MUNDO
NORTE-AMERICANO
A
nova bíblia de Tio Sam
Os
efeitos da nova vulgata são tão poderosos e perniciosos que ela
é veiculada não apenas pelos partidários do neoliberalismo, mas
por produtores culturais e militantes de esquerda que, em sua
maioria, ainda se consideram progressistas.
Pierre
Bourdieu e Loïc Wacquant*
Em todos os
países avançados, patrões, altos funcionários internacionais,
intelectuais de projeção na mídia e jornalistas de primeiro
escalão, se puseram de acordo em falar uma estranha novilíngua
cujo vocabulário, aparentemente sem origem, está em todas as
bocas: "globalização", "flexibilidade";
"governabilidade" e "empregabilidade"; "underclass"e
"exclusão"; "nova economia" e
"tolerância zero"; "comunitarismo (2)",
"multiculturalismo" e seus primos
"pós-modernos", "etnicidade", "minoridade",
"identidade", "fragmentação" etc.
A difusão
dessa nova vulgata planetária -- da qual estão notavelmente
ausentes capitalismo, classe, exploração, dominação,
desigualdade, e tantos vocábulos decisivamente revogados sob o
pretexto de obsolescência ou de presumida impertinência -- é
produto de um imperialismo apropriadamente simbólico: seus
efeitos são tão mais poderosos e perniciosos porque ele é
veiculado não apenas pelos partidários da revolução neoliberal
-- que, sob a capa da "modernização", entende
reconstruir o mundo fazendo tábula rasa das conquistas sociais e
econômicas resultantes de cem anos de lutas sociais, descritas, a
partir dos novos tempos, como arcaísmos e obstáculos à nova
ordem nascente, -- porém também por produtores culturais
(pesquisadores, escritores, artistas) e militantes de esquerda
que, em sua maioria, ainda se consideram progressistas.
Imperialismo
cultural
Como as
dominações de gênero e etnia, o imperialismo cultural é uma
violência simbólica que se apóia numa relação de
comunicação coercitiva para extorquir a submissão e cuja
particularidade consiste, nesse caso, no fato de universalizar
particularismos vinculados a uma experiência histórica singular,
ao fazer com que sejam desconhecidos, enquanto tal, e reconhecidos
como universais. (3)
Assim, também
no século XIX muitas questões ditas filosóficas que eram
debatidas em toda a Europa, como o tema spengleriano da
"decadência", originavam-se de particularidades e
conflitos históricos próprios do universo específico dos
universitários alemães, (4) da mesma forma que hoje, inúmeros
tópicos provenientes de confrontos intelectuais ligados a
particularidades e particularismos da sociedade e das
universidades norte-americanas se
impuseram, aparentemente fora de um contexto histórico, ao
conjunto do planeta.
Definições e
deduções. Esses lugares-comuns, no sentido aristotélico de
noções ou teses que servem de argumento porém sobre as quais
não se argumenta, devem o essencial de sua força de convicção
ao prestígio do seu ponto de partida e ao fato de que, ao
circularem continuamente de Berlim a Buenos Aires e de Londres a
Lisboa, estão presentes simultaneamente em toda parte e são
potentemente transmitidos por essas instâncias supostamente
neutras do pensamento neutro que são os grandes organismos
internacionais. Instâncias como o Banco Mundial, a Comissão
Européia, a Organização de Cooperação e de Desenvolvimento
Econômicos (OCDE), enfim, os "bancos de idéias" do
pensamento conservador (o Manhattan Institute, em Nova York, o
Adam Smith Institute,em Londres, a ex-Fondation Saint-Simon, em
Paris, a Deutsche Bank Fundation, em Frankfurt), as fundações de
filantropia, as escolas do poder (Science-Politique, na França, a
London School of Economics, na Inglaterra, a Harvard Kennedy
School of Government, nos Estados Unidos etc) e os grandes meios
de comunicação, divulgadores infatigáveis dessa língua geral,
sem fronteiras, perfeita para dar a ilusão de ultra-modernismo
aos editorialistas apressados e especialistas ciosos da
importação-exportação cultural.
Além do
efeito automático da circulação internacional de idéias que,
por sua própria lógica, tende a ocultar as condições e os
significados originais, (5) o jogo das definições prévias e
deduções escolásticas substitui a contingência das
necessidades sociológicas negadas pela aparência da necessidade
lógica e tende a ocultar as raízes históricas de todo um
conjunto de questões e de noções: a "eficácia" do
mercado (livre), a necessidade de reconhecimento das
"identidades" (culturais), ou ainda a
reafirmação-celebração da "responsabilidade"
(individual), que serão decretadas filosóficas, sociológicas,
econômicas ou políticas, segundo o lugar e o momento de
recepção.
