Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique

        
 
 

Texto da palestra proferida durante o painel “ Como garantir as identidades culturais e proteger a criação artística da mercantilização?”, dia 29 de janeiro, Eixo III

Armand Mattelart

A grande virtude deste Forum Social Mundial e da mesa de que participo é a de relembrar que não existe forma alguma de reconstruir o mundo, uma vez que ele foi demolido. Não existe uma forma de reconstruí-lo sem tomar a distância necessária, que permita ter uma visão histórica.

Se existe já um processo em andamento, o da globalização neoliberal, acho que o que está acontecendo é uma lobotomização dos cidadãos, ou seja, eles vão ser arrancados, cindidos, afastados, de suas raízes, porque querem que eles acreditem que não têm história. Os processos que vivemos hoje datam, no máximo, de duas ou três décadas atrás. Tudo o que vivemos aqui, o que vivemos no nosso mundo de hoje, é um processo muito longo. O professor Tariq lembrou muito bem: a globalização começou com a conquista das Américas. Foi nesse momento que surgiu o processo de integração mundial. Basta lembrar os textos de um teólogo, Francisco de Vitória, para perceber que a idéia de liberdade de troca, liberdade de comunicação, liberdade de comércio, já se encontrava inscrita na doutrina de legitimação da conquista.

Vou começar por contar uma historinha. Em 1971, juntamente com meu amigo Ariel Dorfmann, eu estava no Chile. Fiquei 11 anos no Chile, e Ariel Dorfmann e eu escrevemos um livro contra o que era um símbolo da cultura a que hoje nos referimos: essa cultura do Pato Donald. O livro chamava-se Para ler o Pato Donald. E nós concluíamos esse livro dizendo que os nossos filhos do ano 2000 não seriam os filhos da cultura de massa, mas os filhos e as filhas dos nossos processos de liberação.

Passaram-se 30 anos e, passeando em Paris com o meu filho, que é um pintor, parei diante de uma escola primária e, na janela da escola, viam-se os personagens de Disney. “Muito estranho”, disse eu. E o meu filho, que tem 30 anos e é artista, se julga importante, respondeu: “Mas papai, por que você está surpreso?” E ele é um artista, um crítico da cultura. O que acho preocupante, e que faz parte do contexto das lutas, é que agora as coisas se dão de uma forma mais explícita. Quando nós escrevemos Para ler o Pato Donald, eu diria que era possível perceber uma certa ambição global nesse tipo de cultura de massa. Mas, hoje em dia, se lermos um tratado de management ou de geopolítica, podemos perceber que a noção de cultura de massa que surgiu nos Estados Unidos ganhou a ambição e se apresenta como um novo universalismo. Acho que esse é um problema central. E gostaria de refletir sobre dois elementos.

O primeiro seria sobre a forma pela qual a cultura – a própria noção e conceito de cultura – aterrissou nas discussões com relação ao livre mercado, comércio etc. Isso primeiramente. Em segundo lugar, gostaria de abordar algumas referências que marcam as diferenças, os novos conceitos que surgiram diante do significado de cultura por parte das amplas, e contraditórias, frentes de luta cultural.

Começarei por lembrar uma frase do subcomandante Marcos. Ele dizia que o século XXI será a IV Guerra Mundial, que será uma guerra semiótica. É importante refletir sobre essas palavras, pois atualmente nos vemos obrigados a usar uma língua sobre a qual não temos controle. Aparentemente, alguém, de certa forma, nos impõe, a partir de algum lugar, conceitos que utilizamos no nosso dia-a-dia que comprovam essa noção de globalização. Uma prova magistral disso é constatar como a difusão da palavra globalização foi assíncrona. Por exemplo, ela chegou muito mais rapidamente ao México do que à Espanha. O Brasil já tinha a Rede Globo, então já estava muito pertinho do paraíso global.

Essa foi só uma outra historinha para ilustrar a confusão que existe em relação a uma linguagem global. Há quatro anos, lancei um livro que se chamava La mondialisation de la communication. Em espanhol, quando foi publicado, chamava-se La mundialización de la comunicación. Em italiano, La comunicazzione global. E no Brasil, A globalização da comunicação. O incrível foi que, apesar de tudo o que dizemos sobre os Estados Unidos, a editora norte-americana foi a mais inteligente. Me escreveram e disseram: “Olha, nós não queremos uma palavra tipo worldisation, nem globalization. Isso é um barbarismo e já estamos cansados de títulos e artigos que usam a palavra “globalização”. Então, chamaram o livro Net Working World, com o sub-título: 1974 a 2000. Ou seja, o momento a partir do qual surgiram as comunicações internacionais a longa distância e o ano 2000, que foi justamente o ano da publicação do livro nos Estados Unidos. O problema para nós, portanto, é o de construir e reconstruir uma linguagem que possa corresponder ao nosso projeto de reconstrução do mundo. Porque as palavras foram pervertidas, de certa forma, foram perturbadas, começando pela palavra liberdade, a palavra democracia, a palavra cultura. A recuperação de uma linguagem, a reconstrução de uma linguagem, é a única forma de lutar contra o esvaziamento e o empobrecimento do nosso vocabulário quando falamos sobre o processo de integração das culturas e das sociedades diante de um conjunto mais importante e dito universal. Essa seria a única forma de lutar contra o processo de amnésia que está em andamento.

