Gibran, Khalil Gibran. O Profeta,
Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1970.
PENSAMOS
NOS OUTROS?
Produtos
de uma cultura hipócrita, onde as convenções ocupam o lugar da moralidade,
aprendemos a “pensar muito nos outros”, não por causa deles, não
porque sejamos solidários, mas por causa nossa, porque nos cremos
sem valor, carentes da validação alheia. Não podemos viver sem aprovação
e por isso falsificamos nosso interesse pelos demais, porque tememos
sua rejeição. Assim, ocupamos grande parte do tempo de nossas vidas,
gastamos nossas energias, pensando “no que vão pensar de nós”, se
fomos realmente compreendidos, se dissemos a palavra certa na hora
certa, se causamos admiração, as vezes se causamos inveja (há quem
goste de fazê-lo), se viram nossas roupas bonitas, nosso carro novo,
nossa casa confortável, se impressionamos bem no primeiro contato,
se nos “amam”, se “arrasamos” com aquela nova namorada linda ou
com aquele namorado charmoso. Esse é, na verdade, um tempo de não
viver, porque, no fundo, não estamos cuidando nem de nós nem deles.
Estamos cuidando apenas de “fazer parte”.
O
QUE SE ESCONDE ATRÁS DA “IMPRESSÃO DOS OUTROS”
Sem
qualquer paranóia ou visão mecanicista, é preciso dizer que há razões
político-econômicas, como sempre, para agirmos dessa forma. O desejo
permanente de aprovação nos intimida a ousadia, nos castra a criatividade,
nos apavora com a possibilidade de sairmos do “rebanho”, de diferirmos,
de dissentirmos, de contestarmos. É politicamente bom, para a unidade
e estabilidade do sistema, que estejamos tão preocupados e ocupados
com a opinião alheia. Somos adestrados, desde a mais tenra idade,
para colocarmos fora de nós mesmos o nosso foco de segurança. É
uma “roubada”! Vamos sofrer muito, pela vida afora, por causa disso.
Os outros jamais poderão nos dar o que não nos damos. Muito provavelmente,
neste mundo competitivo, inúmeras vezes, vão nos oferecer mais frustrações
do que afagos.
AMAR
E MANIPULAR
Isso
é verdade inclusive e especialmente na área do chamado “amor romântico”.
O sempre excelente Flávio Gikovate diz que, em seus mais de trinta
anos como psicoterapeuta, grande parte dos pacientes que recebe
o procura por estar “sofrendo de amor”. O fundo desse sofrimento
é uma incapacidade real de amar e uma procura do outro como “metade”,
como complemento, o que, evidentemente, é fenômeno de caráter absolutamente
egocêntrico. O outro é usado como objeto resolutor da sensação de
incompletude, coisa
geralmente bem sucedida nos estágios iniciais mas que não pode durar
muito, como não dura muito qualquer idealização e ilusão. Não deixa
de ser também um fenômeno do consumismo: no grande mercado afetivo
procuramos um alimento que possa saciar nossas carências particulares.
Descrevendo
em especial a fase da paixão, em suas interconexões com a falta
de auto-aceitação, o Dr. Gikovate afirma:
“É
o total desaparecimento de qualquer sentimento de inferioridade;
é a aceitação de si mesmo por se sentir amado pelo outro...”
“Aqui,
com mais vigor que nunca, o amor é o perfeito remédio para a totalidade
dos sentimentos de inferioridade e das coisas até então inaceitáveis
que todos nós sentimos ter; por sua total eficácia, tal remédio
gera inevitavelmente uma forte dependência, e nisto a paixão se
assemelha a qualquer toxicomania...”
“É
um estado de total alheamento, que em muitos aspectos se assemelha
a estados psicóticos mais graves, com a diferença básica de que
aqui o processo envolve mais de uma pessoa. “
“O
básico neste processo de validação é que a aceitação de si mesmo
não assume de forma alguma o caráter interiorizado e independente
do outro. Assim, a validação tem que ser repetida indefinidamente...”
A
teia de problemas que redunda de nossa falta de auto-estima é complexa,
de difícil resolução, e nos acompanha pela a vida afora, mesmo nas
áreas que deveriam estar reservadas à satisfação.
Esse
inconsciente mas não inocente processo manipulatório de destituição
da segurança pessoal começa em nossos anos iniciais e segue pela
adolescência, agenciado pela família. É toda uma carga pesada de
ideologia centrada nos desejos e expectativas do mundo a nosso respeito,
como profecias de cumprimento obrigatório, sem o que ficaremos sós,
abandonados, à mercê do terrível “nós mesmos”.
CURRÍCULO
E ALIENAÇÃO DO AUTO-CONHECIMENTO
A
escola se agrega poderosamente a isso, coisa revelada na conformação
de seu currículo. De que maneira isso ocorre? Em um processo de
montagem da negação da importância do que é pessoal, através da
eleição dos objetos do conhecimento.
Se
analisarmos rapidamente os currículos escolares, será fácil perceber
(mesmo após alguns felizes ventos liberalizantes da nova LDB) o
quanto de tempo é reservado pelos mesmos à estruturação e abordagem
do auto-conhecimento.
Ora,
só podemos estimar o que conhecemos minimamente. E só podemos conhecer
a partir da interação, do estímulo, da provocação, da “desequilibração”
facultada pelo outro. Se não há espaço e tempo para isso, fatalmente
nos tornamos seres de “externalidades”, alienados do que somos.
Segundo Stanislav Grof, nessa dimensão só podemos ser infelizes.
“Do
ponto de vista de observações da terapia experimental profunda,
certas lutas por finalidades externas e pela busca do sucesso no
mundo são de pouca valia para superar os sentimentos de inadequação
e baixa auto-estima.
A conseqüência real dessas tentativas não parece de grande importância.”
“A
não ser que o indivíduo tenha sucesso e encontre sua identidade
própria dentro de si mesmo, qualquer tentativa de conferir sentido
à vida por meio de conquistas externas e do mundo exterior será
uma cruzada quixotesca, fútil e derrotadora.”
