PROTESTOS
GLOBAIS Em Nice, a Europa diz não!
A
União Européia tornou-se, nos últimos anos, justificativa
oficial para as políticas conservadoras. Os governos dizem que
ela os impede de adotar medidas justas, e por causa dela é
preciso adotar decisões impopulares. Se é assim, que tal
protestar diante de quem de fato tem poder?
Bernard Cassen*
Duas Europas
irão se encontrar frente a frente por ocasião da última
reunião do Conselho Europeu a ser realizada sob a presidência da
França. De um lado, nos dias 7, 8 e 9 de dezembro, estarão os
chefes de Estado e de governo da União Européia (UE), cujo
objetivo principal é o de chegar a um acordo sobre um futuro
tratado que irá culminar o de Roma (1957), a Convenção única
(1986), o tratado de Maastricht (1992) e o de Amsterdã (1997). Do
outro, nas ruas, a partir de 6 de dezembro, estarão dezenas de
milhares de manifestantes, vindos de todos os países da Europa,
num espectro de dimensões inéditas, indo dos mais moderados e
mais tradicionalmente “europeístas” (como os sindicalistas
franceses da CFDT), aos mais críticos: como os sindicalistas do
SUD e dos inúmeros movimentos que lutam contra a globalização
liberal.
Num dos extremos
da cadeia, há os que simplesmente manifestarão sua decepção
com o “déficit social” da construção comunitária; no
outro, há os que anunciarão uma oposição mais ampla à sua
vertente liberal, que supera em muito as questões de ordem
social. A Carta dos Direitos Fundamentais (leia, nesta
edição, o artigo de Anne-Cécile Robert) será o estopim
para uma manifestação que, na opinião de muitos de seus
organizadores, já está inscrita na esteira das mobilizações de
Seattle, Washington e Praga contra a Organização Mundial do
Comércio (OMC), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial, assim como as de Melburne, contra a reunião regional do
Fórum de Davos, e de Okinawa, contra a última reunião de
cúpula do G-7.
Diferença flagrante de
preocupações
É significativo
que, em apenas alguns meses, as reuniões de cúpula da União
Européia (Porto, Lisboa e Biarritz) tenham conseguido ser
consideradas, em termos mundiais, como “alvos” de protestos
civis. Não é certo que os dirigentes europeus tenham avaliado
corretamente a dimensão dessa “promoção”. Ela, no entanto,
comprova três mudanças decisivas: a opinião pública vem
gradativamente se conscientizando de que as decisões
comunitárias não se referem a uma “Europa” abstrata, e sim
à sua vida cotidiana e ao seu futuro; ela também está
consciente que essas decisões correspondem a uma lógica
idêntica às das instituições internacionais que são o alvo
habitual dos protestos; e, finalmente, passou o tempo em que ainda
se dava ouvidos ao slogan que dizia “a culpa é de Bruxelas”.
Se é fato que a Comissão Européia é uma poderosa máquina de
liberalizar, também é fato que ela o faz com o pleno
consentimento dos Estados membros – quando não o faz por
exigência deles. Quando as principais autoridades dos Estados se
encontrarem no Conselho Europeu, não devem, portanto, se
surpreender de receber o mesmo tratamento que recebem o FMI e a
OMC.
Na reunião de
Nice haverá uma diferença flagrante entre as suas preocupações
e as dos manifestantes que falam do “social”. Os 15 países da
UE tentarão alinhavar um tratado voltado principalmente para a
reforma das instituições, na perspectiva de sua ampliação para
25 ou 27 membros. Os principais temas de negociação serão as
dimensões da Comissão, o método de ponderação de votos entre
Estados “grandes” e “pequenos” para a obtenção de uma
maioria qualificada, os novos campos de aplicação dessa maioria
e a questão da “cooperação reforçada”. A Carta dos
Direitos Fundamentais, que cristalizou as frustrações dos
sindicatos, ocupará apenas um lugar modesto na pauta. Já foi
adotada na reunião do Conselho Europeu de Biarritz, nos últimos
dias 13 e 14 de outubro, e a única incógnita diz respeito ao seu
estatuto final: se terá caráter simplesmente proclamatório, o
que parece certo, ou restrito.
Os “pobres” recém-chegados do
Leste
Os arranjos do
futuro tratado de Nice têm por objetivo permitir às
instituições concebidas para a Europa dos Seis, de 1957 – e
que praticamente não foram alteradas de lá para cá –, que
funcionem com os 12 novos membros da União cuja candidatura está
sendo avaliada,
sem mencionar os que virão posteriormente.
