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“A
luta do homem contra o poder é a
luta da memória contra o esquecimento."
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O
Risco da Verdade
Paulo
César Carbonari*
Verdade
é risco. Ela é imprevisível.
Não há como saber onde está,
mesmo que possa ser incessantemente buscada.
Verdade é menos um lugar e mais uma
construção. Em sua construção
entram em cena vários fatores e condições.
Mas, se é construção,
também pode ser desconstrução,
ou seja, a negação de verdades
nem sempre resulta em outras em seu lugar.
Nisso consiste a força libertária
e libertadora da verdade: verdade e liberdade
se aproximam. Um exemplo clássico
disso é o debate renascentista sobre
o geocentrismo e sua alternativa, o heliocentrismo:
o que por séculos fora tido por verdade
passou por uma gradativa desconstrução
e pela construção de nova
verdade. Observe-se que tanto a construção
quanto a desconstrução da
verdade podem ser impedidas, enviesadas
ou obliteradas. Nisso consiste não
a desconstrução, mas a destruição
da verdade. Enfim, a verdade não
pode ser dada definitivamente por certa
e, sequer, por definitiva. É sempre
processo, busca.
A memória é um dos componentes
e dos condicionantes da verdade. Mas não
o único. O fato é que, sem
memória, sequer seria possível
construir – ou mesmo desconstruir
– verdade. Em termos históricos
e societais, a memória é constitutiva
da verdade, mais do que o contrário.
Ou seja, é a memória da história
pessoal e coletiva que ajuda a indivíduos,
a grupos sociais e à própria
sociedade como todo a construir verdades
de suas próprias vivências.
Neste sentido, somente as vivências
significativas passam a ser parte da memória
e, daí, insumos para a verdade histórica.
Memória e verdade são constitutivas
da justiça como realização
de condições para a efetivação
da dignidade humana. A justiça exige
o reconhecimento das injustiças e
de suas vítimas, aqueles/as que sofreram
a injustiça. Sem isso, a justiça
é vazia. Por isso, sem que as próprias
vítimas possam dizer sua palavra,
sua verdade, recorrendo para isso à
memória dos fatos que as levaram
à situação de vitimização,
não há justiça. O querer
justiça como memória e verdade
das vítimas é um direito das
próprias vítimas, mas não
só, ele também é de
todos os seres humanos, até porque
esta é a forma efetiva de engajar
a todos/as para que não sejam produzidas
novas vítimas. Por isso, o direito
à memória, à verdade
e à justiça se constitui num
dos direitos humanos mais basilares para
a convivência em sociedade. O nunca
mais a todo e qualquer tipo de violação
de direitos, a todo tipo situação
que produz vitimas, a todo tipo de inviabilização
do humano, é a expressão positiva
do queremos um mundo justo e humanizado
para todas as pessoas, indistintamente.
Trabalhar positivamente com esta concepção
parece ser o receio dos que têm se
manifestado contra a Comissão Nacional
da Verdade e, especialmente, daqueles que
por muito tempo foram contra e que recentemente
têm se manifestado a favor dela. Os
setores conservadores representados no Congresso
Nacional, historicamente contrários
a qualquer verdade que não fosse
aquela por eles próprios produzida,
sempre opositores a qualquer Comissão
da Verdade, os mesmos, ou ao menos vários
deles, que no debate sobre o recém-lançado
PNDH-3, nos primeiros meses de 2010, vociferavam
contra ela, agora votaram a seu favor, na
Câmara Federal, no último dia
21/09/2011, e no Senado Federal, no último
dia 25/10/2011, em ambos os casos por acordo.
É a posição destes,
não a dos que a defenderam sempre
e que agora criticam o texto aprovado com
razões legítimas e consistentes,
que deve ser estranhada: o que os teria
tornado tão confiantes numa Comissão
que até há pouco lhes soava
ameaça? Afinal, o que mudou? Os conservadores
já não o são? Ou teriam
os que se diziam não-conservadores
se tornado mais conservadores, gerando uma
pactuação cômoda, aceitável
até aos velhos conservadores?
Um
pouco de memória pode ajudar. O editorial
de um dos porta-vozes do conservadorismo,
o jornal O Estado de São Paulo, de
02/10/2011, começava dizendo: “A
criação da Comissão
Nacional da Verdade, proposta no 3º
Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3),
assinada pelo presidente Luiz Inácio
Lula da Silva em dezembro de 2009 e aprovada
pela Câmara dos Deputados no último
dia 21 (será votada agora no Senado),
tem como objetivo precípuo investigar
e divulgar a ‘verdade histórica’
sobre a ditadura militar de 1964/1985 para
‘promover a reconciliação
nacional’". Mais à frente
dizia: “O projeto de criação
da Comissão da Verdade -que agora
tramita no Senado – acabou sendo escoimado
de radicalismos unilaterais e se concentra
agora na ideia do estabelecimento de um
grupo de sete pessoas nomeadas pela Presidência
da República que se dedicará,
pelo prazo de dois anos, a levantar informações
sobre a chamada ‘guerra suja’,
visando, principalmente, a apurar o paradeiro
de brasileiros desaparecidos ou as circunstâncias
em que pessoas foram mortas naquele entrevero”.
