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Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Rubens Manoel Lemos

Memórias do Exílio, por Rubens Lemos
Diário de Natal, Abril de 2004

Dos sertões de Pixoré para o Chile de Allende
Parte 1 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Fugindo ao cerco até o encontro com Djalma Maranhão
Parte 2 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Jango me disse: “Os militares não entregam o poder tão cedo”
Parte 3 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Três dias e três noites de perigo na Cordilheira Sem Texto
Parte 4 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Na Polícia Federal:ali começa a “Operação-Terror”
Parte 5 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Ele vai ver que aqui não adianta ser macho?
Parte 6 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

“Minha morte havia sido decretada, mas fui salvo pelo gongo”
Parte 7 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos (Final)

 

 

 

Memórias do Exílio, por Rubens Lemos
Diário de Natal, Abril de 2004

“Acima do tempo e do medo” é um livro que venho escrevendo desde 1974. Um livro-reportagem sobre o duro período ditatorial, a partir dos anos 60. mais precisamente: entre 68 e 1973. Acontece que livro é livro: pode sair ou não. Depende do tema. E quando se trata de falar das barbaridades praticadas contra um sem número de brasileiros,em decorrência de um regime insano e brutal, as coisas se complicam. Eu fui personagem desse período de obscurantismo.

Vivi a realidade das sombras, da clandestinidade, do exílio e da prisão. Sou um daqueles que viveram e sofreram as atrocidades cometidas contra o ser humano pelos esbirros e torturadores do regime que se implementara em 1964, no país.

Mas não pretendo – como nunca pretendi – ser herói ou mártir.Nem alimento sentimentos revanchistas estúpidos. Alimento, sim, o sonho de justiça.Uma justiça que resgate a verdade.Não a verdade transformada em auto-referencialismos ou automitificações,tão ao gosto de alguns guerrilheiros urbanos ou falsos líderes daquele tempo de resistência. As prateleiras das livrarias – eu já disse – estão cheias de literatura desse tipo. Na maioria das vezes,vamos encontrar meias verdades, através da folclorização debochada de ações, atitudes e gestos de pessoas que não tiveram a felicidade de continuar vivas. Que foram mutiladas moral e fisicamente.

Quando nasci, há 48 anos, em Pixoré, hoje município de Santana do Matos, não imaginava o que viria depois das veredas da minha vida.Não poderia pensar que, um dia, estaria frente-a-frente com Djalma Maranhão, numa cidade chamada Montevidéu, recebendo a solidariedade de um homem que fora prefeito de Natal. De um ser humano digno que morreu de saudade - de Natal e da Redinha.

E quem diria? Fosse, no futuro,aquele menino de Pixoré ir dar com os costados nas terras de Salvador Allende – o Chile. O mesmo Chile de Pablo Neruda, de Violeta Parra, de Gabriela Mistral, onde fui encontrar milhares de brasileiros perseguidos pela Ditadura brasileira, entre os quais alguns notáveis da política de hoje: Almino Afonso, Fernando Henrique Cardoso, Miguel Arraes (de passagem), José Serra, Fernando Gabeira e até o traidor maior da esquerda brasileira, conhecido como Cabo Anselmo.

Voltando aos meus pagos,já não encontrei Luiz Maranhão, os jovens Emmanuel Bezerra e José Silton,assassinados barbaramente pela Ditadura.Encontrei a delação que me levou à Colônia Penal “João Chaves” Encontrei seqüestradores que, na calada da noite, me puseram óculos de borracha,algemas e me levaram para o circo de horrores do DOI-CODI, em Recife,onde gritos de torturados sucumbiam ante o som alto,alegre e estridente dos rádios executando “Eu te amo,meu Brasil ,eu te amo”.

CAÇADO POR TODA PARTE

1970. Odilon Ribeiro Coutinho era candidato a senador pelo MDB, único agrupamento político legal de resistência contra a Ditadura, consentido pelo regime militar. Eu estava no interior. Saía de Acari, onde Odilon tinha comício marcado. Na chamada “boca da noite”, no meio da estrada poeirenta, a Kombi que me levava era interceptada por um fusca branco, que piscava as luzes. Parei e reconheci o amigo comum:

- Rubens a situação tá ruim pro seu lado. Sua casa foi invadida em Natal, a casa de sua sogra também. Estão lhe caçando por toda parte. Há muita gente presa e você não pode voltar lá.

Ajudado por Odilon e Roberto Furtado, consegui, assim mesmo, entrar em Natal, altas horas da noite do dia seguinte. Fiquei escondido num a praia durante quatro dias. E, na verdade, consegui romper o cerco que se estabelecera contra mim. Houve tempo de ver minha mulher (Isolda) e meu filho (Rubinho) recém- nascido.

Quer eu quisesse,quer não, bateu dentro de mim uma coragem que nunca tive. O menino de Pixoré aplicava a primeira derrota contra a ditadura. Rompia o cerco,caía no “oco do mundo”. Nos ouvidos a canção de Vandré: ” Vem, vamos embora que esperar não é saber. quem sabe faz a hora não espera acontecer...”

Primeiro,fui pras brenhas paraibanas e ,de lá, um dia parti para o Rio de Janeiro, onde cheguei pensando:

“Vai, jornalista, aprender a dar bofetada no vento.”

Os dias passando, dinheiro acabando.Dinheiro que Odilon Ribeiro Coutinho me dera,mas que hospedaria humilde em que me instalara levava tudo.Já “nas últimas” , tomei um ônibus na Praça 15.Destino:Cordovil, bairro distante, onde morava o meu querido tio Chico, irmão do meu pai.Tão querido e solidário que, depois de lhe contar tudo e pedir abrigo “por uns poucos dias”,ele respondeu:

- Lamento muito,meu filho,mas eu não quero me envolver com essas coisas de subversão.Vá embora e Deus lhe abençoe.

