ENTREVISTA
Dom Jaime Vieira Rocha, Bispo de Caicó
"É preciso ter uma visão ampla dos Direitos Humanos para
vencer o preconceito"
Por
Antonino Condorelli
Como o Sr. acha que os Direitos Humanos possam chegar ao interior do Estado,
aos municípios que são a realidade onde se desenvolve no dia
a dia a vida econômica, social, política e cultural das pessoas?
Os
Direitos Humanos podem chegar às populações do interior do
Estado, aos municípios, através de trabalhos como este que
vocês do Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal
começaram a fazer, porém, dentro de uma perspectiva que tenha
como foco a questão do que significa hoje, para a sociedade
brasileira, se falar em Direitos Humanos. Nós tivemos, no
passado recente, um período obscuro de negação dos Direitos
Humanos que foi o regime de exceção na época da ditadura militar.
Então havia um aspecto muito visível desta emergência, desta
necessidade de alguém se colocar a serviço da defesa de pessoas
que estavam sendo humilhadas, oprimidas. Quando saímos do
regime militar, onde a luta pelos Direitos Humanos tinha uma
amplitude de ação muito mais visível a nível interno e internacional
e um carácter emergencial muito mais elevado, passamos a conhecer
uma realidade social totalmente deteriorada: o Brasil se mostra
cada vez mais como um país de extrema desigualdade social,
de injustiça, de miséria, de fome, até chegar a este descalabro
que estamos vivendo hoje em dia, caracterizado pela utilização
do narcotráfico como fonte de subsistência para uma grande
parte da população, porque a sobrevivência dela não é garantida
pelo Estado. Dentro desta realidade humana e social totalmente
deteriorada, esgarçada no seu tecido e caracterizada por uma
insegurança muito grande por causa da escalada cada vez maior
da violência, a causa dos Direitos Humanos passou a ser confundida
com proteção a “bandidos” (é fundamental ressaltar as aspas),
criminosos, etc. Para nós, este é um desafio muito grande:
temos que reverter esta imagem negativa que pesa sobre as
iniciativas de proteção aos Direitos Humanos. É importante
que este passo que vocês estão dando para “interiorizar” a
causa dos Direitos Humanos aconteça dentro de uma visão mais
ampla destes direitos, que é justamente o que sua iniciativa
está querendo passar. Escutando os noticiários da manhã, a
participação dos populares no programa Rádio Comunidade, cheguei
à conclusão que uma equipe de Direitos Humanos no município
vai ter que se preocupar, por exemplo, com a emergência da
falta d’água: como a empresa que se encarrega de distribuir
a água para a cidade e o saneamento tem que agir para garantir
a todos este direito básico que é receber nas próprias casas
água tratada. Acontece uma emergência por causa das chuvas
e das enchentes e as famílias, em bairros inteiros, passam
10-12 dias sem água potável. Ai está um direito humano negado
e precisando ser garantido. Quando alguns municípios ficam
inadimplentes perante o Governo Federal nos programas sociais
(bolsa-renda, bolsa-escola, Fome Zero, etc.) milhares de pessoas
- especialmente, jovens e crianças - são privados de recursos
que são indispensáveis para a sua subsistência e que, mesmo
estando lá alocados, não chegam porque o município não é capaz
de utilizá-los. Esta é uma agressão e um desrespeito aos Direitos
Humanos. Portanto, temos que sair urgentemente desta imagem
tão restrita de Direitos Humanos como um valor que se aplica
exclusivamente dentro dos presídios. Embora isso também seja
importante porque, quando vemos o rosto do Brasil espelhado
na situação gravíssima do sistema penitenciário, é de fazer
dó e piedade: através de seu sistema carcerário, nosso país
transmite uma imagem tão deplorável de desumanidade, de atraso,
de barbárie, de falta de cidadania e respeito à pessoa que
nos entristece profundamente. De todas as maneiras, acho que
este processo de interiorização da ação dos Direitos Humanos
tem que passar por esta visão muito mais abrangente de direitos
intrínsecos e inalienáveis do ser humano em todas as esferas
de sua existência. Qualquer negação da dignidade da pessoa
humana - seja ela econômica, social, cultural, ambiental ou
física - é uma violação dos Direitos Humanos.
O que foi que impulsionou a criação do Plano de Desenvolvimento Sustentável
da região do Seridó?
O
Plano de Desenvolvimento Sustentável do Seridó se constituiu
como resultado de um despertar de toda a região para a sua
realidade social, econômica e política. Nós temos uma região
diferente do resto do Estado, com uma cultura própria. Existem
umas teorias, ainda não comprovadas cientificamente, segundo
as quais a colonização, aqui, teria começado a partir de uma
presença judaica. De todas as maneiras, nosso povo tem características
específicas que o definem e diferenciam: é um povo acostumado
a trabalhar mesmo sem ter maiores fontes de sustento naturais
ou empresariais, um povo que tem coragem, é inteligente, que
faz e não espera que cheguem soluções de fora. O Seridó, no
passado, já teve um período áureo de autonomia econômica e
política. Os estudiosos da história do Rio Grande do Norte
dizem até que o Seridó “fez” o Estado através da influência
de tantos políticos de carácter nacional e estadual. O período
áureo coincidiu com a produção em alta escala do algodão,
a exploração mineira de carácter industrial e uma pecuária
muito forte. Mas quando estes indicadores econômicos ficaram
em baixa devido às crises, o Seridó passou a ser uma das poucas
regiões do Estado desprovidas de um projeto de Governo. Basta
dizer que, de cada dez pares de sapatos que são consumidos
no Rio Grande do Norte, sete são na Grande Natal e apenas
três no resto do Estado. Há um empobrecimento muito grande
das áreas rurais e interioranas. Diante deste colapso e esta
falta de perspectivas, na Diocese de Caicó começamos a chamar
às pessoas para um debate sobre os problemas vitais da região.