Concluía dizendo: ”A maneira
como a Comissão da Verdade está
sendo constituída parece indicar
que o bom senso afinal prevalecerá,
em benefício do objetivo maior de
reconciliação nacional e da
construção de um futuro assentado
em bases de convivência democrática.
A última tentativa de impor a essa
questão, em nome de uma visão
estreita de direitos humanos, um tratamento
sectário e unilateral, foi derrotada
essa semana na Comissão de Relações
Exteriores e Defesa Nacional da Câmara.
Projeto de autoria da deputada Luiza Erundina
(PSB-SP), que previa a revisão da
Lei da Anistia e a possibilidade de levar
a julgamento agentes do Estado responsáveis
por mortes, torturas e desaparecimento de
opositores do regime militar, foi rejeitado
por expressiva maioria. Por mais dolorosa
que seja a memória de episódios
da ditadura, a Lei da Anistia colocou um
ponto final nessa questão. Resta
apenas o trabalho de recompor historicamente
esse período de triste memória
da vida nacional, até para evitar
no futuro a repetição dos
mesmos erros. É a missão que
caberá à Comissão da
Verdade”. Este mesmo jornal, em Editorial
de 10/01/2010, dizia que o PNDH-3, de onde
teria sido dado o start para a Comissão
da Verdade, era um “roteiro para o
autoritarismo”: “O presidente
Luiz Inácio Lula da Silva assinou
em dezembro um roteiro para a implantação
de um regime autoritário, com redução
do papel do Congresso, desqualificação
do Poder Judiciário, anulação
do direito de propriedade, controle governamental
dos meios de comunicação e
sujeição da pesquisa científica
e tecnológica a critérios
e limites ideológicos”, incluindo,
mais adiante: “A apuração
das violências cometidas pelos agentes
do regime militar e a revogação
da Lei da Anistia são apenas uma
parte desse programa – a mais divulgada,
até agora, por causa da reação
dos comandantes militares à redação
inicial do decreto”, sendo que vai
concluindo: “O governo também
deverá incentivar a produção
de filmes, vídeos, áudios
e similares voltados para a educação
sobre direitos humanos e para a reconstrução
"da história recente do autoritarismo
no Brasil". Será um autoritarismo
cuidando da história de outro. As
intenções políticas
são claras, embora escritas numa
linguagem abstrusa”. Incrível
que a mesma Comissão da Verdade,
que antes compunha parte do pacote que constituía
o “roteiro para o autoritarismo”,
agora se converta em alguma coisa na qual
“o bom senso afinal prevalecerá”.
Segundo o editorialista, a memória
dolorosa dos episódios da ditadura
não será tarefa da Comissão,
dado que dela foi dado ponto final pela
Lei da Anistia, caber-lhe-ia “apenas
o trabalho de recompor historicamente esse
período de triste memória
da vida nacional”. O que seria então
papel da Comissão? O que significaria
“apenas recompor” e não
fazer a “memória de episódios
da ditadura”? Será que a Comissão
da Verdade recentemente aprovada foi de
tal forma bem amarrada que teria conseguido
até “redimir” os PNDH-3?
O que significaria ter sido derrotada “uma
visão estreita de direitos humanos,
um tratamento sectário e unilateral”?
A posição do Estadão
não é a única nesta
linha, infelizmente.
O fundamental, todavia, reiteramos, é
manter aberto o processo de reflexão
sobre o significado profundo da Comissão
Nacional da Verdade. E seu sentido profundo
está exatamente em ser um espaço
capaz de construir uma verdade sobre o período
da ditadura civil-militar brasileira e,
por outro, em desconstruir algumas das verdades
repetidas – nem tão verdadeiras
assim – pelos que têm pavor
de verdades que não sejam as deles
próprios. Ela não terá
alcance para fechar o tripé, pois
dela não se poderá esperar
justiça. Mas, se ela for capaz de
produzir verdades com base na memória
das vítimas, certamente abrirá
caminho para que venha também a justiça.
Até porque, todos quantos lutamos
por direitos humanos sabemos desde há
muito que uma coisa é a luta por
direitos e outra é o que de direitos
o statu quo reconhece. Lutar por direitos
tem sido e continua sendo a tarefa precípua,
inclusive no caso da Comissão da
Verdade.
Somente a luta dos diversos sujeitos de
direitos é que fará possível
tanto a verdade, quanto a memória
e, acima de tudo, a justiça. A verdade
é risco, sim, porque ela põe
em movimento a liberdade. A liberdade em
movimento destrói a repressão,
mesmo que isso demore algum tempo. Correr
o risco da verdade se justifica quando se
deseja que a justiça, a liberdade
e a verdade caminhem juntas. Para isto estivemos,
estamos e continuaremos a postos! Este é
o risco de quem se propõe a fazer
da luta por direitos humanos uma luta permanente.
Para estes e estas, a verdade não
é um risco, ou é um risco
que vale a pena correr!
*Paulo
César Carbonari é doutorando
em filosofia (Unisinos), professor de filosofia
no Instituto Berthier (IFIBE, Passo Fundo,
RS), membro do conselho nacional do Movimento
Nacional de Direitos Humanos (MNDH). Publicado
em Carta Maior em 09/11/2011.
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