Luciano Coutinho
e Luiz Gonzaga Belluzzo
Introdução
Nos anos 90,
generalizou-se a consciência a respeito do peso e da influência
dos ativos financeiros nas economias modernas. Isto não é
surpreendente. Em pouco mais de uma década, desde o início
dos anos 80, a composição da riqueza social sofreu uma
importante mutação. Cresceu velozmente a participação dos
haveres financeiros na composição da riqueza privada. Nos países
desenvolvidos as classes médias passaram a deter –
diretamente ou através de fundos de investimentos ou de
fundos de pensão e de seguro – importantes carteiras de títulos
e ações. O patrimônio típico de uma família de renda média
passou a incluir ativos financeiros em proporção crescente,
além dos imóveis e bens duráveis.
As empresas
em geral também ampliaram expressivamente a posse dos ativos
financeiros e não apenas como reserva de capital para efetuar
futuros investimentos fixos. A “acumulação” de ativos
financeiros ganhou na maioria dos casos status permanente
na gestão da riqueza capitalista.
Por isso, a
de taxa de juros – critério geral de avaliação da riqueza
– na medida em que exprime as expectativas de variação dos
preços e, portanto, a “liquidez” dos distintos ativos
financeiros, passa a exercer um papel muito relevante nas
decisões das empresas e bancos, conforme já advertira,
primeiramente, o nosso colega José Carlos Braga em sua tese
de Doutoramento. Configura-se, assim, uma forte tendência à
“financeirização” e ao rentismo nas economias
capitalistas.
Este processo
não ficou confinado às fronteiras nacionais. Muito embora a
maior parcela dos ativos financeiros, em cada país, seja de
propriedade dos seus residentes, cresceu bastante a participação
cruzada de investidores estrangeiros, com a liberalização
dos mercados de câmbio e desregulamentação dos controles
sobre os fluxos de capitais. O valor da massa de ativos
financeiros transacionáveis nos mercados de capitais de todo
o mundo saltou de cerca de US$ 5 trilhões no início dos anos
80 para US$ 35 trilhões em 1995, segundo as estimativas do
BIS.
Esta
impressionante escalada do volume da riqueza financeira (a um
ritmo de pelo menos 15% ao ano) suplantou de longe o
crescimento da produção e da acumulação de ativos fixos.
Como, em última instância, os ativos financeiros representam
direitos de propriedade sobre o capital em funções ou
direitos sobre a renda futura por ele gerada, é inescapável
concluir que ocorreu nos últimos anos uma notável inflação
dos ativos financeiros. Em outras palavras, os preços desses
ativos subiram muito além da velocidade de acumulação dos
ativos instrumentais do capital, criando em seus detentores
uma percepção de enriquecimento acelerado.
Assim, as
empresas, bancos e também as famílias abastadas – através
dos investidores institucionais – passaram a subordinar as
suas decisões de gasto, investimento e poupança às
expectativas quanto ao ritmo do seu respectivo
“enriquecimento” financeiro. Do ponto de vista individual
este “enriquecimento” não parece fictício, pois os títulos
podem ser perfeitamente validados por mercados líquidos e
profundos. A certeza de “comercialização”, ou seja, de
que os papéis sempre poderiam ser reconvertidos à forma
monetária e geral da riqueza, realimenta o circuito de
valorização, induzindo uma parcela crescente de agentes a
alavancar as suas carteiras de ativos financeiros com base em
dívidas tomadas junto ao sistema bancário. Os autores
já assinalaram, em texto anterior, as características do
mercado financeiro na atualidade:
– profundidade,
assegurada por transações secundárias em grande escala e
freqüência, conferindo elevado grau de negociabilidade aos
papéis;
– liquidez
e mobilidade, permitindo aos investidores facilidade de
entrada e de saída entre diferentes ativos e segmentos do
mercado;
– volatilidade
de preços dos ativos resultante das mudanças freqüentes de
avaliação dos agentes quanto à evolução dos preços dos
papéis (denominados em moedas distintas, com taxas de câmbio
flutuantes).
O
veloz desenvolvimento de inovações financeiras nos últimos
anos (técnicas de hedge através de derivativos, técnicas
de alavancagem, modelos e algoritmos matemáticos para “gestão
de riscos”) associado à intensa informatização do mercado
permitiu acelerar espantosamente o volume de transações com
prazos cada vez mais curtos. Essas características,
combinadas com a alavancagem baseada em créditos bancários,
explicam o enorme potencial de realimentação dos processos
altistas (formação de bolhas), assim como os riscos de
colapso no caso dos movimentos baixistas.