A
mitologia do "sonho americano"
Planetarizados,
globalizados, no sentido estritamente geográfico, e ao mesmo
tempo desparticularizados, esses lugares-comuns, ao serem
ruminados pelos meios de comunicação transformam-se num senso
comum universal, fazendo esquecer que, na maioria das vezes, eles
apenas exprimem -- de forma truncada e irreconhecível, até por
aqueles que os propagam -- realidades complexas e contestadas de
uma sociedade histórica particular, tacitamente constituída em
modelo e em medida de todas as coisas: a sociedade norte-americana
da era pós-fordista e pós- keynesiana. Esse único super-poder,
essa Meca simbólica da Terra, caracteriza-se pelo desmantelamento
deliberado do Estado social e pelo hipercrescimento correlativo do
Estado penal, o esmagamento do movimento sindical e a ditadura da
concepção de empresa fundada apenas no
"valor-acionário", assim como em suas conseqüências
sociológicas: a generalização dos salários precários e da
insegurança social, transformada em motor privilegiado da
atividade econômica.
É o que
ocorre, por exemplo, com o debate vago e fraco em torno do "multiculturalismo",
termo importado, na Europa, para designar o pluralismo cultural na
esfera cívica, enquanto nos Estados Unidos se refere, no interior
do próprio movimento pelo qual ele os mascara, à exclusão
contínua dos negros e à mitologia nacional do "sonho
americano" da "oportunidade para todos",
correlativa da falência que afeta o sistema do ensino público
num momento em que a competição pelo capital cultural se
intensifica e quando as desigualdades de classe crescem
vertiginosamente.
O
desengajamento do Estado
O adjetivo
"multicultural" encobre essa crise ao confiná-la,
artificialmente, apenas no microcosmo universitário e ao
expressá-la num registro ostensivamente "étnico",
quando seu verdadeiro desafio não é o reconhecimento das
culturas marginalizadas pelos cânones acadêmicos, mas o acesso
aos instrumentos de (re)produção das classes médias e
superiores, como a universidade, num contexto de desengajamento
ativo e massivo do Estado.
O "multiculturalismo"
americano não é nem um conceito nem uma teoria, nem um movimento
social ou político -- ainda que pretenda ser tudo isso ao mesmo
tempo. É um discurso-tela cujo estatuto intelectual resulta de um
gigantesco efeito de allodoxia nacional e internacional (6) que
engana tanto aqueles que estão nele como os que não estão.
Além do que é um discurso norte-americano, embora pense e se
apresente como universal, ao exprimir as contradições
específicas da situação de universitários que, alijados de
qualquer acesso à esfera pública e submetidos a uma forte
diferenciação em seu meio profissional, não têm outro terreno
onde investir sua libido política exceto o das disputas de campus
disfarçadas em epopéias conceituais.
As
delícias do "reconhecimento cultural"
O que
significa que o "multiculturalismo" leva consigo para
onde é exportado três vícios do pensamento nacional
norte-americano que são, (a) o "grupismo", que reifica
as divisões sociais, canonizadas pela burocracia estatal, em
princípios de conhecimento e de reivindicação política; (b) o
populismo, que toma o lugar da análise das estruturas e dos
mecanismos de dominação pela celebração da cultura dos
dominados e de seu "ponto de vista" -- alçado a nível
de proto-teoria em ato; (c) o moralismo, que é obstáculo à
aplicação de um materialismo racional sadio na análise do mundo
social e econômico e nos condena a um debate sem efeito nem fim
sobre o necessário "reconhecimento das identidades"
enquanto, na triste realidade do cotidiano, o problema não se
situa de forma alguma nesse nível. (7) Enquanto os filósofos se
deliciam doutamente com o "reconhecimento cultural",
dezenas de milhares de crianças de classes e etnias dominadas
são excluídas das escolas primárias por falta de vagas (eram
25.000 só este ano, na cidade de Los Angeles), e um jovem em dez
provenientes de famílias que ganham menos de 15.000 dólares
anuais tem acesso aos campi universitários, contra 94% das
crianças de famílias que dispõem de mais de 100 000 dólares.