Os
currículos escolares são quase totalmente alo-referenciados.
Crianças e adolescentes, em plena efervescência potencial
e real de suas descobertas, em seu pleno despertar para a vida,
praticamente não têm tempo para pensarem-se a si mesmos. Na família,
em geral, mantém uma conversação rasteira, superficial (quando o
fazem) e na escola estudam “matérias” - importantes sem dúvida -
que lhes parecem ter caráter absolutamente esotérico quando diante
de suas emergências corpóreas, emocionais, afetivas e espirituais.
Aprendemos
na escola alguns rudimentos de matemática, de português, de literatura,
de física, de química, de biologia, de história, de geografia, de
educação física, e praticamente nada sobre namoro e casamento, sobre
confidência e amizade, sobre corporalidade e exercício construtivo
da sexualidade, sobre tolerância e resolução de conflitos, sobre
aceitação e confiança, sobre personalidade e temperamento, sobre
preconceito e celebração das diferenças, sobre família e limites
culturais das gerações, sobre sonhos pessoais e seus caminhos de
realização, sobre busca da plenitude e contemplação dos grandes
mistérios do universo.
Não
é à toa que, quando questionados sobre o que mais gostam na escola,
os alunos respondem, em uníssono: “do recreio!”
OCUPAR
E ABDUZIR
Como
se não bastasse, os pais os enchem de atividades no período em que
estão fora das escolas (ballet,
natação, academia, cursinho de inglês, de espanhol, de francês,
de alemão, artes marciais, ginástica rítmica, instrumentos musicais
e todos os clubes e atividades congêneres). É preciso mantê-los
ocupados, distraídos, dispersos na exterioridade, para que dêem
menos trabalho, para que incomodem-nos menos, para que consumam
menos de nosso tempo com suas necessidades, curiosidades e perguntas.
É claro que a desculpa oficial é que se está tratando da qualificação
deles, do investimento no seu futuro.
Para
algum outro restinho de tempo que pudesse sobrar-lhes, o “complot”
pais/professores dá um jeito de empurrar todo tipo de entediantes
mas absorventes “temas de casa”. Ai da escola que não o faça! Os
pais reclamam da “queda de qualidade”: “Que decadência! Eles não
têm ‘nada’ para fazer em casa!”
Não
estou defendendo o “dolce far niente”, a falta de limites, o tempo
desocupado e desassistido,
nem a total ausência de tarefas acadêmicas para casa, quero
deixar claro. Quando se questiona os adultos, eles sempre procuram
escapulir por esses enquadramentos fáceis, essas rotulações, essas
estereotipações de quem o faz.
É
claro que precisamos estar muito presentes, ajudar a ordenar a vida
dessas crianças e jovens sob nossa responsabilidade, balizar-lhes
minimamente, propor-lhes tarefas e atividades interessantes e envolventes,
não deixar-lhes à própria sorte, ou azar. Mas para mim também é
claro que não é isso o que fazemos. Nós os ocupamos,
simplesmente, acriticamente, sem qualquer análise mais profunda,
sem qualquer linha, sem qualquer norte, sem qualquer seleção equilibrada
de ações que possam também apoiá-los no encontro com seu interior,
no diálogo, na auto-análise, no exercício da solidariedade e das
coisas do espírito. Em quantas dessas “escolinhas”, clubes, academias,
eles têm qualquer oportunidade de explanarem seus anseios e esperanças,
exporem suas dúvidas, buscarem orientação no campo dos valores,
trocarem experiências sobre as respostas às suas interrogações existenciais,
ajudarem os semelhantes? Quantas atividades que recebem para casa
significam mesmo alguma coisa encantadora, que valha a pena? É praticamente
só adestramento!
Nós
os raptamos de si mesmos e depois reclamamos do quanto são alienados,
egoístas, individualistas e agressivos.
A
escola e a família deveriam ser, antes de tudo, lugares de elaborar,
de trabalhar, de celebrar os projetos de vida pessoal e também os
coletivos.
Só
alguém que saiba e goste do significado de sua vida poderá alcançar o significado dos saberes outros que, como
competentes ferramentas, poderão ajudá-lo na consecução de seus
projetos.
Até
para estudar e aprender é preciso conhecer-se e viver com auto-estima...
4.
Educar para a alo-estima
Em
nossa sociedade fala-se muito em “direitos” e quase nada em “deveres”
Talvez seja um grave erro pedagógico, no contraponto do autoritarismo
assumido do passado, pelo qual estamos pagando caro.
Sempre
que se diz isso, alguém argumenta que é uma perspectiva conservadora,
que junto a cada direito subentendem-se “responsabilidades”.
Gikovate, Flávio. Dificuldades
do Amor, MG Editores Associados Ltda., São Paulo, 1975.
Grof, Stanislav. Além
do Cérebro, Makron Books do Brasil Editora Ltda, São Paulo,
1987.
O
QUE SABEMOS ENTENDER
Em
primeiro lugar, gostaria de dizer que talvez seja insuficiente “subentender”.
Vivemos no mundo da comunicação fácil, “enlatada”, que desacostumou
as pessoas a qualquer forma de exegese. As mensagens são ordenativas,
passadas em profusão, em meio a um ritmo alucinante de estudo, trabalho
e mesmo “lazer”, atividades essas, todas, de caráter muito absorvente
e extenuante. Nesse contexto, o que vemos, ouvimos e até lemos,
repetitivamente, não deixa de ter uma certa força hipnótica, uma
certa função de “lavagem cerebral”.
Ao
consumirmos tudo, consumimos também o que dizem que somos, que podemos,
o que pensam de nós e para nós. Não temos grande intimidade com
coisas que precisam ser “depreendidas” de outras. É uma cultura
de estupidificante objetividade!
Portanto,
parece-me pouco saber que dos direitos se depreendem deveres.
Se
tivéssemos espaço e tempo para aprofundar popularmente tal reflexão
talvez as coisas funcionassem bem dessa forma, mas não os temos.
