BRASIL
E ARGENTINA
“Eu
sou você amanhã”
Que
não haja ilusões: o Brasil é tão vulnerável como a Argentina
a uma crise cambial. Lá e aqui, a causa é a política econômica
escrava do pagamento da dívida; e a saída seria um novo
paradigma de desenvolvimento, articulado entre os dois países e
voltado para seu futuro e o de todo o Cone Sul
Marcos
Arruda*
“A
Argentina privatiza suas águas e seu ar, e oferece pedaços do
seu território nacional aos credores, a fim de preservar sua
credibilidade junto aos investidores internacionais e garantir a
continuidade dos fluxos financeiros do exterior.”
Esta
manchete é o que se chama uma ficção política. Mas não está
longe de tornar-se realidade. Dez anos fatídicos de governo Menem
liquidaram o patrimônio do setor público argentino. No primeiro
semestre de 2000, logo no início do governo de um outro Fernando,
– o De la Rúa – , a Argentina estremeceu diante do risco de
uma saída maciça de capitais estrangeiros do país. De la Rúa
havia recebido como herança de Menem um déficit fiscal de US$ 8
bilhões e um PIB 3% inferior ao de 1998.
Não
podendo desvalorizar o peso, que já está desfigurado pela sua
paridade artificial com o dólar, e não tendo mais patrimônio
estatal para entregar à ganância estrangeira, restou ao novo
governo criar um pacote devastador para os direitos duramente
conquistados pelos trabalhadores argentinos. Tratava-se de
aumentar a fatia do bolo da renda nacional que vai para o capital
0 (sobretudo estrangeiro), tirando mais um pouco da fatia que
corresponde à classe trabalhadora. Foi o primeiro momento em que
o povo argentino, logo após eleger De la Rúa, sentiu vontade de
mandá-lo “para la rua”.
Cortar
salários, para pagar juros
Os
planos dos dois governos Menem e do FMI não fizeram mais que
adiar a crise. Em abril de 1991, o ministro Domingo Cavallo
implementou o plano de convertibilidade. Adotou o sistema de
câmbio fixo, atando o peso ao dólar e garantindo a paridade de
um para um. A inflação despencou mas o país iniciou um processo
de subordinação monetária e ficou sem cacife para exportar. A
economia não progrediu. A crise de 1994 no México abalou a
aparente estabilidade (como no Brasil). O Governo reduziu o
salário do funcionalismo entre 10-20% e o PIB caiu 4,4%. Em 1997,
a recessão acentuou-se com a crise asiática, e agravou-se ainda
mais com a crise russa de agosto de 1998. O Brasil seguiu trilha
semelhante, com um pequeno retardamento devido ao tamanho da sua
economia. A crise brasileira de janeiro de 1999 sacudiu fortemente
a economia argentina, gerando nova crise da sua balança comercial
e acelerando a crise. Em dezembro de 1999, a Argentina apresentava
taxa oficial de desemprego acima de 14%. Em maio de 2000 o Governo
De la Rúa lança0 novo pacote reduzindo o salário de 140 mil
trabalhadores, a pretexto de “economizar” US$ 938 milhões.
Eufemismo para encobrir a verdadeira razão do arrocho salarial:
liberar parcela maior do orçamento federal para o pagamento das
dívidas.
Outro
pacote foi anunciado no início de outubro para reduzir impostos e
reativar a economia, em recessão há 2 anos de meio. Nenhum
efeito. Em 4 de novembro um terremoto abalou o mundo político e
financeiro argentino. O epicentro foi o ex-presidente do Partido
Radical (“radical”, neste caso, quer dizer neoliberal) Raul
Alfonsin, que afinal disse algo de bom senso: a Argentina devia
declarar moratória da dívida externa por dois anos para poder
investir em seu futuro os US$ 20 bilhões anuais que transfere
para o exterior. Em reação a tamanho bom senso (logo desmentido
por Alfonsin como “brincadeira” num momento informal de
descontração), as bolsas caíram, os investidores estrangeiros
se inquietaram com o risco de o bom senso contaminar o Presidente
da República, e, como sempre acontece, o mundo financeiro
brasileiro também começou a estremecer.