Em seu “Documento de Estratégia para a Expansão”, adotado em
novembro de 2000, a Comissão Européia
acaba de divulgar uma lista à cabeça da qual constam
Chipre, Malta, Estônia, Hungria e Polônia, mas ela avalia que,
até o final do primeiro semestre de 2002, deverão ter sido
concluídas as negociações com a quase totalidade dos doze
membros, no que se refere a adesões, que, considerando possíveis
atrasos e o processo de ratificação, se efetivariam a partir de
1º de janeiro de 2005. A Comissão prevê que alguns desses
países possam participar das eleições de junho de 2004 para o
Parlamento Europeu.
Esse
voluntarismo, compartilhado pelos governos de alguns países que
aspiram a ser membros da União a partir de 2003, não conta com o
aval da maioria dos dirigentes dos atuais quinze membros da UE.
Estes sabem, na realidade, que decisões muito difíceis deverão
ser tomadas no que se refere ao financiamento dos fundos
estruturais e da política agrícola comum numa União Européia
onde os “pobres” não serão mais a Espanha, a Grécia, a
Irlanda e Portugal – que atualmente usufruem de um fundo “de
coesão” –, e sim a totalidade dos recém-chegados. Se estes
têm grandes expectativas, aqueles não pretendem abrir mão do
seu status atual. Ocorre que o financiamento da União já
foi decidido em Berlim, em março de 1999, abrangendo um período
que vai até 2006 – e com pouca margem de manobra. Será,
portanto, na próxima reunião de programação orçamentária –
que, no entender dos mais realistas, deveria coincidir com as
novas adesões – que caberá a cada um pôr as cartas na mesa:
que preço os Estados (a quase totalidade dos Quinze, agora
transformados em contribuintes) de uma União de 25 países está
disposto a pagar pela expansão a Leste? E, caso não se restrinja
à ampliação do atual mercado único, qual o significado dessa
expansão?
Por que, e para onde, a
Europa?
No que se refere
a este assunto, como, aliás, a todos os assuntos mais sérios, a
reflexão dos dirigentes continua na estaca zero. Discursos
rapidamente classificados como “visionários” – como o de
Joschka Fischer, ministro alemão das Relações Exteriores, em
maio de 2000, na Universidade de Humboldt, ou o de Jacques Chirac
em junho, em Berlim – não contribuem absolutamente nada no que
se refere à construção européia, ao projeto
“civilizatório” e geopolítico que supostamente ela encarna,
a sua posição no mundo, suas relações com a Rússia, com a
China, com os Estados Unidos etc. Eles apelam para engenhosas
arquiteturas institucionais, deleitam-se com “centros de
gravidade”, “grupos pioneiros”, enfim, com o invólucro, com
a estrutura, mas sem nunca se referirem ao conteúdo ou às
finalidades. Respondem a perguntas que – com ou sem motivo –
poucas pessoas fazem, mas permanecem silenciosos no que se refere
àquelas presentes em todos os espíritos e que se podem resumir
numa única: por que, e para onde, a Europa? Seu silêncio sobre o
assunto – que contrasta com o entusiasmo com que rabiscam
organogramas – levou o filósofo Paul Thibaud a dizer que “na
medida em que a Europa é o objetivo em si, ela foge, a priori,
a qualquer avaliação crítica”.
A velha cantilena das
contradições
De certa forma, o
modo pelo qual se prepara a expansão é caricato: a Comissão que
pilota o projeto, em sua sofreguidão de fazer aprovar tudo o que
passe pelo crivo da liberalização, não tem uma visão
estratégica do objetivo a ser alcançado. Como conseguir a
adesão popular – se é que este é o objetivo – para um
projeto de uma Europa que mais parece um quebra-cabeças em que as
peças não se encaixam, cujo perímetro jamais é definido e
cujas questões fundamentais continuam sem respostas nos últimos
anos – a Bósnia, a Sérvia, o Kosovo... O fato é que “as
opções políticas na Europa pressupõem uma representação, em
ambos os sentidos, de uma alternativa discutida e de um
imaginário em termos de espaço”.Criar
um impasse em torno da noção de território europeu – ou seja,
imaginando um “dentro” e um “fora” – não é
compreensível senão na perspectiva de uma União que seria uma
miniatura de globalização, na qual, mais tarde, ela seria
chamada a se dissolver.