Com fome,com raiva quase sem dinheiro qualquer,mandei meu tio enfiar sua benção em lugar impróprio e subi a rua Aragão Gesteira com gosto de morte e horror na boca.

E sem destino, fui chegar na esquina da rua Ferreira Viana,entre o Flamengo e a rua do Catete. Era um bar-restaurante, tipo prato-feito. Pedi um copo de leite pingado e um pão com manteiga. Nem peguei no copo:uma voz me chegou ao ouvido,fazendo explodir um medo quase estranho:

- Você não é Rubens Lemos?

Voltei-me quase de mãos estendidas esperando as algemas. O sangue me chegou de novo, quando vi diante de mim Ney Leandro de Castro. O poeta Ney, o romancista Neil de Castro, potiguar, como eu. E solidário.

 

 

 

Fugindo ao cerco até o encontro com Djalma Maranhão
Parte 2 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Ney Leandro de Castro diante de mim: E contei tudo: da minha situação clandestina, da minha fome e dos meus sonhos. O poeta não vacilou. Mesmo sabendo dos riscos que corria, me prestou toda a solidariedade que lhe era possível.

Os dias correndo e as notícias chegando, nada esperançosas. Eu, agulha no palheiro da cidade grande, rumo incerto, “olhando de lado” e sabendo: voltar agora, não seria jamais “uma forma de renascer”. Lembrando Gide: “Ensinem-me os caminhos de ir”. Amigos presos, amigos mortos – nos enfrentamentos de rua ou das masmorras da Ditadura. Cartazes em toda parte: “Procura-se”. Muitos rostos conhecidos e eu me sentindo um deles.

O Rio de Janeiro fervilhava de tensões: os revolucionários, a quem a Ditadura chamava de terroristas, haviam seqüestrado o embaixador suíço. Pediam em troca setenta presos políticos. O regime militar não cedia. Angústia por toda parte e, principalmente, dentro do meu peito. Eu andava sobre o “fio da navalha”, mas determinado: “Não me entrego vivo. Melhor morrer matando do que como boi indo pro matadouro”.

Era noite no Largo do Machado. De repente, à porta do Cine Paissandu, pronto para ver um filme de Bergman e prolongar um pouco mais a agonia, escuto um grito inconfundível:

- Rubens Lemos!

Virei-me e dei de cara com Olinto Galvão. Não temi e não tremi. Depois de um abraço escandaloso, fomos para um bar. A cerveja que há tempo se afastara de mim, pois dinheiro não tinha, apareceu franca e amiga. Como o amigo Olinto Galvão, companheiro firme de todas as horas em Natal. Mas eu precisava dar notícias a duas pessoas, as únicas que sabiam onde eu me encontrava. Tudo, porém, era muito perigoso. Com o seqüestro do embaixador, que já rolava há quase vinte dias, os olhos da repressão estavam em toda parte. O cerco apertava. Dias antes, andando pela rua México, via estampada na primeira página do Jornal do Brasil, a fotografia de G, ex-líder estudantil natalense e transformado em guerrilheiro.G,para minha surpresa, aparecia risonho, tomando cafezinho ao lado de alguns policiais.Dele, o jornal publicava, também uma terrível carta: G, (cuja covardia não lhe honra a menção do verdadeiro nome), pedia perdão ao ditador de plantão e se declarava pateticamente arrependido.Simultaneamente, novas prisões ocorriam em Natal. O torniquete apertava ainda mais. Entendi que era hora de sair do país.

Coloquei a questão para Olinto e pedi que comunicasse isso somente a duas pessoas: Isolda e Roberto Furtado. Apesar dos perigos, Olinto cumpriu literalmente a missão.

Erivan me dá o alerta: perigo!

Os planos estavam traçados para deixar o Rio, mas faltava dinheiro. Erivan França, mais uma vez não faltou. Marcamos encontro na rua das Marrecas,onde Aluízio Alves, cassado, sobrevivia com uma editora.As duras penas,Erivan me informava:” Sua situação não é boa. Seu nome está incluído entre os perigosos”.

E me arranjou dinheiro, que não era muito, mas era o que podia dar.

Cheguei, finalmente, a São Paulo. Da rodoviária fui direto à Estação da Luz e tomei um trem para Mauá, onde morava um primo. A lembrança do que me fizera Tio Chico, no Rio, me deixava inquieto. Mas resolvi tentar. O trem vomitando de passageiros aqui e ali. Tia Neném, mãe de Gilvan, irmã de minha mãe estava atrás do balcão de sua pequena quitanda na Vila Brasil. Tia Neném e “Seu” João, o marido, haviam sido operários de uma grande indústria em São Paulo. Fui chegando e fui contando tudo de novo. A velha operária não titubeou:

- Pode ficar o tempo que quiser.

E me fez a espantosa revelação: Gilvan, meu primo, estava também sendo procurado. Dezenove operários haviam sido presos. Um deles, Raimundo, assassinado brutalmente sob torturas. Raimundo morreu com 23 anos de idade. Era nordestino.

Fiquei na casa da minha tia o tempo suficiente para localizar alguns companheiros jornalistas. Não poderia abusar da bela manifestação de destemor e solidariedade proletária de D. Neném.

Um amigo jornalista – a quem chamarei aqui de Fabiano -, com quem trabalhei no “Diário de Natal”, conseguiu me colocar em lugar seguro: uma pequena pensão na Alameda Santos, onde fiquei por quase duas semanas.Fabiano, ajudado por outros, armou todo o esquema de minha saída:destino, Uruguai. Para onde fui fantasiado de torcedor do Palmeiras, que decidiria a Taça Libertadores da América com Nacional de Montevidéu. Logo eu, corintiano...
E assim atravessei a fronteira. O Brasil ficava para trás. Natal era um mundo de saudade.

