Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Revolucionários
Potiguares em Memórias do Cárcere
Graciliano Ramos
Nosso
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de Produção
Carlos
Wander Linden
Estudante, 04 anos e 04 meses de
prisão
Alcides
Washington Guerra Carlindo
Revoredo Carlos
Wan der Linden Domicio Fernandes
Ephifânio
Guilhermino Ezequiel Fonseca
Filho Gastão
Correia da Costa João
Anastacio Bezerra João
Francisco Gregório João
Alves Rocha José
Macedo Lauro Cortês Lago
Leonila Felix
Mario Ribeiro de Paiva Miguel
Bezerra Morais Paulo Pinto Pereira
Ramiro Magalhães
Paiva Sebastião Felix
Aragão Vicente
Ribeiro da Silva
“O
indivíduo que mais me impressionou ali foi Carlos
Van der Linden, não porque manifestasse qualquer
particularidade vultosa, mas por me haver começado
a expor uma das coisas mais dolorosas engendradas pela
cadeia. Era um rapaz magro, de rosto fino e pálido,
a exprimir resignação, a irradiar simpatia.
Uma dor profunda e serena. Estou a vê-lo sentado
na bagagem, os braços cruzados, os lábios
entreabertos, a arfar. Cobria-lhe o peito débil
uma blusa fina, azul-marinho, de mangas curtas, à
altura dos cotovelos. Chegaram-me, em pedaços
de conversa, em frases incompletas, insinuações
malignas a respeito dessa personagem. Não inspirava
confiança. Porquê? Afirmaram-me vagamente
que Van der Linden de certo modo se ligava à
polícia, pelo menos se ligara. Acusação
de tal monta, lançada sem prova, alarmou-me.
Considerei que eu próprio ainda na véspera
fora tomado como espião. E agora me faziam confidência
de tanta gravidade. Qual o motivo da reviravolta? Despropósito
na suspeita e na segurança com que me falavam,
especialmente na segunda. Afinal os receios se justificavam,
defesa natural. A mudança repentina me sobressaltou:
nenhuma razão para me virem contar segredos.
Busquei evitá-los, contrafeito.
Como as informações se multiplicassem,
tentei saber em que se baseavam. Nada de concreto: sugestões
malévolas apenas. Indícios confusos encorpavam
ali dentro, ganhavam relevo, mudavam-se em provas. Fora
do mundo, aqueles espíritos caíam em forte
impressionabilidade, gastavam as horas longas criando
fantasmas ou admitindo, ingênuos, inventos alheios,
as informações mais disparatadas. Só
mais tarde percebi como embustes grosseiros nos enleiam
no cárcere e esforcei-me com desespero por vencer
o rebaixamento mental, a credulidade estúpida.
Ouvindo
pela primeira vez semelhantes acusações,
procurei reagir, mas talvez já houvesse em mim
um esboço de alma selvagem. Escorregava pouco
a pouco, involuntariamente dava crédito aos boatos.
Seria injustiça? Faltavam-me elementos para julgar;
no meio novo, a repetição da crueldade
verrumava-me na cabeça. Talvez houvesse alguma
verdade nos rumores. Enfim que me importava que houvesse
ou não? Era ali um estranho, e buscava refugiar-me
nos meus pensamentos, olhar pela vigia o litoral branco,
as pequenas ondas luminosas; os pensamentos embrulhavam-se,
partiam-se, voltavam às murmurações
insidiosas, levianas, e a vista se desviava da paisagem
uniforme, ia fixar-se na criatura serena, melancólica,
de braços cruzados, a um canto, respirando mal.
Preocupava-me notar o isolamento de uma pessoa na multidão.
De fato não era bem isso. Dirigiam-se a Van der
Linden, aparentemente ele não se distinguia dos
outros; mas observavam-no, alguns remoques deviam chegar-lhe
aos ouvidos. Se se inteirava da vigilância e das
picuinhas, o nosso inferno era insignificante comparado
ao dele. É uma desgraça necessitarmos
esses pontos de referência para agüentarmos
uma situação difícil: vemos que
alguém sofre mais que nós e deixamos de
julgar-nos muito infelizes. E quem sabe se torturamos
os outros simplesmente com o fim de experimentar-lhes
a resistência? Em última análise
estamos experimentando a nossa Ainda não suportamos
aquilo, mas vemos que é suportável.”