Gostaria de compartilhar com vocês algumas reflexões com relação à construção da via que levou a cultura ao mercado e ao centro das discussões em relação à organização mercantil. Esse é um problema muito antigo. Há um elemento histórico que acho muito importante para que possamos perceber de que forma chegamos à situação que vivemos hoje.

No século XVII, no era do iluminismo, falava-se muito numa linguagem universal. E construíam-se línguas universais. Hoje, obviamente, a linguagem universal é a informática. E surgem também teorias matemáticas da comunicação. O conceito de comunicação foi dissociado, separado, do conceito de cultura. A noção de comunicação surgiu como uma tentativa de medir a quantidade de informação, sem a menor preocupação em relação ao emissor ou ao receptor – ou seja, os agentes de cultura. Vou citar um exemplo muito simples para esclarecer o que estou querendo dizer. Na Unesco, a delegação francesa proibiu os seus tradutores de traduzirem mass comunication midia por meios de comunicação de massa. São forçados a traduzir por difusão ou informação, pois a palavra comunicação pertencia a uma outra herança cultural, que era a norte-americana. Me parece fundamental a forma pela qual foi estruturada a noção de comunicação e informação, em torno de uma noção matemática de organização do mundo. E, de certa forma, isso é um desvio do ideal do iluminismo.

Um segundo momento surge quando os especialistas das organizações internacionais encarregadas do desenvolvimento definiram a cultura a partir de indicadores sócio-culturais ou econômicos, a partir de um conceito de desenvolvimento que traduzia o progresso, ou a melhoria, do produto per capita. A partir daí, a cultura finalmente foi subdivida em indicadores: quantidade de salas de cinema por cada 100 habitantes, quantidade de jornais, quantidade de televisões, rádios etc. É aí que surge a teoria da modernização do desenvolvimento. Ou seja, o desenvolvimento das chamadas sociedades primitivas, que passavam a ser denominadas subdesenvolvidas. Esse foi um momento-chave. E, contra essa teoria, nasceu o movimento dos países não-alinhados, em Bandung, em 1955. E, na década de 70, em nome de um reequilíbrio dos fluxos de informação, surge, na Unesco, a nova ordem informativa internacional.

O terceiro momento é quando a cultura passou a fazer parte de uma nomenclatura estatística mundial, ou seja, na época da terceira rodada do GATT, que tinha como objetivo os serviços – incluindo nessa categoria a noção de cultura, junto com management, turismo etc. Esse foi o percurso através do qual a cultura pôde ser legitimada como parte do comércio. E essa nomenclatura estatística é muito importante, pois foi a partir daí que se começou a racionalização do mercado internacional partindo de um elemento cultural fundamental criado pelo imperialismo moderno: a exposição mundial de Londres de 1851.

Esse também deve ser um terreno de luta: a classificação estatística das atividades das sociedades humanas. E, juntamente com esse conceito eminentemente mercantil da cultura, os produtos do espírito, nas discussões com os Estados Unidos. Primeiro, surgiram as discussões sobre a exceção cultural – que depois se transformou em diversidade cultural, pois o conceito de exceção cultural tinha uma conotação especial devido à posição da França. Depois foi a desregulamentação das comunicações, que no final das contas é a base, a logística, da desregulamentação e da desestabilização total ou global do conceito de cultura.

O segundo ponto refere-se à forma pela qual – a partir de um campo de resistências múltiplas, contraditórias, ambíguas e por vezes ambivalentes – foi reconstruído o pensamento sobre a cultura que nos permite pensar em modelos de desenvolvimento humano, como diria Aminata, a partir de culturas singulares. Na década de 70, lutávamos contra o imperialismo cultural. É verdade que tínhamos um conceito monolítico, porque essas eram as condições da luta e era assim que tínhamos que ser, isso nos era imposto. Mas devemos lembrar que o conceito de imperialismo cultural surgiu em 1967 no Congresso de Todos os Povos do Mundo contra o Imperialismo, em Havana. E foi uma resposta dada por escritores, filósofos e intelectuais, principalmente contra a agressão que ocorria no Vietnã. Hoje diante de um processo de westernisation, ou de ocidentalização, ocorre uma renovação. Observem os discursos do Banco Mundial em relação a fornecer ao Terceiro Mundo a Internet, de dar o acesso, de dar computadores para que eles possam ter acesso ao saber universal. Mas o que é o saber universal, senão poder interpretar, através da construção dos monopólios de saber, o mundo a partir do século XIX?

Entendo que a força do pensamento crítico sobre a cultura provém justamente de ter sido levada em consideração a chamada “revanche das culturas”. Começar a analisar, não partindo de uma modernidade única euro-americana, mas a partir de processos de modernidade que têm multi-centros. Devemos reconhecer também a reivindicação da singularidade das culturas que se desenvolve hoje num contexto muito contraditório: poderia ser o retorno às culturas singulares, poderia ser uma forma de pensar e repensar o universalismo, uma nova forma de universalismo, mas também poderia ser uma forma de reflexão sobre si mesmo. Esse é o grande desafio do século XXI. Espero que neste século XXI consigamos resolver o que o século XX não conseguiu.

Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final da expositora.

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar