Participação
Social no Brasil Hoje
Maria
do Carmo A. A. Carvalho
Integra
a equipe técnica do Instituto Pólis
I.
Os movimentos sociais
e a constit_0uição de um espaço público no Brasil: reivindicação
e construção da “participação popular”
Estamos assistindo, nestes anos 90, a uma generalização do
discurso da “participação”. Os mais diversos atores sociais,
tanto na sociedade como no Estado, reivindicam e apoiam a
“participação social”, a democracia participativa, o
controle social sobre o Estado, a realização de parcerias entre
o Estado e a sociedade civil.
“Participação”, democracia, controle social, parceria, não
são, porém, conceitos com igual significado para os diversos
atores e têm, para cada um deles, uma construção histórica
diferente. Esta generalização e essa disputa de significados nos
colocam, inicialmente, a necessidade de refazer alguns percursos
que construíram conceitos e práticas de participação social no
Brasil. Pode-se dizer, de início, no entanto, que a participação
democrática nas decisões e ações que definem os destinos da
sociedade brasileira tem sido duramente conquistada por esta mesma
sociedade, de um Estado tradicionalmente privatista, que mantém
relações simbióticas e corporativas com grupos privilegiados.
Nosso país constituiu-se dentro de uma tradição autoritária e
excludente, a partir da colônia portuguesa, da escravidão, do
Império, de modo que seu povo foi mantido sempre estrangeiro em
sua própria terra, à margem da política, considerada pelos
ditos populares como “coisa de branco”: “vocês são
brancos, que se entendam”, é um frequente comentário popular.
Um do_0s autores que estudou a formação dessa cultura autoritária
e excludente comenta, de modo crítico, a opinião generalizada de
que o povo assistiu “bestializado” a proclamação da República
1 .
Esta atitude apática ou “bestializada”, não corresponde porém
à realidade mas a um discurso que desqualifica a cultura, as
formas de agir, de pensar e de participar do povo brasileiro, que
incorporam as contribuições negras e indígenas. Mesmo reprimida
como “caso de polícia”, ocupando apenas as páginas
policiais, a participação popular sempre existiu, desde que
existem grupos sociais excluídos que se manifestam e demandam ações
ou políticas governamentais. Nesta perspectiva, todas as mobilizações
e movimentos sociais são formas de participação popular, que se
diferenciam segundo as questões reivindicadas, segundo as formas
possíveis, definidas tanto pelos usos e costumes de cada época,
pela experiência histórica e política dos atores protagonistas,
assim como pela maior ou menor abertura dos governantes ao diálogo
e à negociação.
Deste ponto de vista podemos analisar a “participação”
conquistada e possível nas diversas fases e tipos de movimentos
sociais que percorrem a história do Brasil, desde as primeiras
resistências indígenas e negras como a Confederação dos
Tamoios e os Quilombos, passando pelos chamados movimentos
camponeses “messiânicos”, como Canudos, pelas lutas
abolicionistas, pela Independência, pelas revoltas urbanas contra
a carestia, as mobilizações de inquilinos, e tantas outras.
O movimento operário, de inspiração anarquista e socialista,
juntamente com o movimento camponês e os movimentos urbanos, vê_0m
caracterizar, mais propriamente, o que neste século chamamos
“movimentos sociais”. Estes movimentos sofrem, principalmente
nos anos 30 a 60, fortes pressões cooptadoras por parte de
partidos políticos, de parlamentares e governos que buscam
instrumentalizá-los e submetê-los a seus interesses e
diretrizes.
Esse período, conhecido na história do Brasil como populismo,
caracteriza-se pelas relações clientelistas, de tutela, de
concessão de favores, como a forma principal de relação entre
Estado e sociedade. As relações autoritárias, clientelistas,
paternalistas, de compadrio e de favor já eram, no entanto,
fortemente enraizadas na tradição política brasileira do
“coronelismo” e em toda uma gama de relações promíscuas
entre o público e o privado. Por isso, pode-se talvez dizer que,
no Brasil, nunca se constituiu um Estado “público”,
claramente dissociado do privado.
Apesar das relações de tutela e do atrelamento dos movimentos
sociais promovidos tanto pelos políticos tradicionais e
populistas como pelo “centralismo democrático” do partido
comunista, os anos 50 e 60 são marcados por intensa mobilização
social que se expressa no movimento sindical, nas Ligas Camponesas
e numa ampla reivindicação por “Reformas de Base” de cunho
democrático, popular e nacionalista. A implantação da ditadura
se faz às custas de uma pesada repressão, com o fechamento de
sindicatos, a cassação, tortura e banimento de lideranças
sociais e políticas, a censura da imprensa, o fechamento do
Congresso e dos partidos, o engessamento das eleições e da política,
a destruição dos espaços públicos e da cidadania tão
_0 custosamente construídos. Essa destruição da cidadania e da
democracia não se dá, no entanto, sem a resistência e o
enfrentamento de movimentos sociais, especialmente do movimento
estudantil e dos grupos que optam pela luta armada, pelas
guerrilhas urbanas e camponesas, inspirados pelas Revoluções
Cubana e Chinesa.
Os anos 70 foram, no Brasil, tempos de profundas mudanças econômicas
e políticas, que provocaram a emergência vigorosa de novas
demandas sociais. O Estado burocrático-autoritário, que se
estabeleceu com a ditadura militar, fechou, no entanto, até mesmo
os precários canais de expressão e de negociação de interesses
e conflitos mantidos pelo populismo2 . Neste contexto de ausência
de canais de interlocução, emergem novos movimentos sociais como
captadores destas novas e candentes demandas sociais. Sua ação
abre novos espaços ou “lugares” para a ação política. Na
ausência de espaços legítimos de negociação de conflitos, o
cotidiano, o local de moradia, a periferia, o gênero, a raça
tornam-se espaços e questões públicas, lugares de ação política,
constituindo sujeitos com identidades e formas de organização
diferentes daquelas do sindicato e do partido3 .
Eder Sader destaca o papel especial desempenhado, na constituição
desses novos sujeitos, por algumas “matrizes discursivas”
comprometidas com projetos de ruptura, provenientes do
sindicalismo, da Igreja e da esquerda marxista. Estas
“matrizes” renovam-se, nos anos 70, em decorrência de
“crises” geradas por grandes derrotas - como a derrota da luta
armada - ou pela perda da capacidade de apelo - da Igreja - ao seu
“público” tradicional. Fragilizada_0s, elas relativizam suas
“verdades”, fragmenta-se sua racionalidade totalizadora e
abrem-se ao reconhecimento de outros sujeitos e outros
significados. Ao invés de fechar-se em conceitos abstratos e
impostos sobre “o fazer histórico-social do proletariado”,
deixam-se “educar por ele”4 , abrem-se aos silêncios e ao
fazer até então interpretado de modo totalizante por vanguardas
políticas, eclesiais ou intelectuais.
Deixar-se educar mutuamente emerge como nova referência, a partir
da “educação popular”, fundamentada nos trabalhos de Paulo
Freire5 , gerando uma relação mais permeável entre estas
“matrizes discursivas” e os sujeitos populares. Afirmando a
reciprocidade entre educador e educando, a “educação
popular” abre lugar para a elaboração coletiva e crítica da
vida individual e social das classes populares, constituindo espaços
onde se dessacralizam hierarquias e autoridades, onde se constróem
conhecimentos coletivamente, onde se elaboram coletivamente
projetos de transformação social, processos que levam esses
setores, excluídos da agenda “pública”, a ocupá-la,
provocando a constituição de uma esfera pública6 .
As CEBs, os clubes de mães, as pastorais populares das igrejas,
os movimentos populares por creches, por saúde e Contra a
Carestia, que se alastram por todo o país, o novo sindicalismo
que emerge do cotidiano dos grupos de oposição sindical, a
partir da Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo e do
Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, são fortes exemplos
de espaços de recusa das hierarquias que encapsularam amplos
setores populares na condição de cidadãos de segunda classe, não
_0 cidadãos, “párias” políticos e sociais. O rompimento de
subordinações, a dessacralização de hierarquias e autoridades,
a recusa de um lugar e de uma cidadania “regulados”7 e
restritos, a construção de uma equivalência8 cidadã, é o
movimento que faz desses movimentos sociais construtores de uma
nova esfera pública no Brasil, nova porque praticamente
inexistente até a emergência desses novos sujeitos.
Ao lado da educação popular, e profundamente imbricado com ela,
destaca-se o papel das igrejas na constituição dos novos
movimentos que emergem na cena pública brasileira. Este novo
papel decorre de uma mudança na visão eclesial sobre o modo como
se dá o desenvolvimento. Ana Doimo9 , assinala essa mudança, na
Igreja Católica, a partir da Encíclica Mater et Magistra,
passando pelo Concílio Vaticano II e pelas Conferências
Episcopais latino-americanas (Medellin e Puebla), deixando uma visão
de desenvolvimento assentado na ação do Estado para pensá-lo
centrado na participação do povo como sujeito das conquistas.
Esta mudança é fundamentada pela Teologia da Libertação e
redimensiona fortemente a ação pastoral de parte da Igreja Católica
e de outras Igrejas cristãs, gerando uma cultura que valoriza a
“inserção” de padres, freiras e outros “agentes de
pastoral” no meio do povo. Estas pessoas, inconformadas com as
injustiças e ‘contaminadas’ pelo ‘fervor’ da Teologia da
Libertação, dedicam-se a ‘movimentar’ o povo, acompanhando e
apoiando o dia-a-dia de greves e ocupações, motivando e
dinamizando processos organizativos de defesa e conquista de
direitos.
Temos assim, nos anos 70 e 80, uma “fase” de emergência muito
_0
vigorosa do que temos chamado “os novos movimentos sociais”3,
movimentos que se organizam como espaços de ação
reivindicativa, que recusam relações subordinadas, de tutela ou
de cooptação por parte do Estado, dos partidos ou de outras
instituições. Esses novos sujeitos constróem uma vigorosa
cultura participativa e autônoma, multiplicando-se por todo o país
e constituindo uma vasta teia de organizações populares que se
mobilizam em torno da conquista, da garantia e da ampliação de
direitos, tanto os relativos ao trabalho como à melhoria das
condições de vida no meio urbano e rural, ampliando sua agenda
para a luta contra as mais diversas discriminações como as de gênero
e de raça.
Essa nova cultura participativa, construída pelos movimentos
sociais, coloca novos temas na agenda pública, conquista novos
direitos e o reconhecimento de novos sujeitos de direitos, mas
mantém, ainda, uma posição exterior e antagônica ao Estado,
pois as experiências de diálogo e as tentativas de negociação
realizadas até então levavam, sistematicamente, à cooptação
ou à repressão.
Se os anos 70 podem ser caracterizados pela disseminação de uma
multiplicidade de organizações populares “de base”, nos anos
80 temos a sua articulação em federações municipais, estaduais
e nacionais, entidades representativas desses movimentos, cujas
expressões mais fortes são a construção da CUT (Central Única
dos Trabalhadores) e do Partido dos Trabalhadores, um partido que,
no dizer de Lula, seu fundador, nasce da percepção de que os
trabalhadores precisam também fazer política partidária, para
garantir “na lei” as conquistas obtidas n_0as lutas
reivindicativas. Um partido que se pensa como expressão, na política
“maior”, de toda a mobilização social desse período, do
espaço público construído pelas lutas dos trabalhadores.
O processo constituinte, o amplo movimento de “Participação
Popular na Constituinte”, que elaborou emendas populares à
Constituição e coletou subscrições em todo o país, marca este
momento de inflexão e uma nova fase dos movimentos sociais.
Momento em que as experiências da “fase” anterior,
predominantemente reivindicativa, de ação direta ou “de
rua”, são sistematizadas e traduzidas em propostas políticas
mais elaboradas e levadas aos canais institucionais conquistados,
como a própria iniciativa popular de lei que permitiu as emendas
constituintes. “Na luta fazemos a lei” era o slogan de muitos
candidatos do campo democrático-popular ao Congresso
constituinte, revelando seu caráter de espaço de afirmação das
mobilizações sociais no plano dos direitos instituídos.
A emergência dos chamados novos movimentos sociais, que se
caracterizou pela conquista do direito a ter direitos, do direito
a participar da redefinição dos direitos e da gestão da
sociedade, culminou com o reconhecimento, na Constituição de
1988, em seu artigo 1°, de que “Todo poder emana do povo, que o
exerce indiretamente, através de seus representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.” Esta “Constituição
cidadã”10 prevê a participação direta dos cidadãos através
dos chamados institutos de democracia direta ou semi-direta como o
plebiscito, o referendo, a iniciativa popular de lei, as tribunas
populares, os conselhos e outros canais inst_0itucionais de
participação popular11 .
1. A democracia participativa
O processo Constituinte é um momento de inflexão, em que emerge
claramente, nas reivindicações dos movimentos sociais, a idéia
de “participação” tal como a estamos entendendo neste texto,
num patamar diferente da “participação” entendida de uma
forma mais ampla e genérica. A partir da Constituinte, e ao longo
da década dos 90, torna-se cada vez mais clara para os movimentos
sociais a reivindicação de participar da redefinição dos
direitos e da gestão da sociedade. Não reivindicam apenas obter
ou garantir direitos já definidos mas ampliá-los e participar da
definição e da gestão desses direitos, não apenas ser incluídos
na sociedade mas participar da definição do tipo de sociedade em
que se querem incluídos, de participar da “invenção de uma
nova sociedade”12 .
Culminam na Constituinte e no reordenamento institucional que a
ela se seguiu, diversas lutas que têm raízes na década de 60,
quando diversos atores sociais pleiteavam as “Reformas de
Base”. Assim, a luta pela Reforma Sanitária, aliando a ação
dos profissionais da Saúde - os Sanitaristas - aos emergentes
movimentos populares e sindicais na área de saúde, consegue
aprovar o SUS - Sistema Único de Saúde, que institui um sistema
de co-gestão e controle social tripartite (Estado, profissionais
e usuários) das políticas de saúde, que se articula desde os
conselhos gestores de equipamentos básicos de saúde até o
Conselho Nacional, regido pela Conferência Nacional de Saúde. A
luta pela Reforma Urbana consagra a função social da propriedade
e da c_0idade, num capítulo inédito sobre a questão urbana que
prevê o planejamento e a gestão participativa das políticas
urbanas e que, embora não tenha consolidado um sistema articulado
de Conselhos, tem instituído diversos espaços de co-gestão das
políticas urbanas nas esferas estaduais e municipais.
Merecem também destaque, pela participação da sociedade
organizada, pressionando e construindo espaços de co-gestão, as
áreas que envolvem políticas de defesa da criança e do
adolescente e de assistência social. Através das novas leis como
o ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente - e a LOAS - Lei Orgânica
da Assistência Social - estas políticas, marcadas
tradicionalmente pelo paternalismo e pelo clientelismo, são
redefinidas de modo mais universal e democrático e submetidas ao
controle social exercido por movimentos sociais e entidades
profissionais.
Além dos Conselhos setoriais, é preciso salientar os “Orçamentos
Participativos”, experiências que resgatam processos de debate
do orçamento municipal provocados por movimentos sociais nos
municípios de Vitória e Vila Velha, no Espírito Santo, já na
primeira metade dos anos 80, e que passaram a ser implementados
por governos municipais comprometidos com programas democráticos
e populares.