“Escrevi
até à noite. Se houvesse guardado aquelas
páginas, com certeza acharia nelas incongruências,
erros, hiatos, repetições. O meu desejo
era retratar os circunstantes, mas, além dos
nomes, escassamente haverei gravado fragmentos deles:
os olhos azuis de José Macedo, a contração
facial de Lauro Lago, a queimadura horrível de
Gastão, as duas cicatrizes de Epifânio
Guilhermino, o peito cabeludo e o rosário do
beato José Inácio, a calva de Mário
Paiva, os braços magros de Carlos Van der Linden,
o rosto negro de Maria Joana iluminado por um sorriso
muito branco.”
“Van der Linden arfava penosamente, a resignação
no rosto pálido.“
“Revi Carlindo Revoredo, imóvel como no
porão, o estudantezinho João Rocha, Van
der Linden.“
“Enquanto
os dissídios giravam em tomo da interpretação
de uma frase, era fácil enganar-me, não
enxergar neles aleivosia, achar nos outros entendimento
escasso. A denúncia grave, subitamente revelada,
abriu-me os olhos, forçou-me a considerar atento
o meio. Os modos arredios do capitão de nariz
comprido, os intermináveis conciliábulos,
na ausência dele os fuxicos a germinar, depois
um ataque rijo e o destampatório do acusado jogavam
alguma luz sobre fatos anteriores, inexplicáveis,
reforçavam dúvidas, mostravam a conveniência
de precaver-me. Pensei na lista de nomes exposta na
galeria, em tinta azul, na instigação
à greve da fome, inútil e perigosa, na
figura aniquilada e sombria de Van der Linden, no porão
do Manaus. Isso me vinha aos pedaços e não
se entrosava bem. “
“O abafamento. Esta palavra circulou, batizando
a morrinha coletiva e pensei no banzo dos negros, no
mal-triste do gado. Era um nome apenas, mas com ele
nos vinha um começo de explicação.
A história desgraçada nos contaminava.
Abafamento. Não me haviam falado nisso, a moléstia
me pegava de surpresa. Conhecia-lhe os primeiros efeitos,
via de longe viventes combalidos tentando livrar-se
do singular enjôo. Lembrei-me do porão
do Manaus, das trouxas vivas a arfar, a vomitar, na
porcaria extrema. Não me abatera: uma semana
de jejum me deixara lúcido, a mover-me aos solavancos
entre as redes oscilantes, a redigir notas a lápis
no camarote do padeiro. Agora não me seria possível
andar ou escrever. Reminiscências da estúpida
viagem me perseguiam: o cachimbo e a placidez de Macedo,
o estrabismo de Lauro Lago, as mangas curtas de Van
der Linden, a cicatriz de Epifânio Guilhermino,
a careta medonha de Gastão, Leonila e Maria Joana
a torrar num beliche improvisado. Evidentemente isso
eram correlações a que pretendia segurar-me.
Um novo porão anexava-se ao primeiro, sobrepunha-se
a ele, enchia-se de minúcias temerosas, horríveis
por não terem sido vistas por mim: Se aquelas
misérias me passassem diante dos olhos, decerto
não me impressionariam tanto; observadas por
outro, lançadas no papel, não queriam
fixar-se, prestavam-se a exageros e interpolações.
O abafamento progredia, rápido; agora o conhecíamos
e nos tornávamos por isso mais vulneráveis.
A idéia de moscas tontas a desfalecer no inseticida,
batendo as asas lânguidas, vinha-me com insistência.
Algumas procuravam resistir à sonolência
mortal. Em cima, no terraço, os militares excediam-se
na ginástica.”
“E redes a tiracolo, dobradas em rolos, como enormes
serpentes grávidas, chamaram-me a atenção
para algumas figuras do Rio Grande do Norte. Enfileirando-me
à pressa, distingui Macedo, João Rocha,
Van der Linden, José Gomes, o pequeno dentista
Guerra.
“Aquecendo-me ao sol, apoiado a uma estaca da
cerca, distingui várias pessoas conhecidas: Aristóteles
Moura; o português que no Pavilhão dos
Primários cantava como galo; França, o
padeirinho tuberculoso de riso franzido; Van der Linden,
Mário Paiva, Manuel Leal, meus companheiros no
porão do Manaus”
Van der Linden e Mário Paiva também cuspiam
sangue. No porão do Manaus tinham perfeita saúde.
Mário Paiva me bebera meia garrafa de aguardente
e me chateara em demasia: - "Lobato tinha uma flauta.
A flauta era do Lobato." Pobre do Van der Linden.