O objetivo
deste breve ensaio é examinar as mudanças que o processo de
“financeirização” vem impondo às principais relações
macroeconômicas (determinação das decisões de
investimentos, de consumo) em economias abertas, sujeitas a
regimes cambiais flutuantes ou de variação administrada, num
mundo onde os fluxos de capitais financeiros (entre mercados
nacionais, moedas e ativos de diferentes categorias) são
intensos, rápidos e altamente sensíveis às mudanças de
expectativas. A intenção é contribuir para a formulação
de uma nova macroeconomia aberta, sob a dominância de ativos
financeiros.
1.
Ciclo de valorização de ativos e decisões de gasto numa
economia aberta
A
mudança na composição da riqueza provocou dois efeitos
importantes para as decisões de gasto: 1) ampliou o universo
de agentes que, detendo uma parcela importante de sua riqueza
sob a forma financeira, têm necessidade de levar em conta a
variação de preços dos ativos; 2) esta ampliação do
efeito riqueza implica a possibilidade de flutuações mais
violentas do consumo e do investimento. O consumo deixa de ter
o comportamento relativamente estável previsto pela função-consumo
keynesiana e passa a apresentar um componente típico das
decisões de gasto dos capitalistas.
Isto não
significa apenas que uma fração do consumo deixa de ser
proporcional à renda corrente, fenômeno que aliás se
estabelece a partir da generalização do crédito ao
consumidor. Significa isto sim que aumenta significativamente
a possibilidade de endividamento por parte de grupos
importantes de consumidores. Esta maior “alavancagem” dos
gastos de consumo das famílias é permitida pela percepção
dos consumidores (e dos bancos) de que sua riqueza aumentou
por conta da capitalização acelerada dos ativos financeiros.
É preciso explicar que o “efeito riqueza” não se realiza
mediante uma venda dos ativos para a conversão do resultado
monetário em consumo, senão mediante uma ampliação da
demanda de crédito por parte dos consumidores
“enriquecidos”.
Confiantes
numa trajetória ascendente de valorização da sua parcela de
riqueza, os consumidores tendem a elevar a sua propensão a
consumir sobre a renda corrente e simultaneamente a admitir
gastos extraordinários, apoiados no aumento do endividamento.
A perspectiva de enriquecimento acelerado passa a comandar as
decisões de gasto de consumo: o nível de endividamento não
é mais calculado sobre a renda corrente e sim sobre a
expectativa de crescimento dos preços dos ativos que compõem
o seu porta-fólio. Assim, é possível observar aumentos do
serviço da dívida sobre a renda corrente, embora a relação
entre este serviço e o estoque de riqueza possa se manter estável
ou venha a declinar.
É o consumo
“diferencial” de bens de alto valor e de serviços,
sobretudo lazer, que se beneficia desta forma especial do
efeito riqueza.
Na medida em
que um segmento expressivo das classes médias é capturado
por este efeito riqueza ampliado, um ciclo de valorização de
ativos tem o condão de excitar a demanda muito além das
expectativas normais dos empresários que produzem bens de
consumo. Num mundo em que as economias são cada vez mais
abertas e sujeitas ao acirramento da competição entre os
setores tradeables, este deslocamento da propensão a
consumir produz efeitos sobre o balanço de pagamentos e sobre
as decisões de investimento, com poucas pressões sobre os
preços. As elevações de preços causadas pela excitação
da demanda ficam circunscritas aos serviços e aos demais bens
não tradeables.
As decisões
de investimento, por seu turno, sofrem um tripla influência
da inflação de ativos: 1) o superaquecimento do consumo
eleva a eficiência marginal do capital do setor produtor de
bens de consumo; 2) o aumento do valor do patrimônio líquido
– via aumento do valor de mercado da empresa – e a conseqüente
ampliação da capacidade de endividamento empresarial. Assim,
apesar das empresas estarem envolvidas num esforço de
investimento, a relação dívida/capital próprio pode se
manter estável, ou mesmo declinar; 3) a conseqüente redução
dos custos de capital para a empresa melhor avaliada pelas agências
de rating, baixando a percepção do risco para
prestamistas e para tomadores.
Sob
a influência dos fatores acima, à medida que a taxa de
investimento do setor privado se acelera, manifestam-se os
conhecidos efeitos macroeconômicos: redução do déficit público,
ampliação do déficit externo, acompanhadas do crescimento
do emprego, da renda corrente e da redução das margens de
capacidade ociosa.
Vários são
os mecanismos de incitação ao investimento. O primeiro é o
aumento da confiança dos consumidores, devido à redução da
taxa de desemprego e à continuada valorização de ativos. O
segundo é o reforço do círculo virtuoso (Kalecki, 1971) em
que o aumento dos investimentos produz um aumento dos lucros.
