
Cidadania
e Direitos Humanos:
Um Sentido Para a Educação
Capítulo I
ASSUSTADORAS
MARAVILHAS
“É
necessário correr o máximo possível para ficar no
mesmo lugar. Se você quer chegar a algum outro lugar,
deve correr pelo menos duas vezes mais rápido do que
isso.”
Lewis
Carrol
“VAI
MUNDO, VAI!”
Vivemos
tempos magníficos!
Estudiosos
e cientistas têm afirmado estimativas de que as informações
disponíveis no planeta dobrem a cada três ou quatro
anos, em progressão geométrica.
Há
pouco tempo, assistindo palestra de especialista
americano, ligado ao Massachusetts
Institute of Technology (MIT), no
Congresso Nacional de Escolas Particulares (XXIV
CONEPE-São Paulo), fiquei espantado e incrédulo diante
da afirmação de que, entre os próximos dez ou quinze
anos, consolidado e socializado o advento da comunicação
instantânea, espera-se que as informações disponíveis
dupliquem a cada duas horas! Pareceu-me discurso de
efeito, desses montados para motivar a platéia, ou
outro pitoresco deslumbramento, típico dos Web-maníacos.
Chequei a informação com gente que considero séria.
Disseram-me que pode não ser exagero.
O
físico Michio Kaku, professor da Universidade de Nova
York, que dizem ser o substituto de Carl Segan, em
credibilidade e poder de comunicação, há pouco tempo
surpreendeu-nos no programa “Milenium”, da Globo
News, com desconcertantes afirmações sobre o futuro próximo,
que se gesta a partir de agora. Conforme ele, nos próximos
vinte e cinco anos, pela pesquisa e manipulação genética,
entre outros fatores, poder-se-á estender o nível de
longevidade para além de cento e trinta anos, podendo
chegar a duzentos! Não é tão incrível admitir a hipótese,
quando pensamos que no auge do império romano um cidadão
bem situado tinha uma longevidade média de trinta e
cinco anos, mais ou menos a metade daquela atingida hoje
pelas populações de países superdesenvolvidos.
É
claro que tudo isso se aplica à fatia mercadológica da
sociedade e exclui mais de um bilhão de famélicos
espalhados por todos os continentes. É bem-estar
inacessível para uma enorme parte (apenas
potencialmente disponível) mas real para outros tantos.
Profetas
do paraíso ou não, sonhadores otimistas ou avaliadores
objetivos de dados observados, é inevitável
reconhecer-lhes um mínimo de realismo, de perspectiva
verossímil, ao testemunharmos, cotidianamente, o ritmo
desenfreado das transformações por que passa o
planeta.
Ao
olharmos para o passado, podemos ter a mais absoluta
certeza de pelo menos um dado: nos últimos cinqüenta
anos acumulamos mais conquistas científicas do que em
todo o resto da existência humana sobre a terra. Na
velocidade atual do processamento de informações e
descobertas, podemos prever que dos próximos quinze ou
vinte anos se possa dizer a mesma coisa.
Evidentemente,
há quem discorde.
“O
FIM DE TUDO”
Em
junho de 96, um famoso divulgador do trabalho dos gênios
de laboratório, John Horgan, lançou o livro “The end
of Cience”, Addison Wesley, 309 págs. (O Fim da Ciência),
em que apresenta a arrogante tese de que “a fase das
grandes descobertas científicas está encerrada”.
Seguiu a senda fácil da venda de idéias
reacionariamente bombásticas, aberta por Francis
Fukuyama, cientista político que nos “serviu” o
prato indigesto do “fim da história” (risivelmente
apresentado um pouco antes da Guerra do Golfo eclodir).
Diante
de tal pretensão, Luc Montagnier,
pesquisador que descobriu o vírus da AIDS,
brinda-nos com a seguinte análise:
“As
conclusões do senhor Horgan me parecem tão ingênuas
como as dos físicos do século XIX, que proclamavam que
todas as leis da física haviam sido descobertas, que não
restavam senão migalhas para
os demais cientistas pesquisarem.
