Texto da palestra proferida durante
o painel “ Como mediar os conflitos e construir a paz?”, dia
29 de janeiro, Eixo IV
Samuel Pinheiro Guimarães
Para abordar corretamente o tema de
como mediar os conflitos e construir a paz, devemos começar por
examinar quais são as causas, pois existem conflitos entre
Estados, entre nações, entre etnias, conflitos entre os sexos...
Há conflitos no campo, conflitos de mercados... A causa principal
desses conflitos é a concentração de poder: a concentração de
poder econômico, a concentração de poder político, a concentração
de poder militar e a concentração de poder ideológico.
A nível mundial, entre os Estados,
o processo de concentração de poder verifica-se devido às próprias
características do sistema internacional. A própria forma pela
qual estão organizados o sistema político, o sistema econômico
e o sistema militar, leva a uma concentração de poder. E os
conflitos, muitas vezes, têm sua origem na tentativa de
A?t?o? desconcentrar o poder. Um exemplo: por que existem conflitos no
campo? Porque há uma enorme concentração de poder de
propriedade no campo, e por isso, na medida em que os movimentos
se organizam para desconcentrar o poder, para redistribuir a renda
e a riqueza, pessoas e grupos que são beneficiários da concentração
de poder resistem às tentativas de desconcentração e partem
para o conflito.
Essa concentração de poder, no
passado e no presente, leva à constituição de minorias
privilegiadas que usufruem do processo, e, eventualmente, ao
conflito. Naturalmente que se a maioria simplesmente se
subordinasse, e não se indignasse ou não quisesse promover a
redistribuição de poder, não haveria conflito. Digamos, por
exemplo: se as mulheres se conformassem a se submeter
pacificamente aos homens, não haveria conflitos. Se as minorias
negras e étnicas se submetessem pacificamente à concentração
de poder, também não haveria conflitos étnicos. Se os
palestinos se conformassem com a situação política que existe
no Oriente Médio, não haveria conflito. E assim por diante...
O conflito é a necessidade de
reformular e de desconcentrar o poder. Naturalmente, na medida em
que existam grupos extremamente minoritários, os Estados, países
e etnias que se beneficiam desse processo irão resistir a todo e
qualquer esforço de desconcentração de poder. O mesmo ocorre
com a população indígena nos países onde há uma maioria de
população indígena submetida secularmente a situações de
inferioridade e de desprivilegio. Na medida em que essas populações
se organizam e parA?t?o?tem para a luta política, sofrem a reação por
parte da população que concentra o poder.
Assistimos, a cada dia, a uma
enorme concentração de poder econômico através da formação
de gigantescas empresas multinacionais, que cada vez mais
controlam os mercados e com isso conseguem impor preços e
aumentar os lucros, transferindo-os, naturalmente, para suas sedes
e distribuindo-os entre seus acionistas. Não são as empresas que
concentram a renda ou o poder: os beneficiários são os seus
acionistas, lá no final.
Através de uma estratégia de
desarmamento da periferia subdesenvolvida e pobre do mundo, os países
que concentram o poder militar e detêm o conhecimento na área
das armas de destruição em massa – e mesmo nas armas
convencionais altamente sofisticadas – encontram uma forma de
concentrar poder. Hoje em dia, cada vez mais, o poder militar se
concentra nos países do centro do sistema internacional e eles
procuram, através da manipulação ideológica da paz, desarmar a
periferia. Ora, ninguém pode ser contra a paz e contra o
desarmamento, mas ninguém pode ser a favor de que um pequeno
grupo de países detenha uma força militar extraordinária e
imponha a sua vontade ao resto do mundo.
A recente guerra do Kosovo é um
exemplo do que tento explicar. Como todos sabem, o Kosovo era uma
potência militar extraordinária, fortíssima, que ameaçava a
paz mundial e que era necessário reprimir. Embora, evidentemente,
isso não seja verdade, usaram-se, todavia, armamentos com urânio
empobrecido. Com o desconhecimento dos própriA?t?o?os aliados europeus,
que ignoravam que esse tipo de armamento estava sendo
experimentado naquelas populações. Esses armamentos foram
utilizados para que? Talvez para impedir que o Kosovo invadisse a
Alemanha, ou os Estados Unidos? Seria um pouco de exagero pensar
que isso fosse possível, e, no entanto, foram usados. Assistimos,
portanto, a um desenvolvimento progressivo de armas de enorme
letalidade, capazes de destruir populações civis com enorme
rapidez sem perda de soldados das potências que utilizam essas
armas. Isso demonstra uma enorme concentração de poder militar.