Ao
falarmos muito em direitos e praticamente nada em deveres podemos,
sem querer, somar-nos à voz subliminar (as vezes nem tanto) da ideologia
que diz que “é preciso levar vantagem em tudo”, custe o que custar,
doa a quem doer. Não se pode depreender isso do discurso pelos direitos,
mas é o que os indivíduos podem gostar de entender...
Talvez
devêssemos ser mais claros, não deixar tanta margem de manobra.
HÁ
DEVERES?!
Em
segundo lugar, devo dizer que creio que poderíamos dispensar a afirmação
pelo eufemismo e chamar “deveres” de “deveres”. É claro que isso
significa “responsabilidades”, mas estas não podem ser opcionais
na vida em sociedade. São obrigações mesmo! Não há porque escamotear
o fato de que temos obrigações para com nossos semelhantes. Melhor
será se o fizermos por afeto universal, por consideração, mas isso
não nos libera de compreendermos que para viver em sociedade é
preciso respeitar limites, os direitos alheios, independentemente
do grau de evolução de nossa consciência moral. Os deveres são responsabilidades
que não deixam de ter um caráter restritivo obrigatório,
sem o qual estaríamos à mais completa mercê do egoísmo e da barbárie.
Com
o perdão da ousadia, essa talvez seja uma daquelas realidades que
se podem encaixar no conceito de “zona de desenvolvimento proximal”.
Através da consciência moral do educador e de seu exemplo, evidentemente,
a aprendizagem moral “pega uma carona”, serve-se da experiência
alheia e evolui para elaborar tudo isso no patamar posterior da
autonomia. Dificilmente o educando, com pouquíssima experiência
de vida e deixado à própria sorte de suas pulsões, superestimuladas
pelo fato de saber que está “cheio de direitos”, conseguirá olhar
atenciosamente para o outro e percebê-lo como uma boa razão para
controlar seu afã de ganhar e aumentar seu poder.
É
claro que o objetivo superior é chegar a uma consciência solidária,
à assunção interior do valor alheio. Não creio, contudo, que isso
se consiga espontaneamente. Como tudo em educação, também esse fenômeno
precisa ser desafiado, provocado, trabalhado na visão gramsciana
de construção “contra-hegemônica” à ideologia do sistema. No mundo
em que vivemos, é mais fácil ser fera do que ser gente.
OS
BRUTOS NÃO SE AMAM
Aqui,
é preciso fazer uma interconexão com o item anterior e lembrar que
só quem se estima pode estimar. O egoísmo é prova cabal da falta
de auto-estima. Os egoístas basicamente temem a vida, porque sentem-se
frágeis, porque crêem que a qualquer momento podem ser destituídos,
roubados, atacados e não possuem reservas. Não sabem onde está seu
tesouro, porque ele não está no coração. Precisam conquistar o mundo,
antes que o mundo os destrua. Como não se estimam suficientemente,
buscam no exterior a proteção contra as adversidades e os ataques
terríveis dos quais se julgam alvos reais ou potenciais.
Dessa
forma, na convergência das duas dimensões, tanto na escola quanto
na família, ao lado do aprender a querer-se bem, o olhar contemplativo
para o outro, o esforço honesto para colocar-se “em seu lugar”,
o aprender a escutar com atenção, o cultivo de espaço para o respeitoso
exercício de diferenças, o aprender a elaborar frustrações, o exercício
(altamente realizador) da interajuda, devem ser facultados à
partir de uma abordagem
sistêmica , contínua, prioritária, não casual.
ERRO
E REPARAÇÃO
Igualmente,
não devemos sentir-nos culpados quando precisarmos lançar mão, criteriosamente,
das “sanções por reciprocidade”, propostas por Piaget.
Reparar
o prejuízo social cometido, responsabilizar-se por ele, assumir
suas conseqüências, em um contexto de firme carinho, não é traumatizante,
é humanizante.
O
contrário seria estimular, pela inconseqüência, a estruturação de
personalidades sociopáticas, infelizes e causadoras de infelicidade.
Sobre
a questão da formação do juízo moral e dos limites, gostaria de
recomendar fortemente aos colegas educadores a imprescindível leitura
daqueles que considero os mais clássicos e originais pensadores pedagógicos na área: Jean Piaget, em seu inigualável e já citado
“O Juízo Moral na Criança”
e Lawrence Kohlberg,
que fez seus estudos mais direcionados para o universo adolescente
e também adulto. Kohlberg não deixou, como outros, suficientemente
condensada sua obra, em grande parte espalhada em magníficos artigos
de rara tradução para o português ou o espanhol, mas sugiro a leitura
de seus seguidores ou comentaristas, como Duska e Welan ,
Josep Maria Puig e, para os já “iniciados”, que estejam dispostos
a um aprofundamento fecundo mas um tanto hermético, Jürgen Habermas.
REFLETIR
SOBRE O FENÔMENO DA VIOLÊNCIA
Nessa
direção da realizadora (para ambas partes) estima pelo outro, é
inevitável que a educação reflita sobre sua antítese, que se expressa
na violência.
Imersos
na agressividade desmedida que domina o planeta, é importante que
crianças e jovens saibam reconhecer-lhe as causas e articular alternativas.
Como
temática, essa é uma das frentes que não pode estar ausente da escola.
Por
exemplo, em relação à ditadura da mídia eletrônica, é fundamental
que ajudemos os pré-adolescentes e adolescentes a fazerem uma leitura
crítica do que assistem na TV ou do que jogam nos seus games.
Não
podemos evitar que estejam diariamente em contato com esses meios
e qualquer tentativa nessa direção estaria fadada ao fracasso e
ao ridículo. No entanto, temos o dever de não deixar que essas máquinas
e programas – e os que estão por detrás deles - “maternem” nossos
filhos e alunos.
