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ABOLIR A DIVIDA PARA LIBERTAR O DESENVOLVIMENTO

 Eric Toussaint 

Contribuição do CADTM para o lançamento do debate sobre a Dívida que constitui um dos cinco primeiros temas da primeira parte do FSM, intitulada "Produção das riquezas e reprodução social".

 

A questão à qual tentamos responder pode ser resumida da seguinte maneira: como sair de uma economia do endividamento para financiar um desenvolvimento duradouro e socialmente justo e garantir a todos e todas a satisfação das necessidades humanas fundamentais?

O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e a UNICEF estimam que um gasto anual de 80 bilhões de dólares em um período de dez anos permitiria garantir a todo ser humano o acesso à educação básica, aos cuidados básicos de saúde, a uma alimentação adequada, à água potável e às infra-estruturas sanitárias, assim como, para as mulheres, o acesso aos cuidados ginecológicos e obstetrícios.

Oitenta bilhões de dólares é, em 2001, quase três vezes menos o que o Terceiro Mundo paga por sua dívida externa publica; é aproximadamente um quarto do orçamento militar dos Estados Unidos; 9% das despesas militares mundiais; 8% das despesas publicitárias anuais no mundo; metade da fortuna das 4 pessoas mais ricas do planeta.

É impossível esperar da lógica do mercado que ela satisfaça estas necessidades essenciais. As 1,3 bilhão de pessoas que não dispõem de água potável não dispõem de um poder aquisitivo suficiente para que os mercados se interessem por elas.

Apenas políticas públicas poderão garantir a todos e todas a satisfação das necessidades humanas fundamentais. É por isso que é necessário que os poderes públicos disponham de meios políticos e financeiros para honrar seus deveres para com seus cidadãos e suas cidadãs.

Convém igualmente que estes últimos exerçam plenamente seu direito de agir como sujeitos centrais da vida política dos Estados. Para fazê-lo, é preciso implementar políticas econômicas e mecanismos jurídicos eficazes em uma dinâmica democrática participativa. O exemplo do orçamento participativo praticado em Porto Alegre desde o início dos anos 1990 deveria ser estendido em escala internacional e inspirar políticas originais de democracia radical.

Obter a aplicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais implica assim a entrada em ação de um poderoso movimento social e cidadão.

Para começar, é preciso pôr fim à hemorragia de riquezas que constitui o pagamento da dívida. É necessário em seguida encontrar diversas fontes de financiamento para um desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentável. Convém enfim romper com a lógica que leva ao ciclo de endividamento, ao desvio e à pilhagem massiva das riquezas locais, à dependência com relação aos mercados financeiros e aos empréstimos condicionados das instituições financeiras internacionais.

1.      – Quebrar o ciclo infernal da dívida

Os paladinos da mundialização neoliberal nos dizem que os países em desenvolvimento (incluem aí a Europa do Leste) devem pagar sua dívida externa, se querem se beneficiar de fluxos constantes de financiamento.

Na realidade, desde o estouro da crise da dívida em 1982, os fluxos foram dos países em desenvolvimento para os países ricos, e não ao inverso, como pretendem com insistência os dirigentes das instituições financeiras internacionais. Para estimarmos os fluxos reais, é preciso levar em conta: o pagamento da dívida externa; as saídas de capitais promovidas pelos residentes nos países da Periferia; o repatriamento dos lucros pelas multinacionais (inclusive as transferências invisíveis, feitas especialmente através dos procedimentos de “super” ou “sub” faturamento); a compra, pelos capitalistas dos países mais industrializados, de empresas da Periferia por preços rebaixados no quadro das privatizações; a compra a baixo preço dos bens primários produzidos pelos povos da Periferia (degradação dos termos de troca); a fuga de “cérebros”; a pilhagem genética… Os doadores não são os que se crê. É um abuso de linguagem considerar como “doadores” os países da OCDE membros do Comitê de Ajuda ao Desenvolvimento e as instituições de Bretton Woods.

