Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique


 
 

Texto da palestra proferida durante o painel “Quais são os fundamentos da democracia e de um novo poder?”, dia 26 de janeiro, Eixo I

MARIA VITÓRIA BENEVIDES*

É uma grande satisfação e uma grande honra participar deste Fórum Social Mundial. Nesta conferência vou discorrer sobre quais seriam os fundamentos da democracia e de um novo poder. Vários aspectos poderiam ser abordados, e eu escolhi falar sobre a democracia como soberania popular e tocar em algumas questões por meio das quais poderíamos pensar sobre o que poderia ser feito no Brasil para obtermos avanços em termos de novas formas de democracia direta.

Para mim, os fundamentos da democracia - seus dois grandes pilares - são o regime da soberania popular ativa e o respeito integral aos direitos humanos. Direitos humanos entendidos não só como aqueles de origem liberal, como os direitos individuais e as liberdades individuais, mas também, e essencialmente, como direitos econômicos e direitos sociais.

Esta definição de democracia rompe com aquela visão tradicional que restringe a democracia à existência de direitos e liberdades individuais, além de eleições periódicas. Quantas vezes escutamos no Brasil expressões como esta: estamos vivendo numa democracia plena! Ora, nós todos sabemos que isso não é verdade. É preciso ter claro, no entanto, que essa associação entre os dois grandes princípios – a soberania popular ativa e o respeito integral aos direitos humanos – como fundamentos da democracia, implica afirmar uma exigência de que ambos atuem conjuntamente. Isto é, não podemos ter democracia sem soberania popular, assim como não podemos ter democracia sem respeito aos direitos humanos. Embora a democracia signifique governo do povo, a soberania popular sem freios e sem regras não garante a democracia. Por outro lado, sem a limitação dos poderes governamentais e sem respeito aos direitos humanos, a soberania popular ativa tende fatalmente ao abuso da maioria, à transformação do poder popular sucessivamente em ditadura da oligarquia partidária e em ditadura de um déspota. Por outro lado, o mecanismo formal da separação de poderes e a declaração retórica de direitos humanos, sem que o povo exerça efetivamente o poder supremo, é mero disfarce de uma dominação oligárquica.

Por que insistimos na expressão “soberania popular ativa”? A experiência histórica, desde pelo menos as revoluções burguesas do final do século XVIII, demonstra claramente que as grandes conquistas da República e da cidadania – o voto popular e as eleições periódicas – não tornaram o povo um participante ativo da vida política. É sabido que o mecanismo de eleição de governantes não impede, por si só, que uma classe social, um estamento político, um partido político (como no clássico caso do PRI Mexicano)   monopolizem o poder no que se refere ao processo decisório, sobre as questões fundamentais da vida política, incluídas aí decisões cruciais sobre a política econômica.

Ao enfatizar esse princípio fundamental da soberania popular, estou pressupondo a defesa de institutos de democracia direta. E no caso brasileiro, uma vez que eles já existem, garantidos pela Constituição, defendo a sua efetiva implementação e ampliação. Isso não significa, é evidente, descartar a democracia representativa, certamente indispensável e insubstituível nas democracias contemporâneas. A oposição tradicional entre democracia direta e democracia representativa está hoje francamente superada e falseia a realidade. As formas de democracia direta podem servir de corretivos aos vícios e deturpações da democracia representativa, tão bem conhecidos entre nós, mas não substituem as eleições para cargos executivos e cargos legislativos. Além do mais, é evidente que a soberania popular não significa a participação integral do povo na vida pública.

Rousseau, o grande e radical defensor da soberania popular ativa, reconhecia que o povo não pode abandonar completamente as suas atividades privadas para se dedicar à administração da coisa pública – o que cabe obviamente aos governantes. Logo, é preciso distinguir entre uma ação política em termos de processo decisório - que exige participação popular - de uma ação política voltada especificamente para a administração dos negócios públicos. Cabe ao povo, de forma soberana, participar dos processos decisórios sobre questões fundamentais de interesse público. E essas questões fundamentais se referem à organização do Estado (dos seus poderes, das suas competências e das suas limitações), e aos objetivos prioritários da ação do Estado. A forma pela qual o Estado se organiza abrange as questões já mencionadas acerca dos poderes, das suas competências e limitações; da independência entre os poderes; do sistema de governo; e do sistema eleitoral. Nesse campo a soberania popular é exercida pelo poder constituinte, na feitura e na aprovação de uma nova Constituição, mas também - o que é muito importante, sobretudo no caso brasileiro e na atual conjuntura brasileira - o povo deve ter o direito de participar de mudanças constitucionais, de emendas constitucionais, juntamente com os outros órgãos pertinentes. Esses mecanismos de intervenção direta do povo, já acolhidos na nossa Constituição, são, em relação aos poderes do Estado, o referendum, o plebiscito, a iniciativa popular legislativa. Eis um breve exemplo: as mudanças no nosso sistema eleitoral, que terão certamente um impacto muito grande em termos da participação e da representação democrática, não podem ser decididas só pelos parlamentares, que estariam legislando em causa própria.