De
forma alguma defenderia a censura e reconheço não haver democracia
sem liberdade de expressão, mas a gravidade dos rumos da história
nos impõe a responsabilidade de alertar as pessoas para esse fenômeno
chamado por alguém de “midiocracia” que, de forma insidiosa, vai
se estabelecendo como alternativa ao poder democrático.
A
“FABRICAÇÃO DO CONSENSO” E A ESCOLA
A
mídia realiza incessantemente o exercício de poder mais relevante
e perigoso da contemporaneidade, trabalhando naquilo que Noam Chomski
chamou de “fabricação do consenso”,
isto é, numa espécie de indústria totalitária do que as pessoas
devem pensar e fazer de si mesmas e das outras.
É
assustador, porque não há formas de grande alcance para denunciá-la
ou para se contrapor à sua hegemonia. Ou melhor, talvez haja uma
única instância que poderia afrontá-la com alguma chance expressivamente
contra-hegemônica, se tivesse consciência para isso: a escola.
Como
a mídia não tem qualquer vocação suicida e não vai questionar-se
e desconstruir-se a si mesma, só consigo perceber na escola - é
claro que em outro tipo de escola - recursos e extensão para fazê-lo.
Aos que possam pensar em um suposto caráter ingênuo de tal afirmação,
gostaria de lembrar a discussão precedente, espalhada pelos capítulos
três e cinco: a escola não precisa ser, obrigatoriamente, mera reprodutora
da ideologia dominante e distribuidora acrítica de informações;
ela já é, em “nichos”, é verdade, mas pode ser muito mais genericamente,
produtora de cultura e construtora de projetos alternativos.
VER,
OUVIR, ACEITAR O ABSURDO
Por
ora, lamentavelmente, o que temos no controle é uma mídia servil
à banalização da violência, coluna fundamental de todo um sistema
de exploração, injustiça e
perversas disparidades. É preciso inocular-nos a doença psicológica
da passividade, é preciso tornar cada vez mais comum o absurdo,
para que não nos escandalizemos, para que não nos revoltemos, para
que achemos que as coisas são “normais” do jeito que são.
Por
isso, praticamente tudo o que passa em rede aberta de televisão
é lixo, vulgaridade, erotização chula, escândalo, tragédia, fofoca,
terror, violência. Até mesmo os programas humorísticos, que deveriam,
por definição, trazer alegria e leveza às nossas vidas, estão estribados
nos mais grosseiros preconceitos, no mais despudorado cinismo e,
as vezes, na mais cruel selvageria ideológica voltada a escrachar
os pobres e trabalhadores (vide o caso do global
“Sai de Baixo”). Os canais por assinatura são um pouco melhores
mas, de maneira geral, não fogem à regra. A maioria dos videogames
deveria fazer chorar qualquer adulto que tenha um mínimo de discernimento
ético. Em termos de contexto familiar, nossas crianças e jovens
convivem mais com eles do que conosco, é forçoso reconhecer.
CULPA
x INVESTIMENTO
A
culpa , nesse caso, por nossa pequena disponibilidade, não resolve
nada. Salvo raras exceções, precisamos trabalhar e isso toma tempo.
Melhor seria assumirmos uma atitude positiva e qualificarmos as
limitadas possibilidades que temos de conviver. Nenhuma rede de
televisão poderá competir com nosso afeto, nossos “olhos nos olhos”,
nossas trocas de emoção, nossa razão construída no diálogo, evidentemente
desde que estejamos dispostos a viver e vivamos com nossas crianças
e jovens a busca dessa intensidade. Tal diálogo precisa, necessariamente,
compor-se, em muitos momentos, de uma análise crítica do que estão
jogando e assistindo, não com o fito de reprimir mas de elucidar.
Como
disse, mais do que a família (ainda que, com esse reconhecimento,
não estejamos desculpando a ausência da mesma),
a escola teria privilegiado tempo e recursos para ajudá-los
nisso mas, em geral, não o faz. Que espaço há, nela, reservado para
a crítica da “montagem” da cabeça de seus alunos, da publicidade
que inventa suas necessidades,
dos ícones, em sua maioria vazios de sentido e cheios de ódio e
narcisismo, que os inspiram?
“Se
vamos cuidar também disso, chega o fim do ano e ainda não terminamos
a matéria...” Sei. Compreendo o argumento e também o que está por
trás dele. Viva o mercado! Viva o vestibular (claro, já sei que
“ele existe e não podemos ignora-lo”) ! Deixemos que assumam o papel
simbólico, desejado (mas as vezes assustadoramente real) de “exterminadores”,
desde que, no final do bimestre, ponham as “cruzinhas” no lugar
certo...
Se
apenas passarem o tempo todo fazendo isso “certinho”, ao terminarem
o ensino médio atravessarão o “grande funil invertido” e suas famílias
poderão colocar umas faixas bem bonitas nas entradas das casas e
nas janelas dos apartamentos. As escolas e cursinhos os acrescerão
às suas estatísticas e listas de “vencedores” e tudo estará resolvido,
tudo estará bem, todos estarão salvos!
OS
“GÊNEROS” SÃO DOIS
Ao
abordarmos a questão da alo-estima e de seu oposto, a violência
sob todas as suas formas, é inevitável que proponhamos um tema casado,
que também deveria estar, necessariamente, presente na escola: a
reflexão sobre “gênero”.
É
interessante perceber que sempre que se fala em gênero temos a imediata
tendência em pensar no feminino, na opressão da mulher e em sua
luta de libertação.
Evidentemente,
essa é uma dimensão relevante, mas já um tanto banalizada.
As
mulheres ainda são discriminadas, na maioria dos países fazem o
mesmo trabalho dos homens e ganham menos, em parte do mundo islâmico
são proibidas de ter prazer e mutiladas genitalmente, nas classes
populares continuam apanhando de maus maridos e, genericamente,
em quase cem por cento dos casos (digo isso por considerar como
uma evidência empírica) não deixaram de enfrentar solitariamente
a odiosa “dupla jornada de trabalho”, jornada que do emprego se
estende ao lar. A luta continua e, não só mulheres mas também nós
homens humanos, estamos convidados a reforçá-la. No entanto, tenho
certeza de que é questão de pouco tempo.