O frio cortava quando o ônibus parou em frente ao hotel. Já era noite. No meu bolso, a passagem de volta que não poderia mais usar. Nos ombros, nenhum cansaço. No peito, toda a esperança. Um copo, dois, três de vinho. Outro, mais outro. E fui deitar fugitivo e bêbado. Afinal de contas, a realidade era dura. Dia seguinte, eu tinha que deixar o hotel pra não voltar.

Dia seguinte. Expectativa. O jornalista potiguar precisava localizar alguém. Esse alguém era Djalma Maranhão a quem eu era recomendado por ninguém. Minha única senha era ser do Rio Grande do Norte. Mas eu sabia onde achar o ex-prefeito de Natal.

ME DÊ NOTÍCIAS DA REDINHA...

Era amplo o “café”, com mesas na calçada. Ficava numa praça central de Montevidéu. Lá estava ele: Djalma Maranhão, de quem me aproximei e fui dizendo:

- Prefeito Djalma Maranhão,meu nome é Rubens Lemos, sou jornalista e rio-grandense do norte. Sou amigo de Roberto Furtado e estou procurando asilo. O senhor pode me ajudar?

Djalma Maranhão foi traído pelo brilho dos olhos. Uma centelha de alegria, um clarão de tristeza, foi o que vi. Mas ouvi daquele homem – quem nem documentos que provassem a minha identidade pedira -, uma pergunta surpreendente:

- Me dê notícias da Redinha, de Natal, de todo mundo.

Fiz o que pude, pois eu também queria notícias de Natal, de todo mundo. A diferença é que minha saudade era mais recente. A de Djalma era como se fora um século. Contei minha história. Logo depois, chegava Amauri Silva, ex-ministro do Trabalho de João Goulart. Já nos conhecíamos de Londrina, onde ele fora vereador. O ex-deputado Neiva Moreira também apareceu. E como ele outros exilados.

Na verdade, Djalma Maranhão queria ficar a sós comigo. Era um conterrâneo que chegava, era um pedaço de Natal, um naco de carne de sol, uma mochila de feijão verde, um litro de água do mar da Redinha. E disso é que Djalma precisava naquela cidade fria e cinzenta de Montevidéu. O ex-prefeito me levou com ele até uma pequena casa de câmbio, onde defendia alguns trocados “para ajudar no aluguel”. Também fazia distribuição de jornais, como forma de auxiliar nas despesas. Ou seja: eram grandes as dificuldades econômicas por que passava o implantador do revolucionário método “De pé no chão também se aprende a ler”.

Durante o almoço, a conversa foi longa. Djalma Maranhão falava e falava. Dizia das memórias que estava escrevendo, mas não perdia a fé:

- Eu vou voltar. Não agüento mais de saudade daquele povo bom da minha cidade e do meu estado. Um dia – e será – logo, essa Ditadura acaba. Aí eu vou voltar, tirar o atraso... E vou voltar à política com toda força possível. Eu sei que o povo de Natal não esqueceu.

Falando, ouvindo,falando, eu senti que estava diante de um ser humano corroído pela nostalgia. Um ser humano de estatura moral inigualável. Sofrido, mas valente. Machucado, mas combatente. Triste, mas esperançoso. Sem tostão, mas rico de solidariedade. E foi assim que agiu comigo.

Outras conversas ocorreram e outras revelações foram feitas, até que Djalma Maranhão me levasse até o cais, de onde segui para Santiago do Chile, levando comigo o respeito por aquele homem e outras revelações feitas por ele. E que ainda vou contar.


 

Jango me disse: “Os militares não entregam o poder tão cedo”
Parte 3 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Antes de subir a escada do pequeno navio que me levaria a Buenos Aires, recebi um longo e afetuoso abraço de Djalma Maranhão. Ex-prefeito de Natal cuidara de tudo. Até das questões de segurança, buscando alertar-me:

- Cuidado. Esse é um navio de turistas classe média baixa. Evite fotografias, pois deve ter muito policial brasileiro “fantasiado” de fotógrafo.

Dentro da pequena maleta de viagem, um Jornal do Brasil.Perdido entre as páginas, um endereço, um nome e uma apresentação que Djalma, de próprio punho, me fazia a um seu amigo comum, ex-deputado federal e exilado no Chile. Nunca mais vi Djalma Maranhão, contudo guardei todos os gestos solidários que ele me ofertou. Como guardei o aceno de mão daquele homem nostálgico, mas determinado em voltar ao seu povo, à sua terra, à sua gente. E nunca mais esqueci aquele 16 de março de 1971.

Durante a viagem não conseguia tirar Djalma Maranhão da cabeça. O homem que me fez conhecer João Goulart, o presidente deposto. Foi numa noite muito friorenta. O local era uma espécie de restaurante, muito mais uma churrascaria, dirigido por exilados brasileiros: ex-deputados, ex-senadores,ex-ministros. Uma espécie de sociedade pouco anônima, patrocinada pelo ex- presidente, como forma de ajudar brasileiros perseguidos pela ditadura. O presidente Goulart me pareceu uma pessoa simples.Nele não havia qualquer traço de arrogância. Não vendia a imagem de líder ou coisa do estilo.Era o que era no momento:um exilado. Um homem que fora deposto por um violento golpe militar. Djalma lhe contou rapidamente a minha história e João Goulart me deu 3 mil escudos, moeda chilena e da qual iria necessitar. Antes de sair, João Belchior Marques Goulart fez uma previsão:

- Maranhão (Djalma) tem pressa em voltar, mas eu acho que os militares não entregam o poder tão cedo. Não é o que eu quero, mas é o que eu penso.