Desde 1982, é o equivalente de várias dezenas de Planos Marshall[1] que as populações dos países em desenvolvimento enviaram para os credores do Norte (com as elites capitalistas locais cobrando, na passagem, sua comissão).

É urgente tomar o contra-pé do discurso oficial: é preciso anular a dívida externa pública do Terceiro Mundo. Segundo a análise, esta dívida não pesa fortemente diante daquela outra, histórica, ecológica e social, que os países ricos do Norte contraíram com ele.

O pagamento da dívida pública externa do Terceiro Mundo representa, bom ano mau ano, uma despesa de aproximadamente 200 a 250 bilhões de dólares, ou seja, de 2 a 3 vezes a quantia necessária para a satisfação das necessidades humanas fundamentais, tal como definidas pelas Nações Unidas.

2 — Recursos suplementares para financiar o desenvolvimento

Para que uma anulação da dívida seja útil para o desenvolvimento humano, é evidentemente necessário que as quantias destinadas até então ao pagamento da dívida sejam colocadas em um fundo de desenvolvimento democraticamente controlado pelas populações locais.

Mas, uma vez este dado este primeiro passo em matéria de anulação da dívida, é indispensável substituir a economia atual de endividamento internacional por um modelo de desenvolvimento socialmente justo e ecologicamente sustentável, que não dependa das flutuações dos mercados financeiros e das condicionalidades dos empréstimos do FMI e do Banco Mundial. Este fundo de desenvolvimento, já alimentado pelos recursos economizados graças à anulação da dívida, deve ser financiado pelas diversas medidas seguintes:

2.1 — Devolver aos cidadãos e cidadãs do terceiro mundo o que lhes foi roubado

Riquezas consideráveis, acumuladas ilicitamente por governantes e capitalistas locais, foram colocadas em segurança nos países mais industrializados; isto com cumplicidade total das instituições financeiras privadas, e com a complacência dos governos do Norte (este movimento prossegue até hoje).

Uma restituição implica a realização de procedimentos legais, levados a bom termo nos países do Terceiro Mundo e nos países mais industrializados.

Tais inquéritos permitiriam, além disto, não deixar na impunidade os corrompidos e os corruptores: esta é a única maneira de podermos ver, um dia, a democracia e a transparência vencerem a corrupção.

Trata-se, igualmente, de apoiar as resoluções que saíram do encontro internacional realizado em Dakar, em dezembro de 2000 (“Das resistências às alternativas”), que exigiam a reparação para a pilhagem à qual o Terceiro-Mundo é submetido há cinco séculos. Isto implica, especialmente, a restituição de bens econômicos e culturais roubados aos continentes asiático, africano e sul-americano.

2.2 — Taxar as transações financeiras

Já a plataforma internacional de ATTAC fala de uma taxa de 0,1%, gerando cerca de 100 bilhões de dólares anuais, que poderiam ser utilizados na luta contra as desigualdades, na educação, na saúde pública, na segurança alimentar e para o desenvolvimento sustentável.

2.3 — Alçar a ajuda pública para o desenvolvimento (APD) a pelo menos 0,7% do PIB

Em 1999, a APD representava apenas 0,24% do produto interno bruto (PIB) dos países mais industrializados, embora eles se tenham comprometido, em diversas oportunidades, no quadro da ONU, a atingir o objetivo de 0,7%. Com uma média atual de 0,24%, a APD deve ser multiplicada por 3 para chegar aos compromissos assumidos. Sabendo que a APD representa um pouco menos de 50 bilhões de dólares, se multiplicada por 3 deveria atingir 150 bilhões por ano, que deveriam ser destinados inteiramente sob a forma de doações. Enfim, mais do que falar de ajuda, convém daqui por diante usar o termo reparação. Trata-se, com efeito, de reparar os prejuízos causados por séculos de pilhagem e de troca desigual.