Poder-se-ia
fazer a mesma demonstração a propósito da noção fortemente
polissêmica de "globalização", que tem como efeito,
se não como função, vestir de ecumenismo cultural ou de
fatalismo economista os efeitos do imperialismo norte-americano e
de fazer aparecer uma relação de força transnacional como uma
necessidade natural. Ao término de um retorno simbólico baseado
na naturalização dos esquemas do pensamento neoliberal cuja
dominação se impõe há vinte anos graças ao trabalho dos think
tanks (bancos de idéias) conservadores e de seus aliados nos
campos político e jornalístico, (8) a remodelagem das relações
sociais e das práticas culturais conforme o padrão
norte-americano, imposta às sociedades avançadas através da
pauperização do Estado, mercantilização dos bens públicos e
generalização da insegurança salarial, é aceita com
resignação como resultado obrigatório das evoluções
nacionais, quando não é celebrada com entusiasmo de
carneirinhos. A análise empírica da evolução das economias
avançadas de longa duração sugere no entanto que a
"globalização" não é uma nova fase do capitalismo,
mas uma "retórica" invocada pelos governos para
justificar sua submissão voluntária aos mercados financeiros. A
desindustrialização, o crescimento das desigualdades e a
contradição das políticas sociais, longe de serem a
conseqüência fatal do crescimento das trocas externas, como
sempre se diz, resultam de decisões de política interna que
refletem a mudança das relações de classe em favor dos
proprietários do capital. (9)
A
reformatação do mundo
Ao
imporem ao resto do mundo categorias de percepção homólogas às
suas estruturas sociais, os Estados Unidos reformatam o mundo à
sua imagem: a colonização mental operada através da difusão
desses verdadeiros-falsos conceitos só pode conduzir a uma
espécie de "Consenso de Washington" generalizado, e
até espontâneo, como se pode observar correntemente em matéria
de economia, de filantropia ou de ensino de gestão (leia o artigo
de Ibrahim Warde nesta edição). Efetivamente, esse discurso
duplo fundamentado na crença que imita a ciência, sobrepondo ao
fantasma social do dominante a aparência da razão (especialmente
econômica e politológica), é dotado do poder de realizar
realidades que pretende descrever segundo o princípio da profecia
auto-realizadora: presente nos espíritos daqueles que tomam
decisões políticas ou econômicas e de seus públicos, ele serve
de instrumento de construção de políticas públicas e privadas,
ao mesmo tempo que é instrumento de avaliação dessas
políticas. Como todas as mitologias da idade da ciência, a nova
vulgata planetária apóia-se numa série de oposições e
equivalências, que se sustentam e contrapõem, para descrever as
transformações contemporâneas das sociedades avançadas:
desengajamento econômico do Estado e ênfase em seus componentes
policiais e penais, desregulação dos fluxos financeiros e
desorganização do mercado de trabalho, redução das proteções
sociais e celebração moralizadora da "responsabilidade
individual":
MERCADO
ESTADO
liberdade
coerção
aberto
fechado
flexível
rígido
dinâmico,
móvel
imóvel, paralisado
futuro,
novidade
passado, ultrapassado
crescimento
imobilismo, arcaísmo
indivíduo,
individualismo
grupo, coletivismo
diversidade,
autenticidade
uniformidade, artificialidade
democrático
autocrático ("totalitário")
O imperialismo
da razão neoliberal encontra sua realização intelectual em duas
novas figuras
exemplares da produção cultural. Primeiramente o especialista
que prepara, na sombra dos bastidores ministeriais ou patronais ou
no segredo dos think tanks (bancos de idéias), documentos de
forte cunho técnico, e tanto quanto possível construídos em
linguagem econômica e matemática. Em seguida, o conselheiro em
comunicação do príncipe, trânsfuga do mundo universitário
agora a serviço dos dominantes, cujo serviço é dar forma
acadêmica aos projetos políticos da nova nobreza de Estado e da
empresa. O modelo planetário e inconteste é o sociólogo
britânico Anthony Giddens, professor da Universidade de
Cambridge, agora à testa da London School of Economics e pai da
"teoria da estruturação", síntese escolástica de
diversas tradições sociológicas e ilosóficas.