O Orçamento Participativo constitui-se em um processo de
consultas e debates sobre o Orçamento público municipal, que tem
se ampliado a cada ano, à medida em que, na relação entre a
população participante e o governo, vão-se gerando
aprendizados, vai-se redefinindo a metodologia e o alcance dessa
participação. Através deste processo a população de algumas
cidades_0 brasileiras - especialmente os seus setores mais pobres
– passam a discutir os problemas urbanos que afetam suas vidas,
as prioridades de investimento do governo municipal e a decidir o
que deve ser feito, onde e quando. Depois se organizam grupos de
acompanhamento da execução orçamentária e das obras realizadas
com esses recursos. Esse procedimento se repete a cada ano:
realizam-se assembléias nos bairros, nas regiões e no município,
elegem-se as prioridades e os delegados que representarão cada
região. Um “Conselho Municipal de Orçamento” discute então
a que prioridades deverão ser destinados os recursos disponíveis
para o investimento e os delegados de cada bairro ou região
acompanham e fiscalizam a realização das obras aprovadas13 .
Estas experiências têm encontrado grande repercussão, como
forma inovadora de gestão pública, pelo seu caráter
modernizador e democratizador, com grande capacidade de aumentar a
eficácia e a legitimidade do governo. Têm sido premiadas por
escolas de gestão pública e aplaudidas por organismos
internacionais como a Conferência da ONU, sobre o Habitat, o que
tem gerado uma certa generalização dessas iniciativas.
Entre as várias experiências implementadas, pode-se notar uma
grande diversidade na sua amplitude e alcance. São distintos,
entre os diversos processos de “Orçamento Participativo”, o
grau de compromisso do conjunto do governo com as deliberações
do Conselho de Orçamento, seu papel deliberativo ou consultivo, a
porcentagem dos recursos orçamentários que é submetida à sua
avaliação. Em função destes fatores temos experiências de
maior ou menor alcance como política participativa e
_0 democratizadora. Estas práticas têm, apesar destes limites, um
grande potencial para contribuir na superação do particularismo
que caracteriza as organizações populares. Ao propiciar o
conhecimento e a disputa entre as demandas das diversas regiões
da cidade, contribuem para que as lideranças sociais desenvolvam
uma compreensão mais geral dos problemas da cidade, um sentido de
solidariedade, a capacidade de construir parâmetros públicos,
procedimentos de transparência e regras de funcionamento que
tensionam práticas corporativas, construindo uma racionalidade
mais universal que evita e pode superar critérios particulares,
comunitários, ideológicos, ou partidários14 .
Os Orçamentos Participativos podem contribuir também para a
articulação das políticas setoriais do município, para a
superação da segmentação e setorização tecnocrática e
clientelista a que tendem as diversas secretarias de governo.
Tocam ainda num ponto nevrálgico do neoliberalismo que é a redução
da destinação de recursos públicos para as políticas sociais.
Na medida em que se tornam práticas mais eficazes, ampliando seu
caráter democrático e possibilitando uma ampla e efetiva
“disputa da renda da cidade”15 , os Orçamentos Participativos
possibilitam uma inversão de prioridades, contribuindo para a
melhoria das condições de vida da população tradicionalmente
excluída dos serviços públicos.
Queremos ainda destacar, como importante experiência
participativa conquistada pelos movimentos sociais, embora já
extinta, a experiência das Câmaras Setoriais. Elas foram espaços
tripartites de negociação de políticas industriais e de
desenvolvim_0ento, constituídas principalmente nos governos dos
presidentes Sarney e Itamar Franco, a partir da crise da indústria
automobilística. Envolveram sindicatos, centrais sindicais,
governo, empresários e, no caso da Câmara Setorial da Construção
Civil, envolveram também movimentos sociais e ONGs que atuam na
luta pela moradia popular16 . Foram também experiências que se
destacaram pela construção de uma noção de interesse público
e pelo tensionamento das práticas corporativas, tradicionais nos
setores sociais, empresariais e também governamentais,
envolvidos. Foram, sintomaticamente, desativadas e deslegitimadas
pelo governo mais consistentemente neoliberal que se seguiu.
Tão importante quanto a construção destes e de inúmeros outros
espaços de gestão participativa foi a construção, que marca
este período de forte mobilização social, de uma cultura
participativa, que admite, reivindica e valoriza a participação
direta e o controle social por parte dos usuários e outros
segmentos interessados nas políticas públicas.
Por outro lado, os espaços institucionais de governo ou gestão não
são tradicionalmente reconhecidos como lugares do movimento
social e sua presença aí causa novamente estranheza e
perplexidade. Conhecidos como ‘espontâneos e autônomos’,
definidos por uma suposta recusa do Estado e da institucionalidade,
gera-se uma decepção, por parte de analistas acadêmicos e políticos,
quando os movimentos passam a participar do jogo democrático, que
é progressivamente restabelecido, através dos partidos políticos
e da “interação com o sistema político administrativo”17 .
Tidos como paroquiais, fragmentados, efêmeros, os mov_0imentos
sociais teriam dificuldade em efetivamente articular suas
reivindicações nas arenas políticas formais que se constituem
num regime democrático, seriam inábeis para transcender o local
e engajar-se na política “real” requerida pelo retorno da
democracia representativa18 .
Ao invés de desempenharem um papel imitado ao processo de
reconstituição de canais de representação política, perdendo
seu significado e desmobilizando-se com a estabilização da
democracia, pensamos que os movimentos sociais têm sido capazes
de se transformar, transformando a democracia brasileira. Ao invés
de “uma total desmobilização e atomização da esfera
civil”, a estabilização, o desenvolvimento e o aprofundamento
da democracia “dependem de uma relação complexa e bilateral
entre as esferas civil e política”19 , dependem de uma
sociedade ativamente participante. O aprofundamento da democracia
que temos visto no Brasil não pode ser explicado somente como
obra de engenharia institucional mas afirma o importante
significado da expansão da mobilização como fator de transformação
das instituições a partir dos espaços de organização da
sociedade. Sem a forte presença dos movimentos sociais não se
pode explicar uma crescente mudança cultural que se opõe aos
velhos padrões da política, clientelistas, elitistas e
corruptos, uma sociedade que, em diversas de suas atitudes
recentes, embora de uma forma descontínua, enfatiza a
representatividade, exige maior transparência e respeitabilidade
nas ações governamentais20 .
A articulação da democracia representativa parlamentar com
canais institucionais de gestão participativa tem _0contribuído
para desprivatizar a gestão pública, alterando os arranjos
institucionais formadores de políticas, contribuindo para
desestabilizar tradicionais relações simbióticas entre o Estado
e grupos de interesse, para publicizar e democratizar as políticas
sociais. Essa articulação entre democracia representativa
parlamentar com novos canais de participação direta tem gestado
uma nova concepção de democracia, alargando-a, aprofundando-a.
Tem construído uma concepção de democracia participativa capaz
de ampliar a democracia através de uma efetiva partilha do poder
de gestão da sociedade.
Tornar real essa nova concepção de democracia, possibilitar uma
efetiva partilha do poder de gestão com a sociedade, é um
processo lento, complexo e descontínuo. Exige transformações
dos movimentos sociais, provocadas pela sua relação com o mundo
da política “real”, provoca mudanças culturais, que geram
transformações das instituições. Estes processos de
aprofundamento da democracia e de alargamento da cidadania, devem
ser olhados ainda à luz de outros aspectos.
2. O papel das ONGs - as redes movimentistas
Os movimentos sociais, desafiados pela complexa construção de
possibilidades de participar na proposição, negociação e gestão
de políticas públicas, vivem uma “nova fase”, que enfatiza
sobremaneira a necessidade de capacitação técnica e política
das suas lideranças, para que possam ocupar de modo qualificado
os espaços de co-gestão conquistados.
Isso tem contribuído fortemente para a emergência, com maior
visibilidade na cena pública, das ONGs que, nas décadas
anteriores _0mantiveram-se no discreto papel de apoio aos movimentos
ou de agentes de educação popular. Essa visibilidade e sua nova
postura de não mais definir-se como subsidiárias dos movimentos
sociais, mas atores com papel específico e independente na
construção democrática, têm gerado a opinião de que os anos
90 são ‘a década das ONGs’ ou de que os movimentos estão
sendo substituídos por elas. Seu papel, mais adequado ao período
de reconstrução de canais democráticos de representação,
seria minimizado no momento atual, em que a “estabilização”,
o desenvolvimento e o aprofundamento da democracia, favorecem a
interlocução com atores providos de maior institucionalidade e
saber técnico.
Ao invés de entender as ONGs como os atores privilegiados neste
momento da construção da democracia, pode-se perceber um
conjunto de atores e formas de participação, que se interligam e
integram redes. Um “tecido movimentista”, “heterogêneo e múltiplo”,
que têm uma certa permanência e articulação, com períodos de
maior ou menor mobilização21 , talvez seja uma descrição mais
adequada do que se observa nos conselhos, fóruns e plenárias,
bem como em inúmeras outras articulações em que, ao lado dos
movimentos sociais, encontramos ONGs e diversas outras entidades e
instituições como universidades, centros de pesquisa, entidades
profissionais, órgãos da mídia e até mesmo empresas, bem como
militantes e profissionais que atuam individualmente. Estas redes
incorporam sujeitos mais ou menos coletivos e podem ser
organizadas de modo mais ou menos formal, incorporando hoje novas
formas de participação ou manifestação cidadã, que enfatizam
a expressão _0cultural e artística e as tecnologias da comunicação
como o telefone, a televisão e a Internet. Elas estendem-se
crescentemente não apenas sobre o terreno da sociedade civil mas
incorporam também setores de partidos e do Estado22 .
A crescente necessidade de qualificação técnica e política e a
convivência entre atores distintos, muitos dos quais organizados
com maior institucionalidade, exercem uma grande influência nos
movimentos sociais. Também as “ONGs do norte”, agências de
cooperação internacional, que contribuem significativamente com
o financiamento de ONGs e movimentos sociais “do sul”, têm
contribuído para esta institucionalização e, quem sabe, para
uma mudança de paradigmas e de estratégia, valorizando
sobremaneira a construção democrática e seus espaços de
negociação de políticas públicas.
A exigência de eficácia e eficiência, que caracteriza mais
amplamente a atualidade como o tempo da “qualidade total”,
coloca-se também para as ONGs e movimentos sociais. Estas exigências
são entendidas, muitas vezes, como burocratização desnecessária,
abandono dos ideais transformadores, do estilo informal, da
rebeldia e da valorização das organizações autônomas da
sociedade como centro das estratégias de mudança social.
Estas mudanças têm sido vistas como provocadas “de fora”,
pela mentalidade das ONGs “do norte”, que estariam sendo cada
vez mais influenciadas pelo controle neoliberal proveniente dos
governos de seus países.
As exigências de eficácia e a valorização dos espaços de gestão
participativa podem ser vistas também, no entanto, a partir dos
novos desafios das lutas sociais. Já não bastam hoje _0a vontade,
a mística e o empenho que caracterizaram os movimentos nas décadas
passadas. Na ação defensiva e unânime contra um inimigo comum,
“valia tudo”, o que importava era “jogar a bola prá
frente”. Hoje, quando se trata de armar estratégias e construir
a alternativa que se quer, é preciso “armar as jogadas” e
acertar o alvo. Já não bastam princípios gerais de análise da
sociedade, é preciso concretizar esses princípios em estratégias
e políticas viáveis em nosso país ou município, numa dada
correlação de forças. Desse ponto de vista, qualificar-se técnica
e politicamente e buscar eficácia com base numa certa
institucionalização, são exigências colocadas “de dentro”,
a partir de um novo patamar na luta pela ampliação da cidadania,
um novo patamar na responsabilidade de participar da construção
de uma nova sociedade.
É verdade, no entanto, que várias ONGs, em alguns países
latino-americanos, passaram a privilegiar de modo extremado ações
de assessoria ou parceria com governos, entendendo que não é
mais tempo do protagonismo dos movimentos sociais e assumindo,
inclusive, a avaliação, corrente entre muitos ex-intelectuais de
esquerda, de que acabaram-se as utopias solidárias e igualitárias
e que as estratégias adotadas pelos nossos governos neoliberais são
as únicas viáveis dentro de uma “utopia possível”.
Há, no entanto outra forma de entender a construção de uma
“utopia possível”, enraizada no chão cotidiano do viável
sem abrir mão da “crença na vocação do homem para a
solidariedade” e teimosamente buscando um futuro livre da
“degradação da miséria”23 através da construção de vínculos
de res_0ponsabilidade cidadã.
3. A “participação” como oferta estatal: a generalização
do discurso da participação, da democracia e da cidadania.
Até agora analisamos a “participação” como reivindicação
e conquista da sociedade, mas pode-se dizer também que sempre
houve alguma “participação” como “oferta” estatal. Mesmo
as ditaduras necessitam de alguma legitimação e interlocução
com alguns setores sociais que as sustentem. Num sentido mais
amplo, a participação da sociedade no governo dos interesses públicos,
se confunde com a história da democracia, especialmente da
democracia parlamentar ou representativa. Esta tem sua história
peculiar, marcada pela construção de institutos reguladores do
exercício do poder, de mecanismos de participação dos cidadãos
e pela cultura de cidadania que caracteriza cada sociedade.
A “oferta” de participação social por parte do Estado
brasileiro, é, no entanto, historicamente, muito restrita,
geralmente vinculada a grupos privilegiados. No Brasil, a
democracia parlamentar nunca conseguiu fazer da política uma
coisa pública. O autoritarismo hierárquico e vertical, as relações
de compadrio e tutela, o populismo, o clientelismo, as relações
fisiológicas entre o público e o privado, marcaram nossa história
colonial, escravocrata, imperial e “republicana” - República
que, a rigor, nunca se constituiu plenamente, visto que o Estado
nunca foi efetivamente uma “coisa pública”.
Também outros Estados, no mundo todo, cuja democracia foi melhor
constituída, passaram, nos últimos anos por “crises de
legitimidade” que têm gerado inúmeros estudos e propostas de
“Re_0forma do Estado”, que buscam adequar a máquina estatal às
demandas e à cultura moderna. A “participação cidadã” ou
“comunitária” é um discurso que acompanha estas reformas,
criando espaços de participação, com maior ou menor amplitude e
efetividade, como os conselhos e a realização ações
governamentais em “parceria” com a sociedade.
Conselhos que incorporam personalidades ou entidades “notáveis”
ou convenientes aos grandes interesses são uma prática já
antiga no Brasil. Como exemplos podemos citar o Conselho Nacional
e os Conselhos estaduais de educação, o Conselho Nacional de Saúde,
que data de 1937, bem como os diversos conselhos na área econômica24
.
Mesmo a ditadura de 64 foi conhecida como “conselhista”,
constituindo conselhos que expressavam vínculos entre o Estado e
uma tecnocracia representante do grande capital que esse modelo
desenvolvimentista privilegiou25 .