João Goulart tinha razão: a ditadura durou mais de vinte anos.Nem ele, nem Djalma Maranhão puderam ver de novo o Brasil. Os dois morreram no exílio. Em julho de 1971, eu estava em Santiago do Chile, quando vim a saber da morte do ex-prefeito de Natal. Morreu triste e estava só. Seu corpo foi encontrado no pequeno apartamento em que morava, pelo advogado e também exilado Carlos Frederico Marés, a quem conheci no Chile.

O navio apitou. Estava chegando a Buenos Aires, onde ninguém me esperava, a não a ser a incerteza e o ônibus que me poderia fazer chegar até Mendoza, na fronteira com o Chile.


“SEU FILHO DIFICILMENTE ESCAPA”

Dia 20 de março de 1971. Desci do trem, trazendo no bolso a “visa de turista”, e nos olhos a imagem grandiosa da Cordilheira dos Andes, branca e dominadora. Santiago acabava de receber mais um brasileiro que, ao lado de milhares, buscava abrigo em terras chilenas, onde as ruas eram avenidas inteiras de liberdade. Nunca uma mera palavra escrita a carvão como nos muros do meu país,segundo o poema de Thiago de Melo. Na manhã seguinte, uma manhã de muito frio, chegava ao apartamento do amigo de Djalma Maranhão. Ele morava bem pertinho do Estádio Nacional, que, tempos depois seria transformado me matadouro humano por ordens do General Pinochet. Foi ali que morreu, mãos decepadas e um tiro de misericórdia na cabeça, o jovem Victor Jara, aquele que cantava as alegrias e as lutas do povo chileno.

Através do MAPU (Movimento de Acción Popular Unitária), fui contratado como professor (instructor) de jornalismo da Consejeria Del Desarrollo Social, um organismo nacional diretamente ligado ao presidente Salvador Allende. Uma experiência importante, através da qual técnicos, especialistas em áreas básicas da cultura, saúde e educação populares cobriam todo o Chile,procurando tornar realidade, sem verticalismos, a participação popular cobriam todo o Chile, procurando, a participação popular no programa socialista do Governo Allende. Um verdadeiro laboratório experimental, onde aprendi mais do que ensinei. A coisa, porém, durou pouco.Pressões externas terminaram fazendo Allende capitular , botando para fora do projeto, que se chamava “Operação Salvamontes”, todos os estrangeiros. E lá fiquei desempregado.

Minha mulher já estava com data marcada (5 de setembro de 1971) para chegar a Santiago, trazendo no colo nosso filho (Rubinho). Não dava mais tempo avisar que,além de exilado, eu era o mais novo desempregado do Chile. Isolda chegou e fomos morar numa casinha simples, numa vila distante da capital. Ficava no Paradero 36, perto de San Bernardo. O nome da vila: “El esfuerzo”. E as coisas foram se complicando. Sem dinheiro, sem trabalho e uma gravidez inesperada: a hoje moça bonita Yasmine chegava sem pedir licença. Grávida de seis meses , Isolda enfrentava o exílio com ocragem,mas dominada por uma tristeza que saltava aos olhos. Até que Rubinho adoeceu gravemente.Postos de saúde, hospitais, nenhuma solução. Meu filho definhava e nem mais podia falar seu portunhol : “Yo quiero café caliente quente”. Otto, médico pediatra, exilado também.,sem recursos quaisquer, deu assistência total. Tarde da noite, ele me chama de lado e diz:

- Infelizmente, companheiro, seu filho dificilmente escapa. Ele já está em estado de inconsciência. Mas vamos lutar até o fim.

Não tive coragem de dizer nada a Isolda.Pude apenas ir até o muro da pequena casa proletária, onde me debrucei e chorei. Chorei muito.

 

ALLENDE ACREDITAVA NO “GRANDE” GENERAL AUGUSTO PINOCHET

Allende ganhava, de maneira expressiva, as eleições parlamentares. A esquerda, organizada em partidos como o Socialista(de Altamirando), o PC, MAPU,Izquierda Criztiana e outros que formavam a Unidad Popular, passava a ter maioria no Congresso. A direita, representada no poder Judiciário e nas Forças Armadas, além de partidos conservadores como PN, tendo como linha auxiliar o cinismo e o oportunismo do Partido Democrata Cristão, de Eduardo Frey, passaram a tramar, através da desestabilização do regime,o golpe militar que eclodiria no dia 11 de setembro de 1973. Frey era o “homem financiado pela CIA”, liderando movimentos de boicote econômico, de isolamento quase total do Governo Allende. O povo: estudantes, operários, camponeses, mineiros, profissionais liberais, estavam nas ruas, combatendo duramente as vacilações da Unidad Popular, sob hegemonia do Partido Comunista Chileno que fazia, às escondidas, acordos com a DC. A direita, com seu braço armado fanático – Pátria y Libertad – provocava enfrentamentos diários que eram respondidos valentemente pelo MIR (Movimento de Izquerda Revolucionária) e pelos setores mais avançados do Partido Socialista, MAPU e Izquerda Cristiana. Uma tarde-noite,mais de 600 mil pessoas se dirigiram ao Palácio de La Moneda e pedira, exigiram “mano dura’ ao presidente Allende. Ele pediu calma, pois garantia que “as Forças Armadas” , sob comando do “grande General”, não fugiram às suas “tradições democráticas”.Allende afirmava: “ Os fascistas não passarão”. Mas eles passaram e transformaram o Chile num rio de sangue. Era um filme que eu já havia assistido no Brasil,em 1964. Aí, voltei a me lembrar de Djalma Maranhão e do ex-presidente João Goulart.