Esta elevação dos lucros induz uma maior valorização do
patrimônio líquido das empresas, o que se reflete numa
ulterior valorização das ações. Decorre daí o
comportamento do sistema de crédito que, conseguindo manter
elevados níveis de liquidez corrente de seus ativos, tende a
reduzir a percepção do risco, atendendo de forma elástica a
demanda por novos empréstimos.
Como em todo
o ciclo expansivo, o preço de demanda dos ativos reais e o
dos ativos financeiros tendem a crescer conjuntamente. A
especificidade do ciclo atual, comandado pela inflação de
ativos, está no fato de que pode ocorrer um crescimento mais
rápido dos preços de mercado dos ativos não reprodutíveis
do que dos rendimentos esperados dos ativos de capital
instrumentais. Um dos problemas da atual capitalização da
bolsa americana é a brutal elevação das relações preço/lucro.
A sustentação dos níveis de preços já atingidos dependerá
crescentemente de avaliações cada vez mais otimistas por
parte dos investidores quanto ao fluxo futuro de lucros.
Formas de
reversão do ciclo
A forma clássica
de reversão do ciclo, numa economia com regulação nacional
do crédito e dominância dos bancos na intermediação
financeira, supõe uma queda da eficácia marginal do capital,
a partir de uma mudança “autônoma” no estado de
expectativas dos empresários. A queda da eficiência marginal
do capital promove uma redução imediata dos preços de
demanda dos ativos de capital, tanto os financeiros como os
instrumentais. Segue-se um declínio dos preços das ações e
dos gastos de investimento, com posterior contração dos
lucros e dos salários. O sistema bancário seria
inevitavelmente afetado pela crise e procuraria recuperar o
mais rapidamente possível o crédito estendido às empresas,
recusando-se a rolar integralmente os passivos e seu serviço.
Se não for induzido pela ação do Banco Central a abastecer
a economia de liquidez adequada, o sistema bancário, em sua ação
defensiva, determinará um agravamento brutal da crise,
levando à deflação. Na seqüência clássica do ciclo
keynesiano a contração do crédito estará respondendo a uma
queda autônoma da taxa de acumulação das empresas.
Mesmo nesta
economia em que a intermediação financeira é dominada pelo
crédito bancário e não pela finança direta, a reversão cíclica
pode, ainda, começar com uma “perda de confiança” dos
bancos quanto à realização integral do valor de suas
carteiras de empréstimos. Haveria, neste caso, subida das
taxas de juros e maior seletividade na oferta de crédito.
Este fator seria suficiente para levar a uma queda da eficiência
marginal do capital. Se o animal spirits dos
investidores fraquejar diante da ação dos bancos, será
deflagrado um movimento recessivo, causado pela rápida contração
do investimento.
Numa
economia em que os bancos participam indiretamente no
financiamento do gasto mediante linhas de crédito destinadas
a sustentar posições no mercado de capitais, Keynes não
descartou a possibilidade de uma reversão cíclica originada
por quedas de preços dos ativos, rapidamente transmitidas
para o sistema de crédito (Treatise on money). Foi
essa possibilidade que levou os reformadores do sistema bancário
americano, em 1933, a inscrever em lei (Glass Steagal Act)
uma rigorosa segmentação dos mercados financeiros, com explícita
proibição de participação, direta ou indireta, dos money
center banks nos mercados de ativos. A idéia era a de
evitar o risco de alavancagem excessiva por parte das
corretoras e bancos de investimento, acarretando pressões
“inflacionárias” sobre os papéis, sempre acompanhadas de
fragilização financeira.
A
peculiaridade das economias contemporâneas – onde a finança
direta e securitizada é predominante – parece ser a alta
sensibilidade das decisões de gasto a flutuações nos preços
dos ativos. Os mecanismos de transmissão são rápidos,
variados e poderosos. Em primeiro lugar, a desregulamentação
e a liberalização facilitaram o envolvimento dos bancos com
o financiamento de posições nos mercados de capitais. Isto
permitiu os atuais níveis de “alavancagem” das
corretoras, fundos e bancos de investimento. Quando estes
agentes são surpreendidos por movimentos adversos dos preços
e as perdas estimadas obrigam à liquidação de posições
para cobertura de margem, tanto o risco de mercado quanto o
risco de liquidez se ampliam rapidamente. A queda muito
abrupta e profunda dos preços afugenta os eventuais
compradores destes ativos, inviabilizando os seus mercados. Na
ausência de um socorro tempestivo do emprestador de última
instância, a propagação do pânico pode levar à ruptura do
sistema de pagamentos e à corrida bancária.