2.4 — Instituir um imposto excepcional sobre grandes fortunas

No seu relatório de 1995, a UNCTAD propõe impor uma taxação única sobre o patrimônio dos detentores de grandes fortunas.

Um tal imposto, cobrado em todo o mundo, permitiria mobilizar fundos consideráveis. Este imposto excepcional de solidariedade, da ordem de 10% sobre o patrimônio do decil mais rico em cada país, poderia gerar recursos internos muito consideráveis.

3 — Uma nova lógica de desenvolvimento

À lógica atual de desenvolvimento, que vê os países do Sul adotarem, sob a pressão dos credores, programas de ajuste de tipo neoliberal, é preciso substituir uma lógica de desenvolvimento endógena e integrada. Esta mutação passa pela implementação das seguintes medidas:

3.1 — Pôr um fim aos planos de ajuste estrutural

Os planos de ajuste estrutural (PAS), pregando a liberalização total das economias do Sul, têm como conseqüência o enfraquecimento dos Estados, que se tornam mais dependentes de flutuações exteriores (evolução dos mercados mundiais, ataques especulativos, etc.), e são submetidos a condicionalidades impostas pela dupla Banco Mundial/FMI (e, atrás dela, pelos governos dos países credores, reagrupados no Clube de Paris).

A Comissão dos Direitos Humanos da ONU adotou múltiplas resoluções sobre a problemática da dívida e do ajuste estrutural. Em uma resolução adotada em 1999, a Comissão afirma que “o exercício dos direitos fundamentais da população dos países endividados à alimentação, à moradia, ao vestuário, ao trabalho, à educação, aos serviços de saúde e a um meio-ambiente sadio, não pode ser subordinado à aplicação de políticas de ajuste estrutural e a reformas econômicas geradas pela dívida” (1999, Art. 5).

O balanço humano das políticas de ajuste estrutural é incontestavelmente negativo. Logo, elas devem ser suprimidas e substituídas por políticas que visem a satisfação das necessidades humanas fundamentais e dêem prioridade ao mercado interno, à segurança alimentar e que busquem complementaridades regionais ou continentais.

3.2 — Garantir a volta ao domínio público dos setores estratégicos que foram privatizados

As reservas e a distribuição de água, a produção e a distribuição elétrica, as telecomunicações, o correio, as estradas de ferro, as empresas de extração e de transformação de bens primários, o sistema de crédito, certos setores da educação e da saúde… foram sistematicamente privatizados ou estão em vias de sê-lo. Convém garantir a volta destas empresas ao domínio público.

3.3 — Adotar modelos de desenvolvimento parcialmente autocentrados

Este tipo de desenvolvimento supõe a criação de zonas politicamente e economicamente integradas, a emergência de modelos de desenvolvimento endógenos, o reforço dos mercados internos, a criação de uma poupança local para os financiamentos locais, o desenvolvimento da educação e da saúde, a implementação de um sistema tributário progressivo e de mecanismos de redistribuição das riquezas, a diversificação das exportações, uma reforma agrária que garanta aos camponeses o acesso universal à terra, uma reforma urbana que garanta o acesso universal à habitação, etc.

É preciso substituir a arquitetura mundial atual, cuja lógica impõe a uma periferia fornecer matérias primas e mão-de-obra barata a um centro que detém capitais e tecnologias, por reagrupamentos econômicos regionais. Apenas um tal desenvolvimento, parcialmente autocentrado, permitiria a emergência de relações de complementaridade Sul-Sul, condição sine qua non do desenvolvimento econômico da Periferia e, por extensão, do mundo.

3.4 — Agir sobre o comércio

É preciso pôr um fim na tendência histórica da degradação dos termos de troca. Para isto, trata-se de implementar mecanismos que garantam uma melhor remuneração da cesta de produtos exportados para o mercado mundial pelos países em desenvolvimento.

