Um pesadelo familiar demais
Susan George publica na França um
livro de ficção aterrador. Em 2010, um grupo de consultores dos
governos e transnacionais mais poderosos do planeta planeja
eliminar 100 milhões de habitantes ao ano, para ampliar a
racionalidade da economia global. Tudo será feito sem escândalo:
através de fomes, desmonte dos serviços públicos, guerras
tribais, ajustes fiscais...
Ceci Vieira Juruá*
Comemoradas
durante a queda do muro de Berlin, a vitória da globalização
“inevitável” e a afirmação de poder da potência hegemônica
desde o fim da II Guerra são, na virada do milênio e do século,
uma ameaça de barbárie e apartheid cada vez mais grave.
Quem tiver dúvidas deve ler O Relatório Lugano, lançado
há meses, na França pela economista e cientista política Susan
George, uma das participantes destacadas do Fórum Social Mundial.
Trata-se
de uma obra apavorante – mas ao mesmo tempo mobilizadora – de
ficção política. Por volta de 2010, as empresas transnacionais
e os governos mais poderosos encarregam um grupo de consultores de
examinar os entraves ao avanço da economia global. O Relatório
Lugano é o documento que registra as conclusões do grupo.
Em
sua primeira parte, ele constata, com certo alarme, que as condições
para manter e perenizar o sistema liberal de poder e de dominação
não são muito favoráveis: os riscos são muito grandes, as ameaças
surgem de todos os lados: desigualdade crescente entre pessoas e entre países e regiões,
crescimento inevitável da massa de desempregados e de excluídos
– os perdedores --, limites da produção mundial de alimentos
etc. Cada um desses pontos é estudado na sua origem, no seu
detalhe, nas suas conseqüências. Uma conclusão se destaca: o
desenvolvimento capitalista equilibrado e auto-sustentado não será
possível se for mantido o crescimento, ainda que muito modesto,
da população. Para manter as promessas e ilusões acerca do
capitalismo liberal, é imprescindível reduzir drasticamente o número
de habitantes do planeta.
Os “neutros” que matam e os
genocídios invisíveis
A
segunda parte do relatório é dedicada à análise das condições
e do leque de procedimentos que podem ser adotados a fim de
restabeler o equilíbrio – necessário – entre os recursos
naturais do planeta e a quantidade de gente que o habita.
Como de praxe entre os economistas, é necessário fixar
uma meta ideal, uma população “ótima”.
Segundo os autores do relatório esse número deveria
situar-se em torno de 4 bilhões de habitantes, próximo à população
mundial de 1975. Tecnicamente, a realização dessa meta irá
exigir a capacidade de reduzir a população, a cada ano, em 100
milhões de habitantes -- de forma a chegar ao “número ótimo”
na década vindoura de 2020. Fica claro que os autores não defendem esse ponto de
vista: como bons profissionais eles são “neutros” com relação
às alternativas. Cabe-lhes apenas realizar a tarefa para a qual
foram muito bem pagos: analisar as condições efetivas de manutenção
do sistema liberal de poder e desenvolver um leque de possíveis
opções compatíveis com as leis do mercado...
Esta
segunda parte do Relatório é de leitura cruel e dolorosa.
Afinal, trata-se ali da morte de 1/3 da humanidade. No entanto os
autores procuram atenuar as emoções negativas. Explicam que não
haverá genocídio, extermínio em massa de grupos identificados
por critérios étnicos, religiosos ou outros. Afinal, isso já
foi tentado, e os resultados não foram bons nem duradouros.
Não deverá haver responsáveis nem culpados. Será um
evento sem agentes, de forma a preservar os princípios seculares
da tradição humanista. Os autores delineiam alternativas de redução
populacional que possam ser vistas como parte “da ordem natural
das coisas”, como as guerras entre facções, a luta por
recursos finitos, a incapacidade genética de uma grande parcela
dos homens, a teimosia dos pobres em reproduzir-se além dos
recursos de que eles dispõem etc.
Afinal de contas, já houve quem dissesse que “o homem é
o lobo do próprio homem”.
Lamentando o individualismo e os
Direitos do Homem
Muito
elucidativos são os capítulos que tratam das bases que deverão
sustentar esse projeto sem autores. Princípios ideológicos e éticos,
políticos, econômicos e até psicológicos são minuciosamente
expostos. Lamenta-se,
de certa forma, a primazia do indivíduo sobre a sociedade – a
ideologia individualista – associada historicamente à Declaração
dos Direitos do Homem (cujos princípios teriam deixado perplexos
pensadores da estatura de Platão, Aristóteles e Tertuliano,
afirmam os autores do Relatório...). Estas idéias
funcionam como um obstáculo ao reconhecimento de que a morte de
alguns poderá ser benéfica para o conjunto.
