Uma
idéia que nasceu há 300
anos
Renato Janine Ribeiro
DUDH
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Não havia direitos humanos na Grécia.
Isso pode soar estranho, até porque
Atenas ainda hoje aparece como um momento
alto, insuperado, do regime político
democrático. Mas o fato é
que a democracia, pelo menos entre os
Antigos, não incluía o que
chamamos direitos humanos -e que são
uma invenção moderna. A
Inglaterra, hoje sinônimo de calma
resolução dos conflitos,
já se viu tomada por guerras civis;
e foi por ocasião de uma delas,
entre 1640 e 1660, que se tornou comum
a alusão aos direitos do "freeborn
englishman", o inglês nascido
livre ou livre por nascença. Haveria
uma série de direitos que todo
inglês teria, só por nascer.
Insistamos na questão do nascimento:
é o que explica o termo "direitos
naturais". Natural é o que
temos por nascença. Direitos naturais
são os que temos antes de qualquer
decisão governamental ou política
- sem precisarmos da boa vontade do Estado
ou de quem quer que seja.
Os direitos humanos surgem, na modernidade,
como direitos naturais. Basta o inglês
nascer para tê-los. Essa é
uma das grandes inovações
dos revolucionários ingleses de
1640. Entre tais direitos estava o de
não ser obrigado a acusar a si
próprio, o de não pagar
impostos que não fossem votados
por seus deputados, o de ter voz na política.
O arremate da Revolução
Inglesa iniciada em 1640 se dá
em 1688, quando é deposto o rei
Jaime 2º. Guilherme e Maria, que
sucedem a ele, aceitam o "Bill of
Rights", que é o nome inglês
do que conhecemos, nas línguas
latinas, como "declaração
de direitos".
" Bill", em inglês, é
mais ou menos o que chamamos um projeto
de lei -antes, portanto, de ser sancionado
pelo Poder Executivo. No caso, recebe
esse nome por ser um texto legal plenamente
válido, mas cuja validade não
deriva da assinatura do rei. Isso quer
dizer que os direitos existem e vigoram,
não porque um rei (ou mesmo uma
assembléia) assim o quis, mas porque
naturalmente todos os humanos têm
tais direitos. A assembléia, seja
ela a francesa de 1789 ou a da ONU de
1948, apenas declara os direitos, ela
não os cria.
A Constituição brasileira
de 1988, tão difamada pelos autoritários,
segue essa (boa) lição:
pela primeira vez em nossa história,
os direitos humanos precedem o funcionamento
dos poderes de Estado. Ela ensina que
o Estado está a serviço
dos cidadãos, que nas Cartas anteriores
apareciam depois dos três poderes,
como um detalhe ou mesmo estorvo. (Aliás,
essa questão é interessante:
em que larga medida a cidadania aparece
como um estorvo, a um poder fechado sobre
si mesmo, exercido pelas elites?)
E exatamente por essa convicção
democrática a Constituição
de 1988 deu caráter pétreo
aos artigos sobre os direitos: se a Constituinte
apenas os declarou, se não os criou
(porque estão acima da vontade
humana), isso implica que eles não
podem ser abolidos.
Mas voltemos à história.
Em 1689, a Inglaterra promulga seu "Bill
of Rights". Vai passar um século
antes de surgirem dois outros. Em 1789,
nos inícios da Revolução
Francesa, a Assembléia, que acaba
de se declarar Constituinte, vota a Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Mas não são mais os direitos
de um único povo, e sim os da humanidade
inteira.
Direitos passam a universais. Esta, aliás,
é a grande característica
da Revolução Francesa de
1789, nisso mais audaz que a Inglesa de
1688 ou mesmo a Americana de 1776: nenhum
direito é invocado pelos franceses
como sendo apenas nacional. Todos os direitos
são do cidadão e do homem
como universais. Valem para qualquer povo.
E mesmo que a própria França
demore para estendê-los, por exemplo,
aos negros escravos, uma dinâmica
se instaura que terminará suscitando
suas revoltas (por exemplo, no Haiti)
e sua liberdade.
Em 1791, os Estados
Unidos aprovam sua declaração.