O golpe estava nas ruas. A minha mulher Isolda, meu filho e a filha que ela trazia no ventre, não poderiam mais ficar.Ajudado por companheiros exilados, consegui o dinheiro suficiente para a passagem de volta. Eu ficaria, pois voltar era impossível. Sozinho eu saberia enfrentar todos os desafios,até o da morte. Brasileiros eram praticamente caçados pela direita no Chile. Um deles, Milton da Silva, um jovem de 21 anos de idade, foi assassinado friamente pelos franco-atiradores do “Pátria y Liberdad”: dois tiros na cabeça.

Foi dura, terrível mesmo a despedida. Policiais brasileiros infestavam o aeroporto de Santiago. Isolda e Rubinho subiram na escada do avião. Longa espera e a notícia dolorosa:minha mulher, grávida e com um filho no colo, chegando ao Rio, fora arrancada de dentro do avião. Presa pelo único crime de ser mulher de Rubens Lemos.

Mais uma vez Erivan França.Cassado,injuriado, conseguiu localizar minha mulher e meu filho. Foram postos em liberdade, depois de muito sacrifício. Lá de longe , ao pé da fria e gigantesca Cordilheira, eu gritava a minha revolta. Sem nenhuma resposta. Foi uma noite de pesado e amargo silêncio.

 

 

Três dias e três noites de perigo na Cordilheira Sem Texto
Parte 4 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

 

 

 

 

 

 

Na Polícia Federal:ali começa a “Operação-Terror”
Parte 5 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Depois de me conseguir um colchão velho e nenhum lençol, o diretor da Colônia Penal me garantiu que Isolda(minha mulher)estava bem.Ela fora trancafiada numa cela, que era também enfermaria. O coronel Juvenal Andrelino, diga-se, não me dirigiu uma palavra agressiva,não me fez qualquer tipo de ameaça. No silêncio da noite, a realidade ia se tornando muito clara (e dura) para mim: aquilo tudo era o início, apenas o início. O começo de uma longa e penosa caminhada. Em nenhum momento acreditei naquele tratamento tão calmo que a Colônia Penal me dispensava. Eu sabia que o pior estava a caminho. E precisamente fazer chegar, imediatamente, para fora dos muros, a notícia da nossa prisão. Principalmente a de Isolda.O pensamento vagueava, pesado,tenso, quando vi duas mãos surgirem por entre as grades da janela. Um rosto apareceu e uma voz quase sussurrada me falou:” Rubens Lemos, conte a gente. Aguarde que, ainda hoje, vai aparecer alguém de confiança para levar recado à sua família. “ A voz era de Rinaldo, também preso político. Não demorou muito, um soldado surgiu na penumbra do corredor: “Gostaria de ajudar. Conheço você da Rádio Poty”. Era, mais uma vez, a solidariedade chegando. Em plena noite, na dura solidão de uma penitenciária. E reafirmei minha confiança no ser humano. Apesar da delação de que fora vítima.

Mas o sono não veio.Pensava em Isolda, pensava em Yasmine, a filha que me fizera atravessar a Cordilheira dos Andes para conhecê-la. Pensava no delator que não pensou em nada disso na hora de entregar à repressão dois seres humanos, que nada de mal lhe fizeram. Que cometeram, apenas o pecado da confiança.

O dia amanheceu, outra noite chegou, outro dia amanheceu.Era o 7 de setembro. As tropas desfilavam nas ruas engalanadas e as criancinhas de minha cidade agitavam bandeirolas verde-amarelas. Pelo rádio de uma cela próxima ouvia emocionados e patrióticos discursos, falando de paz,amor, segurança da família e, principalmente , Democracia. Pesou no meu peito uma certa sensação de desencanto e me lembrava da minha mãe evangélica, lendo trechos bíblicos para o seu filho caçula.Entre eles,um,que fala de hipócritas e fariseus.

Numa manhã, depois de oito dias em completo isolamento tiraram-me da cela. Fui levado até o Corpo da Guarda. E avistei Isolda: abatida,magra,olhos de desespero e dor.Foi um abraço longo e um beijo trágico. Agentes da Polícia Federal nos esperavam com algemas.Eu só pude dizer à minha mulher: “Não perca a calma. Você vai sair dessa”. Pouco depois entrávamos na Nilo Peçanha, onde permanecemos toda uma manhã algemados presos à uma cadeira. “ A Operação –Terror estava começando.


“RUBENS, PELO AMOR DE DEUS ASSINE!”

Os agentes se revezavam, fazendo perguntas capciosas. Um deles,moreno, meia-idade, alto ,magro,elegante, de nome Almeida, comandava.Fala mansa, elegante, fez a proposta:

- Você assina uma declaração, renegando tudo e tudo fica resolvido.Você e sua mulher saem daqui,agora mesmo, para casa. Vão poder abraçar seus filhos.

Eu lembro muito bem o que respondi.

- Eu não assino nada. Os senhores já me prenderam e é a vocês que cabe provar se sou culpado de alguma coisa.

Eles queriam me transformar em mais um arrependido. Em um novo G; o protótipo do dedo-duro. Eles queriam me transformar em rebotalho.Isolda me olhava com olhos de dor e angústia. O comissário Almeida insistia, voltando-se, agora, mais para minha mulher.

- Está vendo? A senhora está aqui por causa dele. A senhora está entregando pérola aos porcos. Ele quer nos obrigar ao que nos não queremos, ou seja, trazer aqui o seu filho Bimbo (Rubinho). A senhora quer isso?

Isolda entrou em pânico e, num apelo, que era muito mais que um apelo desesperado, chorando muito, me disse quase implorando:

- Rubens, pelo amor de Deus assine!

Foi um momento duro. Terrível. Eu que amava a todos, eu que cortara os pés, enfrentando perigos, apesar de todos os meus medos,para chegar a ela e aos meus filhos, surgia diante dela como um ser despido de qualquer sentimento.Os policiais conseguiam fazer, com perfeição, o jogo sujo. Com o coração pesado,mas com a certeza mais firme, virei-me para Isolda.