Em
11 de novembro, as manchetes anunciam: “Argentina privatiza
saúde e previdência, com apoio de FMI e BIRD”. Os jornais
dizem que a crise é “de credibilidade nacional”. Mentira. A
crise é de estabilidade socioeconômica, financeira e política,
gerada pelo excessivo endivid0amento, pelo modelo político
econômico marcado pela desigualdade e pela excessiva dependência
do capital externo e – só em conseqüência disso – pela
vulnerabilidade do país aos humores dos credores e dos
investidores internacionais. O ministro da Economia, José Luis
Machinea, desmentiu Alfonsín, falou da necessidade de a Argentina
cumprir fielmente os pagamentos “para ter credibilidade no
mercado internacional” e anunciou que vai vender US$ 1,1
bilhões em títulos do Governo Argentino. A venda foi realizada a
juros estratosféricos para o país - 16% ao ano. Na mesma semana
o Brasil vendeu US$ 874 milhões em títulos do Tesouro a 18,5% ao
ano! Confirma-se que os investidores externos confiam ainda menos
no Brasil do que na Argentina!
"Ajuda"
ou desmonte?
Chega
a 16,4 bilhões de dólares o pacote que as instituições
financeiras multilaterais estão preparando para evitar que o
país se torne inadimplente, e a crise afete seus credores. O FMI
participaria com US$ 7,4; o Banco Mundial com US$ 4 bi (que
deveriam destinar-se, por mandato estatutário do banco, ao
“desenvolvimento” do país tomador); megabancos privados
transnacionais entrariam com US$ 3 bi e Tesouro dos EUA com os
restantes US$ 2 bilhões. O governo norte-americano, porém, tem
relutado em participar0 da operação, talvez para empurrar a
Argentina abismo abaixo, forçando a dolarização unilateral. Em
contrapartida à "ajuda", o governo argentino será
forçado a cortar ainda mais os gastos públicos mediante um
conjunto de medidas:
1)
Privatização do sistema público de saúde a partir de
2001. Por decreto do Executivo.
2)
Privatização do sistema de previdência social,
garantindo apenas que os benefícios mais baixos serão
complementados, até atingir 300 pesos.
3)
Aumento da idade mínima para aposentadoria das mulheres,
de 60 para 65 anos,
a partir de 2002.
4)
Acordo com governos provinciais para impedir aumentos de
gastos nos próximos 5 anos (prazo superior ao mandato dos atuais
governadores!).
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p class="MsoNormal">5)
Privatização dos serviços de cobrança da Receita
Federal.
"Quanto
mais pagamos, mais devemos"
A
população levanta protestos. O que ninguém diz é que a
Argentina, mais uma vez, estará tomando este mega-empréstimo
para pagar as dívidas anteriores, e não para investir no seu
próprio desenvolvimento nem para criar um excedente que permita
pagar esta nova dívida! Este é o núcleo central da
irracionalidade da política macroeconômica do país-irmão. Nada
diferente do círculo vicioso que caracteriza a política
financeira do Brasil nas duas últimas décadas. Não é de
surpreender, pois, que em ambos os países, “Quanto mais
pagamos, mais devemos”.