Ainda
que o emprestador de última instância contenha a crise de
pagamentos, sua intervenção não será capaz de reverter a
subida do custo de capital para empresas e países
considerados de maior risco. O trauma num destes mercados tem
enorme potencial de contaminação, provocando, em geral,
fugas para moedas e ativos considerados de melhor reputação
e qualidade. A crise de liquidez rebate pesadamente sobre a
solvência e sobre a capacidade de gasto dos emissores de
ativos de maior risco, sejam eles países, empresas ou bancos.
Os
detentores destes ativos depreciados, por sua vez, terão que
digerir as perdas e tentar recompor seus níveis de capitalização,
restringindo a oferta de crédito para outros agentes,
inclusive aqueles de melhor reputação. Exemplo disso foi a
espetacular subida de 400 a 1.000 pontos básicos, nos spreads
cobrados às pequenas e médias empresas americanas, após os
episódios da Rússia, do ataque ao Brasil e da quebra do LTCM.
As
autoridades monetárias não podem deixar que prosperem e se
aprofundem o processo de contágio e a deflação de ativos.
É necessário que os Bancos Centrais estejam dispostos,
nestas circunstâncias, a prover abundante liquidez para os
mercados em crise, promovendo uma rápida redução das taxas
de juros.
A
estes riscos de reversão do ciclo, comandado pela inflação
de ativos, podem se agregar outros fatores, próprios de uma
economia aberta.
No estágio
avançado de qualquer ciclo expansivo costumam surgir tensões
inflacionárias, decorrentes do aquecimento da demanda de
trabalho, da elevação dos preços das matérias-primas e de
serviços e insumos non-tradeables. Numa economia
aberta, porém, o aumento do preço de demanda dos ativos de
capital e a perspectiva de expressivos ganhos com a valorização
dos ativos financeiros, intensificam o ingresso de capitais do
exterior. Essa entrada de capitais determina uma valorização
da taxa de câmbio, agravando o déficit comercial. A valorização
do câmbio contribui temporariamente para abafar as tensões
inflacionárias mencionadas acima. No entanto, à medida que o
déficit comercial e de transações correntes se ampliam,
aumenta a probabilidade de que os porta-fólios privados, na
margem, se recusem a continuar absorvendo ativos denominados
na moeda do país deficitário. Instala-se, assim, uma tendência
à desvalorização da taxa de câmbio, o que envolve um duplo
risco: a explicitação das tensões inflacionárias e a
reversão dos fluxos de capitais, diante da possibilidade de
perdas futuras para os aplicadores estrangeiros.
Nesta etapa
do ciclo, o mercado fica especialmente sensível à
possibilidade de uma subida das taxas de juros por parte das
autoridades monetárias, temerosas, tanto de uma elevação
futura da inflação, quanto de uma desvalorização abrupta
do câmbio. Além disso, o fluxo de lucros pode perder força
não só por conta de uma desaceleração dos dispêndios na
acumulação produtiva, como também por força do crescimento
do déficit comercial. Ambos os fatores acentuam a erosão dos
lucros, tornando ainda mais evidente a “exuberância
irracional” das avaliações dos preços das ações,
descontados à taxa de juros corrente.
As
autoridades monetárias, nestas circunstâncias, são
colocadas diante de uma escolha difícil. O temor de uma
aceleração da inflação e da saída de capitais
recomendaria a subida dos juros de curto prazo. Esta medida
poderia, no entanto, deflagrar um perigoso colapso na bolha
formada pelo crescimento desmesurado dos preços dos ativos.
São grandes,
portanto, os riscos numa economia que atinge o auge de um
ciclo expansivo, exacerbado pela inflação de ativos. Um
colapso abrupto destes preços levará inevitavelmente a
economia à depressão, devido ao caráter cumulativo e de
auto-reforço imposto pela deflação de ativos. Dadas as
elevadas alavancagens, tanto as famílias quanto as empresas
serão colocadas diante de um forte crescimento inesperado das
suas dívidas, tanto em relação à renda quanto em relação
aos respectivos patrimônios. No caso das empresas, ficará
exposta uma situação em que a relação dívida/capital próprio
cresce involuntariamente, piorando o rating e tornando
desfavorável a tomada de novos empréstimos. Essa degradação
do valor de mercado das empresas e de sua situação de
endividamento provocará, por certo, ulteriores desvalorizações
de suas ações.