Um
cavalo de Tróia de duas cabeças
E pode-se
perceber a encarnação por excelência do estratagema da razão
imperialista no fato de que é a Grã-Bretanha, posta por razões
históricas, culturais e lingüísticas em posição
intermediária, neutra, entre os Estados Unidos e a Europa
continental, que fornece ao mundo esse cavalo de Tróia de duas
cabeças -- uma política e a outra intelectual -- na pessoa dual
de Anthony Blair e Anthony Giddens, "teórico"
autoproclamado da "terceira via", que, segundo suas
próprias palavras, que são citadas textualmente, "adoto uma
atitude positiva em relação à globalização"; "tento
[sic] reagir às novas formas de desigualdades"; porém logo
adverte que "os pobres de hoje não são semelhantes aos de
outrora, (...) assim como os ricos não se parecem mais com o que
eram antigamente"; "aceito a idéia de que os sistemas
de proteção social existentes, e a estrutura do conjunto do
Estado, são a fonte dos problemas, e não apenas a solução para
resolvê-los"; "enfatizo o fato que as políticas
econômicas e sociais estão relacionadas" para afirmar
melhor que "as despesas sociais
devem ser
avaliadas em termos de suas conseqüências para a economia em seu
conjunto"; e, finalmente, "preocupo-me com os mecanismos
de exclusão" que descobre "na base da sociedade, mas
também no topo [sic]", convencido que "redefinir a
desigualdade em relação à exclusão nesses dois níveis"
é "conforme a uma concepção dinâmica da
desigualdade". (10)
Os mestres da
economia podem dormir tranqüilos: eles encontraram seu Pangloss.
(11)
*
Pierre Bourdieu e Loïc Wacquant,
são sociólogos e professores,
respectivamente
no Collège de France e na Universidade de Berkeley,
na Califórnia.
(1)
Referência a "1984", de George Orwell. Designa o uso de
termos que desconsideram o vocabulário corrente e produzem termos
que tornam hermética a compreensão do fenômeno relatado. Isso
se dá na esfera política e filosófica.
(2)
Comunitarismo é um conceito teorizado por Charles Taylor, Michael
Walzer, Alasdair McIntyre. Valoriza a comunidade como um bem em
si, assim como a igualdade e a liberdade, sendo o espaço no qual
os indivíduos podem se exprimir, partilhar valores. Seus
críticos vêem nesse conceito a teorização dos guetos.
(3)
É bom deixar claro de saída não detêm o monopólio na
pretensão ao universal. Vários outros países -- a França, a
Grã-Bretanha, a Alemanha, a Espanha, o Japão, a Rússia --
exerceram, ou tentam ainda exercer, em seus círculos de
influência, formas de imperialismo cultural bastante semelhantes.
A grande diferença é que, pela primeira vez na história, um
único país encontra-se em posição de impor o seu ponto de
vista ao mundo inteiro.
(4)
Cf. Fritz Ringer, The Decline of the Mandarins, ed. Cambridge
University Press, Cambridge, 1969.
(5)
Ler, de Pierre Bourdieu, "Les conditions sociales de la
circulation internationale des idées", Romanistische
Zeitschrift für Literaturgeschichte, 14 -1/2, Heidelberg, 1990,
p. 1-10.
(6)
Allodoxia: o fato de tomar uma coisa por outra.
(7)
Assim como a globalização das trocas materiais e simbólicas, a
diversidade das culturas não data do século atual, já que ela
é co-extensiva à história da humanidade, como já haviam
observado Émile Dürkheim e Marcel Mauss em sua "Note sur la
notion de civilisation" (Année sociologique nº 12, 1913, p.
46-50, III vol., Éditions de Minuit, Paris, 1968).
(8)
Ler, de Keith Dixon, Les Évangelistes du marché, Raisons
d'agir Éditions, Paris, 1998.
(9)
Com relação à "globalização" como "projeto
norte-americano" visando a impor o conceito de
"valor-acionário" da empresa, ler, de Neil Fligstein,
"Rhétorique et realités de la "mondialisation", Actes
de la recherche en sciences sociales, Paris, nº 119, setembro
de 1997, p. 36-47.
(10)
Estes trechos foram retirados do catálogo de definições
escolares de suas teorias e opiniões políticas que Anthony
Giddens propôs ao programa "FAQs (Frequently Asked Questions)",
em seu site na Internet.
(11)
N. de. T.: Personagem do livro Cândido, o otimista, de
Voltaire, filósofo que provava que tudo tem uma finalidade, que
é necessariamente a melhor das finalidades. Seu refrão era: tudo
é o melhor, no melhor dos mundos possíveis.
(Traduzido
por Teresa Van Acker)
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