ASCENDÊNCIA
FEMININA
As
bravas ascendentes estão vencendo em todas as frentes. Nos segmentos
mais sofisticados, como por exemplo entre executivos, já apontam
tendências de pagar melhor as mulheres do que os homens (porque
atuam mais eficientemente com o que se convencionou chamar “inteligência
emocional”), nos ambientes acadêmicos são cada dia mais dominantes,
em setores da mídia já “ancoram” mais do que eles, nas artes e espetáculos
dão um show de brilho e inteligência, ainda estão longe do predomínio
masculino na política mas já avançam sobre fatias importantíssimas
que antes se lhes mantinham inacessíveis (sem qualquer viés partidário,
preciso lembrar que, há algum tempo, no Congresso Nacional, acompanhando
a competente Deputada Marta Suplicy pelos corredores, vi eminentes
senhores abrindo portas e se escondendo para não enfrentá-la, “leões”
gaguejantes se justificando, um misto de respeito, reverência e
temor masculino por todos os cantos).
A
julgar pela esperteza intelectual média das adolescentes na escola
e pós-adolescentes na universidade, ao lado da mediocridade média
masculina, o destino dos sexos nas próximas décadas está selado.
Se percebermos, a par disso, que nos estratos por excelência formadores
de opinião, classe média e média-alta mais precisamente, elas têm
o mais absoluto controle das vidas dos filhos e maridos, essa perspectiva
de poder chega a se tornar perigosa.
Aqui,
é preciso que comecemos a pensar com alguma profundidade maior a
questão de gênero, saindo um pouco da velha “lengalenga”, do lugar
comum.
“VINHO
NOVO EM ODRE NOVO”
Em
primeiro lugar, deveríamos, em especial as próprias mulheres, ficar
alertas para que o matriarcado não termine por substituir o patriarcado.
Ambas são odiosas formas de sexismo e autoritarismo. É obvio que
ainda estamos longe dessa ameaça do ponto de vista do controle formal
da sociedade, dirão, com justiça, as feministas, com
minha concordância. O machismo predomina. Contudo, como os
avanços são vertiginosos nos dias que seguem e os cuidados éticos
nem tanto, não custa prevenir.
Seria
adorável ver-nos livres da opressão masculina e abominável substitui-la
pela opressão feminina.
Correndo
sérios riscos (em relação aos dois gêneros), ouso dizer que, diante
do “amorfismo”, da apatia, da alienação, da “patetice” média dos
homens, esse fenômeno do matriarcado já é uma sufocante realidade
nos lares de classe média e média-alta. Autorizo-me a afirmá-lo
por vinte anos de convívio com adolescentes e seus pais.
Alguém
poderia contrapor com uma “abobrinha sociológica” do tipo: esse
“foi esse o único reduto de poder que sobrou à mulher”. No passado
talvez sim. Hoje não é mais. Nessas classes, que volto a dizer,
são as grandes formadoras de opinião, elas são “deusas” no trabalho,
na sociedade do entorno e também em casa.
Sinto-me
tranqüilo para fazer essa abordagem. Quem me conhece sabe que sou
um velho militante feminista. Nas conferências que dou sobre o tema
sinto que os colegas homens desejariam linchar-me. Mas não posso
me furtar de dizer que não gostaria que as mulheres se transformassem
no que eram os velhos machos até porque, mais articuladas e competentes
do que eles, oprimiriam com muito mais requinte e habilidade e manipulariam
com muito mais destreza.
CAÇAS
E CAÇADORES (RAS)
Creio
que uma ponta desse terrível iceberg pode estar aparecendo na conduta
sexual contemporânea. Evidentemente os homens estão amedrontados!
Aquela viscosa agressividade machista do passado vai dando lugar,
a cada dia que passa, a uma invasiva conduta feminina. É como uma
troca de papéis entre presas e predadores. Não, não acho que esse
papel caiba ao homem. Não, não tenho nada de chauvinista. Acho que
entre seres humanos ninguém precisa “avançar” sexualmente sobre
ninguém, ninguém precisa constranger o outro, como acho que nem
homens nem mulheres precisam “coçar as partes” e escarrar no chão
(ai de nós se as mulheres começarem a fazê-lo!).
Com
o perdão do sarcasmo, o que quero dizer é que precisamos de paradigmas
novos na questão de gênero.
TRISTES
TIGRES
Não
resisti à tentação de tergiversar um pouco e de provocar fraternalmente
o movimento de emancipação feminina, mas onde queria chegar era
precisamente no “ressignificar o masculino”.
A
libertação das mulheres sempre será incompleta sem a libertação
dos homens. Este ano, no Dia da Mulher, ao palestrar para elas no
Banco do Brasil, pedi-lhes encarecidamente que ajudassem os homens
a descobrir seu lugar no mundo. O feminismo contemporâneo precisa
passar pelo masculino.
Nesse
momento retomo o foco da presente reflexão sobre alo-estima, ao
considerar a atitude e o comportamento masculino. A violência explícita
que assusta o planeta vem praticamente toda daí. Os presídios e
as unidades de privação de liberdade das FEBEMs, por exemplo, estão
abarrotados de homens. Quase não há mulheres, estatisticamente falando,
em situação penal. As gangs, salvo raras exceções, são basicamente
masculinas. As guerras, onde quem mais sofrem são as mulheres, os
idosos e crianças, são decretadas por homens (ou por mulheres com
uma persona masculina).
De
onde vem tudo isso? Eu diria que dos seguintes fatores:
1º
- O estereótipo do “homem macho”:
Há
uma ideologia, herdada do patriarcado, hoje não mais que uma persistente
seqüela, do que deva ser um homem. Ele é, nessa visão, o condutor,
o provedor, o juiz, o protetor, o defensor, o conquistador. Ele
é mais a imagem e semelhança de Deus e Deus também é constituído
à imagem e semelhança dele (é interessante pensar que nas sociedades
matriarcais a dimensão divina era identificada com o feminino, da
mesma forma que nas nossas, patriarcais, o é com o masculino).