Uma vez que as
questões institucionais, aparentemente, não se referem a uma
realidade tangível imediata – excetuando a eventual alteração
do Artigo 133, que trata da mercantilização do mundo pela OMC
– compreende-se por que, excluindo os profissionais de partidos,
governos, lobbies e meios de comunicação, o futuro
tratado de Nice só provoca indiferença. Não é, portanto,
contra o tratado que os manifestantes irão para as ruas, já que
ele parece levitar acima das aspirações dos cidadãos. Por outro
lado, os instrumentos comunitários já começam a ser bem
assimilados quando se referem a questões sociais e culturais ou
aos serviços públicos. Cansados de ouvirem a cantilena de
ministros de que esta ou aquela determinada política, apesar de
desejável, é lamentavelmente contraditória com uma diretriz
comunitária – ou, por exemplo, que é necessário que o
Parlamento suspenda a proibição de trabalho noturno para as
mulheres em nome de uma harmonização européia
– muitos cidadãos e organizações já entenderam o recado. Que
é o seguinte: já que tantas medidas importantes são decididas a
nível dos Quinze – independendo de compromissos eleitorais
assumidos por parte dos governos nacionais –, sem que os
representantes com mandato possam fazer mais que assinar uma carta
branca,
então o importante é ir bater à porta dos Quinze.
Consensos de conchavo
Não há sequer a
garantia de que aquilo que eles gostariam de ver saudado como um
sucesso pedagógico seja do agrado dos “europeístas” mais
fervorosos, que até agora vinham conseguindo colocar a
construção européia “acima das querelas partidárias”. Se
com a medida quisessem dizer que conseguiram fazer um buraco negro
que absorve a política como um aspirador absorve o pó, estariam
cobertos de razão. As engrenagens comunitárias trituram
diferenças e oposições. Por definição, uma Comissão composta
por políticos vinculados, em sua maioria, às correntes
social-democrata, liberal e democrata-cristã, deveria produzir
propostas de consenso a partir desses três componentes. E esse
consenso, especialmente com “socialistas” do tipo de Pascal
Lamy, lembra estranhamente uma profissão de fé ultraliberal. Na
etapa seguinte, a da decisão pelo Conselho da União – ou, em
alguns casos, uma co-decisão Conselho-Parlamento –, o roteiro
é idêntico, pois as personagens não mudam: é necessário
alcançar pontos consensuais entre os governos ditos de esquerda e
os que reivindicam ser nitidamente de direita, assim como é
necessário obter uma maioria em Estrasburgo incorporando os dois
grandes grupos políticos: o partido dos socialistas europeus e o
Partido Popular Europeu (PPE), que reúne um amplo leque das
direitas.
Os discursos de
“arrependimento”
A opção dos
cidadãos passa a ser, portanto, entre o que se lhes apresenta
como a futilidade das lutas ou controvérsias nacionais e o
extintor comunitário. Foi subtraída deles uma boa parte das
referências, dos contextos, dos mecanismos que lhes permitiam, em
seus países, “fazer política”, promover um projeto, ser,
numa palavra, cidadãos de corpo inteiro. E nada lhes foi
oferecido, em contrapartida. Apenas a “Europa” gratificando-os
com facilidades, privilégios dos consumidores: fim dos
passaportes dentro do espaço de Schengen; fim de casas de câmbio
no início de 2002 – se tudo der certo – para doze países,
com a adoção do euro; uma fila especial para passar mais
rapidamente pelos guichês de controle de imigração nos
aeroportos etc. Juntando tudo, isso ainda não constitui uma
cidadania substituta, como mostrou de forma evidente o “não”
dinamarquês à moeda única. Em resumo, é isso que dirão os
manifestantes em Nice, que, em última análise, não contestarão
o princípio, mas o processo e o conteúdo da construção
européia.
No decorrer deste
último ano, e após as manifestações de Seattle, as grandes
instituições multilaterais mudaram significativamente seus
discursos, temperando-o com toques de “arrependimento”,
embora, naturalmente, em nada tenham mudado suas práticas. Será
necessário um pouco mais que meras inflexões semânticas às
instituições comunitárias – elas são permanentes em toda a
Europa, o que não é o caso do FMI ou do Banco Mundial para
latino-americanos ou asiáticos – assim como aos governos que se
abrigam por trás delas, determinando suas políticas, tentando
retirar da cabeça dos cidadãos a idéia de que “uma outra
Europa é possível”. (Tradução: Jô Amado)
* Bernard
Cassen é diretor do Le Monde Diplomatique
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