A Mércia que conheci
Maria do Amparo Araújo*
Conheci Mércia Albuquerque em novembro do cinzento ano de 1977, recém-chegada a Recife, Pernambuco. Ainda clandestina, eu tinha em mãos uma lista de quatro advogados pernambucanos, três homens e apenas uma mulher advogada; me decidi por ela. Foram indicados pelo Modesto da Silveira; era para procurar só em caso de extrema necessidade ou prisão.
Eu estava sem documentos; o que usei para viajar do Rio de Janeiro para Maceió, uma identidade fria com o primeiro nome Eunice, precisei destruir antes de desembarcar em Maceió. Era essa a orientação do Doutor Modesto, pois se fosse presa daria só uma falsidade ideológica – difícil de provar juridicamente – se identificada apenas pelo tíquete do voo.
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Para piorar a situação, quando vim para Recife de ônibus, de madrugada, peguei um táxi que bateu em outro carro e eu quebrei meu braço direito, justo aquele em que já tinha rompido os tendões quando levei um “coice” de uma 12, em um treinamento em 1971. Acordei no Hospital da Restauração; meu irmão Pedro, que tinha me resgatado em Maceió e ia me acolher na casa dele, estava ao meu lado e inventou uma história para eu ser atendida sem documento. Colocaram um gesso e me liberaram.
Me encontrei com a Doutora Mércia muito provavelmente na primeira quinzena de novembro de 1977, pois a data da minha nova carteira de identidade, “quente”, é de 29-11-1977. Ela estava num escritório num endereço que me deram; me recebeu muito séria e tão desconfiada quanto eu. A conversa foi curta; me informou que para tirar uma identidade eu deveria tirar fotos com uma determinada medida e ir a uma delegacia com minha certidão de nascimento, cópia recém emitida em Palmeira dos Índios, Alagoas. Ela disse: “Aproveite enquanto está com esse braço quebrado... de repente vão agilizar por conta disso aí... por esse seu sotaque... não fale muito, vá arrumada... diga que arrumou um emprego de babá e que precisa tirar os documentos, que iria começar a trabalhar assim que tirasse o gesso”. Quando ia saindo disse ainda: “Deixe meu contato com seu irmão, mas ele só deve me procurar se você for presa; quando sair daqui dê muitas voltas, pegue vários ônibus; com certeza será seguida, fique de olho, pelo menos dê uma canseira neles, todo mundo que vem aqui sai ‘com rabo’...”.
Segui as instruções; passeei um bocado nesse dia, fui até Boa Viagem. Fiquei zanzando até cansar; vez por outra desconfiei de umas figuras mal-encaradas, enfim cansaram-se também.
Enfim, essa era Mércia, clara, objetiva e direta. Anos se passaram, reencontrei Mércia durante os trabalhos da Comissão que indenizou os sobreviventes, presos políticos de Pernambuco; ela era Ouvidora na Secretaria de Justiça de Pernambuco; em seguida foi a pessoa encarregada de ouvir os depoimentos de sobreviventes e testemunhas de mortes e desaparecimentos. Com certeza alguém muito qualificada para contar a história desses “anos de chumbo” do nosso tão desmemoriado país.
Maria do Amparo Araújo, militante da ALN - Ação Libertadora Nacional e fundadora do Grupo Tortura Nunca Mais PE
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