2º
- A “educação” do “homem macho”:
Para
serem bons atores da ideologia acima, os homens têm que passar por
um processo de adestramento que leva muitos anos, a fim de se portarem
como deuses (ou demônios) insensíveis.
Isso
começa cedo. Brincam de coisas agressivas, “marcam territórios”,
brigam usando mais o físico do que os neurônios, jogam esportes
violentos, desprezam as meninas como fracas e jamais se misturam
com elas para imaginar coisas sensíveis, simbolizarem ritos domésticos
ou simplesmente conversarem. Quando começam a sentir permissão para
se aproximar, é com o fito de “coleciona-las”, de mostrar aos iguais
seu poder sedutor (como o machismo é, sempre, enrustidamente homosexuado!),
de usá-las para algum proveito próprio.
Amigos
de verdade, em geral, não têm, porque um amigo é sempre um confidente
e homens não trocam confidências. Homens tem companheiros, com quem
bebem cervejas e vão ao futebol!
Em
geral não gostam de mostrar sentimentos. Isso é identificado com
fraqueza. Homens não choram ou, se o fazem, choram escondidos. A
quem me diz que as coisas não são mais assim recomendo que vá a
qualquer desses filmes de arte para masoquistas (onde os homens,
que preferem Stalones e Shwarzenegers, só vão carregados pelas namoradas),
desses que celebram a impotência, a doença, a morte, a depressão,
com desapiedada competência sentimental. Recomendo que vá e repare
em volta na hora da saída. As moças estarão se debulhando em lágrimas
e os rapazes com caras de “choque emocional”.
O
resultado de tudo isso é o contrário. Nos tornamos mais fracos.
Morremos mais cedo, adoecemos mais do coração, enlouquecemos mais
porque estamos envenenados de dores que não podemos externalizar
e de alegrias que não podemos gritar (exceto na hora do jogo).
3º
- A perda da ilusão de “potência”:
As
características acima soam algo patéticas, em um mundo que não precisa
mais delas (ao menos no mundo que “dá o tom”, ocidental, pós-industrial).
Esses
senhores fortes foram totalmente desmoralizados pelos desnudamentos
da psicanálise (ainda que a mesma pareça muito machista em alguns
aspectos), pelas ciências sociais, pelos estudos antropológicos
e, principalmente, pela ascensão das mulheres. Enquanto eles jogavam,
contavam anedotas sexistas, bebiam suas cervejas, arrotavam alto,
corriam loucamente nas motos e automóveis e morriam nas guerras,
confirmando todos os clichês, elas estudavam, se reuniam, ascendiam
por dedicação profissional e conquistavam o mundo.
Os
homens sentem-se roubados! Já não têm coragem de ser o que eram
e não fazem a menor idéia do que são! Isso gera uma enorme carga
de frustração e agressividade.
Nunca
tiveram muita relevância como pais e rejeitaram tudo o que é doméstico.
No mundo fora do lar também acabaram perdendo importância por terem
visto como fraqueza as atividades intelectuais, especialmente nas
áreas das humanidades. Repentinamente, mergulharam em um mundo altamente
complexo, que exige novamente o conhecimento do generalista ao lado
da especialidade. Desprezaram as emoções e acabaram dando de cara
com um mercado de trabalho que seleciona a partir de testes de Q.E.
(Quociente Emocional). Que lhes sobrou? Que restou para eles, frutos
de uma ideologia anacrônica, de uma horrorosa educação dessensibilizante,
da perda progressiva e percebida de todos os tronos? Sobrou-lhes
a raiva, a violência!
É
um dos casos típicos em que a falta de auto-estima redunda em falta
de estima pelos demais.
Ao
educar para a alo-estima, a família e a escola não têm o direito
de fingir que não vêem essa realidade.
Ressignificar
o masculino, ressocializar o homem, permissionar-lhe os sentimentos,
dar-lhe licença para o exercício da fragilidade, ajudá-lo a aprender
a rir e chorar, ao lado de reforçar as conquistas positivas do feminino,
evitando as contaminações do estereótipo recusado, é o mais competente
exercício educativo que podemos fazer para reduzir a violência disseminada
e, sem qualquer exagero, salvar o planeta em que vivemos.
5
- Educar para a Democracia
Partindo
do pressuposto de que,
apesar de todos os seus defeitos, não conseguimos encontrar um sistema
melhor do que a democracia, precisamos pensar como a escola se relaciona
com sua sustentação criativa, como ela abre espaços e emula ou não
seus educandos a viver de acordo com os princípios que a norteiam.
Isso,
em primeiríssimo lugar, tem tudo a ver com as possibilidades internas
de expressão e organização.
Concordo
com quem disse que “liberdade é também e sempre a liberdade de discordar”.
Podemos perceber o grau de disposição democrática de uma escola
pelo espaço que abre para a livre concordância ou discordância entre
seus sujeitos interagentes, alunos, professores, direção, funcionários.
Não
estou propondo aqui a luta por poder e controle, que nada tem de
democrática mas, ao contrário, é imobilizadora e favorecedora do
oportunismo. Refiro-me à prática real do diálogo, que sempre inclui
o contraditório.
Se
os funcionários precisam trabalhar calados e submissos, porque equivocadamente
não são incluídos no “campo pedagógico”, mas considerados apenas
“burocratas” ou “servidores sem conhecimento” acadêmico; se os alunos
(os “sem luz”) devem acatar as proposições teóricas, morais e ideológicas
de seus professores, sem qualquer direito a contestá-las civilizadamente;
se os professores não participam da elaboração da caminhada pedagógica
mas são seus simples executores, bem vistos quando concordam e elogiam
e “incompetentes” quando ousam perguntar, questionar ou criticar
fraterna, aberta e honestamente as orientações oficiais; se os diretores
precisam tão somente “cumprir” as decisões emanadas das secretarias
de educação, dos conselhos, das mantenedoras, então, evidentemente,
não há democracia na escola. Isso significa que tampouco se pode
educar as pessoas para que vivam democraticamente, uma vez que só
podemos consolidar uma prática se a vivenciarmos. Significa, igualmente,
que essa escola será medíocre em termos de avanços pedagógicos (uma
vez que os operadores não estão deles convencidos e nem por eles
mobilizados), paupérrima em termos de produção acadêmica (o medo
é antitético à criatividade) e insignificante para o desenvolvimento
da comunidade imediata e da grande sociedade onde está inserida.