- Eles estão lhe jogando contra mim. Eles querem me degradar,mas eu não me degradarei. Não assino nenhum “arrependimento”. Eu quero um dia poder continuar olhando dentro dos olhos dos meus filhos.

Levaram Isolda para um sala no andar superior. Fiquei lá embaixo. Sem ter o direito de chorar. Não podia, não devia, revelar fraqueza. Isso é o que eles queriam. À tarde, chegou minha vez. Entrei numa sala, onde estavam rostos conhecidos, uns, desconhecidos outros. O major Alcântara comandava interrogatório. Capitão Galvão, da DOPS, o delegado da PF, Franklin, participavam. O major abriu uma pasta: ali estava “minha vida”, foi o que pensei. O interrogatório durou muito tempo. Até cartas que , do Chile, eu mandara para Isolda, estavam ali, fotocopiadas. Mostraram –me uma fotografia minha ampliada: eu, barbudo, cabelos grandes, usando uma pesada roupa de frio. A foto fora tirada em Santiago , na Plaza Bequedano. Não havia dúvida.

A Ditadura brasileira tinha seus tentáculos, seus esbirros espalhados por toda parte.

 

“PREPARE-SE PARA APANHAR MUITO”

Nessa mesma noite, minha mulher foi posta em liberdade. Guardado por agentes fortemente armados, fui levado de volta para a Colônia Penal. Os dias e as noites passavam lentamente. Nenhuma visita, notícias raras trazidas através de pessoas lá mesmo do presídio. Nem ameaças havia. Era como uma canção de Bethânia, a sensação de “um grito solto no ar”. Até que um dia, o sol começando a nascer, o carcereiro me acordou:

- Apanhe suas coisas, você vai embora.

Ao atravessar a longa galeria, um velho avisou: “Prepare-se para o pior”. Eu sabia disso. Desde o primeiro dia. De novo, os agentes da Polícia Federal, algemas. Deixaram-me várias vezes algemado, em posição bastante incômoda. Novamente caras conhecidas passavam por mim. Uns, faziam que não me viam. Outros, ainda arriscavam uma tímida saudação. E vi, ali , caras que ninguém desconfiava fossem agentes. Que se infiltravam nos bares,nas assembléias estudantis,nos debates culturais. Até que botaram óculos de borracha. Deitaram-me numa “Veraneio”. Antes, porém, pude vê-los. Entre eles, estava o “Doutor Aníbal”, com seu sotaque carioca e que viria a se transformar num dos mais frios e sádicos torturadores dos tantos que enfrentei. O carro rodava e rodava. Uma parada. Alguém mais era colocado no veículo. E fomos os dois para aquilo que se chamava de “Circo de Horrores” da Ditadura. Ao longo do percurso, aproveitando o barulho do carro, me identifiquei para o outro preso. Ele também. Era um ex-companheiro de rádio aqui, em Natal.E que sofreu muito também.

Viajamos durante cerca de quatro horas. O óculos de borracha queimava meus olhos. As algemas apertavam, cortando meus pulsos. E a Veraneio parou. Fomos tirados. Meu corpo era um dor só. Aos empurrões e pancadas fui levado para uma cela estreita e imunda. Não tinha a menor noção de onde estava. O carcereiro, de nome (ou codinome?) Valdeck, chegou.

- Tire a roupa. Prepare-se para apanhar muito. Um grito lancinante penetrou cela à dentro. Meu corpo cansado sobressaltou-se. Os músculos ficaram tensos, retesados. Mais gritos. Depois, puro silêncio. Aí, comecei a compreender o que era o ruído do silêncio. Comecei a perceber a necessidade de estar com a cabeça no lugar, de nunca perder a lucidez. Isto seria a minha única condição de resistir aos horrores que não tardariam a chegar.

Três homens abriram a cela. Puseram-me um capuz e amarraram meus pulsos com cordas de náilon. E uma voz falou: “Vamos, filho da puta, sua hora chegou!”.

 

 

 

Ele vai ver que aqui não adianta ser macho?
Parte 6 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos

Fui levado através do que me parecia um longo estreito corredor. Uma porta se abre. Empurrara-me com toda violência possível. As mãos atadas, capuz sobre o rosto. Escuridão total, um breu só. A porta se fechou. E ali fiquei. O silêncio era total e, acreditem, doía. Os minutos passavam lentos. Nada acontecia. Eu, em pé. O coração batendo forte, como um tamborim em carnaval de fim trágico. Descompasso. Minha cabeça era caleidoscópio. Tudo e todos passavam. Vi-me menino nas ruas de Currais Novos. Avistei caras de velhos companheiros de correrias e brincadeiras nas ruas ensolaradas de Mossoró. Até o burro "Chá Preto", lá de Pixoré, aparecia calmo e pachorrento. Nenhum ruído. Uma vontade de gritar, um desejo naturalmente tolo. Vejo-me, de novo, em Nova Dimensão. O violão de Roberto Maranhão, a voz:

Esta saudade,
tão cruel que alucina(...)
Quero que voltes
como a primavera(...)

Roberto Maranhão, Magnólia, Renato, Andréa, amigos que nunca fugiram ao difícil e grande gesto de solidariedade. A música me arrancava, por instantes, do terror em que me encontrava. Até que um grito estourou na escuridão:

- Seu nome, corno!
O coração bateu mais forte. E a resposta veio mecanicamente:

- Rubens, Rubens Manoel Lemos

- Está querendo brincar, subversivo de araque! Eu quero o sue nome de guerra, o nome da Organização, tudo, tudinho, entendeu?

- Não tenho nome de guerra.

Uma pancada violenta em atingiu a cabeça. Caí. De repente , chutes. Alguém pulou sobre minha barriga. Vomitei. Puseram-me novamente em pé. A voz sádica do doutor Aníbal:

- Vamos fazer uma ligação direta nesse sacana. Aí, ele vai ver que não adianta ser macho.