Já nesse tempo se isolava, cercado por antipatias
contagiosas, vagas censuras encobertas. A velha blusa
de mangas curtas exibia os braços finos, as costelas,
o peito débil. Outro passageiro do Manaus, o
chauffeur Domício Fernandes, estava nas últimas:
perdera a fala e certamente não regressaria ao
nordeste.
“Diante
dessa razão miserável, a arrogância
do padeiro murchou e desapareceu. Fui acomodar-me, envolver
uns restos de zanga nos trapos imundos. Certamente havia
ali pessoas mais doentes que eu; Van der Linden e Mário
Paiva mereciam sem dúvida aquele desgraçado
conforto. Domício Fernandes estava moribundo,
não voltaria ao Rio Grande do Norte. Se não
fosse a bazófia de França, não
me custaria despojar-me em benefício de qualquer
deles. Na verdade me achava bem mal, embora não
vivesse a queixar-me nem avaliasse os estragos, mas
cada vez me arrasava mais. Só pensar no refeitório
me causava náusea, as mucuranas e os mosquitos
perseguiam-me, e agora, na esteira suja, enrolado em
trapos vermelhos de vômitos sangrentos, pensava
na invasão dos bacilos, no rápido extermínio
do organismo indefeso.”
“Van der Linden e Mário Paiva, meus companheiros
no porão do Manaus, cuspiam sangue, coitados,
precisavam realmente sair.
Passei o dia remoendo idéias lúgubres.
Iam enterrar-me ali. Um pacote leve, alguns ossos envoltos
nas duas bandas de lençol tintas de vômitos
sangrentos. Embrulho imundo, anônimo, em cima
de uma tábua. Enfim não pretendiam corrigir-nos:
queriam apenas matar-nos, dissera o guarda vesgo na
primeira noite, procurando esconder o braço pequeno,
atrofiado. - "Quem tem protetor fica lá
fora.”
"As redes nordestinas alargavam-se, enchiam-se
de miudezas, dobravam-se, convertiam-se em malas. Distanciando-se
dali, Van der Linden e Mário Paiva recuperariam
talvez a saúde.”
“Voltei
à mesa, recebi uma xícara enorme, cheia,
bebi sôfrego. Pedi a segunda, a terceira, a quarta.
Apesar de ter o estômago vazio, senti apenas uma
ligeira turvação. Alegre, distanciei-me
da Colônia, desejei conversar e de novo me surpreendeu
a esquisita sintaxe dos paranaenses: - "Nós
disseram." Essa estranha maneira de falar tinha-se
esvaído no burburinho do galpão. Van der
Linden e Mário Paiva tossiam.”
“Ignoro se nos retardamos no botequim à
espera da barca ou se ela chegou antes de nós.
Também não sei se conduzia presos para
a Colônia e se a nossa escolta foi substituída.
As quatro xícaras de aguardente me impediam talvez
observar direito. Lembro-me de haver caminhado nas pranchas
do embarcadouro, saltado na lancha, descido ao porão.
Acomodei-me entre as figuras que se animavam na sombra,
riam, entregues a uma parolagem otimista, cambiando
notícias absurdas a respeito do nosso destino.
Os paranaenses regressariam logo a Curitiba.
Van
der Linden e Mário Paiva seriam enviados ao nordeste.
“
“Esperei
vê-lo acalmar-sé. Enfim o miserável
troço ia ser útil e já não
havia razão para acabrunhar-me. Surgia uma escapatória,
respirei tranqüilo. Não achando resistência,
a cólera do vagabundo subiu. Espantava-me ver
alguém excitar-se daquele modo. Um longo braço
estirou-se para mim, da algaravia atrapalhada veio a
ameaça clara: - Peste! Fingi desconhecer a ofensa;
provavelmente o infeliz bruto ia sossegar. Deu-se o
contrário. Mexeu-se rastejando, chegou-se a mim,
disposto a briga: - Peste! Ergui-me impaciente: - Meu
amigo, vamos deixar de valentia. Você hoje é
incapaz de fazer medo a uma criança. Está
arrasado, não agüenta um empurrão.
Para que barulho? Pensa que vou dormir nessa porcaria?
Tome conta dela. Há mais dois companheiros com
os pulmões estragados Arrumem-se vocês
três, que necessitam.
Van
der Linden e Mário Paiva ensaiaram recusa, depois
abriram as redes, tiraram lençóis, foram
acomodar-se nas tábuas.
Por cima da cabeça de Herculano, eram visíveis
alguns vultos caídos também na terra úmida,
e, vinte centímetros acima deles, Van der Linden,
Mário Paiva, os ombros curvos de Raimundo Campobelo.”
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