Mas quais seriam os objetivos da ação estatal, do ponto de vista dessa democracia, cujos princípios são a soberania popular e o respeito integral aos direitos humanos? O artigo terceiro da nossa Constituição Federal afirma, em uma das mais belas expressões jurídicas dos nossos textos constitucionais, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: 1o) constituir uma sociedade livre, justa e solidária; 2o) garantir o desenvolvimento nacional; 3o) erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; 4o) promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Um belíssimo programa que identificaria certamente um Estado de Direito democrático efetivamente comprometido com a justiça social. Sabemos, no entanto, que essas belas promessas não saíram do papel.

Logo, numa proposta de construção democrática, são esses princípios garantidos, afirmados na nossa Constituição, que deverão orientar a participação popular do povo para, em vista desses objetivos, não apenas decidir como cobrar, fiscalizar e eventualmente exigir a punição dos responsáveis por omissão ou negligência. Nesse caso, nós temos não apenas os instrumentos do referendum, do plebiscito, da iniciativa popular legislativa, como também o orçamento participativo, a ação popular, o recall ou revogação de mandato, os conselhos populares de gestão e fiscalização.

Em relação ao segundo fundamento da democracia que defendemos, podemos dizer que o sistema dos direitos humanos está hoje integrado aos planos nacional e internacional. A integração mundial desse sistema significa a boa globalização. Isto é, o estabelecimento da cidadania mundial, que significa impor limites aos princípios da soberania nacional e da autodeterminação dos povos quando estão em causa violações claras aos direitos humanos, mesmo que essas violações sejam feitas em nome da identidade e da tradição cultural.

No plano nacional, tal associação entre democracia direta e direitos humanos leva à necessidade de várias medidas em relação às nossas instituições. A Constituição brasileira, como já se disse, acolheu os mecanismos de democracia direta. Trata-se de exigir sua efetivação e a ampliação de seu escopo. Mas o que se deve pleitear como poder do povo? Primeiro, a aprovação da Constituição, de uma nova Constituição, e das emendas constitucionais pelo povo e direito de iniciativa popular em matéria constitucional. A aprovação de determinadas leis votadas no parlamento e que se referem a direitos humanos, como a questão da Anistia, por exemplo.

É preciso discutir também acerca do direito do povo de participar de plebiscitos sobre temas de grande impacto na vida político-econômica, como questões da privatização, de adesão a mercados e tratados internacionais, muitas vezes em prejuízo da nossa atividade econômica. O sistema de financiamento da Previdência Social, a estabilidade de funcionário público, etc. Se o povo fosse realmente soberano, o neoliberalismo não teria sido implementado nem teria sido vitorioso. O povo não votaria contra os seus mais elementares interesses e necessidades. A ação popular de anulação de orçamentos, seja porque não respeitam as diretrizes aprovadas pelo povo, como as aprovadas no orçamento participativo, seja porque uma determinada decisão orçamentária aprovada por órgão parlamentar não abre espaço à realização de políticas públicas que contemplam os direitos econômicos e sociais, é uma forma de a população intervir na esfera das decisões político-econômicas. Um orçamento, por exemplo, que não aloca nenhuma verba de investimento em educação, como se a educação dependesse apenas de verbas de custeio.

Uma observação importante se faz necessária: a ação popular é uma prerrogativa de qualquer cidadão, mas ela seria certamente mais importante e mais eficaz se fosse promovida por uma ONG.

Outra medida, além da Ação Popular, que ampliaria os espaços de participação e fiscalização dos direitos democráticos garantidos pela Constituição seria a criação de uma Ouvidoria popular, em que os ouvidores seriam eleitos pelo povo. Acolheriam queixas e reclamações de cidadãos contra membros do Ministério Público, contra juizes, que se revelem omissos, displicentes ou que maltratem os seus jurisdicionários.

Finalmente, teríamos o recall ou a revogação de mandatos, que seria um controle do povo sobre seus mandatários, exercido tanto em relação aos mandatos do Executivo quanto do Legislativo. Acredito que essas breves propostas possam complementar um quadro de construção de uma democracia que seja ao mesmo tempo o regime da soberania popular e do respeito integral aos direitos humanos.

Reprodução editada da gravação da palestra proferida, sem revisão final do expositor.

Maria Vitória Benevides* é socióloga e professora da USP

 

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar