Nosso
próximo programa: Oxímoro!
Num mundo
em que a barbárie tornou-se quotidiana, é preciso reconhecer a
responsabilidade dos intelectuais que resistem. Depende da ação
deles saber se o protesto se esgotará em denúncia sem
perspectiva ou, ao contrário, levará à formação de novos
atores sociais e, indiretamente, a novas políticas econômicas e
sociais
Subcomandante
Marcos
“Para
a figura denominada oxímoro, aplica-se a uma
palavra um epíteto que parece contradizê-la;
assim os gnósticos falarão de uma luz escura;
os
alquimistas, de um sol negro.”“.
Jorge
Luis Borges
ADVERTÊNCIA,
INTRODUÇÃO E PROMESSA
Atenção:
se você não leu a epígrafe, é bom que o faça agora, porque
pode não entender algumas coisas. Um fato irrefutável: a
globalização está aqui. Não a qualifico ainda, simplesmente
assinalo uma realidade. Porém, posto que oxímoro, é preciso
assinalar que se trata de uma globalização fragmentada.
A
globalização foi possível, entre outras coisas, por duas revoluções:
a tecnológica e a da informática. Foi e será dirigida pelo
poder financeiro. Juntas, a tecnologia e a informática (e com
elas o capital financeiro) diminuíram distâncias e romperam
fronteiras. Hoje é possível ter informações sobre qualquer
parte do mundo, a qualquer momento e de forma simultânea. Mas
também o dinheiro tem agora o dom da ubiqüidade, move-se de
maneira vertiginosa, como se estivesse em todas as partes ao mesmo
tempo. E mais, o dinheiro dá uma nova forma ao mundo, a forma de
um mercado, de um mega-mercado.
No
entanto, apesar da globalização do planeta, ou melhor,
precisamente por ela, a homogeneidade está longe de ser a
característica desta troca de século e milênio. O mundo é um
arquipélago, um quebra-cabeças cujas peças se tornam outros
quebra-cabeças e a única coisa realmente globalizada é a
proliferação do heterogêneo.
Se
a tecnologia e a informática estão unindo o mundo, o poder
financeiro utiliza-as como armas, como armas em uma guerra. Antes
havíamos dito (o texto se chama “Sete peças soltas no
quebra-cabeças mundial”, EZLN, 1997) que na globalização
trava-se uma guerra mundial, a quarta, e que se desenvolve um
processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento
(estou tentando resumir apressadamente, sejam benevolentes) em
todo o planeta. Para a construção da nova ordem mundial (planetária,
permanente, imediata e imaterial, segundo Ignacio Ramonet), o
poder financeiro conquista territórios e derruba fronteiras, e o
consegue fazendo a guerra, uma nova guerra. Uma das baixas desta
guerra é o mercado nacional, base fundamental do Estado-Nacional.
Este último está em vias de extinção, ou ao menos o
Estado-Nacional tradicional. Em seu lugar surgem mercados
integrados ou, melhor, lojas de departamentos do grande shopping
mundial, o mercado globalizado.
As
conseqüências políticas e sociais desta globalização
constituem um oxímoro reiterado e completo: menos pessoas com
mais riquezas, produzidas com a exploração de mais pessoas com
menos riquezas, “a pobreza do nosso século não é comparável
a nenhuma outra. Não é, como já foi alguma vez, o resultado
natural da escassez, mas o conjunto de prioridades impostas pelos
ricos ao resto do mundo”1;
para uns poucos poderosos o planeta abriu-se cada vez mais; para
milhões de pessoas o mundo não oferece lugar e elas vagam
errantes de um lado para outro; o crime organizado forma a coluna
vertebral dos sistemas jurídicos e dos governos (os ilegais fazem
as leis e “cuidam da ordem pública”; e a “integração”
mundial multiplica as fronteiras).
Deste
modo, se ressaltarmos algumas das principais características
da época atual, diríamos: supremacia do poder financeiro, revolução
tecnológica e informática, guerra, destruição/despovoamento e
reconstrução/reordenamento, ataques aos Estados Nacionais, a
conseqüente redefinição do poder e da política, o mercado como
figura hegemônica que permeia todos os aspectos da vida humana em
todas as partes, maior concentração de riqueza em poucas mãos,
maior distribuição de pobreza, aumento da exploração e do
desemprego, milhões de pessoas sem-teto, delinqüentes que
integram o governo, desintegração de territórios. Em resumo:
globalização fragmentada.
Bem,
segundo esta consideração,
no caso dos intelectuais (haja vista que têm a ver com a
sociedade, o poder e o Estado) cabe perguntar: estão padecendo do
mesmo processo de destruição/despovoamento e reconstrução/reordenamento?
Que papel lhes atribui o poder financeiro? Como usam (ou são
usados pelos) os avanços tecnológicos e de informática? Que
posição têm nessa guerra? Como se relacionam com os combalidos
Estados Nacionais? Qual o seu vínculo com esse poder e política?
Que lugar têm no mercado? E como se posicionam frente às conseqüências
políticas e sociais da globalização? Em suma: como se inserem
nesta globalização fragmentada?
O
mundo teria mudado por e para esta guerra. Se as coisas de fato são
assim, os intelectuais clássicos não existiriam mais, nem suas
antigas funções. Em seu lugar, uma nova geração de “cabeças
pensantes” (para usar um termo criado pelo comandante zapatista
Tacho) teria emergido (ou está por emergir) e teriam novas funções
em sua atividade intelectual.
