoldo Crespo Kaingang foi morto a pontapés
e pedradas enquanto dormia, Adilson Kaingang teve a jugular
cortada enquanto dormia e Geam Kaingang foi espancado, estuprado,
teve os olhos furados e a cabeça esmagada. Agora, como eles
não se chamavam Liana ou Felipe e não pertenciam à classe média
urbana, mas Kaingang e eram índios, seus bárbaros assassinatos
nunca chegaram às primeiras páginas dos jornais nem a indignar
à opinião pública nacional.
Diante
de tudo isso, só fica uma pergunta amarga: se não houver mudanças
profundas nas políticas indigenistas durante o Governo Lula,
quem mais vai realizá-las? E também: quando é que nos vamos
dar conta de que o nosso silêncio, a nossa indiferença e a nossa
falta de conhecimento são cúmplices do extermínio, o racismo,
o roubo de terras, a exclusão e a negação de todo direito e
toda dignidade que sofrem os povos indígenas do Brasil? Quando
vamos começar a considerar o índio um cidadão como nós, com
nossos mesmos direitos, com o direito de viver dignamente conservando
a própria cultura, e não mais uma mera peça de folclore? Há
500 anos, um povo sofre todo tipo de barbárie e atrocidade no
Brasil. Está na hora de dizer: basta!
Antonino
Condorelli - Diretor de Tecido Social
Veja
também:
- SISTEMA PENITENCIÁRIO
DO RN. A barbárie cotidiana do Presídio Provisório
- Sistema penitenciário
do Estado: o outro lado da medalha
- Quilombolas promovem encontro
para exigir reparação de direitos
- Transgênicos: Veja
que mentira!
- POVOS INDÍGENAS. Povo
Xavante em Mato Grosso está na iminência de conflito
<
Voltar
|