A progressiva abertura democrática imposta à ditadura militar
construiu uma cultura mais democrática que alastrou-se por toda a
sociedade, inclusive aos partidos mais sensíveis a essa nova
demanda. Vários Conselhos foram abertos a uma participação mais
democrática, como o Conselho do FGTS (Fundo de garantia por tempo
de serviço), passando a contar com a participação das Centrais
sindicais que se organizaram nesta época. Também são parte
dessa abertura os Conselhos Nacional e estaduais da Condição
Feminina e uma série de experiências participativas promovidas
por governos municipais como o de Lages, em Santa Catarina, e
estaduais como o de Franco Montoro, em São Paulo, conduzidas por
partidos de centro como o PMDB.
Esta _0cultura democrática e participativa se enraíza nas décadas
de 70 e 80, quando a ditadura militar é lenta e gradualmente
deslegitimada pelos mais diversos atores sociais. As denúncias
internacionais de violação dos direitos humanos, a incapacidade
de equilibrar as dívidas públicas, os novos rumos do capital
internacional, o fantasma da convulsão social e do “comunismo
internacional” são elementos que articularam diversos atores na
crítica à ditadura, recusando especialmente sua centralização,
sua impermeabilidade ao diálogo com os mais diversos segmentos
sociais, seu isolamento político. Um anseio generalizado pela
democratização do regime emerge dessa crítica, unindo sob a
bandeira das “oposições” os mais diversos segmentos e atores
sociais. Essa articulação de distintos atores, discursos e
expectativas, essa mobilização, nova na história do Brasil, de
uma sociedade civil ativa, se expressa especialmente numa grande
campanha social e política pelas eleições diretas, o movimento
das “Diretas Já”, em 1985.
Uma vez alcançada a abertura “lenta e gradual” quebra-se essa
momentânea união, explicitando-se os diversos significados e
projetos democráticos constituídos enquanto oposição à
ditadura e ao centralismo característico dos governos militares.
No projeto dos setores sociais transitoriamente alijados do poder,
bastava a restauração da democracia representativa tradicional.
Na expectativa de grupos políticos locais, bastava uma
descentralização que permitisse seu acesso às políticas
regionais. Já os setores populares, articulados pelos movimentos
sociais, destacam-se, nessa ampla e diversa sociedade civil
mobilizad_0a em oposição à ditadura militar, como aqueles que
esperam da participação e da descentralização o rompimento dos
vínculos centenários do Estado brasileiro com interesses oligárquicos,
a permeabilidade do Estado à participação dos segmentos
tradicionalmente excluídos de seus projetos e de sua interlocução.
A união de distintos setores sociais, com projetos políticos
diferenciados, na oposição a um “inimigo comum”, ditatorial,
centralizador, que a todos alijava do poder de participar da
definição dos rumos de um projeto nacional, dissemina um
discurso aparentemente unânime que valoriza a cidadania e a
democracia, a descentralização, a participação da sociedade na
gestão de seus interesses comuns, o controle social sobre o
Estado e que teme e condena o monopólio do Estado sobre a gestão
da “coisa pública”. A definição da abrangência dessa
participação, de quem deve “participar” e em que amplitude
essa participação é desejável, são o divisor de águas que
passa a explicitar projetos, mantidos sempre um tanto obscuros,
numa permanente disputa de significados.
A permeabilidade da sociedade como um todo, assim como de amplos
setores partidários e do Estado, a este novo ideário democrático
e participativo, torna mais permeáveis as relações entre Estado
e sociedade. A atitude dos setores democrático-populares,
predominantemente reativa, antagônica e contestadora da
legitimidade do Estado na gestão da sociedade, dá lugar a uma
postura mais propositiva, que passa a entendê-lo como espaço de
disputa, que busca disputar espaços no seu interior, alargando o
leque de interlocutores e ampliando sua legitimidade. A participação
_0 entendida e realizada como confronto dá lugar à participação
entendida como disputa e negociação. A reivindicação de
participação popular, formulada pelos movimentos sociais,
torna-se a reivindicação de participar da gestão da sociedade.
A essa mudança de postura e de expectativas dos setores democrático-populares
em relação ao Estado correspondem também mudanças no Estado,
embora expressando projetos políticos diversos, de acordo com o
perfil político dos partidos no governo.
Apesar dessas diferenças nota-se, após a Constituição de 88,
uma apropriação e generalização, por parte do Estado e dos
partidos no poder, das propostas de gestão participativa e de
controle social formuladas pela sociedade e pelos parlamentares,
no processo constituinte e no reordenamento jurídico que o
seguiu. Em consequência, temos uma grande oferta de canais
institucionais de participação, principalmente conselhos
vinculados ao repasse de verbas federais aos municípios.
Esta oferta estatal é, em muitos casos, maior que a demanda de
participação da sociedade, em dois sentidos diferentes.
Por um lado, os movimentos sociais, forjados num tempo de
ditadura, onde as possibilidades de diálogo eram quase
inexistentes ou cooptadoras, desenvolveram um forte perfil
reativo, reivindicativo, habituado a uma relação de confronto
com o Estado. A história deste período, bem como toda a tradição
autoritária brasileira, produzem uma sociedade civil frágil, com
pouca capacitação técnica e política para a proposição e a
negociação de políticas públicas, que ocupa de forma precária
os canais participativos conquistados.
Por outro lado,_0 especialmente nos lugares (municípios ou bairros)
com menor tradição organizativa e capacidade propositiva, a
sociedade não “dá conta” de ocupar com qualidade os espaços
criados por iniciativa legal e governamental.
Criam-se então, muitos canais participativos burocratizados,
esvaziados de conteúdo democrático, além de muito segmentados.
Nota-se também, em todo o leque dos partidos no governo, mesmo na
esquerda, um despreparo dos governos e do Estado para a transparência,
isto é, para tornar acessíveis à sociedade as informações, os
procedimentos, as decisões de governo, e também para estabelecer
relações de parceria com a sociedade. As regras estabelecidas
para relações de convênio ou parceria mostram-se excessivamente
burocratizadas, geralmente mais adequadas a relações com grandes
grupos econômicos do que com as pequenas e informais organizações
populares.
É preciso ainda apontar, tanto em governos de direita como de
esquerda, uma falta de vontade e de cultura política que favoreça
a partilha do poder, uma co-gestão das políticas públicas em
que participem o Estado e a sociedade. A resistência ou a
dificuldade de efetivamente repartir o poder com a sociedade
devem-se, em alguns casos, a compromissos fisiológicos que
beneficiam elites econômicas e/ou políticas ou ao clientelismo,
corporativismo e à centralização que tradicionalmente regem as
relações entre Estado e sociedade. Em outros casos, devem-se ao
tecnicismo, que privilegia uma “otimização” de resultados,
baseada em avaliações técnicas, sobre o risco de partilhar
decisões, submetendo-as a critérios sociais e políticos.
Os governos, principalmen_0te municipais, têm generalizadamente
usado a “crise financeira” do Estado, a falta de recursos para
atender a demanda crescentemente explícita (causada por uma
população mais ativamente cidadã e por uma cultura mais
exigente de publicidade) de serviços públicos mais universais
(saúde, educação, moradia, transporte) para justificar a importância
e a necessidade de implementar práticas participativas, que
viabilizam, de forma mais barata políticas e serviços públicos
sociais.
Esta suposta “crise financeira” esconde, no entanto questões
distintas. Esconde, por um lado, opções políticas que não
priorizam a função social e redistributiva do Estado e, por
outro lado, a dificuldade dos municípios em conseguir que os
processos que se dizem “descentralizadores” não se restrinjam
à “prefeiturização” de responsabilidades sociais mas sejam
acompanhados de uma efetiva descentralização de recursos.
4. Experiências parlamentares e governos de esquerda
A abertura democrática dá lugar, a partir de 78 e de 82, à
participação de candidatos de esquerda, mais vinculados aos
interesses populares, nas disputas para o legislativo e para os
executivos. Estas experiências parlamentares e, principalmente,
as administrações municipais governadas por coalizões partidárias
de esquerda, marcam fortemente a trajetória de construção da
democracia participativa no Brasil pois a participação popular,
além de reivindicação e conquista dos novos movimentos sociais
é também uma antiga bandeira da esquerda.
A concepção de democracia pensada pela tradição socialista tem
persistentemente colocado o desafio de busc_0ar novas formas de
participação social que afirmam o controle da sociedade sobre o
Estado. Os soviets, os conselhos operários foram experiências
que afirmaram a importância deste controle através da democracia
direta. A supervalorização desta forma de democracia foi, porém,
no Brasil, origem de polêmicas desgastantes sobre o caráter
classista e autônomo e o poder deliberativo que deveriam ter os
conselhos populares. A superação de uma oposição rígida entre
democracia direta e democracia representativa parlamentar, foi,
aos poucos possibilitando a construção de uma concepção de
democracia participativa, que articula a democracia representativa
e a democracia direta26 .
Na esteira dos conselhos operários, os governos municipais de
esquerda na Itália, na Espanha, a experiência chilena e algumas
outras experiências latino-americanas foram precursoras,
verdadeiros laboratórios de participação popular, contribuindo
para o repensar e o refazer, de forma concreta, os mecanismos e
institutos que possam articular democracia representativa e
democracia direta.
Esse laboratório intensificou-se, no Brasil, nas gestões
municipais do Partido dos Trabalhadores ou de frentes em que ele
tem participado. Desde as gestões municipais de Fortaleza, no
Ceará, e Diadema, São Paulo, no início dos anos 80, mas
principalmente na gestão de Luíza Erundina, na Prefeitura de São
Paulo e na administração de Campinas, São Paulo, concepções
distintas estiveram colocadas muito claramente. A partir daí, forçadas
pela prática das gestões que têm-se sucedido desde então,
foram evoluindo concepções que partiram da proposta dos
Cons_0elhos Populares como espaços populares, classistas, como um
“poder popular”, “paralelo” ao poder do Estado, até a
formulação da proposta de canais institucionais de participação,
como espaços de poder compartilhado, de interface entre Estado e
sociedade.
Além da grande contribuição que vem das experiências de
governo marcadas pelo que tem sido chamado “o modo petista de
governar”, tem grande importância a presença no parlamento, de
lideranças formadas pelos movimentos sociais e comprometidas com
o campo democrático e popular constituído fortemente nos anos 70
e 80. A experiência de mandatos legislativos “populares”,
quer exercidos por lideranças de movimentos, quer incorporando
lideranças no seu quadro de assessores ou pautando o apoio aos
movimentos na sua agenda, também faz parte das experiências de
“participação popular”.
Apesar das dificuldades específicas da relação entre
parlamentares e organizações sociais, marcada fortemente no
Brasil pela cultura clientelista, as experiências parlamentares têm
propiciado um crescimento da experiência de participação
popular na chamada política “real”, o aumento do acesso às
informações e ao conhecimento da lógica estatal e, ainda, a
construção ou a ampliação de mecanismos democratizadores e
publicizadores da ação estatal como as audiências públicas, as
tribunas livres, as iniciativas populares legislativas e as comissões
parlamentares de inquérito (CPIs).
A representação de setores populares democráticos nos espaços
legislativos e nas administrações municipais traz experiências
fundamentais para o início do conhecimento dessa ‘caixa
preta’ que até_0 então tinha sido o Estado para os setores
populares e para o início de uma mudança radical na concepção
de que o Estado é vinculado exclusivamente às classes
dominantes, passando a experimentá-lo como espaço de disputa.
Esta “participação” transforma a postura da oposição, da
reivindicação e da pressão, adquirida nas lutas dos movimentos
sociais, incorporando o aprendizado da interlocução, da formulação
de propostas, da negociação e da disputa de espaços.
Quando as lideranças sociais se fazem presentes em partidos, nas
primeiras bancadas legislativas e governos municipais, começam a
entender que o Estado é mais complexo do que um simples
“muro” exterior e antagônico à sociedade e como funcionam os
mecanismos de tomada de decisões. Amplia-se o espaço de disputa
do campo democrático e popular para além do “lado de fora do
muro”: disputam-se instâncias de decisão política e de gestão
da sociedade como governos, Assembléias Legislativas, Câmaras
Municipais e o Congresso Nacional.
Desenvolve-se, a partir dessas experiências, uma dinâmica de
retroalimentação que transforma partidos, Estado e sociedade. A
presença de militantes dos movimentos em alguns partidos torna-os
mais permeáveis a uma nova cultura participativa e a uma ampliação
de sua agenda e, através destes partidos, esta permeabilidade
atinge o Estado.
A participação na gestão da sociedade altera o “tom” do
debate político, tornando-o mais público e transforma também os
movimentos sociais, trazendo-os de seu papel tradicional de
captadores de novas demandas e reivindicações em ‘estado
bruto’ para uma participação mais complexa e qualificada no
_0 processamento dessas demandas em instâncias políticas decisórias.
Ao identificarmos os movimentos sociais no vórtice destas
transformações não queremos ignorar os inúmeros fluxos de
retroalimentação que se estabelecem entre estes três atores,
mas queremos destacar os movimentos como a incubadora desta nova
cultura participativa e de uma ampliação da agenda pública. É
inegável, no entanto, a importância da permeabilidade a essa
cultura, presente em setores de partidos e do Estado, na própria
constituição e consolidação de uma nova concepção de gestão
participativa da sociedade.
5. A “participação” como política neoliberal
Ao lado de todos os componentes acima analisados, na constituição
e na generalização de um discurso participativo e de uma
multiplicidade de experiências e espaços participativos, é
preciso ainda apontar um outro uso deste discurso, que tem sido
feito pelos governos neoliberais, em todo o mundo, e que vem
acentuar as diversidades e as disputas de significado já
apontadas.
O movimento dos governos neoliberais de desobrigar-se de encargos
sociais gera uma transferência de responsabilidades às instâncias
locais, ao mercado e à sociedade. Este é um tipo de Reforma do
Estado fundado em concepções e ações que não privilegiam o
fortalecimento da cidadania, que ao invés de direitos retorna aos
favores e à caridade, que não produz políticas universais mas
políticas compensatórias, verdadeiras “cestas básicas” de
saúde, educação, previdência, etc., para os mais pobres,
privatizando tudo o mais.
A Reforma do Estado neoliberal tem provocado uma “zona
_0 cinzenta”, uma disputa velada de significados que provoca
perplexidade mesmo nos movimentos sociais e em outros setores da
sociedade organizada comprometidos com a ampliação da cidadania
e da inclusão social.
Exemplo disso são as políticas de descentralização. Embora
seja um princípio sempre defendido pelos setores democrático-populares,
pois favorece o controle social nos espaços locais, temos
assistido a processos de “descentralização” que representam
esforços de “economia” de recursos, pela transferência de
responsabilidades federais aos estados e municípios e que
produzem o “encolhimento” das políticas sociais, reduzindo-as
a políticas compensatórias voltadas apenas àqueles que não têm
acesso aos serviços privados. Este tipo de descentralização,
que não é acompanhado de descentralização de recursos, tem
sido chamado, no Brasil, de “prefeiturização”, ao invés de
uma verdadeira descentralização de poder, acompanhada de
controle social.
Os conselhos têm sido largamente usados para respaldar esses
processos, ratificando políticas municipais supostamente democráticas
e possibilitando repasses de recursos supostamente submetidos a um
controle social. Uma certa “moralização” da política, a
eliminação de mecanismos fisiológicos e corruptos, têm sido
mesmo exigências dos bancos multilaterais de desenvolvimento,
como garantia de “eficácia” e da eliminação de mecanismos
de “fuga de recursos” ligados a critérios da velha política
clientelista, substituindo-os por uma racionalidade capitalista
moderna. Essa nova racionalidade, se por um lado, recusa razões
clientelistas, não incorpora como critério a parti_0cipação
cidadã, não inclui a participação dos setores excluídos.
Origina-se assim uma “subversão” nos significados de
conceitos como participação, controle social e cidadania,
reduzidos às finalidades dessa “modernização”.
Emerge, dessa forma, um significado neoliberal de cidadania, que a
entende como a inclusão das pessoas ao conjunto dos consumidores,
esvaziando-a do seu significado instituinte, que garante e alarga
continuamente o escopo dos direitos, que afirma, acima de tudo, o
direito a participar da definição e da gestão de novos
direitos. Ao contrário, assistimos a uma progressiva destituição
de direitos, principalmente dos direitos trabalhistas, do direito
ao trabalho e dos direitos sociais, a uma deslegitimação das
formas de organização e participação social, acusadas de
“corporativas”, de “representantes do atraso” e promotoras
de “baderna”, ao esvaziamento dos conselhos, câmaras
setoriais e outros canais de gestão participativa construídos
com a forte participação democrática da sociedade. Assistimos
ao alastrar, como se fosse uma unanimidade avassaladora, de uma
outra concepção de “modernidade” que pretende reduzir o
Estado, desqualificando-o enquanto promotor de políticas sociais
redistribuidoras de renda, reduzindo drasticamente os orçamentos
dessas políticas e eximindo-o destas responsabilidades.
O significado neoliberal de cidadania, democracia, descentralização,
participação ou parceria conferido a inúmeros projetos
governamentais não define, no entanto, de forma mecânica e
absoluta o seu alcance. A disputa de significado e de espaço é
permanente e consegue, em muitos casos, uma reapropriaç_0ão desses
espaços na perspectiva de uma participação mais substantiva,
inclusiva, instituinte.
6. De que “participação” estamos falando?
Participar da gestão das questões que dizem respeito ao seu
destino comum é uma aspiração de todos os grupos sociais. A
exclusão de alguns grupos dos espaços em que essa
responsabilidade é exercida, é uma característica, no entanto,
que se estende ao longo de quase toda a história da política,
especialmente na história dos Estados. Os grupos excluídos do
poder sempre se organizaram, no entanto, para recuperar sua
capacidade de intervir no seu destino, nas decisões que lhes
afetam.
O Estado brasileiro tem, como vimos, uma história privatista, de
mistura promíscua entre o público e o privado, uma história
autoritária que excluiu sistematicamente largas parcelas das
conquistas sociais e democráticas construídas pela humanidade.
Os setores excluídos foram, no entanto, persistentemente
construindo seu lugar como atores nesta história e suas
possibilidades de participar da definição de seus rumos.
Participar da gestão dos destinos da sociedade, em períodos
fortemente autoritários, significou a contestação e a oposição
ao Estado autoritário e centralizador. Foi uma participação
centrada na construção social de novos valores democráticos, da
relevância, da legitimidade, da justiça, da pertinência das
demandas e dos atores sociais excluídos, do seu direito a ter
direitos. Significou a redefinição do que a sociedade considera
e assume como direitos, a quem os atribui e a quem os nega27 .
Significou “a construção de uma real sociedade _0civil” em um
país que sempre “evitou construí-la”28 .
À medida em que, a partir dos anos 70, se amplia uma cultura
democrática, em que os movimentos sociais, junto com outros
setores democráticos, vão “arrombando as portas da
ditadura”, o Estado torna-se lentamente permeável à participação
de novos atores sociais. O Estado brasileiro, tradicionalmente
privatizado pelos seus vínculos com grupos oligárquicos, vai
lentamente “cedendo” espaço, tornando-se mais permeável a
uma sociedade civil que se organiza, que se articula, que
constitui espaços públicos nos quais reivindica opinar e
interferir sobre a política, sobre a gestão do destino comum da
sociedade.
Participar da gestão dos interesses coletivos passa então a
significar também participar do governo da sociedade, disputar
espaço no Estado, nos espaços de definição das políticas públicas.
Significa questionar o monopólio do Estado como gestor da coisa pública.
Significa construir espaços públicos não estatais29 , afirmando
a importância do controle social sobre o Estado, da gestão
participativa, da co-gestão, dos espaços de interface entre
Estado e sociedade. Esse é o significado de participação social
que se consolida no Brasil dos anos 90.
O alargamento da cidadania para além do exercício dos direitos
instituídos, o exercício da cidadania ativa, para além do exercício
do voto e da delegação de poder que ele significa, a radicalização
da democracia, abrindo a possibilidade de participação à toda a
sociedade, através de novos canais institucionais de participação,
são significados colocados pela vigorosa experiência dos
movimentos sociai_0s que analisamos neste capítulo.
Um projeto radical de democracia, que quebra uma cultura
excludente, que abre caminhos para o aprendizado da negociação
democrática e “da construção partilhada da lei” só é possível
quando, “entre sujeitos diferentes e opostos, é atribuída uma
equivalência em suas habilidades e competências e capacidades de
agir, decidir e julgar”30 . A ampliação dos espaços de gestão
democrática e participativa é conquista dessa história, na
qual, lenta e dolorosamente, os setores excluídos foram deixando
as senzalas e as páginas policiais e conquistando seu lugar;
alargando as portas - que se pretendiam seguras, “graduais e sob
controle” - dos espaços que lhes eram permitidos. Foram
conquistando, não apenas a inclusão nesses espaços, mas o
direito de participar da definição do tipo de sociedade na qual
se queriam incluídos. A democracia participativa, os espaços de
controle social conquistados e construídos, com todas as suas
fragilidades e limites, expressam essa lenta mas consistente emergência
dos setores excluídos na cena pública brasileira.
A ampliação das possibilidades de gestão participativa das políticas
públicas não esgota, porém, o sentido da participação, embora
talvez seja sua dimensão principal nesta década. Participar da
gestão dos interesses da sociedade ainda significa explicitar
diferenças e conflitos, disputar na sociedade os critérios de
validade e legitimidade dos interesses em disputa, definir e
assumir o que se considera como direitos, os parâmetros sobre o
que é justo e injusto, certo e errado, permitido e proibido, o
razoável e o não razoável, significa superar posturas
_0 privatistas e corporativas e construir uma visão plural de bem público31
. Participar da gestão dos interesses da sociedade é participar
da construção e do alargamento da esfera pública, é construir
novos espaços de poder - esse “acordo frágil e temporário de
muitas vontades e intenções”32
Espaços plurais na sociedade, onde são elaborados acordos, mesmo
que frágeis e temporários, sobre valores, relevâncias e
direitos, são também espaços de participação, mesmo sem a
interlocução instituída com o Estado. Fóruns, relações de
parceria entre diferentes atores sociais são também espaços nos
quais a explicitação de diferenças dá validade aos conflitos,
em que se constróem relações de reciprocidade e equivalência,
em que “interesses e razões privadas podem ser desprivatizadas
e reconhecidas publicamente na sua legitimidade”33 . São espaços
onde são construídos os parâmetros públicos que definem o que
a sociedade reconhece como direitos. Uma pesquisa realizada em
Campinas, em 1993, mostra que o autoritarismo social e a
hierarquização das relações sociais, revelado pelo tratamento
desigual que a sociedade dispensa a brancos e negros, homens e
mulheres, ricos e pobres é percebido “como um sério obstáculo
à construção democrática”. A eliminação das formas de
sociabilidade e da cultura autoritária de exclusão “constitui
um desafio fundamental para a democratização da sociedade”34 ,
pois o reconhecimento de direitos “não depende da simples sanção
do Estado”, depende do acordo, às vezes tácito, às vezes explícito,
de “uma importante fração da opinião pública. Depende de que
uma reivindicação se inscreva no espaço público”35 .
_0 Disputar espaço na opinião pública, inscrever novos temas na
agenda pública, democratizar a cultura da sociedade, também
continuam a ser agenda dos movimentos sociais. Ampliar a tolerância,
o respeito democrático pelo diferente, reduzir as segregações
raciais, de gênero, de opção sexual, às crianças, aos velhos,
aos portadores de deficiência, é o resultado da incidência de
práticas participativas, nem sempre normatizadas pelo Estado, mas
que constróem e modificam os valores sociais. A gestão dos
interesses da sociedade, o direito a ter direitos, não se
expressam unicamente no controle social sobre o Estado mas também
na democratização da cultura da sociedade. A radicalização da
democracia não significa apenas a construção de um regime político
democrático mas também a democratização da sociedade, a
construção de uma cultura democrática36 .
Este primeiro capítulo pretendeu mostrar que, a despeito de uma
tradição privatista do Estado brasileiro, simbiótica com elites
políticas e econômicas “atrasadas” ou “modernas”,
excludente dos trabalhadores e das classes populares, os excluídos
vêm conquistando e forjando espaços públicos, vêm constituindo
um vasto e denso tecido social, vêm conquistando consistentemente
a capacidade de mover-se no espaço da “política”,
reivindicando e construindo espaços de controle social do Estado
e de gestão participativa da sociedade.
Quis mostrar que a “participação” social, seus espaços e
instrumentos, são conquista e construção da sociedade. Quis
mostrar que as ofertas de participação provenientes do Estado
decorrem fundamentalmente das pressões da sociedade. São as
demand_0as de participação da sociedade organizada a causa de uma
crescente mudança cultural que se opõe aos velhos padrões da
política, clientelistas, elitistas, autoritários e corruptos,
gerando uma opinião pública que enfatiza a representatividade,
que exige transparência e respeitabilidade nas ações
governamentais.
Essa mudança cultural, embora frágil e descontínua, se
expressa, por exemplo, nas mobilizações que provocaram as CPIs
(Comissões Parlamentares de Inquérito) que investigaram a corrupção
no orçamento federal e no processo de “Impeachment” do
Presidente Collor. Expressa-se também no episódio, doloroso e
contraditório, que foi a grande indignação da opinião pública
contra o vandalismo praticado, por jovens da classe média de Brasília,
quando queimaram o índio Galdino. O amplo reconhecimento que
existe hoje, da dignidade das populações indígenas, é
conquista, sem dúvida, da luta organizada dos povos indígenas. O
reconhecimento dessa dignidade não foi, no entanto, amplo o
suficiente para obrigar a justiça a cumprir seu papel neste episódio.
Assim como em relação aos povos indígenas, os movimentos
sociais têm, apesar das limitações e precariedades, construído
equivalências que colocam num outro patamar de dignidade e
respeito, que rompem as fronteiras autoritárias e excludentes dos
“lugares sociais” aos quais têm sido confinados, os operários,
os trabalhadores rurais, os moradores de rua, os favelados, e
tantos outros e outras brasileiras.
É esta ampliação de uma cultura democrática que gera a
disseminação de padrões mais modernos de administração pública,
que marcam países que se destacam pela participação_0 democrática
da sociedade, como o Canadá, e que provocam a repercussão
nacional e internacional de experiências modernas e democráticas
de gestão como o Orçamento Participativo, premiada na Conferência
do Habitat II, em 1997. Participar da construção democrática é
uma tarefa que se coloca tanto nos espaços de gestão
compartilhada entre Estado e sociedade como no interior da própria
sociedade.
II. Principais formas de participação social no Brasil hoje:
limites e potencialidades
Vamos, nesta segunda parte, analisar diferentes práticas do que
se entende hoje no Brasil por “participação”, identificando
seus limites e potencialidades frente a alguns critérios: até
que ponto a participação social melhora efetivamente as condições
de vida da população, em que medida efetivamente democratiza a
política, até que ponto fortalece o tecido social.
Deve-se inicialmente lembrar que há hoje, no Brasil, uma tendência
de entender como práticas participativas aquelas nas quais há
uma co-gestão entre Estado e sociedade, o que se revela inclusive
pelos exemplos até agora analisados. Dentre estas vamos destacar
três grupos: os Orçamentos Participativos, os Conselhos Gestores
e as Parcerias entre Estado e sociedade.
Além dessas é preciso apontar outras formas de participação,
que não se voltam para a co-gestão e cuja incidência sobre as
políticas públicas, embora muito relevante, não se dá através
de canais institucionalizados. Dentre estas vale a pena destacar o
MST – Movimento dos Sem Terra, a Pastoral da Criança, os fóruns
de iniciativa civil, como, por exemplo, o Fórum em Defesa da Vida
_0 e Contra a Violência, de Campo Limpo, na zona Sul de São Paulo,
campanhas como a Ação da Cidadania. São ações que provocam
mudanças na agenda pública, incluindo nelas novas questões
pertinentes e relevantes como a Reforma Agrária, o combate à
mortalidade infantil, a segurança pública e a segurança
alimentar.
Entre estas formas de participação, mais centradas na sociedade
que no Estado, é preciso ainda saber “ver” novas formas de
manifestação cidadã, muito mais informais, como as redes de
“militância virtual”, as consultas e pesquisas realizadas por
telefone, questionários ou Internet, os movimentos de
consumidores e usuários. A participação meramente formal
propiciada pelas “tecnologias da comunicação” pode
integrar-se a uma participação mais “substantiva”, desde que
articulada a outras formas de participação, e os Orçamentos
Participativos já começam a incorporá-las. Por outro lado, é
preciso destacar hoje, em São Paulo, a participação de grupos
culturais como os “anarcopunks” na defesa e divulgação do
movimento mexicano dos Zapatistas e do movimento Hip-Hop, que
agrega jovens ligados à música Rap e ao “grafitti” no debate
sobre a violência e o racismo.
A ação desses grupos influencia a opinião pública e a cultura
da sociedade e eles podem ou não relacionar-se mais diretamente
com políticas públicas. Destacam-se, neste sentido, também os
movimentos feministas, negros, de gays, lésbicas e travestis, dos
povos indígenas, dos portadores de deficiência, ecologistas,
como movimentos explicitamente voltados a mudanças culturais na
sociedade, que constróem uma cultura de tolerância e de respeito
_0 ao diferente, um pensamento multicultural, que dá visibilidade a
padrões culturais minoritários e, por isso mesmo, muito
importantes ao contínuo reconstruir da cultura que predomina numa
sociedade. Estas são formas de participação que incorporam à
opinião pública novos critérios de justiça, de relevância e
de pertinência e trazem novos temas à agenda pública.
Uma terceira e importante forma de participação social, que
entretanto não vamos analisar mais detalhadamente neste trabalho,
é a presença, nos parlamentos e governos municipais, de lideranças
formadas fora da tradição político-partidária brasileira, a
partir dos movimentos sociais democráticos. Esta forma de
“participação” referencia-se no Estado, mais que as
anteriores: é a participação no exercício direto do poder
estatal.
Vamos, a seguir, analisar com mais detalhes, os limites e
potencialidades que têm revelado algumas dessas formas com que se
pode entender a participação social.
1. Experiências de co-gestão
a. Conselhos Gestores
Como vimos pelo seu histórico, pode-se dizer, talvez, que esta é,
de todas, a forma de participação e controle social mais
enraizada na reivindicação dos movimentos sociais, especialmente
os Conselhos Gestores das políticas de saúde, criança e
adolescente e de assistência social. Além desses, também é
relevante a participação social na conquista e na constituição
de conselhos gestores de políticas de habitação, dos direitos
da mulher, das pessoas portadoras de deficiência (PPD) e idosos,
além de outras temáticas que ganham relevância nas diferentes
regiõe_0s.