Ainda
que pretendamos aqui nos limitar aos intelectuais de direita, serão
evidentes algumas observações sobre os intelectuais em geral e
sobre suas relações com o poder. Como o propósito deste texto
é participar e alentar a polêmica entre os intelectuais de
direita e esquerda, fica aqui uma reflexão mais profunda (sobre
os intelectuais e o poder, e sobre os intelectuais e a transformação)
para futuro e improváveis escritos.
Saudações,
e tenha à mão seu controle remoto. Em um momento começamos…
I
-- A GLOBALIZAÇÃO: PAY PER VIEW
Na
página do calendário, o ano dois mil está entre os séculos 20
e 21. Não me parece tão importante esta contagem de tempo, mas
me parece que é um momento adequando para que, por todos os
lados, surjam oxímoros. Para não ir muito longe, poderia dizer
que esta época é o princípio do fim ou o fim do princípio de
“algo”. “Algo”, forma irresponsável de eludir um
problema. Porém já se sabe que nossa especialidade não é a
solução de problemas, e sim sua criação. “Sua criação?”
Não, é muito presunçoso, melhor seria dizer sua proposição.
Sim, nossa especialidade é propor problemas. Tudo parece já ter
acontecido antes, como um velho filme que se repete com outras
imagens, outros recursos cinematográficos, incluindo atores
diferentes, mas com o mesmo roteiro. Como se a modernidade (ou a
“pós-modernidade”, deixo a precisão para quem se dê ao
trabalho) da globalização se vestisse com seu oxímoro e nos
presenteasse com uma modernidade arcaica, rançosa e antiga.
Se
isto que digo lhes parece mera apreciação subjetiva, atribua ao
fato de estarmos na montanha, resistindo e em rebeldia, mas
conceda-nos o privilégio da leitura e veja se trata-se de um
sintoma a mais de “mal de montanha”, ou você compartilha
desta sensação de dejà vu que flui pelo hipercinema que
é este mundo globalizado.
O
mundo não é quadrado, pelo menos isso é o que nos ensinam na
escola. Porém, no fio cortante da união dos milênios, o mundo
também não é redondo. Ignoro qual seja a figura geométrica
adequada para representar a forma atual do mundo, mas, haja visto
que estamos na época da comunicação digital audiovisual, poderíamos
tentar defini-la como uma gigantesca tela. Você pode agregar
“uma tela de televisão”, ainda que eu prefira “uma tela de
cinema”. Não apenas por preferir o cinema, também (e acima de
tudo) porque me parece que há na nossa frente uma película, uma
velha película, modernamente velha (para seguir com oxímoro).
É,
além disso, uma dessas telas onde se pode programar a apresentação
simultânea de várias imagens (picture in picture, a
chamam). No caso do mundo globalizado, de imagens que se sucedem
em qualquer rincão do planeta. Mas ali não estão todas as
imagens. E não por falta de espaço na tela, mas porque “alguém”
selecionou estas imagens e não outras. Quer dizer, estamos vendo
uma tela com diversos quadros que apresentam imagens simultâneas
-- de diferentes partes do mundo, é certo --, mas nem todo o
mundo está ali.
Ao
chegar neste ponto, a gente se pergunta, inevitavelmente, “quem
tem o controle remoto desta tela audiovisual? E quem faz a
programação?” Boas perguntas, mas você não encontrará aqui
estas respostas. E não apenas porque não as temos de ciência
certa, mas também porque não são o tema deste texto.
Posto
que não podemos trocar de canal no cinema, vejamos alguns dos
diferentes quadros que nos oferece a mega tela da globalização.
Vamos
ao continente americano. Lá você tem, num quadro, a imagem da
Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) ocupada por um
grupo paramilitar do governo: a chamada Polícia Federal
Preventiva. Não parece que estes homens de uniforme cinza estejam
estudando. Mais adiante,demarcada pelas montanhas do sudeste
mexicano, uma coluna de tanques blindados cinzas cruza uma
comunidade indígena do Chiapas. Do outro lado, a imagem cinza
apresenta um policial norte-americano que detém, com uma violência
requintada, um jovem em um lugar que pode ser Seatlle ou
Washington.
No
quadro europeu proliferam também os cinzas. Na Áustria, é Joer
Heider e seu fervor pró-nazi. Na Itália, com a ajuda
desinteressada de D’Alema, Silvio Berlusconi arruma a gravata.
No Estado Espanhol, Felipe Gonzáles maquia o rosto de José Maria
Aznar. Na França é Le Pen quem nos sorri.
A
Ásia, África e Oceania apresentam a mesma cor, que se repete nos
seus respectivos rincões.
Humm...
tantos cinza... Humm... nós podemos protestar... depois de tudo,
eles nos prometeram um programa multicor... Pelo menos, aumentemos
o volume. Vamos tentar entender que isso é...
II.
- UM ESQUECIMENTO MEMORÁVEL
Como
a globalização fragmentada, os intelectuais estão aí, são uma
realidade da sociedade moderna.
E o “estar aí” deles não se limita à época atual,
remonta aos primeiros passos da sociedade humana. Mas a
arqueologia dos intelectuais escapa a nosso conhecimento e
possibilidades, por isso partimos do fato de que “estão aí”
Em todo caso, o que nos propomos a descobrir é a sua forma de
“estar aí”.
“Os
intelectuais enquanto categoria são algo muito vago, já se sabe.
Diferente, por outro lado, é definir a “função
intelectual”. A função
intelectual consiste em determinar criticamente o que se considera
uma aproximação satisfatória do próprio conceito de verdade; e
qualquer um pode desenvolvê-la, inclusive um marginal que reflita
de alguma forma sobre sua própria condição e de alguma maneira
a expresse, enquanto um escritor pode traí-la por reagir aos
acontecimentos com paixão, sem impor o crivo da reflexão”2.
Se
é assim, então o trabalho intelectual é, fundamentalmente, analítico
e crítico. Frente a um fato social (para nos limitar a um
universo), o intelectual analisa o evidente, o afirmativo e o
negativo, buscando o ambíguo, o que não é nem uma coisa nem
outra (embora assim se apresente) e mostra (comunica, desvenda,
denuncia) não apenas o que não é evidente, mas inclusive o que
se contradiz ao evidente.
É
de se supor que as sociedades humanas tenham pessoas que se
dediquem profissionalmente a esta análise crítica e a comunicar
seus resultados. Nas palavras de Norberto Bobbio: “Os
intelectuais são todos aqueles para os quais transmitir mensagens
é a ocupação habitual e consciente (...) e, falando de uma
maneira que pode até parecer brutal, quase sempre representa a
maneira de ganhar o pão de cada dia”. Fiquemos com esta
aproximação ao intelectual, ao profissional da análise crítica
e da comunicação.
Já
havíamos sido advertidos de que o intelectual nem sempre exerce a
função intelectual. “A função intelectual se exerce sempre
com antecedência (ao que pode acontecer) ou com atraso (sobre o
que já aconteceu); raramente sobre o que está acontecendo, por
razões de ritmo, porque os acontecimentos são sempre mais rápidos
e urgentes que a reflexão sobre os acontecimentos”3.
Por
sua função intelectual, este profissional da análise crítica e
sua comunicação seria uma espécie de consciência incômoda e
impertinente da sociedade (nesta época da sociedade globalizada)
em seu conjunto e de suas partes. Um inconformado com tudo, com as
forças políticas e sociais, com o Estado, com o governo, com os
meios de comunicação, com a cultura, com as artes, com a religião
e mais o que o leitor quiser agregar. Se o ator social diz “aqui
está”, o intelectual murmura, cético: “falta”, ou “sobra
algo”.
Teríamos então que o intelectual em seu papel é um crítico da
imobilidade, um promotor da mudança, um progressista. No entanto,
este comunicador de idéias críticas está inserido em uma
sociedade polarizada, confrontada entre si mesma de muitas
maneiras e com diferentes argumentos, mas dividida
fundamentalmente entre os que usam o poder para que as coisas não
mudem e os que lutam pela mudança. “O intelectual deve, por um
elementar sentido de ridículo, compreender que não lhe é
outorgado um papel de bruxo do espírito em torno do qual vai
girar o ser ou não ser histórico, mas evidentemente ele tem
conhecimentos (...) que pode alinhar em um ou outro sentido histórico.
Pode alinhar na busca da elucidação das injustiças presentes no
mundo atual ou na cumplicidade com a paralisação e a instalação
do Limbo.4”
E
é aqui que o intelectual opta, elege, escolhe entre sua função
intelectual e a função que lhe propõem os atores sociais.
Aparece assim a divisão (e a luta) entre intelectuais
progressistas e reacionários. Ambos seguem trabalhando com a
comunicação de análise crítica, mas enquanto os progressistas
continuam na crítica
da imobilidade, da permanência, da hegemonia e do homogêneo; os
reacionários desenvolvem a crítica à mudança, ao movimento, à
rebelião, e à diversidade. O intelectual reacionário
“esquece” sua função intelectual, renuncia à reflexão crítica
e sua memória opera de modo que não exista passado ou futuro. O
presente e o imediato são o único tempo possível e, por isso,
inquestionável.
Ao dizer “intelectuais progressistas e reacionários” nos
referimos aos intelectuais “de esquerda e de direita”. Aqui
convém lembrar que o intelectual de esquerda exerce sua função
intelectual, ou seja, sua análise crítica também frente à
esquerda (social, partidária, ideológica), mas na época atual
sua crítica é fundamentalmente dirigida ao poder hegemônico: o
dos senhores do dinheiro e quem os representa no campo da política
e das idéias.
Deixemos
agora os intelectuais progressistas e de esquerda, e vamos aos
intelectuais reacionários, a direita intelectual.
III
-- O PRAGMATISMO INTELECTUAL
No
princípio os gigantes intelectuais de direita foram
progressistas. Falo dos grandes intelectuais de direita, os
“think tanks” da reação, não dos anões que foram
ingressando aos seus clubes “pensantes”. Octavio Paz,
excelente poeta e ensaísta, o maior intelectual de direita dos últimos
anos no México, declarou: “Venho do pensamento chamado de
esquerda. Foi algo muito importante na minha formação. Não sei
agora...a única coisa que sei é que meu diálogo – às vezes
minha discussão – é com eles (os intelectuais de esquerda). Não
tenho muito para falar com os outros”5.
Casos como o de Paz se repetem pela mega tela global.
O
intelectual progressista, enquanto comunicador de análise crítica,
se converte em objeto e objetivo para o poder dominante. Objeto a
comprar e objetivo a destruir. Enormes recursos são mobilizados
para as duas coisas. O intelectual progressista “nasce” em
meio a este ambiente de sedução persecutória. Alguns resistem e
se defendem (quase sempre sozinhos, a solidariedade entre grupos não
parece ser a característica do intelectual progressista), mas
outros, talvez fatigados, vasculham sua bagagem de idéias e tiram
as que são ao mesmo tempo crítica e razão para legitimar o
poder. O novo exige muito, o velho aí está, sendo que basta usar
o argumento de “inevitável” para que lhe ofereçam uma cômoda
poltrona (às vezes em forma de bolsa de estudos, posição, prêmio,
espaço) por conta do Príncipe antes tão criticado.
“O
inevitável” tem nome hoje: globalização fragmentada,
pensamento único -- isto é, “a tradução em termos ideológicos
e com pretensão universal dos interesses de um conjunto de forças
econômicas, em particular as do capital internacional6”.
Fim da história, onipresença e onipotência do dinheiro,
substituição da política pela polícia, o presente como único
futuro possível, racionalização da desigualdade social,
justificação da sobre-exploração dos seres humanos e recursos
naturais, racismo, intolerância, guerra.
Em
uma época marcada por dois novos paradigmas, comunicação e
mercado, o intelectual de direita (e o ex-esquerda) entende que
ser “moderno” significa seguir o slogan: adaptam-se ou percam
vossos privilegiados lugares!
Não
é necessário nem ser original, o intelectual de direita já tem
o canteiro de onde haverá de tirar as pedras que adornem a
globalização fragmentada: o pensamento único. A
assepsia não importa muito, o pensamento único tem suas
principais “fontes” no Banco Mundial, no Fundo Monetário
Internacional, na Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico, na Organização Mundial do Comércio,
na Comissão Européia, no Bundesbank, no Banco da França “que,
mediante seu financiamento, alinham a serviço de seus ideais, em
todo o planeta, numerosos centros de investigação, universidades
e fundações, os quais, por sua vez,anunciam e difundem a boa
nova”7.
Com
tal abundância de recursos, é fácil que floresçam elites que há
muitos anos, empenham-se a fundo em fazer o elogio ao
“pensamento único”; que exercem uma verdadeira chantagem
contra toda reflexão crítica em nome da “modernização”, do
“realismo”, da “responsabilidade” e da “razão”; que
afirmam o “caráter inevitável” da atual evolução das
coisas; que propõem a capitulação intelectual, que condenam à
escuridão irracional todos aqueles que se negam as aceitar que “o estado natural
da sociedade é o mercado”8.
Longe
da reflexão, do pensamento crítico, os intelectuais de direita
tornam-se pragmáticos por excelência, exilados da função
intelectual e transformados em ecos, mais ou menos estilizados,
dos spots publicitários
que inundam o mega mercado da globalização fragmentada.
Frente
ao intelectual de esquerda, o de direita impõe o rótulo lapidar
de “messianismo tresloucado”. Quem pode questionar um presente
pleno de liberdades, onde qualquer um pode decidir o que comprar,
sejam artigos de primeira necessidade, ideologias, propostas políticas
e comportamentos para qualquer ocasião?
IV-
OS CLARIVIDENTES CEGOS
Parafraseando
Régis Debray , o problema aqui não é por que ou como a
globalização é irremediável, mas sim por que ou com todo o
mundo, ou quase, acredita que ela seja irremediável. Uma resposta
possível: “A tecnologia do fazer-crer (...) O poder da informação..
.Inf-formar:dar forma, formatar. Con-formar:
dar conformidade. Trans-formar: modificar uma
situação”10.
Com
a globalização da economia, globaliza-se também a cultura. E a
informação. Normal, portanto, que as grandes empresas de
comunicação “estendam” sobre o mundo inteiro sua rede eletrônica
sem que nada nem ninguém as impeça. “Nem Ted Turner, da CNN;
nem Rupert Murdoch, da News Corporation Limited; nem Bill Gates,
da Microsoft; nem Jeffrey Vinik, da Fidelity Investments; nem
Larry Rong, do China Trust and International Investment; nem
Robert Allen, de ATT; assim como George Soros ou dezenas de outros
novos amos do mundo, submeteram jamais seus projetos ao sufrágio
universal11”
Na
globalização fragmentada, as sociedades são fundamentalmente
sociedades midiáticas. As mídias são o grande espelho, não do
que uma sociedade é, mas do que deve aparentar. Plena de
tautologias e evidências, a sociedade midiática é avara em razões
e argumentos. Aqui, repetir é demonstrar.
E
o que se repete são as imagens, como estes cinzas que nos mostra
agora a grande tela globalizada. Debray nos disse: A equação da
era visual é algo assim como: o visível = o real = o verdadeiro.
Eis aqui a idolatria revisitada (e sem dúvida redefinida)”12.
Os intelectuais de direita têm aprendido bem sua lição. Mais,
é um dos dogmas de sua teologia.
Onde
se deu o salto que iguala o visível ao verdadeiro? Truques da
tela globalizada.
O
mundo inteiro, melhor ainda, o conhecimento inteiro está à mão
de qualquer um com uma televisão ou um computador portátil. Sim,
mas não qualquer mundo e não qualquer conhecimento. Debray
explica que o centro de gravidade das informações foi deslocado
do escrito para o audiovisual, do signo para a imagem. As
vantagens para os intelectuais de direita (e as desvantagens para
os progressistas) são óbvias.
Analisando
o comportamento da informação na França durante a guerra do
Golfo Pérsico, se revela o poder das mídias: no começo do
conflito, 70% dos franceses mostravam-se hostis à guerra; no
final, a mesma porcentagem aprovava-a. Sob o bombardeio das mídias,
a opinião pública francesa “mudou” e o governo obteve as
vantagens por sua participação bélica.