Alguns
anos mais tarde, vieram a teoria da relatividade de
Einstein, a Teoria dos Quanta, o Big Bang, as partículas
elementares...”
Obviamente,
a realidade ruma na direção contrária da anunciada
por John Horgan. Provam-no a explosão incessante de
descobertas nos campos da astrofísica, da geofísica,
da neurociência, da genética, da física das partículas
elementares, entre outras, e da dinâmica interativa
entre elas todas. Se o desenvolvimento científico das
últimas décadas foi
surpreendente, o que vem pela frente nos causará
vertigens.
A
verdade é que esse “admirável mundo novo” supera
em tudo todas as mais ousadas expectativas da ficção
no âmbito tecnológico (ainda que no campo político
possa se aproximar, de maneira mais insidiosa e sutil do
que a prevista, mas de qualquer forma devastadora, do
autoritarismo invasivo, simbólica e objetivamente,
previsto por escritores como George Orwell ou Aldous
Huxley).
ESTAGNAÇÃO E INVOLUÇÃO
MORAL
Essas
maravilhas tecnológicas nos fazem orgulhosos. Ao
olharmos para a nossa medicina, nossa informática,
nossa cibernética, nossos vôos espaciais, nossos
clones, nossos aceleradores de partículas, nossas
pesquisas sobre o cérebro, sentimo-nos ensoberbecidos
com o que, como seres racionais, fomos capazes de
produzir.
No
entanto, ao mesmo tempo, ao lado de nossos sonhos
realizados, coabitam-nos pesadelos: o mundo parece
perigosamente ameaçado, mais do que nunca, por velhos
fenômenos do campo moral. Guerra, fome, destruição
dos recursos naturais, analfabetismo, epidemias,
terrorismo, tortura, execuções, chacinas, corrupção.
A violência, especialmente a juvenil, eclode por todas
as partes. Recente estudo da UNESCO, em vinte e três países,
incluindo o Brasil, apontou o “Exterminador do
Futuro”, personagem de ficção holliwoodiana, como o
maior herói da juventude. Jesus, Ghandi, Buda, entre
outros, são, tristemente, os “lanterninhas”.
No
dia 09/03/99, conforme matéria do Jornal Zero Hora, o
Ministério da Justiça abriu inquérito administrativo
para proibir a comercialização do jogo eletrônico
“Carmagedon 2”, distribuído pela Empresa MPO Multimídia,
por estimular a violência no trânsito. No jogo, ganha
quem cometer a maior quantidade de infrações e
atropelar o
maior número de pessoas. É um dos muitos (a maioria)
ancorados na violência interativa. Especialistas no
mundo inteiro perguntam-se o que acontecerá com a geração
que aperta os botões, enquanto empresários e responsáveis
pela mídia justificam a banalização da violência com
a tese da “catarse coletiva”. Segundo eles, destruir
e matar ficcionalmente faria bem às crianças e
adolescentes que, assim, descarregariam seus impulsos
destrutivos de forma inócua. O ridículo de tal postura
fica evidente quando analisamos as estatísticas sobre a
explosão da delinqüência juvenil ou quando tomamos
conhecimento dos depoimentos dados ou deixados por
jovens envolvidos em atos de barbárie, do tipo
recentemente ocorrido na Columbine Hight School, em
Denver. Como em praticamente todos os casos precedentes,
a chamada “máfia da gabardine”, à qual pertenciam
os dois adolescentes que invadiram aquela escola para
assassinar, com requintes sádicos, colegas e
professores, também nutre suas inspirações nos games
da moda, em ídolos fabricados pela indústria do rock,
como Marilyn Manson (homenagem à Marilyn Monroe e ao
assassino psicopata Charles Manson), e em filmes como
“The Matrix”, dos estúdios Warner, que nos
primeiros dezenove dias de exibição arrecadou mais de
cem milhões de dólares.