O enraizamento dos conselhos nas lutas populares e democráticas
lhes dá uma qualidade especial enquanto uma das formas de
participação mais permanente, que resistem às mudanças e aos
diferentes graus de abertura dos governos à participação
social. Existem conselhos sólidos e democráticos construídos a
partir de iniciativas sociais; eles persistem na sua atividade,
mesmo sem apoio significativo de governos, conseguindo inclusive
pressionar governos contra atitudes privatistas, obter subsídios
financeiros, a disponibilidade de funcionários públicos, de imóveis
e equipamentos públicos. Estas “conquistas” não passam de
direitos legais mas, especialmente quando se relacionam com
governos conservadores, somente são obtidas pela ação de
conselheiros muito fortes, articulados e competentes. É claro que
os conselhos dependem de uma mínima resposta governamental. Sem a
participação dos representantes governamentais e um acesso mínimo
às informações do governo, eles deixam de ser espaços de
negociação e co-gestão, reduzindo-se a espaços de luta social
reivindicativa como os demais movimentos sociais. Atualmente
podemos destacar o município de São Paulo, como a única - e
maior - capital brasileira que não tem um Conselho Municipal de
Assistência Social e, consequentemente, não tem um Fundo e um
Plano de Assistência Social que receba as verbas federais e
estaduais e as destine de forma planejada às entidades e
programas sociais; da mesma forma o Conselho Municipal de Saúde,
eleito na 7ª Conferência Municipal de Saúde nunca foi
sancionad_0o pelo prefeito municipal, mas continua, a duras penas, a
tentar exercer, mesmo que precariamente, o seu papel.
No caso dos Conselhos de Defesa da Criança e Adolescente, da Saúde,
da Assistência Social, na medida em que se estão construindo
sistemas articulados de conselhos que se estruturam desde a esfera
local até a federal, a inter-relação com esferas e estruturas
de governo diversificadas contribui para uma maior independência
dos conselhos frente a cada uma delas.
Já existem hoje no Brasil, nos 5 mil municípios, mais
conselheiros que vereadores, o que nos dá a dimensão desta forma
de participação popular, muito mais acessível aos participantes
dos movimentos sociais do que a tradicional representação
parlamentar. Os conselhos são instâncias de formação de políticas
que gozam de um alto conceito de respeitabilidade enquanto espaços
transparentes e comprometidos com o interesse público, espaços
que tornam a política mais pública, pelo menos aqueles em que há
participação de grupos sociais organizados e democráticos.
Estudo recente, envolvendo 1422 secretários municipais de saúde,
revela mudanças importantes na cultura democrática, que se
expressam na expectativa de responsabilização dos governos
frente à sociedade. 62,7% destes secretários consideram o
Conselho de Saúde a força municipal mais influente na definição
das prioridades em saúde, bem acima do Legislativo, de políticos
isolados e de outros órgãos municipais37 . Quando se quer tomar
decisões corporativas, clientelistas, baseadas em acordos políticos
privados e escusos, trata-se de burlar, esvaziar ou desqualificar
os conselhos.
São pesados os_0 embates travados em conselhos contra esse tipo de
relações, principalmente quando se trata de enfrentar grupos de
medicina privada, da construção civil, do transporte coletivo ou
as grandes entidades assistenciais. O sucesso desses embates
exige, como primeira condição, a transparência, o acesso às
informações dos trâmites estatais e do que se passa no governo.
Mesmo que não acumule poder para enfrentar as distorções da política,
já esta relativa transparência, este conhecimento da máquina e
dos caminhos da política, é uma importante conquista democrática
da sociedade. A publicização da política, a construção de um
sentido de interesse público, tanto nos movimentos - em geral
particularistas e corporativos, como nos governantes - com seus vínculos
privados elitistas e clientelistas, é uma das mais importantes
potencialidades dos Conselhos como democratizadores da política.
A segunda condição para a eficácia dos conselhos é a capacitação
técnica das lideranças sociais para a formulação e análise
das políticas públicas, e sua capacitação política para
melhor avaliar os interesses envolvidos e para realizar as alianças
eventuais ou estratégicas necessárias para a negociação de
prioridades e decisões. Esta dupla necessidade de capacitar-se,
provoca um salto de qualidade nos movimentos sociais, muito difícil,
porquanto majoritariamente constituídos de segmentos
sistematicamente excluídos da escola e de todo tipo de acesso a
informações, além de tradicionalmente avessos a relações
institucionalizadas. O exercício da argumentação, a fundamentação
de suas demandas em critérios de racionalidade pública, a
explicitação de conflitos, ge_0ram uma nova forma de lidar com
conflitos, diferenças e antagonismos, que o professor Francisco
de Oliveira tem chamado de “confronto propositivo” ou de
“antagonismo convergente”38 . Nestes espaços, regulados por
normas pactuadas pelas partes em conflito, é preciso buscar
denominadores comuns: apesar da existência de interesses antagônicos
é preciso buscar acordos que interessem a ambas as partes, mesmo
que limitados ou provisórios.
Outra potencialidade característica dos conselhos é a capacidade
de incorporar os movimentos organizados, fortalecendo, mais que
outras formas de participação, o tecido social organizado de
forma autônoma. Nascidos da reivindicação dos movimentos, os
conselhos têm sido assumidos como espaço prioritário de sua
atuação, nos locais onde os movimentos têm maior consistência.
Entretanto, apesar de nascidos da reivindicação ou mesmo da
iniciativa dos movimentos, é muito nítida a falta de preparo dos
mesmos movimentos para ocupar qualificadamente estes espaços,
onde é necessária uma maior capacidade técnica e política para
a elaboração e a negociação de propostas frente a
interlocutores distintos quanto a seus interesses, grau de
capacitação técnica e acesso ao poder. A capacitação técnica
e política de lideranças sociais para ocupar espaços de proposição
e negociação de políticas tem sido assumida pelos próprios
conselhos e movimentos, em parceria com ONGs e universidades, e é
o grande desafio do momento atual, provocando a realização de inúmeros
cursos, oficinas e seminários de capacitação para conselheiros.
As assimetrias de saber, de acesso ao poder e às informações
colocam os c_0onselheiros que representam a sociedade civil,
particularmente os representantes populares, numa grande dependência
das informações, dos recursos materiais e da “boa vontade”
do governo. É grande, portanto, a capacidade dos governos de
esvaziá-los, seja tomando decisões “por fora” dos conselhos,
seja desmobilizando-os, retirando-se deste espaço ou indicando
para os conselhos funcionários pouco representativos, com grande
rotatividade, com pouca capacidade de tomar decisões.
Decorre dessa dependência o perigo de vê-los limitados a
assuntos periféricos, principalmente face à tendência atual dos
governos neoliberais, que recusam terminantemente a vinculação
de recursos financeiros a políticas específicas, tendo reduzido
drasticamente os recursos orçamentários e os gastos públicos
com políticas sociais. Esta política de desobrigar-se do social
assenta-se numa postura sistemática de deslegitimação dos espaços
de controle social, como o Conselho de Segurança Alimentar e as
Conferências, de Saúde, de Defesa da Criança, da Assistência
Social, impedindo a participação social na definição dos orçamentos
dessas áreas. Os conselhos não conseguem, então, apesar de
constituírem redes com uma boa densidade em todo o país, deter
processos como a privatização da saúde, da educação, da
previdência. Esta descontinuidade gera a necessidade de uma
melhor avaliação do alcance desses espaços participativos, que
possa averiguar até que ponto eles mantém a participação
popular restrita a debates periféricos e entravados pela
burocracia estatal enquanto assuntos fundamentais, como o orçamento
e as políticas econômica e industrial, não são debatidas
_0 democraticamente.
Também é apontada como limites à eficácia dos conselhos a
grande absorção das lideranças de movimentos sociais no
aprendizado técnico e político das políticas públicas e dos trâmites
burocráticos e políticos de negociação, aprovação e
encaminhamento de decisões. Absorvidas pela chamada “luta
institucional”, falta tempo às lideranças para informar e
mobilizar as bases sociais de seus movimentos, fragilizando-se a
capacidade de pressão social que garantiria sua força e sua
representatividade nas negociações. Apesar da importância da
argumentação e dos critérios de racionalidade pública nos espaços
de negociação, é indispensável aos atores que delas participam
contar com uma retaguarda de mobilização que respalde sua
legitimidade social. A fragilidade da mobilização social é
apontada frequentemente como fator que limita a força dos
conselhos.
Aponta-se ainda uma grande proliferação de conselhos, uma
chamada “febre conselhista”, que absorve um grande número de
lideranças, além de segmentar a participação social,
setorizando o encaminhamento de políticas, reduzindo a capacidade
da sociedade de ocupá-los todos com qualidade, democratizando-os
e tornando-os mais eficazes39 Escolher e priorizar os espaços que
permitem uma participação mais efetiva pode garantir maior
qualidade nessa participação. O aperfeiçoamento dos Conselhos
como espaço de gestão participativa deve levar também à superação
dessa multiplicação de espaços estanques, criando-se espaços
de interrelação entre eles.
b. Orçamentos participativos
Os Conselhos de Orçamento com_0partilham com os Conselhos Gestores
de políticas setoriais muitas das potencialidades acima
descritas, particularmente a capacidade de publicização da política
e especialmente a construção de um sentido de interesse público,
tanto nos governantes (executivo e legislativo), quando submetidos
ao controle social, como na população e nos movimentos sociais,
desafiados a superar sua visão imediatista, particularista e
corporativa. Os Conselhos de Orçamento, mais que os conselhos
setoriais, propiciam a interlocução e a negociação entre
atores com grande diversidade de interesses, o que desafia a
capacidade de ouvir e de pautar-se por argumentações que
fundamentam racionalmente esses interesses conflitantes. Esta visão
mais geral das demandas e interesses em disputa tem sido
favorecida pelas chamadas “caravanas do orçamento”, visitas
coletivas a toda a cidade, realizadas com a presença dos
conselheiros representantes dos diversos bairros e áreas de
governo, que geram uma visão mais ampla dos problemas da cidade e
um sentido de solidariedade que permite, inclusive, que se abra mão
de algumas reivindicações corporativas em função de
prioridades mais importantes.
Os Orçamentos Participativos, desde que realmente submetam parte
substancial do orçamento à deliberação pública, são
instrumentos com grande potencial de democratização do poder e
de inversão de prioridades, garantindo que a agenda e os recursos
públicos se voltem para os interesses realmente públicos, ao invés
de vincular-se de modo privatista a interesses de elites
privilegiadas. Estes espaços de co-gestão são mais eficazes do
que os Conselhos setoriais na gara_0ntia da inversão de prioridades
visto que estes têm maior dificuldade de acesso aos orçamentos.
Os Orçamentos Participativos, como em sua maioria têm sido
promovidos pelos executivos municipais, são processos que tendem
a provocar nestes governos um processo de modernização e
democratização da máquina administrativa, quebrando uma
tradicional rigidez na setorização das secretarias. Esta
setorização se assenta geralmente no problema da especialização
técnica e gera a constituição de verdadeiros feudos de poder.
A possibilidade de garantir o atendimento de suas reivindicações
tem gerado grande afluência de pessoas dos setores populares às
Assembléias de Orçamento, de modo que eles têm se tornado
conhecidos como espaço “dos mais pobres”, com maior
dificuldade de atrair a participação das camadas médias e
empresariais. Estes, talvez, em parte, por seu maior acesso à mídia
ou aos políticos tradicionais, “não precisam” participar do
Conselho do Orçamento para pleitear seus interesses. À medida,
porém, que alguns governos democratizam os processos de tomada de
decisões, eliminando-se espaços fisiológicos de negociações
políticas, estes setores passam a participar de outros fóruns e
espaços de negociação, como, por exemplo, Fóruns de Reurbanização
do Centro da Cidade ou o Fórum da Cidadania, na região do ABC
paulista. Os Conselhos de Orçamento têm-se caracterizado então,
pela presença da população mais pobre, abrindo espaço também
para os “não organizados” aqueles cidadãos comuns, que não
são mobilizados pelos movimentos sociais.
Os processos de Orçamento Participativo têm sido muito
criticados pelas Câmaras Municip_0ais legislativas, que
tradicionalmente “negociam” emendas à proposta de orçamento
apresentada pelo executivo, com base em vínculos e compromissos
clientelistas estabelecidos pelos vereadores com seus
“currais” eleitorais. Este questionamento tem se apresentado
com base numa suposta maior legitimidade dos vereadores,
decorrente do maior número de votos com que estes foram eleitos
nos municípios maiores. Os Orçamentos Participativos tendem a
corrigir esses desvios clientelistas do legislativo. Tensionam a
compreensão tradicional do papel do vereador, que o vê como
“intermediário” nas barganhas entre a população e o
executivo, ao invés de exercer seu poder legislador e
fiscalizador.
Também para os Orçamentos Participativos é um limite, e coloca
um forte desafio, a falta de qualificação técnica e política
das lideranças sociais para uma ação propositiva, para a
negociação e a superação de particularismos corporativos e
ideológicos, bem como, do lado governamental, a capacitação e
fortalecimento da vontade política do executivo e do legislativo
para a transparência, a superação da tradição tecnocrática e
setorizada, a disposição de diálogo com os critérios e
prioridades definidos com base num “saber popular”, a disposição
de partilha do poder entre Estado e sociedade. Mais que limites, a
superação das assimetrias de poder e de saber podem ser
considerados desafios de aprendizado para ambas as partes.
Outra questão relevante a avaliar é a capacidade dessas práticas
participativas de efetivamente melhorar as condições de vida da
população, provocando uma real inversão de prioridades, sua
capacidade d_0e efetivamente democratizar a política,
desprivatizando os processos de formulação e gestão de políticas
públicas. Esta efetividade depende do grau de comprometimento do
conjunto do governo com essa política participativa e também da
qualidade com que a população ocupa esses espaços e da pressão
social que podem exercer na defesa de suas propostas e na garantia
da continuidade do processo.
Há diferentes graus de comprometimento dos governos com o Orçamento
Participativo e, para certos governos, ele se reduz a
“marketing” e “fachada democrática”, a cargo de alguma
secretaria de “relações com a comunidade”, enquanto as
demais secretarias continuam imersas nos seus feudos e setorizações
tecnocráticas.
Em alguns casos se submete apenas uma pequena porcentagem de
recursos à deliberação do Conselho do Orçamento, subtraindo do
controle social a principal “fatia” dos recursos disponíveis.
A crise fiscal dos municípios brasileiros, decorrente de uma
“prefeiturização” das responsabilidades sociais,
desacompanhada de uma descentralização tributária, bem como o
aprendizado que acompanha o avanço das experiências de Orçamento
Participativo, começam a provocar um maior debate sobre o
montante de recursos orçamentários submetidos ao controle
social, bem como sobre sua natureza: se o processo participativo
deve restringir-se apenas aos investimentos, ou parte deles, se
deve estender-se também à folha de pagamentos e outras
“despesas fixas” ou de “custeio” dos serviços já
implantados e ao parcelamento das dívidas do município.
