Mércia: a prima bem-humorada, a heroína destemida e a advogada da liberdade
Eliane Aquino
A Dra. Mércia, a advogada do enfrentamento direto à ditadura, era também colo e abraço para os familiares de seus clientes. Acolhia fraternalmente em seu apartamento, no Edifício Ouro Branco, no Centro de Recife, mães, pais, filhos desesperados com as prisões ilegais, espancamentos até a morte e desaparecimentos de muitos de seus parentes. E ela absorvia cada dor, como sua. Não era a frieza para se jogar na defesa de seus clientes que a movia sempre, era, bem além, o seu coração generoso e a sua alma materna ao amparar cada uma daquelas famílias.
No apartamento 52 do edifício Ouro Branco, 5º andar, nunca faltou um café, um chá, uma fatia de bolo, uma sopa e, principalmente, o acolhimento daquela advogada de presos políticos, advogada das minorias, advogada da liberdade e da justiça social. |
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Conta-se que ao saber que seu irmão Sandino tinha sido preso com outros militantes, Mércia foi ao DOPS de Recife. Mandaram que ela entrasse na prisão e levasse seu irmão. Ela encontrou, detido com Sandino, um líder camponês procurado pela ditadura e que ainda não tinha sido identificado pela polícia política. Estava ali, como mais um jovem estudante preso em uma manifestação. Mércia levou o líder, o colocou em um lugar seguro, e só então voltou para buscar o irmão. Ouviu queixas de minha tia, sua mãe, durante muito tempo por ter deixado Sandino na cadeia por alguns dias.
O irmão mais velho de Mércia, Pedro (homenagem ao nosso avô Pedro Batista, ferroviário e comerciante), era militar. Não comungava com ela de sua luta contra o regime comandado pelo Exército, mas nunca a criticou diretamente por sua postura e ela desconfiava que, em alguns momentos, silenciosamente, ele até a protegeu em situações mais duras. Mércia nunca deixou de ir vê-lo, abraçá-lo, amar sua família, sem qualquer empecilho entre eles.
Mércia era íntegra. Inteira. Religiosa, muito família, amparava irmãos, sobrinhos, primos, tias e tios. Era também divertida, gostava de música clássica, MPB e Bossa Nova. Apreciava um vinho, acompanhado de queijo gorgonzola e boas conversas. Era leitora compulsiva. Escrevia muito. Gostava de presentear. Era comum ela me ligar e dizer que tinha me enviado um presente, um livro, uma jóia, uma roupa. E preocupava-se com a saúde de todos, através de bilhetes carinhosos nos incentivando a atividades físicas, alimentação saudável e bom humor.
Era vaidosa (sem exagero), gostava de se vestir bem, estar sempre com os cabelos arrumados e um batom vermelho nos lábios. E por onde passava, falava com entusiasmo sobre seus amores: Octávio, seu marido, companheiro, parceiro, cúmplice, e Aradin, seu único filho. Tinha em casa Maria, que era uma filha para Mércia, e Zé, que ela conheceu certo dia numa feira, já adolescente, e o adotou de coração.
Um legado de coragem, de vida, de amor e de história, a doutora Mércia Albuquerque deixou para o Brasil.
*Eliane Aquino é alagoana, jornalista, prima de Mércia Albuquerque
cartas, telegramas, bilhetes e cartões postais
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