Já
se pode tirar algumas conclusões: o novo intelectual de direita
tem que desempenhar sua função legitimadora na era visual; optar
pelo direto e imediato; passar do signo à imagem e da reflexão
ao comentário televisivo. Nem ao menos tem que se esforçar para
legitimar um sistema totalitário, brutal, genocida, racista,
intolerante e excludente. O mundo que é objeto de sua “função
intelectual” é o apresentado pelos meios de comunicação: uma
representação virtual. Se no hipermercado da globalização o
Estado-Nacional se redefine
como uma empresa, mais, os governantes como gerentes de vendas e
os exércitos e polícias em agências de vigilância, então a
direita intelectual faz o papel de relações públicas.
Em outras palavras, na globalização, os intelectuais de
direita são “multiuso”, coveiros da análise crítica e da
reflexão, ilusionistas nas rodas de moinho da teologia
neoliberal, “pontos” de governos que esqueceram o
“script”, comentaristas do evidente, instigadores de soldados
e polícias, juizes gnósticos que separam em rótulos de
“verdadeiro” e “falso” o que lhes convêm. Guarda-costas
teóricos do Príncipe, e anunciadores da “nova história”.
1
Jorge Berger. Cada vez que decimos adiós. Ediciones de la flor. Argentina, 1977. Págs. 278-279
2
Umberto Eco. Cinco escritos morales. Ed. Lumen. Tradução
Helena Lozano Miralles. p.
14-15)
3
Umberto Eco. Op. Cit. P.
29.
4
Manuel Vázquez Montalbán.
Panfleto desde el planeta de los simios.
Ed.
Drakontos. Barcelona 1995.
p. 48
5
Braulio Peralta El poeta en su tierra. Diálogos con Octavio Paz.
Ed. Grijalbo.
6
Ignacio Ramonet. Un mundo sin rumbo. Crisis de fin de siglo.
Editorial Debate. Madrid.
7
Ignacio Ramonet. Op. Cit. P. 111.
9
Manuel Vázquez Montalbán.
Op. Cit. p.
47.
10
Regis Debray. Croire, Voir, Faire. Ed. Odile Jacob. París
1999. P. 193.
11
Ignacio Ramonet. Op. Cit. p. 109.
12
Régis Debray. Op. Cit. P. 200.
V-
O FUTURO PASSADO
“Queimar livros e erguer fortificações é tarefa comum dos
príncipes”, disse Jorge Luis Borges. E acrescenta que todo o príncipe
quer que a história comece a partir dele. Na era da globalização
fragmentada não se queimam livros (embora ergam-se fortificações),
eles apenas são substituídos. Mesmo desta maneira, mais que
suprimir a história, o príncipe neoliberal instrui seus
intelectuais para que a refaçam de maneira que o presente seja o
fim dos tempos.
“Os
Maquiadores da História”, assim Luis Hernández Navarro
intitulou um artigo dedicado ao debate com os intelectuais de
direita no México13.
Além de provocar o presente texto (escrito com a intenção de
dar seguimento às suas posições), Hernández Navarro adverte
sobre uma nova ofensiva: a nova direita intelectual dirige suas
baterias contra figuras representativas da intelectualidade
progressista mexicana.“Rentista tardia da tranqüilidade planetária
do “pensamento único”, renegada de sua identidade, herdeira
de papel passado da queda do muro de Berlim, sócia e emuladora do
circuito cultural conservador norte-americano, esta direita está
convencida de que a crítica cultural outorga credenciais
suficientes para emitir, sem argumentação, juízos sumários a
seus adversários no terreno político”.
As
razões não-ideológicas deste ataque devem ser buscadas na
disputa pelo espaço de credibilidade. No México os intelectuais
de esquerda têm grande influência na cultura e na universidade.
Estorvam, esse é o seu delito.
Ou
melhor, este é um de
seus delitos. Outro é o apoio destes intelectuais progressistas
à luta zapatista por uma paz justa e digna, pelo reconhecimento
dos direitos dos povos indígenas e pelo fim da guerra contra os
índios do país. Este pecado não é menor. "O levante
zapatista inaugura uma nova etapa, a do começo dos movimentos indígenas
como atores da oposição à globalização neoliberal"14.
Não somos os melhores nem os únicos : aí estão os indígenas
do Equador e do Chile, os protestos em Seattle e Washington (e os
que se sigam em ordem cronológica, não em importância) Mas
somos uma das imagens que distorcem a mega tela da globalização
fragmentada e, como fenômeno social e histórico, demandamos
reflexão e análise crítica.
E
a reflexão e a análise crítica não estão no
"arsenal" da direita intelectual. Como cantar as glórias
da nova ordem mundial (e sua imposição no México) se um grupo
de indígenas "pré-modernos" não apenas desafia o
poder, mas também conquista a simpatia de uma importante faixa
dos intelectuais ? Em conseqüência, o Príncipe ditou suas
ordens: “ataquem uns e outros, eu entro com o exército e os
meios de comunicação, vocês, com as idéias”. Assim a nova
direita intelectual dedicou zombarias e calúnias a seus pares da
esquerda. Aos indígenas rebeldes zapatistas, nos dedicou...uma
nova história.
E,
enquanto o zapatismo teve impacto internacional, a direita
intelectual, em várias partes do mundo (não apenas no México),
dedicou-se a esta tarefa. Os intelectuais de direita não apenas
maquiam a história, refazem-na, reescrevem-na à conveniência do
Príncipe e à maneira de sua função intelectual.