Além dos fatores acima, o grau de autonomia e de capacidade de
deliberação do Co_0nselho, bem como o desenho institucional, ou a
“metodologia” dos processos de Orçamento Participativo, que
inclui a composição e os critérios de eleição dos
conselheiros, os critérios de escolha de prioridades, os critérios
de funcionamento do Conselho, o grau de participação da
sociedade na definição de todos esses critérios, todos estes
fatores, contribuem para fazer dessas experiências mais ou menos
democráticas e democratizadoras, e lhes emprestam maior ou menor
efetividade.
Diversos dos fatores acima citados, dependem, por sua vez, da
correlação de forças entre os interlocutores sociais e
governamentais envolvidos no processo, bem como do enraizamento de
uma cultura e de uma experiência democrática em cada um deles.
Existem avaliações sobre o maior caráter democrático desse ou
daquele arranjo institucional e, embora estas diferenças formais
tenham realmente seu peso, queremos acentuar a importância da
experiência continuamente avaliada e do fortalecimento de
interlocutores democráticos como garantia do aperfeiçoamento
destes processos.
Aí cabe perguntar até que ponto os Orçamentos Participativos
fortalecem o tecido social, até que ponto contribuem para
constituir ou fortalecer organizações sociais autônomas, que
permaneçam atuantes mesmo quando não mais puderem contar com o
apoio e a iniciativa de governos comprometidos com o interesse público,
com os interesses populares e democráticos.
Algumas avaliações negativas começam a surgir nesse aspecto,
apontando a dificuldade dos movimentos organizados em participar
desses espaços, visto que são geralmente organizados de forma
setorial (ar_0ticulam-se na luta pela saúde, moradia, direitos da
criança, da mulher, do negro). A articulação territorial típica
dos processos de Orçamento Participativo, o zoneamento da cidade
proposto pela prefeitura, conflitariam com os formatos e formas de
organização típicos dos movimentos. Segundo esse ponto de
vista, o Orçamento Participativo “reformata” a participação
segundo zoneamentos e critérios da prefeitura, sob sua iniciativa
e coordenação, o que fragmenta, desorganiza, imobiliza os
movimentos. Os Orçamentos Participativos são práticas que
recebem forte investimento financeiro e técnico do governo,
enquanto as organizações populares quase não podem contar com
recursos para articular e fortalecer sua própria identidade,
trajetória e capacitação. Aponta-se, nesse sentido, que os
processos de Orçamento Participativo têm promovido mais a
participação individual do que o fortalecimento do tecido
social. Em Porto Alegre, avalia-se que “algumas regiões já
apresentam sinais de desconstituição de espaços próprios que,
em outras épocas, foram bastante atuantes e fundamentais para a
concretização do próprio Orçamento Participativo”40 .
Cabe ponderar, neste aspecto, a dificuldade das lideranças dos
movimentos tradicionais em superar seus critérios corporativos e
ideologizados, face à necessidade de pensar a cidade como um
todo, de governar para todos, sem privilegiar “a minha rua”, o
“meu movimento”, ou mesmo privilegiar os movimentos mais
conscientes, lutadores ou “combativos”, frequente reivindicação
das lideranças populares41 . Não obstante, fica o desafio de
construir uma interlocução que fortaleça sujeitos autônomos,
_0 capazes de enfrentar e contrapor-se a um governo quer de esquerda,
quer de direita, garantindo a continuidade do processo.
Nesse sentido são muito importantes as iniciativas que partem da
sociedade, propondo e negociando com o executivo e o legislativo a
criação de um processo de democratização de orçamentos. Entre
elas destacam-se o “Fórum do Orçamento do Rio de Janeiro”, e
o “Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal”,
que acompanha um processo semelhante em São João de Meriti, na
Baixada Fluminense, espaços fortemente protagonizados por atores
da sociedade civil, como sindicatos e federações de Associações
de Moradores.
c. Parcerias
Parceria é um dos conceitos cujo significado está em disputa,
assumindo conteúdos extremamente diversos nos discursos e práticas
de diferentes atores. Os movimentos sociais atribuem-lhe um
sentido que se define a partir de experiências em que papéis
complementares são claramente propostos e assumidos por organizações
comunitárias, agências do Estado e até mesmo da iniciativa
privada.
Dentre as experiências de co-gestão ou de parceria, destacam-se
os programas de alfabetização de adultos (chamados “projeto
MOVA”, inicialmente em São Paulo e hoje em diversos outros
municípios), as cooperativas e mutirões habitacionais e outras
obras ou serviços realizados em mutirão. Estes programas são
desenvolvidos conjuntamente por governos municipais e organizações
comunitárias, as quais, administrando recursos públicos,
realizam cursos de alfabetização, constróem casas populares,
urbanizam praças ou vielas. Quando as relações entre os
_0 parceiros são mais democráticas, o planejamento dos programas e
a definição de regras e critérios para a administração e a
prestação de contas dos recursos utilizados são também
realizados em conjunto.
O cooperativismo, os mutirões e outras atividades autogestionárias
favorecem um processo de construção de identidade e aprendizado
de gestão da vida coletiva, que se inicia com a convivência e a
tomada de decisões cotidianas, desde as questões mais simples até
os processos complexos de construção e administração das
obras, de gestão dos recursos públicos e as outras atividades
cotidianas de operacionalização desses programas. A qualificação
profissional, a formação de cooperativas profissionais - de
pedreiros, eletricistas, marceneiros, a elaboração de currículos
escolares mais adequados a uma dada comunidade, a valorização da
estética e da cultura popular, a construção de vínculos
afetivos e identitários e até mesmo a recuperação de indivíduos
marginalizados, são potencialidades dessas experiências de gestão
comunitária, assim como a captação de recursos públicos para o
investimento na formação profissional, na educação para a
cidadania e na capacidade organizativa da comunidade.
O aprendizado da auto-organização, a capacidade de autogestão
mais ampla da vida comunitária vai emergindo dessa prática
continuada. Algumas dessas experiências, como as coordenadas pela
ONG ‘CEARAH Periferia’, no estado do Ceará, levam esse
processo até a formação de um conselho gestor do bairro, no
qual participam as organizações comunitárias e Ongs envolvidas
e o poder público municipal, potencializando ainda mais a
capacida_0de de iniciativa cidadã dos moradores. Os projetos
habitacionais coordenados por essa ONG caracterizam-se também
pela incorporação de escolas técnicas, universidades e diversas
instâncias do poder público nas parcerias.
As ONGs têm assumido cada vez mais as relações de parceria em
programas governamentais, bem como com empresas privadas como
escolas, escritórios imobiliários e outras empresas que se
interessam em investir em ações de cunho social. Temos como
exemplos as empresas que promovem a alfabetização de seus
funcionários através de parcerias com universidades ou
prefeituras municipais e ainda a parceria, discutida recentemente,
entre o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), o INCRA
(Instituto Nacional de Reforma Agrária) e a Coca-Cola, envolvendo
o plantio da cana e a produção de açúcar para uma fábrica
dessa empresa, em Manaus, estado do Amazonas42 .
Os movimentos e as ONGs sabem que, ao participar de parcerias estão
fazendo “apostas de risco”, cujos resultados são ambíguos. São
acusados de “virar reformistas”, de incorporar a terminologia
neoliberal, o conceito de Estado mínimo, a idéia de que o Estado
está falido e de que movimentos, Igrejas, ONGs, devem substituí-lo,
realizando tarefas que não são sua “obrigação”.
Estas experiências de risco, a avaliação de resultados em que
se sentiram usados como “mão-de-obra” barata ou como um
“prestador de serviços” tem levado movimentos e ONGs a
elaborar melhor seu conceito de parceria, seus critérios para
entrar numa relação deste tipo, suas exigências quanto às
responsabilidades do parceiro, especialmente quando este é o
poder público. Ao contrári_0o do pensamento neoliberal, que vê
nas parcerias uma forma de desobrigar o Estado dos serviços que
deve oferecer como públicos, muitos movimentos e ONGs as entendem
como corresponsabilidade entre atores diversos na gestão e
implementação de políticas ou serviços de interesse público43
.
Repartir o poder de intervir e de decidir é uma meta e um
resultado que se pode esperar das experiências de parceria. Ana
Paula Paes de Paula, estudando em sua pesquisa de mestrado as relações
entre o Estado e as ONGs, chega a uma “definição mais precisa
do conceito de parceria”, presente nessas relações: “a
parceria como responsabilidade e poder compartilhado, como um
engajamento das partes envolvidas e não somente como uma transferência
de funções, típica dos processos de terceirização”44 .
Para diferenciar-se do pensamento neoliberal, evitando participar
de parcerias que são simples “transferência de funções”,
ou processos de terceirização, movimentos e ONGs têm afirmado
que “as políticas básicas têm que ser feitas pelo Estado”
embora possam “ser feitas com participação da sociedade” e
que, ao lado dessa participação, o movimento deve continuamente
“brigar” por políticas públicas do Estado, e pela vinculação
de recursos públicos a essas políticas, em lei. Este tem sido o
objetivo da luta dos movimentos por moradia na busca de criar um
Fundo Nacional vinculado a políticas de moradia popular (FNMP)45
.
A realização de parcerias que atendam aos critérios acima,
depende porém, da disposição dos governos parceiros ao diálogo
democrático e, com a sua retirada, rompem-se os convênios, como
tem acontecido no mun_0icípio de São Paulo e em outros que
voltaram a ter um governo autoritário ou conservador. Isto expõe
a fragilidade da sociedade nessa forma de participação. A
manutenção dos convênios pode gerar também uma postura muito
pragmática e subserviente nos movimentos e ONGs, reduzindo sua
independência e autonomia, sua capacidade de crítica e
enfrentamento de atitudes governamentais anti-populares ou
anti-democráticas.
Outra importante crítica às parcerias é que elas geralmente
utilizam o trabalho da população mais pobre, já excessivamente
sobrecarregada, enquanto os mais ricos obtém mais facilmente os
serviços necessários. Mantém-se assim o desfavorecimento dos
pobres no acesso aos recursos e políticas públicas. Se as
parcerias não são apenas formas de desincumbir-se de obrigações
públicas de forma mais barata, se são importantes como partilha
de poder e de responsabilidades sobre o bem comum, é importante
provocar “mutirões” que responsabilizam classes médias e
profissionais liberais no trabalho voluntário pelo bem comum.
Com o objetivo de fazer dos mutirões, espaços de construção de
uma noção de bem público, algumas experiências priorizam a
construção de equipamentos públicos ao invés de casas
particulares. No entanto, mesmo os mutirões de construção de
moradias, quando buscam reduzir o tempo de trabalho dos mutirantes
diretamente na obra, visam ampliar o tempo de trabalho a ser gasto
com a gestão e com a capacitação de lideranças, qualificando
estas experiências.
Construir o controle público da sociedade sobre o Estado, sem
desconstruir o Estado, é um objetivo permeado de dificuldades e
tensõ_0es tanto para o poder público como para a sociedade
organizada que participa destas relações. A construção desses
espaços de gestão e implementação de políticas, que podem ser
públicos sem ser estatais, a relação com ONGs e movimentos, com
sua lógica menos burocratizada, é um desafio que, apesar das
dificuldades, contribui, no dizer de Ana Paula, para “oxigenar o
aparato estatal” e para uma “reinvenção do Estado”.
O aprendizado da gestão pública por parte de grupos comunitários
vem sendo realizado em meio a fortes tensões e contradições. Há
falhas na definição de regras de prestação de contas, falta de
adequação da burocracia estatal para a relação com grupos
comunitários46 , falta de capacitação gerencial e
administrativa por parte dos movimentos, fragilidade de uma
cultura de gestão da coisa pública, que se traduz no tratamento
privado dado à coisa pública, de ambas as partes. Apesar destas
e muitas outras dificuldades e contradições, estas experiências
têm levado os movimentos que delas participam à construção de
parâmetros públicos, procedimentos de transparência e regras de
funcionamento que tensionam práticas corporativas. Têm provocado
nos movimentos o aprendizado de uma lógica mais universal e
racional que pode superar critérios particulares, comunitários,
ideológicos ou partidários.
2. Participação não institucionali-zada na gestão da
sociedade
Embora com menor detalhamento do que as anteriores, é importante
analisar algumas experiências que mostram claramente como a
participação social não ocorre hoje unicamente em espaços
institucionais de relação com o Estado, embor_0a esta relação
esteja necessariamente mais presente, uma vez obtida uma maior
permeabilidade deste aos valores e práticas democráticas de diálogo
e negociação com os diversos atores sociais.
Nem todas as questões ou aspectos da gestão da sociedade podem
ou devem ser normatizadas ou assumidas pelo Estado. A tolerância
e o respeito ao diferente, a divisão do trabalho doméstico entre
o homem e a mulher, o cuidado com doentes mentais, são exemplos
de questões ou problemas coletivos, ou públicos, que podem e
devem ser objeto de ações participativas da sociedade e para a
sociedade. Quando o Estado é ditatorial, muito pouco permeável
às demandas da sociedade, a tendência dos movimentos e da
participação social é centrar-se neste tipo de ação
auto-referida, às vezes até mesmo substitutiva da ação
estatal. Mas em tempos mais democráticos, em que o Estado, os
partidos, os espaços políticos instituídos, se tornam mais
permeáveis à sociedade, a participação social concentra-se na
busca de democratizar o Estado e as políticas públicas. Esta
democratização tem retirado do Estado o monopólio da gestão da
sociedade, que é assumida e partilhada cada vez mais por ela
mesma. Não se pode esquecer, então, que participar da gestão da
coisa pública não se restringe a democratizar o Estado mas também
a própria sociedade.
Aqui reside a importância das formas de participação que se
caracterizam como espaços menos referidos ao Estado, menos
voltados a influenciar políticas públicas do que voltadas a um
impacto sobre a sociedade. Entre eles destacam-se movimentos cuja
dimensão cultural é mais explícita, como os movimentos
_0 feministas, raciais, étnicos, de juventude, que têm contribuído
para alterar a cultura da sociedade, tornando públicas novas
demandas e novos valores. Também outros movimentos e ações
participativas “menos novos” podem destacar-se nesta dimensão.
a. O Movimento dos Sem Terra (MST)
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) é apontado
por muitos como o único movimento social que mantém a mesma força
social, capacidade de mobilização e de organização dos
“melhores” momentos da década dos 80. Sua importância é
reconhecida internacionalmente e a opinião pública oscila entre
o apoio que eles têm sabido conquistar e cultivar e o rechaço
vigorosamente plantado pelo governo e pela mídia. O MST, apesar
da contínua desqualificação de que vem sendo alvo, tem
conquistado o reconhecimento da dignidade do homem do campo e da
validade da luta pela Reforma Agrária, apesar das frias avaliações
econômicas de que é anacrônica e tem contribuído
significativamente para construir uma cultura democrática que
reconhece o conflito como legítimo, necessário e irredutível47
.
Mesmo esse movimento, que agora já pode ser chamado do
“velho” tipo, pois mantém fortemente as principais características
dos “novos” movimentos que caracterizaram as décadas de 70 e
80, como o enraizamento na sociedade, a mística participativa, a
rebeldia, a disciplina organizativa, as formas de luta social que
priorizam os espaços da sociedade, e não se restringem à
legalidade instituída - como as ocupações de terras - mesmo
esse movimento tem participado de uma maior interlocução com o
Estado, quando desenvolve lutas _0junto ao poder judiciário, quando
participa de negociações com governos e com parlamentares.
Ao lado do “velho” jeito de viver confrontos, conflitos e
antagonismos, que permanece nas formas de “luta direta”, o MST
tem estabelecido uma relação sistemática com a bancada
parlamentar ligada à luta pela Reforma Agrária, tem desenvolvido
largamente o aprendizado da negociação e das alianças, algumas
pontuais, algumas estratégicas, com parceiros sociais,
prefeituras e outros órgãos públicos federais e estaduais, bem
como com o mundo empresarial, como citamos anteriormente.
O aprendizado de uma postura propositiva e de parceria também se
expressa de modo muito visível nas suas escolas regulares de
primeiro e segundo graus, que elaboram rotinas e currículos
alternativos adequados ao produtor rural e nas cooperativas
produtivas que têm contribuído significativamente para a elaboração
de alternativas de desenvolvimento econômico, de produção
cooperativada, de modernas formas de produção ao mesmo tempo
mecanizadas e sustentáveis, viabilizando assentamentos rurais com
grande sucesso econômico e social.
É um movimento que alarga sua abrangência, sai da perspectiva
corporativa, vai além da luta pela Reforma Agrária, participando
das lutas sindicais, contra o desemprego, contra as privatizações.
Alarga sua lógica, convivendo com atores diferentes e com o mundo
institucional sem perder sua lógica solidária, seu enraizamento
comunitário. Mesmo sem participar das formas instituídas de
participação e de co-gestão, participa da definição da agenda
pública nacional e mesmo internacional, e tem uma clara incidência
nas polític_0as de Reforma Agrária, de desenvolvimento rural e até
mesmo de educação.
b. Pastoral da Criança e Ação da Cidadania
A ‘Pastoral da Criança’ é uma ação coordenada
principalmente pela Igreja Católica, contando com a participação
de algumas outras Igrejas e tem-se destacado pelo grande impacto
na redução da mortalidade infantil no Brasil. Destaca-se ainda
pelo número enorme de voluntários mobilizados e articulados em
todo o país e pela simplicidade dos métodos que usa e que
consistem no acompanhamento regular dos bebês em regiões de
pobreza acentuada, sua pesagem referida a uma curva de
desenvolvimento desejável, acompanhados do ensino às mães de
procedimentos e receitas do “soro caseiro”, que combate a
diarréia, e de alimentos preparados com produtos baratos e
nutritivos, que combatem a desnutrição.
Embora a ‘Pastoral’ não participe formalmente de programas de
governo, nem se coloque explicitamente como proposta de política
pública, é muito evidente o impacto que tem causado como
paradigma de uma política de combate à mortalidade infantil e à
desnutrição, impacto que pode ser observado nos discursos
governamentais e em suas propostas de programas que tentam
absorver as referências postas pela ‘Pastoral’.
Esta é uma forma de participação que apresenta muitas características
novas, correspondendo a uma nova forma de exercício da cidadania
que desponta neste final de século e que evita as muitas reuniões
e discussões ideológicas, cansativas e de pouca eficácia que
caracterizaram, segundo avaliações correntes, a militância
social das últimas décadas. Ao contrário, hoje há uma pro_0cura
por formas de participação mais práticas e eficazes, com
estrutura leve e descentralizada. A ‘Pastoral da Criança’
parece adequar-se a esse novo modelo, propicia uma ação voluntária,
que envolve várias classes sociais e constrói vínculos de
solidariedade e responsabilidade cidadãs que podem ir além da
filantropia assistencialista.
É claro que pode também limitar-se em muitas regiões a ações
assistencialistas, muito dependentes da Igreja e de sua
hierarquia. Neste caso mostra-se uma ação com pouca capacidade
de enfrentamento de conflitos com o poder público e com a própria
Igreja. Pode-se dizer que, de uma forma geral, é uma ação que
prefere ter poucas relações de enfrentamento com o mundo mais
explicitamente político. No entanto observa-se que o engajamento
nesta Pastoral tem levado frequentemente seus participantes e
coordenadores aos Conselhos de Defesa da Criança e do
Adolescente, aos conselhos Tutelares, aos Conselhos de Assistência
Social, práticas que, já mais explicitamente, enfrentam o
desafio de participar da gestão da sociedade e da elaboração de
políticas públicas.
Muitas dessas novidades são também encontradas na Ação da
Cidadania contra a Fome e pela Vida, a “Campanha contra a
fome”, desencadeada pelo pioneirismo de Herbert de Souza, o
Betinho. Esta tem sido, embora já não tão mobilizada quanto no
início, uma nova forma de ação participativa que chegou a
mobilizar cerca de 3 milhões de pessoas, organizadas em comitês
que assumiram ações voluntárias de recolhimento e distribuição
de alimentos, cozinhas e restaurantes comunitários, cadastramento
e encaminhamento de desempregado_0s, capacitação profissional,
constituição de micro-empresas, entre tantas formas de ação,
que enfatizam fortemente o voluntariado e a construção de vínculos
cidadãos interclassistas.
Apesar de acusada de assistencialista e pouco questionadora das
estruturas políticas de exclusão social, é inegável, também
neste caso, o alto impacto desta Ação sobre as políticas públicas
de combate à fome e à pobreza. A Ação da Cidadania teve grande
impacto na ampliação de uma cultura democrática, na medida em
que colocou a fome na agenda pública, na medida em que a
sociedade começou a deixar de vê-la como questão restrita ao
mundo privado da caridade e da filantropia, construindo também vínculos
de responsabilidade cidadã; fazendo da fome objeto de política pública
e construindo o conceito de segurança alimentar como direito de
todos e dever do Estado.
c. Fóruns
Um outro tipo de prática participativa que tem-se multiplicado no
Brasil, especialmente nos últimos anos, são os Fóruns, onde têm
assento uma multiplicidade de sujeitos, frequentemente sindicatos,
movimentos sociais, organizações populares, ONGs, entidades
profissionais, incluindo muitas vezes universidades, técnicos ou
militantes avulsos e tendo como convidados parlamentares e órgãos
públicos. São iniciativas da sociedade civil que se caracterizam
pela diversidade dos sujeitos envolvidos, por sua estrutura leve,
descentralizada e pouco formal. Ao contrário dos conselhos, não
têm interlocução instituída com o Estado mas convidam seus
representantes para receber e encaminhar reivindicações sociais,
o que lhes dá maior independência, embo_0ra por outro lado, esta
distância diminua seu poder frente aos governos.
Podemos analisar brevemente duas experiências significativas: o Fórum
Nacional de Reforma Urbana e o Fórum em Defesa da Vida e contra a
Violência, da região de Campo Limpo, município de São Paulo.
O primeiro articula centrais de movimentos populares, movimentos
sociais de luta pela moradia, ONGs, sindicatos e entidades
profissionais de engenheiros, arquitetos, urbanistas, geógrafos,
advogados, ligados pela sua ação na luta pela Reforma Urbana. Reúne-se
periodicamente desde o período da Constituinte, tem âmbito
nacional e teve uma grande importância na elaboração do capítulo
sobre a questão urbana na Constituição e nos seus
desdobramentos em leis federais (Estatuto da Cidade), nas
constituições estaduais, Leis Orgânicas, nos Planos Diretores
municipais e na participação do Brasil na conferência do
Habitat.
O segundo articula-se na região sul de São Paulo, uma das regiões
mais violentas do mundo, e tem construído e negociado com o
governo estadual propostas de políticas públicas na área da
segurança pública, do lazer e da educação, com vistas à redução
da violência. Tem acompanhado a implantação da polícia comunitária
no estado de São Paulo, participando inclusive de um seminário
de avaliação de experiências semelhantes, realizado no Canadá,
e vem favorecendo uma aproximação do Ministério Público com a
comunidade local.
A informalidade da estrutura dos Fóruns tem, como preço, uma
certa dispersão, visto que cada organização é geralmente muito
absorvida pelas suas próprias prioridades e rotinas de trabalho.
Eles depen_0dem de alguém que o priorize como espaço de interação
e provoque o envolvimento dos demais atores. A heterogeneidade e a
assimetria de saber e de acesso ao poder são também limites a
ser superados. A capacitação técnica e política aparece
novamente como desafio a ser enfrentado com vistas a melhorar a
capacidade de argumentação, de diálogo, de negociação, de
construção de alianças.
Há uma certa dificuldade no relacionamento e na incorporação
aos Fóruns de organizações que representam setores mais
conservadores ou assistencialistas da sociedade, estranhos a um
conjunto de valores e princípios que geralmente o circunscreve.
Os Fóruns incorporam movimentos organizados e outros atores da
sociedade civil, marcando-se, por um lado, pela independência em
relação ao Estado que caracteriza estas organizações e, por
outro, pela maior sistematicidade das ONGs e universidades. São
também novas formas de ação e de organização, mais ágeis e
informais, que interpelam os governos, desafiando-os e
participando da elaboração de políticas públicas mais voltadas
ao interesse comum, ao mesmo tempo em que provocam mudanças na
cultura da sociedade. Hoje, por exemplo, notam-se muitas mudança
na cultura urbanística. A intervenção do poder público em
ocupações urbanas irregulares, o direito dos moradores de
permanecerem nestes espaços, que se traduzem nos projetos de
urbanização de favelas desenvolvidos e propagandeados por
governos de todos os matizes, revelam novos valores e novos
direitos que foram incorporados à cultura da sociedade, de
governos e de partidos políticos os mais diversos. Essas mudanças
culturais, conquistadas por _0movimentos e fóruns de luta pela
reforma urbana, provocaram ainda a incorporação, nos Planos
Diretores Urbanos, de diversos instrumentos de Reforma Urbana
impensáveis na década de 70.
III. Conclusões
Esta não é, de forma alguma, a única forma de explicar a
construção de uma cultura participativa, que reivindica uma
cidadania ativa e contribui para criar os inúmeros canais de
democracia participativa, como Fóruns e Conselhos Gestores de
equipamentos, políticas e fundos públicos, os “Orçamentos
Participativos”, as Iniciativas Populares Legislativas, as Audiências
Públicas e tantos outros espaços de “Participação” cidadã
que caracterizam estes anos 90.
Existe, no meio acadêmico, político, e entre as próprias
lideranças dos movimentos sociais, uma outra forma de avaliar o
momento atual, como de forte refluxo dos movimentos sociais,
percebendo sua participação na política institucional como ameaça
de cooptação e institucionalização burocrática, em decorrência
de uma necessária “contaminação” pela lógica ou
racionalidade estatal. Esta “participação” acarretaria,
nesta visão, a perda da vitalidade rebelde e revolucionária dos
movimentos sociais e o afastamento de suas lideranças das
demandas e da dinâmica social das suas “bases”. Os canais
institucionais de participação popular são vistos, nesta
perspectiva, como iniciativa predominantemente estatal, na busca
de recuperar uma legitimidade que o Estado e a política têm
perdido. Sublinha-se a assimetria de poder e de conhecimento técnico
e político dos representantes populares frente aos representantes
do governo e dos se_0tores profissionalmente ou politicamente mais
capacitados, para apontar a pouca eficácia, o baixo potencial
inovador e transformador destes canais. Indica-se, nesta
perspectiva, uma necessária “volta às bases”, a busca de
recuperar a capacidade de mobilização e o vigor das lutas
populares e sindicais dos anos 70 e 80. Neste sentido, o Movimento
Sem Terra (MST) é apontado como o único movimento social que
consegue escapar do “refluxo” e mostrar-se como alternativa
capaz de impor às elites no poder uma agenda de questões de
interesse popular
Não queremos subestimar o peso dessas assimetrias e da
fragilidade das novas práticas de gestão participativa. É claro
que a participação popular, principalmente a participação nos
espaços de gestão participativa de políticas, equipamentos e
recursos públicos é um processo em construção, que apenas se
inicia, pela construção de um marco legal e de uma cultura
democrática e participativa, pela construção de habilidades e
metodologias que possam fazê-los instrumentos eficientes e
eficazes de melhoria da qualidade de vida e de democratização
dos processos de tomada de decisões políticas.
Estes são processos marcados pela precariedade e pela
fragilidade, tanto de parte da sociedade civil como da parte dos
órgãos públicos e governos que deles participam. Muitas das ações
e dos canais participativos estão longe dessa eficiência e eficácia.
Prestam-se muitas vezes à legitimação de governos e práticas
cuja democracia se limita a um verniz “de fachada”; confundem
movimentos sociais, que não conseguem adaptar-se aos novos
desafios e, em diversos casos, morrem, enfraquecem,
_0 desarticulam-se.
Vamos resgatar aqui alguns dos candentes desafios que se colocam
de modo geral para que a participação possa de fato significar
mais democracia e justiça social.
3. Aperfeiçoar os canais de participação
Analisamos acima os limites e o potencial de algumas das práticas
participativas mais significativas hoje no Brasil. Alguns desafios
são comuns a todas, como a qualificação técnica e política
dos atores envolvidos, tanto dos governos como da sociedade, assim
como a ampliação e a consolidação de uma cultura democrática
e sua tradução em métodos e procedimentos concretos que
potencializem a gestão compartilhada da sociedade.
Ampliar a eficiência e a eficácia dos espaços de gestão
participativa supõe ainda romper a burocracia estatal e a manutenção
dos “segredos de Estado”, que fazem do saber técnico um
“bunker” intransponível de poder e romper a tendência de
limitar a participação aos assuntos periféricos, dispersando-a
em inúmeros espaços de um “conselhismo” segmentado.
Considerada por muitos como coisa do passado, a questão de classe
se repõe nos fóruns e conselhos, que são ocupados
preferencialmente, ou pelos mais pobres, ou pelos segmentos médios
e empresariais. A dificuldade de diálogo e negociação numa
mesma mesa, envolvendo interesses e pontos de vista muito
distintos e mesmo antagônicos tem-se mostrado um desafio difícil
de superar em diversos municípios que promovem espaços de gestão
e decisão compartilhada com a sociedade.
O clientelismo e o corporativismo também não podem ser
considerados como traços de uma cultura política do passado,_0
pois eles se repõem e se insinuam mesmo entre os novos espaços
de democracia participativa como os Conselhos. Na medida que as
assembléias de bairros dos Orçamentos Participativos ou os
processos eleitorais dos Conselhos tornam-se importantes espaços
de disputa de poder, a velha cultura política clientelista e
corporativa reaparece. Vereadores mobilizam seus apoiadores,
organizando lobbies em torno de suas propostas ou de candidatos
com quem firmaram compromissos e alianças eleitorais. Também a
população de certas vilas ou favelas, mais carentes e
mobilizadas, organizam-se para hegemonizar assembléias, fazendo
“passar” suas propostas em bloco.
A dependência destas experiências das iniciativas e da disposição
democrática dos executivos é outra questão que coloca sérias
preocupações quanto à continuidade, a permanência, o aperfeiçoamento
da democracia participativa. Para garantir essa continuidade é
preciso priorizar práticas menos dependentes da iniciativa
governamental, buscar o fortalecimento do tecido social,
identificando e qualificando as organizações populares autônomas
e outros atores da sociedade civil, como igrejas, grupos
culturais, clubes, entidades profissionais, enquanto sujeitos
promotores da cidadania.