Se
o Brasil tomasse consciência do refrão “Eu/Brasil sou
Você/Argentina Amanhã”, que corresponde à sua experiência
histórica no campo socioeconômico das últimas duas décadas,
talvez pudesse prevenir-se de continuar a seguir o caminho que
leva “à beira do abismo” (palavras do governador da
P0rovíncia de Buenos Aires, ao tentar em 11/11/00 convocar,
contraditoriamente, a população a apoiar o novo acordo De la
Rúa-FMI). Duas décadas de ajustes negociados com o FMI e o Banco
Mundial resultaram numa das mais insistentes recessões de sua
história e numa situação literalmente falimentar de suas
finanças públicas. Por que? Porque a Argentina insiste em
modelar-se em função da prioridade, primeira e única, de
agradar seus credores externos, pagando em dia a dívida externa,
que não pára de aumentar, e fazendo toda sorte de agrado ao
capital estrangeiro para “manter sua credibilidade” junto a
ele. Exatamente o mesmo que tem feito o governo FHC nos seus dois
mandatos. Na verdade, para
os governos da Argentina e Brasil a opção de prestar mais
atenção à credibilidade frente aos investidores externos do que
à credibilidade frente aos seus respectivos povos não tem outra
saída senão uma dívida sempre maior e o aumento proporcional da
devastação econômica,
social e ambiental do país.
Abandonar
a conversibilidade e mudar de rumo
A
curto prazo, o mais sensato será a Argentina abandonar a lei de
conversibilidade de 1991 e restabelecer sua moeda, e pelo menos em0
parte, sua soberania nacional. A outra opção, estratégica, é
mudar de rumo, adotando um novo paradigma de desenvolvimento,
centrado nas necessidades econômicas e sociais das duas nações
e nos recursos naturais, humanos e financeiros que elas possuem.
Isso implica rejeitar a parcela da dívida que já foi julgada
como ilegal e espúria (caso argentino), fazer uma minuciosa
auditoria com participação de organizações sociais de notório
saber (caso brasileiro) e centrar os investimentos em reerguer as
economias de ambos os países. Isso incluiria promover reforma
fiscal e tributária verdadeiras, voltadas à redistribuir de
renda e riqueza; e consolidar as bases para um desenvolvimento
genuinamente democrático e sustentável, para si próprios e para
a sub-região do Cone Sul!
Mas
se nada do que De la Rúa está cedendo ao FMI der certo, a
Argentina ainda terá outro recurso. Ela poderá subcontratar o
próprio FMI para governar o país, garantindo definitivamente
a confiança dos investidores estrangeiros. De la Rúa dirá
então outra vez, como fez em 10 de novembro: "Agora é o
momento de defender o interesse nacional!"
De
mal a pior
FMI
é sinônimo de mais crise social
Argentina:
Entre
maio de 1999 e maio de 2000, a proporção dos pobres na Região
de Buenos Aires (população total: 12milhões) aumentou de 27,1%
para 29,7%. 340 mil pessoas passaram da classe média para baixo
da linha de pobreza argentina, que inclui os que têm renda
inferior a 120 dólares. Vale lembrar que o salário mínimo
brasileiro equivale hoje a apenas US$ 75...
Na
capital, Buenos Aires, a proporção de pobres passou de 8,5% para
10,8%. Nas regiões mais pobres da região metropolitana, a
pobreza alcança 44% dos 4 milhões de habitantes.
Em
todo o país, a pobreza afeta 14 milhões dos 37 milhões de
argentinos, ou 36% da população. Segundo pesquisa da consultoria
Equis, a cada dia mil pessoas tornam-se pobres no país.
A
taxa de desemprego, resultante da recessão prolongada
provocada pelas políticas do ajuste à moda do
FMI é de 15,4%, mas pode chegar a 16% até o fim
de 2000. Que início de novo século e milênio para
um povo que já foi dos mais afluentes do Continente!
Brasil:
Entre
1998 e 1999 a proporção de pobres aumentou de 32,7% para 33,9%,
segundo o IPEA. O Brasil, sempre batendo recordes, em
matéria de pobreza e desigualdade. 55,6 milhões de brasileiros
estão vivendo com menos de 100 reais por mês. Cerca de 3
milhões (quase uma Buenos Aires inteira) tornaram-se pobres no
ano da desvalorização do real.
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