Mas
voltemos ao México. "Ao longo deste século, os intelectuais
no México têm desempenhado funções diversas: cortesãos
de luxo do poder de turno, decoração do Estado, vozes
dissidentes (que, para institucionalizar-se, são chamadas Consciências
Críticas), intérpretes privilegiados da história e da
sociedade, espetáculos em si mesmos”15.????A???u??¾/span>/font>
O
último grande intelectual de direita no México, Octavio Paz,
cumpriu cabalmente o trabalho encomendado pelo Príncipe. Não
economizou palavras para desprestigiar os zapatistas e quem
mostrasse simpatia por sua causa (atenção: não por sua forma de
luta). Uma das melhores mostras de Paz a serviço do Príncipe está
em seus textos e declarações do início de 1994. Ali, Octavio
Paz definia não o EZLN, mas sim os argumentos sobre os quais seus
soldados intelectuais deveriam se aprofundar: maoísmo,
messianismo, fundamentalismo, e alguns outros “ismos” mais que
agora escapam à memória. Frente aos intelectuais progressistas,
Paz não economizou acusações: eles eram responsáveis pelo
“clima de violência” que marcou o ano de 1994 (e todos os
anos do México moderno, mas a direita intelectual nunca brilhou
por sua memória histórica). Concretamente, pelo assassinato do
candidato oficial à presidência da Republica, Colosio. Anos
depois, antes de morrer, Paz retificaria e assinalaria que o
sistema estava em crise e que, mesmo sem o levante zapatista,
estes fatos ocorreriam de qualquer forma16.
E
esta ânsia de reescrever a história não é exclusiva do México.
Na tela da globalização, já nos é oferecida uma nova versão,
onde o Holocausto nazi contra os judeus foi uma espécie de
Disneylândia seletiva, Adolf Hitler é uma espécie de alegre
Mickey Mouse ariano e, mais recentemente, as guerras do Golfo Pérsico
e de Kosovo foram "humanitárias". No futuro passado que
nos prepara a direita intelectual, a globalização é o deus
ex machina que trabalha sobre o mundo para preparar seu próprio
advento.
Mas,
essas imagens cinzas que nos mostra agora a mega tela da globalização,
que futuro anunciam?
VI-
O LIBERAL FASCISTA
Eu
digo que este filme já foi visto antes, e se não nos lembramos
é porque a história não é um artigo atrativo no mercado
globalizado. Esses cinzas podem significar algo: a reaparição do
fascismo.
Paranóia?
Umberto Eco, em um texto chamado “O fascismo eterno”, de obra
já citada, dá algumas chaves para entender que o fascismo segue
latente na sociedade moderna e que, ainda que pouco provável que
se repitam os campos de extermínio nazistas, alguns lugares do
planeta assistem ao que se chama “Ur Fascismo”. Depois de
advertir que o fascismo era um totalitarismo fuzzy, ou
seja, disperso, difuso em todo o social, propõe algumas de suas
características: rejeição ao avanço do saber, irracionalismo,
a cultura é suspeita de fomentar atitudes críticas, o que não
está de acordo com o hegemônico é uma traição, medo da
diferença e racismo, surge da frustração individual ou social,
xenofobia, os inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e
fracos demais, a vida é uma guerra permanente, elitismo aristocrático,
sacrifício individual para o benefício da causa, machismo,
populismo qualitativo difundido pela televisão,
“neolinguagem” (de léxicos pobres e sintaxe elementar).
Todas
estas características podem ser encontradas nos valores que
defendem e difundem as mídias e os intelectuais de direita na era
visual, na era da globalização fragmentada. “Será que hoje,
assim como ontem, não se está usando o cansaço democrático, a
náusea diante do nada, o desconcerto perante a desordem como aval
para uma nova situação histórica de exceção que requer um
novo autoritarismo persuasivo, unificador da cidadania em clientes
e consumidores de um sistema, um mercado, uma repressão
centralizada?”, pergunta Manuel Vázquez Montalbán na obra já
citada.
Olhe
você para a mega tela, todos estes cinzas são a resposta à
desordem. É o que é necessário para enfrentar quem se nega a
desfrutar o mundo virtual da globalização e resiste. E, no
entanto, parece que o número de descontentes cresce. Um dos anões
mexicanos que aspiram a ocupar a cadeira deixada por Octavio Paz
constatava, terrificado, que em pesquisa feita no México em 1994,
pelo Instituto de Investigações Sociais da UNAM, 29% dos
entrevistados dizia que as leis não devem ser obedecidas se
injustas. Em novembro de 1999, para 49% das pessoas pesquisadas na
revista “Educación 2001”, a resposta à pergunta “pode o
povo desobedecer as leis se elas parecem injustas?” era sim.
Depois de reconhecer que é preciso resolver problemas de
crescimento econômico, educação, emprego e saúde, assinalava o
autor: “Todas estes coisas só podem ser alcançadas se a
sociedade está segura num piso mais básico, que é o da segurança
pública e do cumprimento da lei. Este piso está cheio de buracos
no México, e tende a piorar”17.
O raciocínio
é sintomático: na falta de legitimidade e consenso, polícia!
O
clamor da direita intelectual por “ordem e legalidade” não é
exclusividade do México. Na França, o fascista Le Pen está
disposto a responder ao chamado. Na Áustria, o neonazista Heider
já está pronto, assim como o franquista Aznar no Estado
Espanhol. Na Itália, Berlusconi (aliás, o “Duce Multimedia”)
e Gianfranco Fini se aprontam para o momento.
A
Europa comparece novamente ao balcão do fascismo? Soa duro...e
distante. Mas aí estão as imagens da mega tela. Estes skinheads
que mostram seus porretes na esquina: estão na Alemanha, na
Inglaterra, na Holanda? “São minoritários e estão sob
controle”, nos tranqüiliza o áudio da mega tela. Mas parece
que o fascismo renovado nem sempre tem a cabeça raspada e o corpo
tatuado com suásticas. Mesmo assim não deixa de ser uma direita
sinistra.