Desde 1998, se criou um Fórum de Debate sobre o Seridó, trouxemos
pessoas de outras regiões para falar sobre fé e política,
sobre a transposição do Rio São Francisco e uma série de outros
assuntos importantes, e isso suscitou dentro da sociedade
um clima de discussão, de efervescência, de intercambio de
idéias, etc., que envolveu também as lideranças políticas
e empresariais do Estado e o próprio Governo. Todas estas
convergências contribuiram para que houvesse no Seridó um
momento propício para a elaboração de um Plano de Desenvolvimento
Sustentável. Este foi elaborado com a participação de toda
a sociedade civil organizada. O que tem de mais essencial
e exportável para o resto do Brasil e o mundo são a sua característica
pedagógica e o fato de ter sido elaborado a partir das bases,
em reuniões em todos os níveis nos municípios e nas comunidades,
formando grupos de pessoas para debates e criando-se grupos
temáticos para as diversas dimensões que compõem o Plano:
ambiental, político-institucional, cultural, econômica e tecnológica.
Tudo isso gerou um Plano muito abrangente, muito bem organizado
e que hoje está servindo como indicador para as ações do Governo
nesta região.
Quais são, na sua visão, as principais violações dos Direitos Humanos em
Caicó e no Seridó?
As coisas nos últimos anos melhoraram bastante. Os poderes
públicos e privados e a população em geral estão começando
a perceber que ninguém é dono de ninguém, e todos estamos
sob o monitoramento da sociedade civil organizada. Se está
espalhando cada vez mais a consciência de que os direitos
de cada individuo têm que ser respeitados. Sem querer restringir
a visão dos Direitos Humanos às penitenciárias, como já falei,
nós notamos essa mudança de percepção nos próprios presidiários,
que estão cada vez mais conscientes dos seus direitos. Tanto
assim que, quando mandam cartas para mim pedindo alguma intervenção
ou ajuda, se referem com muita propriedade aos preceitos jurídicos,
é possível perceber que muitos deles já estão cientes de quais
são e em que leis e princípios estão fundamentados seus direitos.
Muitos deles estão começando a ter acesso à Constituição,
o que não acontecia antes. Eu acho que os maiores problemas,
hoje, são a concepção fechada, atrasada e restritiva que a
sociedade tem do que são os Direitos Humanos e a mentalidade
repressiva que ainda se tem com relação às questões sociais.
Por exemplo, quando a polícia prende um jovem embriagado em
uma festa ou um pobre desvalido que vive na rua e não tem
nenhuma referência, estes sujeitos além da prisão sofrem espancamentos,
e muitas vezes os agentes pisam nos seus dedos com a única
intenção de provocar dor e dano físico. Isso mostra uma mentalidade
de utilização da força como instrumento não para coibir as
infrações jurídicas e sociais dos individuos, mas para estabelecer
uma hierarquia social em que se define quem pode esmagar e
quem pode ser pisado. Também existe ainda na sociedade seridoense
uma mentalidade que atribui a qualquer pessoa que está na
cadeia o rótulo de “bandido”, que eu nunca uso e nem gosto
de usar, até porque tantas vezes vemos fora da cadeia,
em altos escalões da sociedade, bandidos muito mais perigosos
do que os pobres e desesperados que estão nos presídios, e
estas pessoas se colocam como referência social para tudo
o que é justo, legítimo e ético. Dentro do projeto de evangelização
da Igreja Católica do Brasil, esse é o Ano da Pessoa Humana,
do resgate da dignidade humana: nós queremos que todas as
pessoas se sintam gente. Quando uma mãe de família vai visitar
no presídio seu filho que está preso, ela não vai visitar
um bandido, ela vai visitar o seu filho. É importante
que se tenha uma visão ampla da realidade e uma consciência
social muito aguçada para perceber que as infrações das leis
e dos direitos muitas vezes passam por uma degradação global
da sociedade brasileira pela qual todos nós somos responsáveis
e todos temos que fazer nossa parte para construir um Brasil
mais justo do ponto de vista do emprego, da distribuição de
renda, da moradia, da saúde, da educação, emfim, dos Direitos
Humanos. Para quem não tem tudo isso, a vida muitas vezes
perde qualquer sentido e essa pessoa cai na marginalidade
e no crime: a vulgarização do sentido da vida é o mal principal
da nossa sociedade, contra o qual todo nós temos que lutar.
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