Os
consumidores, por sua vez, “empobrecidos” pela deflação
de ativos, buscarão recompor a relação desejada
riqueza/renda, e reduzir a relação dívida/patrimônio
devendo, para tanto, aumentar a poupança corrente. Isto
significa que o corte nos gastos de consumo será
provavelmente muito pronunciado, atingindo particularmente os
setores que se alimentaram da inflação de ativos e da expansão
do crédito, os bens de alto valor e os serviços
diferenciados. São exatamente estes setores os que
experimentaram maior crescimento relativo na expansão
recente.
A reação do
sistema bancário, diante da ampliação generalizada das
margens de endividamento das famílias e das empresas e da
depreciação das garantias contratuais, é a de contrair
violentamente o crédito, provocando um credit crunch e
acelerando a caminhada da economia para a depressão.
Nestes ciclos
comandados pela inflação de ativos, as autoridades monetárias
estão sempre colocadas diante do risco de um crash de
enormes proporções, o que as obriga a tentar suavizar a
aterrissagem. A primeira reação é a de baixar os juros e
impedir que o sistema bancário provoque o credit crunch.
No entanto numa economia aberta em que a finança direta
tornou-se importante, a queda da taxa de juros pode ser inócua.
Na medida em que os preços deprimidos dos ativos privados não
se recuperam, em decorrência de um forte deslocamento da
curva de preferência pela liquidez, persistirá a tendência
à fuga de capitais e as pressões para a desvalorização do
câmbio.
Nestas
circunstâncias, a política monetária pode tornar-se
impotente diante do credit crunch, se a deflação de
ativos e a fuga de capitais continuam degradando o valor das
garantias oferecidas pelo setor privado e da própria base de
capital dos bancos. Isto, aliás, é o que vem acontecendo com
a economia japonesa. A economia dos Estados Unidos, por sua
vez, parece estar próxima do início de uma desinflação dos
preços dos ativos.
A
situação atual revela, por um lado, que a dominância da
valorização de ativos sobre as decisões de gasto implica
uma desagradável simetria entre as fases de expansão e auge
dos ciclos e as etapas subseqüentes de desaceleração e
crise. De outra parte, num contexto de crescente interpenetração
e interdependência dos mercados de riqueza, a divergência cíclica
entre os países pode colocar sérias restrições às políticas
de regulação e estabilização da economia.
Ciclo
de preço dos ativos, dilemas de política econômica e
desajustes globais
O
que foi exposto na seção anterior descreve um comportamento
cíclico da economia que, na verdade, corresponde a uma forma
exacerbada do ciclo minskyano. Seguindo a tradição
keynesiana e marxista, Minsky (1975) já havia sublinhado a
relevância da inflação de ativos na etapa madura do ciclo.
Trabalhando com dois sistemas de preços, um para os ativos
instrumentais e reprodutíveis (preço de oferta) e outro para
os ativos financeiros, este autor mostrou como, à medida que
o ciclo de prosperidade avança, é crescente a divergência
entre os dois preços, em favor dos ativos financeiros. Esta
peculiaridade “informacional” da economia capitalista
estimula inevitavelmente o ingresso de devedores e de credores
na região de riscos crescentes. Os primeiros ávidos para
acumular novos ativos em rápido processo de valorização e
os segundos confiantes na realização rentável de suas
carteiras de empréstimos. A valorização dos ativos provoca
uma redução generalizada da percepção dos riscos, ao
inflar o valor da riqueza capitalista.
Não
pretendemos invocar qualquer originalidade para nossa
abordagem, de resto já avançada por Michel Aglietta em seu
livro Macroéconomie financière (1995). À luz dos
acontecimentos em curso nos mercados mundiais, desejamos, no
entanto, sublinhar os seguintes pontos:
–
Este ciclo apresenta, como já foi dito na Introdução, uma
dominância de comportamentos rentistas, por parte das famílias
e das empresas, talvez sem paralelo em outras etapas do
desenvolvimento capitalista.
–
Os mecanismos de realimentação entre decisões de gasto e
inflação de ativos apareceram mais cedo no ciclo atual e se
revelaram mais “robustos” durante um período longo.
–
A disposição dos Bancos Centrais de contornar e
circunscrever crises localizadas de mercados ou regiões vem
sancionando a percepção de que os riscos podem sempre ser
absorvidos, sem conseqüências maiores para os possuidores de
riqueza.
–
O volume e a velocidade dos movimentos de capitais vem
permitindo a ampliação das inconsistências entre a inflação
de ativos, valorização cambial e a situação dos balanços
de pagamentos.
As
duas primeiras características deste ciclo estão fortemente
correlacionadas, uma vez que a posse generalizada de riqueza
sob a forma financeira torna abrangentes os efeitos da
valorização dos ativos sobre as decisões de gasto. À
medida que o mercado e o sistema de crédito vão sancionando
as expectativas otimistas dos possuidores de riqueza, aumenta
a demanda por ativos financeiros. Isto, por sua vez, tende a
estimular a elevação dos preços, rebatendo sobre a expansão
do crédito e sobre o dispêndio agregado, generalizando a
sensação de que a sociedade está mais rica.