Se
digo “direita sinistra” pode parecer que jogo com as palavras
e recorro novamente a oxímoro, mas quero chamar atenção sobre
algo. Depois da queda do murro de Berlim, o espectro político
europeu, na sua maioria correu atropeladamente ao centro. Isso é
evidente na esquerda tradicional européia, mas também nos
partidos de direita18.
Com uma máscara moderna, a
direita fascista começa a conquistar espaço que já ultrapassa
muito as notas policiais na mídia. Isso só é possível porque
estão se esforçando para construir uma nova imagem, distante do
passado violento e autoritário.
Também
por estarem apropriando-se da teologia neoliberal com uma
facilidade espantosa (por algo será), e porque em suas campanhas
eleitorais estão insistindo muito em temas de segurança pública
e emprego (alertando contra a “ameaça” dos imigrantes).
Alguma diferença das propostas da social democracia ou da
esquerda tradicional?
O
fascismo espreita por trás da “terceira via” européia, e
também da esquerda que não se define (em teoria e prática)
contra o neoliberalismo. Às vezes, a direita pode vestir-se com
os trapos da esquerda. No México, no recente debate televisivo
entre os seis candidatos à presidência da República, o
candidato que obteve consenso da direita intelectual foi Gilberto
Rincón Gallardo, do Partido Democrata Social, aparentemente de
esquerda. Por acaso a televisão não mostrou que alguns dos
militantes e candidatos do PDS em Chiapas são líderes de vários
grupos paramilitares, responsáveis, entre outras coisas, pelo
massacre de Acteal.
Que
a direita fascista e a nova direita intelectual estejam prontas
para mostrar suas habilidades aos senhores do dinheiro não
surpreende. O desconcertante é que, algumas vezes, são a
social-democracia ou a esquerda institucional quem lhes prepara o
caminho.
Se
no Estado Espanhol, Felipe González (este político tão
aplaudido pela direita intelectual) trabalhou para a vitória do
direitista Partido Popular de José María Aznar, na Itália, o
caminho pelo qual a direita se dirige ao poder chama-se Massimo D´Alema.
Antes de renunciar, D´Alema fez todo o necessário para que a
esquerda naufragasse. “D´Alema e os seus financiaram com o
dinheiro de todos a educação religiosa e prepararam a privatização
da (educação) pública, participaram plenamente da aventura da
OTAN contra a Iugoslávia e da ocupação virtual da Albânia,
privatizaram o que puderam, atentaram contra os aposentados,
reprimiram os imigrantes, submeteram-se a Washington, reabilitaram
os corruptos e até mesmo a Bettino Craxi, em cuja residência no
exílio, como fugitivo da justiça, desfilaram para pedir-lhe
ajuda, redigiram uma lei sobre os carabineros ditada pelo
comando golpista dos mesmos...19”
Resultado? Boa parte do eleitorado de esquerda se absteve de
votar.
Talvez
esteja exagerando, mas “a memória é uma faculdade estranha.
Quanto mais intenso e isolado é o estímulo que a memória
recebe, mais lembra-se; quanto mais amplo, menos intensa é a
lembrança20”,
e eu suspeito que esta avalanche de imagens cinzas na tela é para
que lembremos com menos intensidade, com preguiça, desejando
esquecer.
E
se os livros não mentem (ver Umberto Eco, em obra citada), foi o
fascismo italiano que chamou muitos líderes liberais europeus
porque consideravam que estavam levando a cabo interessantes
reformas sociais, e poderiam ser uma alternativa à “ameaça
comunista”.
Em
agosto de 1997, Fausto Bertinotti, (secretario do Partido de
Refundação Comunista italiano), escreveu em uma carta ao EZLN:
“Está aberta, na Europa, uma verdadeira crise de civilização.
Poderíamos, infelizmente, narrar centenas, milhares de episódios
de barbárie cotidiana, de violência gratuita, de agressão a
pessoas, ao corpo, de tráfico de pessoas, de corpos, de órgãos,
sem nenhum sentido. E acima de tudo, com uma grossa capa de
indiferença, como se a vida tivesse perdido o sentido. Poderia
contar coisas que acontecem na periferia urbana, realidade e metáfora
da tragédia humana em que se transformou este novo ciclo de
desenvolvimento capitalista”.
Diante
desta vida sem sentido, o liberal fascista oferece sua cara amável
e argumenta, ressaltando suas bondades, em favor do recurso à
violência legalizada, institucional.
O
horizonte anuncia a tempestade, e a direita intelectual trata de
nos tranqüilizar dizendo que não é mais que uma chuva, sem
importância. Tudo para garantir o pão, o sal...e seu lugar junto
ao Príncipe. Protegei-o! Não importa que sua camisa seja cinza e
em seu aconchegante seio se cultive o ovo da serpente.
“O
ovo da serpente”. Sim, se não me engano, é o título de um
filme de Bergman que descreve o ambiente em que se gestou o
fascismo. E o que fazer? Continuarmos sentados até que termine o
filme? Sim? Não? Um momento! Muitos já levantaram de seus
lugares e fazem alvoroço! O
burburinho aumenta! Alguns atiram objetos na tela e vaiam! Em vez
de dirigir-se à tela, vão para cima! Como se quisessem encontrar
o projetor do filme! E parece que o encontraram pois apontam
insistentemente para um lugar lá no alto! Quem são essas pessoas
e com que direito interrompem
a projeção? Uma delas levanta uma faixa que diz: “Tomemos então,
nós, cidadãos comuns, a palavra e a iniciativa. Com a mesma veemência
e a mesma força com que reivindicamos nossos direitos,
reivindiquemos também o dever de nossos deveres.21”
O dever de nossos deveres? Que alguém explique porque não
entendemos nada! Silêncio! Alguém toma a palavra...