Nesse
clima, a médio prazo, as pessoas perderão o desejo de expressar-se,
até por falta do que expressar, uma vez que a negação do livre-pensar
vai atrofiando a capacidade do simples pensar . Em seu livro “O
Medo à Liberdade”, Erich Fromm afirma:
“O
direito de expressar nossos pensamentos, sem dúvida, tem algum significado
tão somente se somos capazes de ter pensamentos próprios...”
DEMOCRACIA
x MEDO DAS DIFERENÇAS
Ao
lado dessa abertura interna para a co-autoria do sistema e seus
processos, a democracia também precisa ser vivenciada no âmbito
do convívio diário com as inúmeras diferenças que tecem o todo social
(é impressionante como muita gente não percebe que a promoção da
cidadania e dos direitos humanos começa com os que estão a nossa
volta, que carregamos em nossas ações em relação a eles os mesmos
princípios que podem levar a humanidade à guerra ou à paz).
A
diferença é negada e combatida de todas as formas por nossa insegura
sociedade, porque traz uma espécie de “gérmem” que pensa-se poder
ameaçar a “estabilidade” branca, ocidental, capitalista, patriarcal,
heterosexual, machista, classista, erudita e eurocêntrica.
A
família, e na seqüência a escola, reproduzem em suas práticas (mais
abertamente) e em seus discursos (mais veladamente) essa fobia ao
novo e procuram proteger seus filhos e alunos da “ameaçadora” realidade
composta também dos que não detém a hegemonia, de raças diferentes,
de credos desconhecidos, de ideologias divergentes, de orientações
sexuais heterodoxas, de estéticas alternativas, de filosofias exóticas
(ainda que pacíficas), enfim, de tudo o que não se enquadre na “fôrma”.
O
resultado de tal insegurança quanto à validade e consistência da
própria identidade (esse fenômeno sempre está presente em qualquer
tipo de preconceito) é um processo de crescente empobrecimento cultural,
de perda de oportunidades de fruir de sabedorias desconhecidas,
de enfraquecimento da própria democracia que só pode nutrir-se na
multiculturalidade.
Uma
verdadeira sociedade democrática faz mais do que aceitar a diferença:
celebra-a com verdadeira admiração e reverência, sabendo que ela
é a responsável pela maturidade, nos planos pessoal e coletivo,
pela riqueza econômica e estética e também pela graça da vida!
Enquanto
a escola não aprender e ensinar isso, deixando os negros, os índios,
os orientais, os gordos, os magros, os altos, os baixos, as mulheres,
os homosexuados, os mais pobres, os “mal vestidos”, os “esquisitos”,
os introvertidos, os não atletas, os portadores de deficiências
e quaisquer outros segmentos politicamente minoritários serem estigmatizados,
apelidados, rejeitados, julgados pela ignorância temerosa das maiorias,
não haverá nela democracia e qualquer discurso que faça em exaltação
à mesma não passará de deslavada mentira.
6
- Estimular a Formação de “Redes de Engajamento Cívico”
Ao
encerrar, precisamos ter a coragem de perguntar-nos se há algum
sintoma que denote que a educação está no bom caminho, que está
encontrando seu melhor sentido como expressão e vivenciação da cidadania
e dos direitos humanos. Precisamos ter coragem porque, talvez, a
resposta ainda não seja, genericamente, animadora.
O
que deveríamos esperar de um aluno egresso do ensino médio (ou da
universidade, se tardiamente), para podermos suspirar com a alegria
e tranqüilidade de quem fez um bom trabalho?
No
mínimo, que não tivesse morrido nele a dimensão dos sonhos, dos
ideais. Nesse caso, pelo menos teríamos a certeza de que a escola
não atrapalhou (sempre lembro nessas horas, de uma frase apimentada,
atribuída a Margareth Mead: “Minha avó quis que eu tivesse educação.
Por isso não me mandou à escola.”)
Piaget, Jean. O Juízo Moral na Criança,
Summus Editorial, São Paulo, 1994.
Duska, R. e Welan, M. O
Desenvolvimento Moral na Idade Evolutiva, Edições Loyola,
São Paulo,1994.
Puig, Josep Maria. A Construção
da Personalidade Moral, Editora Ática, São Paulo, 1996.
Habermas, Jürgen. Conciencia
Moral y Acción Comunicativa, capítulo IV, Editorial Planeta-De
Agostini S.A ., Barcelona, 1994.
Fromm, Erich. El miedo a la Libertad, Editora Paidós, Buenos Aires, 1957.
O
“PROJETO DE VIDA”
Não
poderíamos, contudo, contentar-nos com esse mínimo. A escola
precisaria ter sido referencial na vida desse educando , significando
para ele um verdadeiro laboratório de desenvolvimento desses
grandes projetos pessoais e sociais, dessas ousadas causas.
Tenho
acompanhado com atenção o trabalho de um amigo, co-autor,
a meu lado, do livro “Educando para a Cidadania: Os Direitos
Humanos no Currículo Escolar”, com adolescentes do ensino
médio. Carlos Barcellos trabalha com eles, durante todo o
ano letivo, retomando nos anos
posteriores, o “Projeto de Vida”. É impressionante
ver o que é produzido por esses jovens e sentir-lhes a reação,
o entusiasmo, muitas vezes o brilho intenso de quem se percebe
como “nascendo de novo”, por opção pessoal.