Amarraram-me a uma cadeira. Um fio foi amarrado no dedão do pé. E uma maquininha começou a funcionar. O choque elétrico. Era como formigas raivosas me penetrando. Depois, como labaredas queimando a alma. Gritei muito. A máquina parou. Os doutores da lei riam. Sem esperar, duas mãos explodiram contra os meus ouvidos.Um golpe terrível que me fez perder a noção das coisas. Em seguida, um soco fulminante no estômago. Desmaiei. Acordei pendurado tal qual um porco. Os pés sustentados em duas latas de óleo, que cortavam. As latas não suportavam o peso, caíam, e eu ficava apenas com a ponta dos dedos roçando o chão. Senti o cheiro da morte. Foi toda uma noite de tortura.


Companheiro eu vou me suicidar

Nove dias sem receber qualquer comida. Os três primeiros, sem tomar um copo de água. Única alimentação: torturas de toda espécie. Choques, pancadas, afogamento, roleta russa eram a diversão dos torturadores. E eu sem saber onde estava. O que estaria acontecendo lá fora? Só uma coisa me sustentava: eu não podia ser indigno. Não poderia revelar nomes e fatos. Era isso o que eles queriam. Passaram a me chamar de Chileno, eles os torturadores.

Trinta e três dias depois, corpo massacrado, jogam dentro da cela um outro preso político. Carlúcio, um operário, trazia as costas banhadas de sangue. Apanhara muito.Eu,havia chegado de mais uma sessão de tortura. Ele contou sua história e ,quase em desespero, falou:

- Companheiro, eu vou me suicidar.

Gritos, gemidos, choro de torturados enchiam todos os espaços daquele Circo de Horrores. Sem muitas forças, voz cansada, falei:

- Não faça isso. É isso o que eles querem. Será sua derrota e a vitória deles.

Um relógio bateu ao longe. As badaladas eram nítidas e pungentes. Foi Carlúcio quem me disse:

- Você está em Recife. Isto aqui é o DOI-CODI. Esta é casa que servia aos generais comandantes do IV Exército. O relógio que você está ouvindo é o da Faculdade de Direito do Recife.

As pernas doíam muito. Estavam inchadas. Trinta e três dias sem ver a luz do sol, sem tomar banho. As necessidades eram feitas numa garrafa plástica partida ao meio. O carcereiro Teles, com o seu sadismo de sempre chegou:

- Chileno, vamos ali. Você, hoje, vai conversar com uma pessoa muito importante.É a maior autoridade em subversão da América Latina.

Outra vez o capuz, algemas e pancadas. A voz com sotaque paulistano. O tom direto e cruel. Eu estava diante do Delegado Fleury, que veio de São Paulo para me interrogar. E, antes de qualquer pergunta,me deferiu um violento soco no estômago. Caí, como um saco vazio.

Fleury queria saber dos exilados. Quem era quem. Onde está Bruno Maranhão? E o Sargento Prestes? Eu sei que você morou na casa de Geraldo Vandré.

- Ou você conta tudo ou não sai vivo daqui.

A minha resposta foi a mesma:

- Desconheço tudo isso.

Uma voz conhecida apareceu na escuridão do meu capuz. Era a voz do Major Alcântara ,aquele que comandava os interrogatórios em Natal. Outra voz falou:

- Esse imbecil tá pedindo pra morrer!


VOCÊ NÃO VAI MORRER

Fui tirado da cela. Diante de mim, o doutor Fernando?, com uma bíblia na mão. Perguntou se eu acreditava em Deus. Respondi que minha formação religiosa era evangélica. Ele falou:

- Então você compreende que a própria bíblia justifica a violência. Cristo expulsou os vendilhões do templo à chibatadas. Pedro cortou a orelha de um centurião. Você está aqui para purgar seus pecados. O martírio é necessário para resgatar e purificar almas.

Eu arrisquei a perguntar:

- O senhor considera, então, a tortura como um ato de fé religiosa e cristã?

O doutor Fernando chamou o carcereiro Leite e ordenou:

- Leve esse canalha. Eu mesmo quero mostrar a ele o que é a bíblia.

Fui torturado por horas seguidas. E a pior tortura ocorreu quando puseram diante de mim um velho chamado Holanda, de Recife. Ele tinha o peito queimado por isqueiro. Um olho estava quase fora de órbita. Como se tivesse acontecido uma briga mortal entre dos galos. O velho Holanda me olhou, altaneiro:

- Irmão, eu sei que vou morrer, mas a ele não digo nada!

Diante dos torturadores eu disse:

- Não velho. Você não vai morrer. Mesmo que eles lhe matem.

Explodiu dentro de mim uma revolta enorme e, buscando coragem, não sei aonde, comecei a cantar:

Angústia, solidão, um triste adeus em cada mão, lá vai meu bloco, vai só desse jeito é que ele sai(...)
Por isso, quando eu passar,
Batam palmas pra mim


Gritos e gemidos calaram. E das imundícies das celas, uma voz tímida começou a cantar também. Outra voz de juntou. Outras vozes se juntaram. E os torturados fizeram um coro maravilhoso:

Merece uma homenagem quem tem forças pra cantar,
Tão grande é minha dor,
Pede passagem quando sai.
Por isso só, lá vai meu bloco, vai...

E todos os prisioneiros políticos do DOI-CODI assumiram a música como uma das formas de resistência. Apesar das ameaças do doutor Fernando, coronel à época, cujo verdadeiro nome é Cúrcio Neto. Que torturava presos, lia a bíblia e, depois ia, possivelmente, fazer amor com as mulheres.