VII-
A CÉTICA ESPERANÇA
Os
intelectuais progressistas. Os
de esperança cética. O
sociólogo francês Alain Touraine propõe uma classificação
deles22:
o mais clássico é o intelectual que denuncia, onde toda a atenção
concentra-se sobre a crítica ao sistema dominante; o segundo tipo
identifica-se com tal luta ou tal força de oposição e torna-se
seu intelectual orgânico; o terceiro crê na existência, na
consciência e na eficácia dos atores, ao mesmo tempo em que
conhece seus limites; o quarto são os utópicos: identificam-se
com as novas tendências culturais, da sociedade ou da existência
pessoal. Todos eles
(e elas, pois ser intelectual não é privilégio masculino)
empenham seus esforços em entender, criticamente, a sociedade,
sua história e seu presente, e tratam de desentranhar a incógnita
de seu futuro.
Não
é nada fácil a vida dos pensadores progressistas.Em sua função
intelectual dão-se conta de como vão as coisas e, noblesse
oblige, devem revelá-lo, exibi-lo, denunciá-lo, comunicá-lo.
Mas para fazê-lo, precisam enfrentar a teologia neoliberal da
direita intelectual, e por trás dela estão a mídia, os bancos,
as grandes corporações, os Estados (ou o que resta deles), os
governos, os exércitos, as forças policiais.
E
devem fazê-lo, além disso, na era visual. Aqui estão em franca
desvantagem, pois é preciso levar em conta as grandes
dificuldades em que implica enfrentar o poder da imagem unicamente
com o recuso da palavra. Mas seu ceticismo frente às aparências
já lhes permitiu descobrir a trama. E com o mesmo ceticismo
estruturam suas análises críticas para desestruturar
conceitualmente a máquina das belezas virtuais e as misérias
reais. Há esperança?
Fazer
da palavra um bisturi e megafone é um desafio descomunal. E não
apenas porque nesta época o reino é o da imagem. Também porque
o despotismo da era visual confinou a palavra nos bordéis e nas
barracas de truques e trampas. “Ainda assim, só podemos
confessar nossa confusão e nossa impotência, nossa ira e nossas
opiniões, com palavras. Com palavras, nomeamos ainda nossas
perdas e nossas resistências porque não temos outro recurso,
porque os homens estão inevitavelmente abertos à palavra e
porque pouco a pouco são elas que moldam nosso julgamento. Nosso
julgamento, temido amiúde pelos detentores do poder, molda-se
lentamente, como o leito de um rio, por meio de correntes de
palavras. Mas as palavras só formam correntes quando elas são
profundamente críveis”23.
O
intelectual progressista se debate continuamente entre Narciso e
Prometeu. Às vezes, a imagem no espelho o engana e começa seu
inexorável caminho de transmutação num empregado a mais do mega
mercado neoliberal. Mas às vezes ele quebra o espelho e descobre
não apenas a realidade que está por trás do reflexo, mas também
outros que não são como ele mas que, como ele, estão quebrando
seus respectivos espelhos.
Contam
que Michelangelo Buonarroti realizou seu “David” com sérias
limitações materiais.“O pedaço de mármore sobre o qual
esculpiu já havia sido trabalhado por outra pessoa, já tinha
perfurações. O talento
do escultor consistiu em fazer uma figura que se ajustasse a estes
limites intransponíveis e tão restritos, daí a postura, a
inclinação da peça final”25.
Da
mesma maneira, o mundo que queremos transformar já foi trabalhado
antes pela história e tem muitas perfurações. Devemos encontrar
o talento necessário para, a partir destes limites, transformá-lo
e fazer uma figura simples e sincera: um mundo novo.
Das
montanhas do sudeste mexicano.
Subcomandante
Insurgente Marcos
México,
abril de 2000.
PS:
Alguém tem um martelo à mão?
(Tradução:
Wil
13
“Ojarasca”, en La Jornada, 10 abril de 2000
14
Ivon Le Bot. “Los indígenas contra el neoliberalismo”, en
La Jornada, 6 março 2000
15
Carlos Monsiváis. “Intelectuales Mexicanos de fin de
siglo” Viento del Sur 8. 1996. P. 43.
16
Braulio Peralta. Op. Cit.
17
Héctor Aguilar Camín. “Leyes y Crímenes”. En
“Esquina”. Proceso 1225, 23 de abril de 2000.
18
Ver Emiliano Fruta, “La nueva derecha europea”, y Hernán
R. Moheno, “Más allá de la vieja izquierda y la nueva
derecha.”, em Urbi et Orbi. ITAM. Abril 2000)
19
Guillermo Almeyra.
“La izquierda de la derecha” En La Jornada. 23
de abril de 2000
20
John Berger. Op. Cit. P.234.
21
José Saramago. Discursos
de Estocolmo.
Ed. Alfaguara.
22
Comment sortir du libéralisme? Ed. Fayard. París,
1999.
23
John Berger. Op. Cit. P. 255.
24
Alain Touraine. Op. Cit. P. 15.
25
Pablo Fernández Christlieb. La afectividad colectiva. Ed. Taurus. P. 164-165.
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