São
meninos e meninas que, na maior parte das vezes, nunca tiveram
favorecida a oportunidade de pensar suas próprias vidas, de
perscrutar-lhes o sentido, de sentirem-se capazes de planejar
e executar grandes feitos (grandes desde uma perspectiva pessoal,
não necessariamente de impacto público). Sobreviviam à história,
ao que lhes haviam dito que eram e que deveriam ser, ao que
lhes fora reservado e, inesperadamente, na escola, encontram-se
com uma chance de assumir o controle do que desejam, de apropriar-se
do que são, de tomar-se a si mesmos nas mãos, de fazer algo
útil, marcante, significativo, pelos semelhantes e pelo planeta
em que vivem. Por isso a experiência pode ser sentida como
um “nascer de novo”, como um dar-se a própria luz. É tão simples
e ao mesmo tempo tão fundamental e assim mesmo estranhamente
raro que o façamos. Os adolescentes, por definição, mesmo
que não tenham consciência, estão sequiosos por essas oportunidades,
coisa que nem sempre é percebida pelos adultos.
VOLUNTARIADO
E RESGATE EXISTENCIAL
Essa
mesma experiência que citei vai mexendo cada vez mais com
eles, desacomodando-os, desafiando-os a uma ação articulada,
ao exercício da transformação da sociedade em que vivem. No
Colégio Farroupilha, em Porto Alegre, o mesmo professor coordena
um novo Projeto de protagonismo juvenil, em parceria com a
magnífica Organização “Parceiros
Voluntários”. Um grupo de jovens dessa escola, em geral
gente de classe média-alta, cansados de reproduzir o padrão
de “homens lights”, síndrome da contemporaneidade definida
por Henrique Rojas, resolveram arregaçar as mangas e trabalhar
voluntariamente para ajudar a qualificar a vida de seus semelhantes
e, por extensão, suas próprias vidas.
O
psiquiatra espanhol Rojas nos ajuda a perceber a sombra que
se abate sobre o homem e a mulher contemporâneos em geral,
à qual são especialmente vulneráveis os jovens:
“Trata-se
de um homem relativamente bem informado, porém com escassa educação
humana, muito entregue ao pragmatismo de um lado e a muitos
tópicos de outro. Tudo lhe interessa mas a nível superficial;
não é capaz de fazer a síntese daquilo que percebe e, em conseqüência,
se foi convertendo em um sujeito trivial, ligeiro, frívolo,
que aceita tudo e que carece de critérios sólidos em sua conduta.
Tudo se torna etéreo, leve, volátil, banal, permissivo.”
“Podemos
dizer que estamos na era do plástico, o novo signo dos tempos.
Daí deriva um certo pragmatismo de usar e jogar fora, o que
conduz a que cada dia impere com mais força um novo modelo de
herói: o do triunfador, que aspira – como muitos “homens lights”
desta trama final do século XX - ao poder, à fama, a um bom
nível de vida..., acima de tudo, não importa quem caia. É o
herói das séries de TV americanas, e suas motivações primordiais
são o êxito, o triunfo, a relevância social e, especialmente,
esse poderoso cavalheiro que é o dinheiro.”
”Um
ser humano rebaixado à
categoria de objeto, repleto de consumo e bem-estar,
cujo fim é despertar admiração ou inveja.”
Bem,
é contra tudo isso que a escola precisa trabalhar e a favor
de uma perspectiva de sentido existencial, que só pode ser vivenciada
na troca com o outro.
Educar,
nessa direção, é oportunizar a descoberta de que o mundo pode
ser diferente porque aqui estamos, porque somos capazes de produzir
utopias, porque, mais do que discursos, somos habilitados a
sonhar juntos e trabalhar juntos por isso.
Um
bom sintoma de uma educação de verdade é a constituição, nos
educandos, da consciência de possibilidades, de
autoria, de força irresistível do mutirão.
Por
aí passa não somente nossa transformação pessoal, nossa ressignificação
como sujeitos dignos, mas também o desenvolvimento de nosso
país, a constituição tão próxima e ao mesmo tempo tão ignorada,
como possibilidade, de uma sociedade de bem-estar para todos.
O
QUE ANDAM FAZENDO NOSSOS EDUCANDOS?
Quantos
dos nossos alunos e ex-alunos estão exercendo seu poder de autoria? Quantos são inventivos e empreendedores? Quantos
exercitam a solidariedade em suas vidas cotidianas? Quantos
foram capazes de descobrir que a forma suprema de sentirem-se
felizes é perceberem que não estão sozinhos e fazerem algo pela
felicidade de todos? Quantos estão praticando tudo isso em trabalhos
gratuitos, voluntários, onde o gozo de colaborar e construir
uma nação justa é o melhor salário, que só pode ser pago pelo
próprio sentido da existência? Quantos perceberam o valor da
articulação para mudar o planeta e estão participando de Organizações
ecológicas, pacifistas, de direitos humanos, de grêmios estudantis,
de diretórios acadêmicos, de grupos espirituais,
de partidos políticos (por que não?), de movimentos pela
saúde pública, de ações educativas, de missões?
É
claro que precisamos habilitá-los para a competência também
em relação ao vestibular. Devíamos envergonhar-nos, contudo,
quando “medimos” a qualidade de uma escola apenas por isso!
É assumir o quanto somos medíocres e
pobres espiritualmente!
George
Bernard Shaw dizia que “o
homem razoável se adapta ao mundo. Aquele que não é razoável
persiste em querer adaptar o mundo a si próprio. Por isso, qualquer
progresso depende do homem não razoável”.
Quando
buscamos um sentido para a educação talvez devêssemos lembrar
de Shaw e perguntar-nos se estamos trabalhando pela passividade,
para produzir indivíduos que se escondem, temerosos, nas reentrâncias
das patas do sistema, gente comum e razoável, ou amantes da
vida, aventureiros do saber, pessoas positivamente inconformadas,
homens e mulheres não razoáveis, com coragem e “loucura” suficientes
para pensar e fazer o mundo diferente do que é.