A organização
dos mercados e a forte presença de investidores
institucionais adiciona outro elemento importante de exacerbação
do ciclo financeiro. Na busca de bater os concorrentes, de
ganhar a dianteira, os administradores de fundos de pensão e
fundos mútuos são obrigados a apresentar à clientela
produtos financeiros de alta performance. Isto os induz a
ampliar o grau de alavancagem e a buscar combustível em
outras praças de maior risco e menor grau de informação. A
rentabilidade destes fundos depende de se alcançar “taxas
de sucesso” superiores a uma determinada taxa de juros referência.
Parece
ser este o motivo do envolvimento de grandes bancos
internacionais no financiamento à Rússia.
É um fato
pouco sublinhado nas análises convencionais este apontado
acima, ou seja, a formação de um bloco importante de
instituições gestoras de grandes massas de riqueza,
comprometidas com a continuada elevação de preços. A
alavancagem excessiva as torna extremamente vulneráveis a
reversões abruptas. Neste quadro, agrava-se progressivamente
a fragilidade financeira, fenômeno que é mascarado pelo
surto de valorização acelerada dos ativos.
O
envolvimento intenso dos grandes bancos e das grandes empresas
internacionalizadas neste jogo de valorização da riqueza,
inibe uma atuação moderadora dos Bancos Centrais. As
autoridades monetárias têm freqüentemente emitido sinais de
que consideram excessivamente otimistas as expectativas
daqueles agentes. Mas, ao mesmo tempo, são obrigadas a
contemporizar, diante do temor de que qualquer ação
restritiva possa desatar inclinações baixistas nos mercados
e conseqüentemente a deflação de ativos. A forte interação
entre inflação de ativos e gasto agregado – característica
da economia japonesa dos anos 80 e da economia americana,
desde o início dos 90 – ilustra o vigor destes mecanismos
de realimentação.
A
sucessão de episódios críticos em diversos mercados ao
longo das décadas de 80 e 90 foi, em geral, neutralizada com
intervenções de suporte de liquidez que visavam impedir a
generalização da queda de preços para outros ativos. Esta
atitude dos Bancos Centrais foi, sem dúvida, fortalecendo a
crença de que os mercados estarão sempre a salvo de perdas
pronunciadas e definitivas. As eventuais crises seriam momentâneas,
apenas oportunidades em que se apresentariam “pontos de
compra” convidativos para o início de uma nova temporada de
alta generalizada.
Nos auges cíclicos
começa, no entanto, a se manifestar a desconfiança de alguns
agentes que suspeitam da possibilidade de sustentação do nível
de preços atingido pelos ativos. Estes agentes começam a
formar posições baixistas nos elos mais fracos destes
mercados globalizados, ainda predominantemente altistas.
Apostam contra moedas apreciadas, bolsas de valores da
periferia consideradas sem fôlego para capitalização
ulterior, mercados imobiliários excessivamente valorizados e
com oferta sobrante. Habitualmente estes hedge funds
operam nos mercados futuros de câmbio, com grandes posições
vendidas nas moedas que se candidatam a um ataque
especulativo.
Os mercados
financeiros têm revelado uma forte tendência para mudanças
súbitas de opinião, polarização das expectativas e
profecias auto-realizáveis. No Treatise on money,
Keynes sublinhou a importância da “divisão de opiniões”,
entre baixistas e altistas, para a manutenção da
estabilidade nos mercados em que é avaliada a riqueza
capitalista. No entanto, estes mercados estão sujeitos à
“assimetria” de poder e de informação entre os agentes
“formadores de opinião” e aqueles que não têm outra
alternativa senão seguir a tendência dominante. Estão
criadas, assim, as condições para a irrupção de processos
miméticos, que inclinam as expectativas numa determinada direção,
dando origem a “bolhas especulativas”, invariavelmente
sucedidas por colapsos de preços, contágio de outros ativos
e moedas e intensa “aversão ao risco”.
Tanto o peso
das posições assumidas pelos especuladores altistas quanto a
crescente presença de agentes baixistas nos mercados
emergentes reforçam as estratégias defensivas dos Bancos
Centrais, tornando as suas políticas monetárias prisioneiras
da necessidade de evitar fugas de capitais e desvalorizações
abruptas.
Nos países
periféricos, estas medidas defensivas restringem-se quase
sempre à elevação das taxas de juros para defender as
paridades. Esta providência é, em geral, contraproducente.
Primeiro porque deprime a capitalização dos ativos mobiliários
e dos imóveis, afeta o serviço da dívida pública e atinge
a saúde financeira dos sistemas bancários nativos. Segundo,
e por último, porque a elevação dos juros aumenta a
desconfiança em relação à sustentabilidade da âncora
cambial, engendrando desvalorizações selvagens e
descontroladas.
Estas
características do ciclo de ativos acentuam o caráter assimétrico
dos ajustamentos dos balanços de pagamentos entre países de
moeda forte e aqueles de moeda fraca. No caso desses últimos
não pode ser mais gritante a inadequação dos programas de
ajustamento, adotados para reparar os efeitos de um inevitável
colapso do câmbio sobrevalorizado. Não custa lembrar que os
ciclos recentes de “valorização” das moedas locais
favoreceram invariavelmente o financiamento de importações
predatórias e, consequentemente, promoveram a desestruturação
produtiva, o desemprego em massa e, finalmente, a acumulação
de volumosos passivos externos e internos. É neste ambiente
que os programas exigem dos países devedores a elevação da
taxa de juros, o ajuste fiscal de curto prazo e a imposição
de perdas, em termos reais, aos salários e à massa de
rendimentos.
Na cúspide
da hierarquia de moedas, os Estados Unidos, em função da
capacidade de atrair capitais para os seus mercados – fenômeno
que se acentua, diante de um crise de confiança nos
“emergentes” – podem se dar ao luxo de manter taxas de
juros moderadas, apesar da ampliação do déficit em transações
correntes. Ademais, como já foi dito, nos momentos de crise
nos mercados da periferia, a demanda por títulos de maior
qualidade permite a queda dos rendimentos de longo prazo. Isto
significa que o atual ciclo de ativos, do ponto de vista
internacional, reforça a supremacia do dólar e induz os
movimentos de capitais a ampliar desmesuradamente o poder de seigneuriage
dos Estados Unidos. Esta é uma das razões pelas quais foi
possível prolongar o crescimento americano, sem que se
manifestassem as temidas pressões inflacionárias.
Em
contrapartida, a recuperação da economia japonesa torna-se
mais difícil. A política monetária mostra-se incapaz de
reanimar os preços dos ativos domésticos, configurando, como
observou corretamente Krugman (1998), um quadro de
“armadilha da liquidez”. Numa economia com “abertura
financeira”, a manutenção de taxas de juros muito baixas,
acompanhada de credit crunch, fazem com que a liquidez
disponível em ienes seja transformada em demanda de títulos
americanos e europeus.
A
divergência entre os ciclos de ativos acentua e agrava as
divergências entre os de crescimento do produto e da renda.
Neste sentido, as taxas de câmbio são determinadas pela
expectativa de valorização dos ativos denominados nas
distintas moedas. As moedas se valorizam ou desvalorizam de
acordo com o movimento para cima ou para baixo dos preços dos
ativos, deixando em plano secundário a posição do balanço
de transações correntes. O país de moeda dominante, por
exemplo, mesmo apresentando déficits crescentes, na margem,
pode se beneficiar de fortes revalorizações de sua moeda,
caso o preço de seus ativos ainda esteja em ascensão.
Esta
assimetria de ajustamento supõe, ademais, possibilidade de
flutuações exacerbadas entre as paridades cambiais dos países
que formam o núcleo duro do sistema monetário. Estas flutuações
tendem a provocar sérias dificuldades para o ajustamento dos
balanços de pagamentos, na medida em que afetam a avaliação
dos preços dos ativos – denominados nas distintas moedas
– impondo a adoção de medidas que podem não ser compatíveis
com a estabilização da economia global.
Não é
seguro imaginar que, na eventualidade de uma prolongada e
profunda “correção de preços” na Bolsa de Nova Iorque,
acompanhada de uma forte desvalorização do dólar, seja possível
aos Estados Unidos reagirem com uma redução dos juros para
conter a recessão mundial. É óbvio que uma desvalorização
do dólar, nas atuais condições dos mercados, pode ensejar
uma fuga dos ativos denominados nessa moeda, agravando o
problema que se pretende resolver. Esta possibilidade torna-se
ainda maior, diante da perspectiva da formação de um padrão
monetário alternativo, com a entrada em vigor da moeda única
européia.
Como é
reconhecido, num sistema com taxas flutuantes, com ampla e rápida
mobilidade de capitais e provimento de liquidez através do
mercado – mediante a ação de agentes privados
especializados – as taxas de juros e de câmbio tornam-se
cada vez mais “endogeneizadas” e dependentes das bruscas
mudanças de expectativas. Não é de espantar que neste
sistema sejam muito mais freqüentes as crises de liquidez,
resolvidas através de violentas quedas de preços dos ativos
ou de ciclos curtos de valorização ou desvalorização das
moedas. As intervenções, neste caso, são ex-post e
sua inevitável recorrência acaba, quase sempre, acarretando
riscos morais.
As relações
de “causalidade” não são as mesmas para os diferentes
sistemas monetário-financeiros. Num sistema internacional
“regulado”, com taxas de câmbio fixas mas ajustáveis,
limitada mobilidade de capitais e predominância de provimento
“centralizado” de liquidez para os agentes devedores e
deficitários, pode-se dizer que, em boa medida, o câmbio e
os juros são âncoras para a formação de expectativas mais
estáveis por parte dos possuidores de riqueza.
Na verdade, a
recente evolução dos mercados financeiros exacerbou o predomínio
da lógica inerente à avaliação dos estoques de riqueza já
existente e não reprodutível sobre os fluxos de comércio e
de produção. Isto significa que as antecipações quanto aos
movimentos dos diferenciais de juros ou alterações nas taxas
de câmbio podem provocar distúrbios de grandes proporções,
forçando a adoção de políticas fiscais e monetárias
perversas para as perspectivas de crescimento das economias.
Contrariamente
ao que vêm pregando os partidários da liberalização e da
desregulamentação financeiras – sobretudo os radicais da Free
Banking School – mais do que nunca a dimensão da moeda
enquanto ativo desejável em si mesmo se sobrepõe às suas
demais funções. Num mundo de finanças globais e com um
sistema plurimonetário, em que a moeda central está sob
suspeita, a preferência pela liquidez, hoje exercida através
do dólar, pode subitamente se deslocar para uma moeda
alternativa. Também por isso, as crises se manifestam
sobretudo como crises de liquidez que os mercados privados não
têm capacidade de resolver.
AGLIETTA,
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MINSKY,
H. P. John
Maynard Keynes. New
York: Colombia University, 1975.
O
objetivo deste breve artigo é de avançar na análise e
interpretação de como a extraordinária expansão da massa
de riqueza mobiliária nas últimas duas décadas vem afetando
a determinação dos gastos de investimento e consumo nas
sociedades desenvolvidas (especialmente nos Estados Unidos),
num contexto de intensa mobilidade global dos capitais, com
taxas de câmbio flutuantes.
Como será
demonstrado, a intensa e continuada valorização da riqueza
financeira privada e seu peso crescente nos porta-fólios
tende a exacerbar os ciclos de expansão, propulsionando decisões
de consumo e de investimento com graus crescentes de
alavancagem (entretanto mascaradas pela própria valorização
dos ativos), resultando em situações vulneráveis de sobre
acumulação de capital e de sobrevalorização da riqueza que
podem provocar graves colapsos financeiros e redundar em
crises de lenta e difícil digestão. Num mundo de elevada
mobilidade e estreita integração entre os mercados de
capitais estes processos de valorização tanto podem ganhar
reforços inesperados quanto, ao contrário, provocar efeitos
depressores mais prolongados aprofundando a instabilidade e os
riscos sistêmicos, além de multiplicar as contradições e
dilemas paradoxais (inclusive de moral hasard) entre as
políticas monetária, fiscal e cambial.
Palavras-chave:
Macroeconomia; Instabilidade; Especulação; Acumulação
financeira.
Abstract
This
brief paper intends to offer a contribution to the analysis
and interpretation of how consumption and investment decisions
became increasingly affected by the extraordinary wave of
asset inflation in developed economies during the last two
decades, bearing in mind that capital markets are now closely
integrated, with floating exchange rates and intense capital
mobility. In addition to its enlarged weight in wealth
portfolios the vigorous growth of financial asset prices has
stimulated a sustained expansionary cycle of consumption
and investment expenditures based on deeper financial
leveraging of both households and corporations, particularly
in USA. However, this process becomes well masked by on
overall perception of wealth expansion, which leads to capital
over accumulation and asset-bubble overvaluation. Those two,
combined, tend to result in asset price bursts, widespread
financial disequilibria and protracted economic crisis. In a
world of high financial mobility and of global capital market
integration these expansionary processes might get reinforced
and, the same time, they may exacerbate the danger of asset
deflation (and/or of flight to quality movements) that deepens
instability and magnifies systemic risks. Under floating
exchange rates and high capital mobility, macroeconomic policy
contradictions, dilemmas and moral hazards are
therefore multiplied.
Key-words:
Macroeconomics;
Instability; Financial accumulation; Speculatives bubbles.