Ao mesmo tempo, há uma enorme
concentração de poder político no sistema das Nações Unidas e
no Conselho de Segurança, onde os cinco países que são membros
permanentes decidem se está havendo uma ruptura da paz e onde a
violência pode ser utilizada. Se o Conselho autorizou a prática
de uma intervenção violenta na Iugoslávia, jamais pensou em
examinar a questão da violência na Chechênia ou na Argélia,
por exemplo, ou no Ruanda e no Burundi, onde morreram mais de um
milhão de pessoas, pois há uma concentração de poder político
extraordinário no centro do sistema internacional.
Ao mesmo tempo, há uma enorme
concentração de poder ideológico. Do poder que se manifesta
através da manipulação da mídia internacional que faz com que,
digamos, a política de determinados países seja considerada benéfica
e favorável à humanidade, enquanto a posição dos países que
se rebelam contra a injustiça, contra a arbitrariedade e contra a
violência, seja estigmatizada. Ou que as populações oprimidas
A?t?o? sejam distraídas pelo divertimento fácil, pela televisão hipnótica,
que faz com que elas desistam da luta política, não se envolvam
e se concentrem em tentativas individuais de melhorar a posição
na sociedade. Logicamente, a academia tem muito a ver com isso, ao
produzir uma série de teorias econômicas e políticas que
justificam as situações de dominação e de privilégio. A formação
dos grandes oligopólios internacionais é justificada porque
torna o sistema mais eficiente e mais competitivo. Se esquecem de
dizer: mais lucrativo. Ao mesmo tempo que vemos, em países como o
Brasil, a massa salarial diminuir nos últimos anos. Isto é, o
total de salários pagos diminuiu, o que significa que o total da
retribuição do capital aumentou. Isso, em nome da eficiência.
Aqueles que recebem salário, estão, certamente, muito
satisfeitos com esse aumento da eficiência e da competitividade.
Gostaria ainda de dizer que o
sistema de concentração de poder e de privilégios só pode se
manter pela força. É necessária a força para que os que se
beneficiam dos privilégios o possam continuar fazendo.
Num cenário tão conflitivo,
somente a organização política, a articulação política e a
luta política dos Estados que estão na periferia do sistema –
e das classes que existem dentro de cada Estado, na periferia do
seu sistema interno, dos grupos étnicos desprivilegiados, dos
setores da sociedade que são vítimas da de concentração de
poder – permitirá chegar à causa dos conflitos, que é a
concentração de poder. Em todos os seus aspectos. Para isso, é
necessário gerar ideologias, no senA?t?o?tido de gerar interpretações
da situação do mundo, da situação de cada sociedade, da situação
do sistema econômico e de cada fato econômico, de forma a que
essa interpretação permita uma articulação política, uma luta
política contra essa concentração ou contra uma situação
específica. Enquanto as mulheres estiverem convencidas de que são
inferiores aos homens, a concentração de poder a nível dos
sexos continuará. Porém, à medida que as mulheres se
convencerem de que são iguais aos homens, e reivindicarem seus
direitos, serão vítimas da violência. Essa violência aumentará,
pois na luta política, em algum momento, ocorre a violência –
seja no plano individual, social, ou entre os Estados.
Não se deve acreditar na utopia de
que uma determinada classe social – intelectuais, diplomatas ou
quem quer que seja – vai organizar o mundo e a sociedade de uma
forma pacífica. O processo de construção social, de avanço da
humanidade, é um processo de luta. Se possível, pacífica, porém
na medida em que os privilegiados resistem, naturalmente a violência
acaba por ocorrer. É por isso que existem conflitos no campo. E
se não existiam antes é porque os oprimidos não se articulavam
para resolver a questão. É por isso que existem conflitos nos países
de grande população indígena, pois enquanto os indígenas se
submeteram, aceitando aquela situação, não havia conflito.
Reprodução editada da gravação
da palestra proferida, sem revisão final do expositor.
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