No que diz respeito à agricultura, como o reivindica a Via Campesina, convém reconhecer o direito de cada país (ou grupo de países) à soberania alimentar e especialmente à auto-suficiência nos produtos básicos. As regras do comércio mundial devem, ademais, subordinar-se a critérios de meio-ambiente, sociais e culturais estritos. A saúde, a educação, a água e a cultura devem ser retiradas do campo do comércio internacional. Os serviços públicos de interesse geral são a garantia dos direitos fundamentais e devem portanto ser excluídos do Acordo Geral sobre o Comércio e os Serviços (AGCS).

Convém, aliás, abolir os Acordos sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (ADPIC) que permitem a apropriação pelo Norte das riquezas naturais do Sul e que impedem os países do Sul de produzir livremente bens (medicamentos, por exemplo) que visam a satisfação das necessidades de suas populações.

4 — Uma nova disciplina financeira

As crises financeiras que se repetem desde os anos 90 provaram pelo absurdo que nenhum desenvolvimento duradouro pode ser atingido sem um controle estrito dos movimentos de capitais e da evasão fiscal. Várias medidas são portanto necessárias para subordinar os mercados financeiros à satisfação das necessidades humanas fundamentais.

4.1 — Re-regular os mercados financeiros

4.2 — Controlar os movimentos de capitais,

4.3 — Supressão dos paraísos fiscais e  suspender o segredo bancário para lutar eficazmente contra a evasão fiscal, o desvio de fundos públicos e a corrupção.

4.4 — Adotar regras que garantam a proteção dos países que recorrem ao endividamento externo:

O endividamento externo pode se justificar, se os países concernidos o decidem democraticamente. Mas é preciso organizar a utilização do endividamento segundo princípios radicalmente diferentes dos que prevaleceram até aqui.

Dois princípios novos devem ser respeitados. Primo, o de uma condicionalidade “ao contrário”: a carga do pagamento e dos juros destes empréstimos consentidos a taxas de juros baixas e inferiores às condições de mercado só será garantida se for provado que este endividamento permitiu efetivamente a criação de riqueza suficiente nos países concernidos.

Secundo, uma proteção forte e eficaz dos países devedores deverá ser organizada em favor dos países em desenvolvimento em escala internacional, de tal sorte que estes países possam defender-se contra toda forma de abuso e de espoliação pelos bancos, pelos investidores privados internacionais e pelas instituições financeiras internacionais.

4.5 — Controle democrático da política de endividamento

A decisão dos Estados de contrair empréstimos e os termos nos quais estes são subscritos devem ser submetidos à aprovação popular (debate e votação no parlamento, controle cidadão).

5 — Medidas complementares indispensáveis

A anulação da dívida pública externa da Periferia, o abandono das políticas de ajuste estrutural e as outras medidas propostas acima constituem condições necessárias, mas elas são em si mesmas insuficientes para garantir um autêntico desenvolvimento humano dos povos. Medidas complementares são indispensáveis, a começar pela igualdade homem/mulher e pelo direito dos povos indígenas à autodeterminação.



[1] Plano Marshall (1948-1951): O Plano Marshall visava favorecer a reconstrução da Europa devastada no curso da segunda guerra mundial. Levando em conta que é preciso 6,28 dólares em 2001 para obter o equivalente de 1 dólar de 1948, o custo do Plano Marshall (12,5 bilhões de dólares em 1948-51) representaria 78,5 bilhões de dólares em 2001. Se levamos em consideração o conjunto dos pagamentos efetuados pelo Terceiro Mundo em 1999, ou seja, 300 bilhões de dólares (fonte: Banco Mundial, GDF, 2000), este enviou, neste ano, a seus credores dos países mais industrializados, o equivalente de quase 4 Planos Marshall. Na mesma ordem de idéias, desde 1980, são 43 Planos Marshall (mais de 3,450 trilhões de dólares) que os povos do Terceiro Mundo enviaram aos credores do Centro.

 

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