Seria mais fácil se a humanidade dispusesse de uma
ideologia capaz de aceitar, como os espartanos, procedimentos
sociais de purificação da espécie humana. Que fazer com a ética
atual, que não permite que nos insurjamos contra a proliferação
e a reprodução de pessoas analfabetas, incapazes de ganhar a
vida, supérfluas, degeneradas?
Decididamente,
o desenvolvimento auto-sustentado requer um corpo de legionários
ideológicos, renovadores, pós-modernos. Se preciso for, que se
tire do baú e sacuda a poeira de obras de alguns grandes
pensadores (por exemplo: Platão, Darwin, Hobbes, Malthus,
Nietzsche, Hayek, Nozick).
Simples ficção ou ameaça
concreta?
Construída
de modo muito hábil, a ficção de George procura despertar o
leitor para uma constatação terrível. As bases econômicas de
um desenvolvimento sustentado, do ponto de vista liberal, já estão
explícitas nos programas de ajuste estrutural montados pelo FMI e
Banco Mundial. Neles estão contidos alguns princípios racionais
que já contribuem com sucesso para esta “salvação da
humanidade”, pois já propiciaram reduções nas taxas de
crescimento demográfico, já conduziram ao endividamento do mundo
periférico (o que facilita a adoção das medidas preconizadas
pelo Fundo), já orientaram a produção agrícola dos países
pobres para a exportação segundo o modelo de crescimento para
fora (e isso é bom, porque reduz a disponibilidade alimentar
nesses países, com efeitos malthusianos positivos). Esses
programas também podem estimular a prostituição entre mulheres,
facilitando a transmissão da AIDS e ainda, ao reduzir os gastos
sociais, deprimem as condições de higiene e de saúde pública,
facilitando a ação de doenças como a malária. Os baixos salários
funcionam também de forma positiva, pois dificultam a compra de
remédios. As privatizações dos serviços públicos funcionam
também como um racionamento de serviços essenciais à qualidade
de vida. São
certamente medidas bastante eficazes, do ponto de vista do
capitalismo...
No
entanto, práticas econômicas como as enunciadas acima requerem
instituições políticas competentes. É hora de se pensar em
instituições supranacionais, reforçando algumas organizações
que já desempenham funções universais: OMC, AMI, FMI, etc. Os
autores do Relatório, que se colocam explicitamente como a
serviço daqueles que lhes pagam -- e pagam muito bem, vale
repetir -- não manifestam preferência por um sistema específico
de governo mundial. Enfatizam no entanto a necessidade de
preservar a fragilidade dos Estados nacionais, restritos a funções
de segurança interna e de (in)justiça.
Afinal de contas, “é o mercado mundial que deve
permanecer como o grande princípio organizador da sociedade”.
Seus principais coadjuvantes devem ser as instituições
internacionais, as grandes empresas multinacionais, e os governos
dos países responsáveis.
“Salvem-se os melhores”
No
front psicológico, é necessário ganhar corações e
mentes. Instrumento útil poderá ser a “política das
identidades” que prioriza as afinidades étnicas, sexuais,
religiosas, lingüísticas e outras, em prejuízo do sentimento de
pátria e de cidadania. Se o capital, e os capitalistas quiserem
efetivamente preservar o atual sistema social, “é preciso lutar
ativamente, por toda parte, contra a noção de cidadania”.
Presidente
do Observatório da Mundialização, e vice-presidente do ATTAC na
França, Susan George escreveu um brado emocionante de alerta
contra o capitalismo selvagem. Seu texto soa como o eco daquele
que fez tremer os capitalistas do mundo inteiro: revolucionários
do mundo, uni-vos! Instiga uma leitura emocionada e racional, em aparente
paradoxo. Ajuda a entender que as políticas públicas adotadas não
são absurdas, sem nexo, nem irresponsáveis. Elas são
absolutamente consistentes com um tipo de desenvolvimento
sustentado e excludente. Se
não há lugar para todos, salvem-se os melhores.
Como diz Susan George, trata-se, para os poderosos, de uma
“escolha entre o fim ou os fins”
Não
se trata, é claro, de uma conspiração imperialista.
Prefiro utilizar a expressão proposta por Luiz Gonzaga
Belluzo: trata-se de um consenso dos homens de negócio.
E o Relatório Lugano expõe, explicitamente, a lógica
desse consenso !
*
Ceci Vieira Juruá é
economista, integrante do Conselho
Regional de Economia do Rio de Janeiro (Corecon) e do ATTAC-RIO
REFERÊNCIA:
O
relatório Lugano,
de Susan George. Editora Fayard, Paris, 2000
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