Algumas avaliações apontam a necessidade de uma maior
institucionalização dos Conselhos Gestores e Orçamentos
Participativos como garantia da continuidade e da consolidação
da democracia participativa. Também a construção de
metodologias mais adequadas a cada contexto e correlação entre
as forças sociais e governamentais é parte do processo de
aperfeiçoamento e consolidação destes_0 processos. Esta busca
contínua de aperfeiçoamento dos canais participativos é muito
relevante. Não acreditamos, porém, que determinado arranjo
institucional seja necessariamente mais democrático. Mais que a
institucionalização, acreditamos que o aperfeiçoamento e a
continuidade dos processos de gestão democrática e participativa
depende da relação, sempre tensionada e crescentemente
qualificada, entre a sociedade organizada e o Estado.
4. Novos desafios para os movimentos sociais
O salto de qualidade colocado para os movimentos sociais pelas
experiências de participação em espaços institucionais é um
desafio muito exigente, e não são todos os movimentos que
conseguem reconfigurar-se para corresponder às novas demandas.
O desafio da qualificação técnica e política, que já
apontamos, tem gerado uma relação mais cotidiana das lideranças
populares com assessores, ONGs, universidades e entidades
profissionais, com o objetivo de apropriar-se tanto de
conhecimentos técnicos relativos às políticas públicas como
dos trâmites administrativos que lhes são próprios. Além desse
conhecimento técnico, é preciso aprender a prática da negociação,
uma outra forma de lidar com o conflito, o “confronto
propositivo”, diferente dos confrontos característicos da fase
mais reivindicativa dos movimentos. Estas duas formas de qualificação
exigem das lideranças que revejam a forma “desconfiada” com
que tradicionalmente relacionavam-se com o saber técnico, com as
negociações e alianças políticas. Acumular conhecimento e
experiência suficientes para poder mover-se seguramente nos espaços
de governo, sem o_0 temor de perder sua identidade, ou de ser
manipulado por atores com maior acesso ao saber e ao poder, é uma
processo longo e difícil. É também um processo muito
absorvente, e daí decorre o temor, frequentemente justificado, de
que as lideranças se afastem do trabalho cansativo e demorado de
levar informações, de promover processos educativos e
mobilizadores das bases sociais dos movimentos. Acomodar-se ao
circuito dos Conselhos e Fóruns, que se multiplica em geral
exageradamente, acomodar-se aos estreitos limites do que parece viável
face às burocracias e às negociações com interesses de outros
atores - menos excluídos e mais poderosos - são “tentações”
a que são continuamente submetidas as lideranças sociais.
Novos tipos de liderança, mais pragmáticas, mais qualificadas,
quase “profissionalizadas”; nova maneira de lidar com atores
mais institucionalizados, como partidos, ONGs, universidades, órgãos
públicos e outros setores do Estado; maior institucionalização
dos próprios movimentos; novos temas, novas demandas, todos são
desafios colocados aos movimentos em sua “nova fase”.
Quando se fala em “refluxo” dos movimentos sociais, de sua
menor visibilidade nas ruas e na mídia, ao lado de um certo
“recolhimento” desses atores, que passam a ocupar espaços de
gestão participativa e a estudar, capacitando-se para seu novo
papel propositivo e negociador, não se pode negar uma grande
queda no ânimo, no entusiasmo, na cultura participativa que
caracterizou as duas décadas anteriores. E aí é inegável o
impacto causado pelo fracasso das experiências socialistas do
leste europeu e das revoluções africanas e nicaraguense. O
_0 questionamento dos modelos revolucionários, especialmente após a
queda do muro de Berlim, abalou fortemente a confiança daqueles
que viam nos movimentos sociais um caminho para a transformação
da sociedade. Novos paradigmas de transformação social, os papéis
do Estado, da sociedade e da cultura nesta transformação, o
papel dos movimentos sociais, novas formas de organização e de
luta, novas formas de manifestação cidadã, tudo isso são
reconstruções a fazer.
Além de todos esses nós críticos e cruciais, que envolvem as
capacidades e as disposições democráticas do Estado e da
sociedade, destaca-se especialmente o embate com o neoliberalismo.
Na esfera federal, nosso governo afirma apenas reconhecer a
democracia parlamentar (embora identificando-a com um jogo de
interesses parlamentares que mistura o público e o privado),
quando desqualifica sindicatos e movimentos sociais como
“representantes do atraso” e suas manifestações como
prejudiciais à democracia48 , desconstrói e esvazia canais
participativos como Conselhos e Conferências nacionais, estimula
a destituição de direitos trabalhistas, previdenciários e
sociais, fazendo deles meras políticas compensatórias e filantrópicas,
além de reduzir drasticamente os gastos sociais.
Tudo isso faz com que sejam muito precárias quaisquer previsões
sobre o futuro da “participação”. O que podemos é fazer uma
aposta, baseados no contínuo esforço dos excluídos desse país
na construção de uma sociedade que reconheça seu direito a ter
direitos. Investir fortemente na qualificação dos movimentos
sociais e de outros atores da sociedade civil para uma ação
propositiva e capaz_0 de participar eficazmente de negociações;
qualificar agentes governamentais, contribuindo para fortalecer
neles uma cultura democrática e participativa e a capacidade de
implementar políticas inovadoras quanto à melhoria das condições
de vida de toda a população e à democratização dos processos
de gestão. Potencializar as ações instituintes da sociedade,
suas práticas democráticas e ampliadoras da cidadania. Estas são
as apostas que se pode fazer, esperando com elas fortalecer a
ampliar as possibilidades da participação social.
Hoje, todos os que partilhamos a cultura e as crenças de libertação
e de igualdade, levamos, ao invés de certezas, interrogações;
seguimos adiante aferrados à teimosia de não nos submeter à
‘carapaça de aço’, de não crer que é vitorioso o homem egoísta
e derrotada toda e qualquer “crença na vocação do homem para
a solidariedade”, à teimosia de seguir vivendo esta ética e
construindo vínculos de responsabilidade cidadã49 .
A falta de modelos e receitas de revolução certamente abala
esperanças. É desconfortável caminhar no escuro, acostumar-se
à ausência de certezas. Mas podemos ver que as incertezas não
paralisam a ação coletiva, a luta pela publicização da política,
pela construção de espaços mais igualitários de reconhecimento
e de garantia de direitos. Não destróem a teimosa construção
de vínculos solidários de responsabilidade pelo destino comum
dos seres humanos.
Resta-nos aprender a caminhar na incerteza, e a amar o transitório,
como ensinam os versos do poeta pernambucano Carlos Pena Filho
cantando este mundo, que nos tem sido contraditório:
“Lembra-te que afinal te res_0ta a vida,
com tudo que é insolvente e provisório
E de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório!”
Notas
1 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados. O Rio de Janeiro e
a República que não foi. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 3ª
edição.
2 O’DONNELL, Guillermo. (1976) Sobre o corporativismo e a questão
do Estado. Cadernos Departamento de Ciência Política. FFCH,
UFMG, n. 3, março.
3 SADER, Eder. (1988) Quando novos personagens entraram em cena.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
4 CASTORIADIS, Cornelius. (1979) La Experiência del Movimiento
Obrero. vol. 1. Barcelona : Ed. Tusquets.
5 Paulo Freire é um dos maiores educadores brasileiros, cuja obra
fundamenta a educação popular, a educação para a cidadania,
destacando-se a Pedagogia do Oprimido, Educação como Prática da
Liberdade, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974; a Pedagogia da
Esperança. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1993, traduzidas em inúmeras
línguas.
6 HABERMAS, J. (1984) Mudança estrutural na esfera pública. Rio
de Janeiro: Tempo Brasileiro.
7 A “cidadania regulada” é o tema do livro Cidadania e Justiça,
de Wanderley Guilherme dos Santos (Rio de Janeiro: editora Campus,
1979), que mostra como a carteira de trabalho e a regulação,
tutelada pelo governo populista, dos direitos trabalhistas,
excluindo o trabalho informal e rural, constitui-se numa _0primeira
experiência de cidadania, restrita, circunscrita, regulada.
8 PAOLI, Maria Célia.(1995) Movimentos sociais no Brasil: em
busca de um estatuto político. In HELLMANN, Micaela (org.).
Movimentos sociais e democracia no Brasil – “Sem a gente não
tem jeito”. São Paulo: Marco Zero, Ildesfes, Labor.
9 DOIMO, Ana Maria. (1995) A Vez e a Voz do Popular - Movimentos
sociais e participação política no Brasil pós- 70. Rio de
Janeiro: Relume - Dumará: ANPOCS.
10 Assim foi chamada a nova Constituição por Ulisses Guimarães,
presidente do Congresso Constituinte.
11 BENEVIDES, Maria Vitória. (1991) A Cidadania Ativa. São Paulo
: Ática.
12 DAGNINO, Evelina. (1994) Os Movimentos Sociais e a emergência
de uma nova noção de cidadania. In DAGNINO, Evelina (org.). Os
anos 90: Política e Sociedade no Brasil, São Paulo: Brasiliense.
13 CACCIA BAVA, Sílvio. (1998) O Orçamento Participativo. Pólis,
mimeo.
14 PONTUAL, Pedro. (1996) Desafios pedagógicos na construção de
uma parceria: a experiência do MOVA-SP (1989-1992), trabalho
apresentado na PUC-SP, mimeo.
15 GENRO, Tarso. (1997) O Orçamento Participativo e a democracia
in GENRO, Tarso e SOUSA, Ubiratan de. Orçamento Participativo - A
experiência de Porto Alegre. São Paulo : Editora Fundação
Perseu Abramo.
16 SILVA, Ana Amélia da. (1995) Movimentos de Moradia e Políticas
Sociais: novas dimensões da interlocução pública. In HELLMANN,
Micaela (org.). Movimentos sociais e democracia no Brasil –
“Sem a gente não tem jeito”. São Paulo: Marco Zero, Ildesfes,
Labor.
17 SOMARRIBA, Mercês. (1996) Movimento R_0eivindicatório Urbano e
Política em Belo Horizonte. In: NEVES, Magda de Almeida e DULCI,
Otávio Soares (org.). Belo Horizonte: Poder, Política e
Movimentos Sociais, Belo Horizonte: C/ Arte.
18 Doimo, 1993; Pereira da Silva, 1994; Cardoso, 1988; Coelho,
1992; citadas por ALVAREZ, Sônia e DAGNINO, Evelina. (1995) Para
Além da “Democracia Realmente Existente”: Movimentos Sociais,
a Nova Cidadania e a Configuração de Espaços Públicos
Alternativos. mimeo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional
da ANPOCS.
19 ARATO, Andrew. (1995) Ascensão, declínio e recuperação do
conceito de sociedade civil. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, n. 27, fevereiro.
20 GRAHAM, Lawrence S. (1995) Democratization and grassroots in
Brasil: Using State and Local Policy Arenas to Bypass System
Constraints. Paper apresentado no 19º Congresso Internacional da
Associação de Estudos Latinoamericanos, 28-30/ setembro,
Washington D.C.
21 ALVAREZ, Sonia. (1992) Movimentos Sociais e alternativas Democráticas,
O Brasil em Perspectiva Comparada, seminário de pesquisa, mimeo.
22 ALVAREZ, Sonia e DAGNINO, Evelina (1995). Para além da
“Democracia Realmente Existente” Movimentos Sociais, a Nova
Cidadania e a Configuração de Espaços Públicos Alternativos.
Mimeo. Trabalho apresentado no XIX Encontro Nacional da ANPOCS.
23 GENRO, Tarso. (1995) Utopia Possível. 2ª edição, Porto
Alegre: Artes e Ofícios Editora.
24 NEDER, Carlos A. P. (1996) Os conselhos de Saúde. In: A
participação popular nos conselhos de gestão. Cadernos ABONG,
n. 15, julho.
25 O’DONNELL, Guillermo. (1976) op. cit.
_0 26 COUTINHO, Carlos Nelson. (1986) Questões teóricas e políticas
in GARCIA, Marco Aurélio (org.). As esquerdas e a democracia. Rio
de Janeiro: Paz e Terra: CEDEC.
27 TELLES, Vera da Silva. (1990) Espaço público e espaço
privado na constituição do social: notas sobre o pensamento de
Hannah Arendt. Tempo Social - revista de Sociologia da USP, São
Paulo, vol. 2, nº 1, 1º semestre.
28 PAOLI (1995) op. cit.
29 GENRO, Tarso. (1995) op. cit.
30 TELLES (1990) op. cit.
31 Ver Lefort (1986) e Telles (1990) op. cit. e TELLES, Vera da
Silva. (1994) Sociedade Civil e a Construção de Espaços Públicos.
In: DAGNINO, Evelina (org.). Os anos 90: Política e Sociedade no
Brasil, São Paulo: Brasiliense.
32 TELLES (1990), op. cit.
33 idem
34 DAGNINO (1994) op. cit.
35 TELLES (1990), op. cit.
36 DAGNINO (1994) op. Cit.
37 FLEURY, S. ; CARVALHO, A.. I. et. al. (1997) Municipalização
da Saúde e poder local no Brasil. Relatório de Pesquisa, FGV/
FIOCRUZ, Rio de Janeiro, mimeo, citados em CARVALHO, Antônio Ivo
de. Os Conselhos de saúde, participação Social e Reforma do
Estado. In: Ciência e saúde Coletiva III (1), 1998.
38 OLIVEIRA, Francisco. (1993) Quanto melhor, melhor: o acordo das
montadoras, Novos Estudos, CEBRAP, nº 36, julho.
39 TEIXEIRA, Elenaldo Celso. (1996) Movimentos Sociais e
Conselhos. In: A participação popular nos conselhos de gestão.
Cadernos ABONG, n. 15, julho.
40 POZZOBON, Regina Maria. (1998) Os desafios da gestão democrática
– Porto Alegre. São Paulo, Pólis.
41 GENRO, Tarso (1997) op. cit.
42 A proposta partiu da Coca-Cola e foi bem aceita pelos líderes
do MST, desde que definidas as bases do acordo de modo a não
prejudicar os trabalhadores e garantido a real geração de
“renda e emprego para os assentados”, conforme o jornal Folha
de São Paulo, em 20/7/97.
43 As citações entre aspas são retiradas de depoimentos citados
pela autora em sua dissertação de mestrado.
44 PAULA, Ana Paula Paes de. (1998). Experiências de parceria
entre o Estado e as ONGs: uma alternativa para “reinventar” a
gestão pública? mimeo
45 As citações entre aspas são retiradas de depoimentos citados
pela autora em sua dissertação de mestrado.
46 BONDUKI, Nabil. (1994) Entrevista. In: SILVA, Ana Amélia da (Org.).
Moradia e Cidadania: um debate em movimento. S. Paulo. Publicações
Pólis, nº 20.
47 LEFORT, Claude. (1991) Pensando o político, Rio de Janeiro,
Paz e Terra.
48 Ver declarações de Fernando Henrique Cardoso nos Jornais “O
Estado de São Paulo” e “Folha de São Paulo” em 26/7/97.
49 GENRO, Tarso. (1995) op. Cit.
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