Os constituintes de 1787, liderados pelos federalistas, haviam dado
maior importância à mecânica dos três poderes
do que aos direitos humanos. Mas Thomas Jefferson, mais democrático
que eles, propôs que a adesão à Carta viesse
junto com uma série de emendas reconhecendo direitos aos indivíduos.
São as dez primeiras emendas à Constituição
americana, conhecidas como "Bill of Rights".
Quando estudamos os direitos humanos, são estes os três
textos clássicos e iniciais, aos quais se soma, em 1948, a
Declaração da Assembléia Geral da ONU. Vemos
que eles se foram expandindo, a partir porém de uma idéia
inicial e decisiva. Esta era (e é) que os direitos humanos
estão acima de qualquer poder de Estado. Por isso, é uma
idéia antipositivista.
Positivismo, em direito, não significa a mesma coisa que nas
ciências. Chama-se de "positivismo jurídico" a
tese de que uma lei vale porque foi decretada (ou posta, ou afirmada)
pela autoridade legítima. Só haveria direitos ou obrigações
com base num poder. Mas a tese dos direitos humanos supõe,
justamente, que acima de qualquer poder existente já vigem
direitos inegáveis, irredutíveis.
Este é o cerne da idéia de direitos humanos, e vê-se
qual a sua conclusão lógica: que os governos não
podem violar tais direitos impunemente, e -se o fizerem- devem pagar
por isso. Cedo ou tarde, precisaremos assim ter uma jurisdição
supranacional que julgue e puna criminosos que só têm
em seu favor, como Pinochet ou Saddam Hussein, o fato de terem cometido
crimes em tão larga escala que escapam -por um tempo- ao castigo
merecido.
As declarações clássicas são, porém,
acusadas freqüentemente de dar força demais aos direitos
do indivíduo -e do proprietário- e de desprezar os
grupos de trabalhadores sem propriedade. É verdade. Nelas,
a ênfase está na defesa, contra o poder estatal, da
propriedade, numa definição de direitos civis e políticos
que não tem condições de abranger toda a humanidade.
A declaração inglesa exclui dos direitos os estrangeiros,
a americana os escravos. Já a francesa (a mais universalizante)
encontra um de seus limites na recusa, em 1791, de uma declaração
dos direitos das mulheres: Olympe de Gouges, sua proponente, foi
guilhotinada em 1793.
Mas o importante não são as limitações
dessas declarações -e sim suas potencialidades. Nos últimos
três séculos, uma consciência de direitos aumentou,
limitando o Poder. Os direitos se ampliaram, incluindo os direitos
sociais, que se distinguem da "primeira geração" de
direitos por beneficiarem grupos e não indivíduos,
trabalhadores e não proprietários.
E recentemente surgiram os direitos difusos, dos quais o grande exemplo
são os relativos ao meio ambiente, que não têm
titulares precisos, perfeitamente definidos, mas beneficiam a todos.
Isso é irônico, porque o direito ao ar puro protege
até os próprios poluidores, porque eles precisam, para
viver, da mesma atmosfera que estão degradando...
Talvez o grande salto por se dar seja para os direitos dos animais
ou da natureza em geral. Esta questão é curiosa. A
tradição jurídica ocidental moderna entende
que direitos pertencem a seres humanos. Se assim for, a razão
de se preservar a Mata Atlântica ou o mico-leão dourado
estaria no interesse (ou direito) dos homens a um ambiente equilibrado,
biodiversificado etc.
Mas basta isso? Quando defendo uma espécie em extinção,
o fundamento de minha ação estará em meus interesses
-ou no direito dessa própria espécie a viver? Não
haverá um direito da árvore, ou daquela espécie
arbórea, do indivíduo ou da espécie do mico-leão,
a viver? Cada vez mais filósofos, juristas -e praticamente
todos os ecologistas- entendem dessa última forma.
E assim pode ser que o arremate dos direitos humanos seja, para além
do homem, uma declaração de direitos dos animais e
até da natureza. Haverá melhor sinal de que essa idéia,
300 anos depois de irromper, continua fecunda e revolucionária?
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética
e filosofia política na Universidade de São Paulo.
(Folha de S. Paulo)
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