ARQUÉTIPOS,
SOMBRAS E PERSONALIDADE
Carl
Jung chama-nos atenção sobre o caráter
“estruturante” dos arquétipos, figuras sínteses,
no inconsciente coletivo, de elementos de conteúdo
moral, entre outros. Nossos heróis e bandidos, entes
mitológicos mais ou menos explicitados, que nos
acompanham desde a infância, são fundamentais para a
formação de nossa moralidade. Isso explica, grosso
modo, seu caráter “estruturante”.
Bons
velhos tempos maniqueístas, em que os “mocinhos” e
“mocinhas” tinham um comportamento estereotipado
diferenciado daquele dos malvados e malvadas.
A
cultura pós-modernista, na parte da sua sombra, em seus
aspectos perversos, em nome de uma estética de
fragmentado “bom gosto”, não conseguiu divisar as
fronteiras entre o universo adulto e o infantil,
acabando por impingir, a um público destituído de juízo
crítico, seus modelos impotentes para exercerem função
estruturante, personalidades-mosaico, cheias de
esquizofrenias axiológicas e carregadas com as tintas
do mais forte cinismo individualista e egocêntrico.
Qual
a diferença, por exemplo, nos filmes produzidos pelos
grandes estúdios, em Los Angeles, entre policiais e
criminosos? A motivação de uns e outros, apenas, é
elemento por demais sutil para exercer caráter
inspirador de saúde mental junto à clientela
infanto-juvenil.
Se
os “meios” são os mesmos, apresentando-se como os
conteúdos centrais comunicados, pouco resta ao papel
distante e sofisticado dos “fins”, que devem ser,
confusamente, decodificados pelo sujeito que assiste
(aqui, mais objeto do que sujeito).
Não
é à toa que, em nosso mundo, ao lado da mais pujante
tecnologia e consumo, conviva a mais escandalosa e
banalizada miséria, com seus subprodutos de violência
explícita e solidão.
Ao analisar, brilhantemente, o resultado desse tipo de
cultura, em nível da constituição dos sujeitos, Karem
Horney (Horney, Karen, Nossos Conflitos Interiores,
DIFEL, São Paulo, 1984) caracterizou, entre outras
questões, o absoluto isolamento do chamado
“indiferentismo”, para outros
“personalidade esquizóide” , tão comum aos
jovens do nosso tempo. Uma patética permanente
incomunicabilidade em meio à multidão.
A
humanidade se encontra, portanto, em uma das mais dramáticas,
e de imprevisíveis resultados, crises morais de sua
história.
O
PODER DA VIDA E MORTE
Qual
a diferença em relação ao passado? Nosso poder. O
poder de tanta tecnologia convivendo ao lado do mais
absoluto atraso moral, representa uma perigossísima fórmula
de dessincronia evolutiva.
Como
nunca, temos recursos para explorar e destruir e os
temos usado, em boa parte, para esse fim.
Em
outras palavras, o avanço da moralidade se encontra em
ritmo anacrônico
ao avanço das
ciências.
Somos
uns bichos de pulsões esquisitas e demasiadamente
descontroladas, tentando comunicar-nos,
desesperadamente, on
line, vestindo
roupas de lã fria, andando em carros com injeção
eletrônica, viajando em jatos e armados até os dentes.
A humanidade, no seu auge criativo e cheia de garbo
intelectual, está no “border
line” da loucura coletiva.
A
culpa é do “patrimônio” que recebemos como legado
e que agora estamos legando às novas gerações, através
do processo que, impropriamente,
chamamos “educação”. Esse processo tem sido
impotente para contestar a cultura dominante, tem sido
incapaz de exercer, no jargão gramsciano, seu poder
“contra-hegemônico”. A saída, contudo, só pode se
dar pela assunção desse poder, da vocação rebelada e
“rebelante” do movimento de educar.
Folha de São Paulo, 29/09/96, Caderno “Mais”, pág. 5.
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