 

 

“Minha morte havia sido decretada, mas fui salvo pelo gongo”
Parte 7 - Memórias do Exílio, por Rubens Lemos (Final)

Foram exatamente 60 dias no DOI-CODI, Recife.Quarenta e quatro dos quais de quase ininterruptas torturas. Dias de terror e solidão. Corpo dilacerado. Misturando medo e coragem,lágrimas escondidas por trás do capuz. Vendo seres humanos sofrendo iguais e piores horrores. Assistindo o desfile diuturno de pessoas em desespero e o orgasmo sádico de homens que representavam “a defesa da Lei e da Ordem”. Homens que permitiam que seus rostos fossem vistos. Os centuriões da Ditadura.

Esses “doutores”, sob o comando do então coronel Cúrcio Neto, espancaram jovens e velhos, violentaram mulheres, mataram brasileiros.Assassinaram ali mesmo, no DOI-CODI, na mesma casa que antes era usada pelos generais que comandaram o IV Exército, jovens como Emmanuel Bezerra,norte-rio-grandense e ex-presidente da casa do estudante.Emmanuel foi morto com um tiro de misericórdia, depois de cortado a tesoura por esses ensandecidos guardiães da “Democracia”.Mas, à época, os jornais publicavam de forma diferente. Diziam que Emmanuel morrera em São Paulo, depois de resistir e trocar tiros com as forças repressoras do Regime Militar.

Da mesma forma, o líder estudantil Mata Machado,a quem vi massacrando ensanguentado e digno.Vestindo cueca vermelha, já quase sem poder falar, olhou para mim e falou:

- Companheiro.Sou Mata Machado, dirigente da AP(Ação Popular). Eles vão me matar.Se você puder, avise aos outros que fiquem firmes, pois eu não falei, não abri nada.


E MATARAM MATA MACHADO

Sessenta dias, depois trouxeram minha roupa, as sandálias e o relógio. Novamente o capuz e as algemas.Fui levado ao que parecia uma garagem, pois era grande o barulho de carros.Depois de muito tempo, uma voz falou rápido e baixinho:

- Fique tranqüilo. Você vai ser levado de volta para Natal.

Nunca mais ouvi aquela voz, a única - no meio de tanto desprezo pelo ser humano – que me trouxe de volta um fio de esperança, pois eu estava, também, marcado para morrer. Vim saber disso tempos depois: alguém, até hoje não identificado, fizera chegar a Roberto Furtado um bilhete dizendo: “Seu amigo foi salvo pelo gongo.” Na verdade, o CENIMAR já determinara minha execução.

E voltei para Colônia Penal “João Chaves”, onde cheguei por volta da meia-noite.Os pés, a muito custo, sustentavam meu corpo estropiado.



JAILSON, “O BANDIDO”, ME SALVOU A VIDA

Para surpresa minha, quem me recebeu à porta da penitenciária foi o Tenente Adel, aquele mesmo que conhecera, nos anos 60, como ator do Teatro de Amadores de Natal e, depois, incorporado ao Grupo Jesiel Figueiredo. Adel me entregou ao Corpo da Guarda, de onde fui levado para uma cela de isolamento, chamada ironicamente de “lua”. Um velho e sujo colchão, um espaço estreito e um corpo quebrado.As calças não sustentavam no corpo esquálido. Dia seguinte a visita do médico. De forma profissional e correta me examinava.Era Berilo de Castro , irmão de Ney Leandro de Castro. O Berilo de grandes jogadas como centro-médio do América e do Alecrim.E sobre quem tantos comentários eu fizera quando nos microfones da Rádio Poty.

Os dias iam passando pesados. Nenhuma visita.Tudo era proibido. Até que semanas depois,fui levado à sala do diretor.À minha frente, Ivan Tavares, meu cunhado, escolhido para comprovar que eu estava vivo.Ele não conseguiu dizer uma palavra. Percebi que o choro estava entalado em sua garganta.”Tudo bem,tudo bem” eu disse.Logo depois,apareceu Isolda, minha mulher, num vestido amarelo bonito, como ela própria, ou como girassóis viçosos.

Levaram-me de volta à “lua”. Visitas só vieram a ocorrer muito depois .E dessa “lua” vi coisas dolorosas, senti a violência do cárcere.Presos comuns torturados, mortes ocorriam no presídio.E,uma noite, noite alta, acordei com uma gritaria enorme.A porta da minha estreita cela era aberta.não havia luz Mais ou menos onze presos comuns, considerados de alta periculosidade, aparentemente embriagados, foram postos (ou espremidos) dentro da cela Pressenti o perigo.Gritavam e brigavam.Entre eles, estavam “Mudinho”,”Penerá o Pé” e “Negro Anchieta”.Alguém falou :

- Vamos logo fazer o serviço nesse barão...

Levantei e só pude dizer coisas pouco convincentes. Mas, minha voz valeu porque outra voz surgiu perguntando:

- É Rubens Lemos quem está falando?

A voz era de Jailson Fortunato de Lima, que conheci criança,filho de gente querida dos tempos de Rádio Poty. E, das sombras da lua, Jailson disse:

- Nesse aí, pessoal, ninguém vai tocar.Rubens Lemos é gente de fé. Quem tocar nele, vai se entender comigo.

O silêncio foi completo.Minutos depois, a porta da cela foi aberta e eles foram embora. Antes, porém, Jailson Fortunato de Lima me abraçou e garantiu: “O serviço foi encomendado. Mas, daqui pra frente durma tranqüilo”. E nunca mais esqueci aquele gesto de alguém que era considerado bandido, mas, que, na verdade, me salvara a vida.

Outras coisas aconteceram na prisão.A prisão que conheci “Joca de Cininha”, Edmar Nunes Leitão, o “Antônio Letreiro”, matadores profissionais, como conheci marginais de todos os tipos.Homens que foram transformados em feras, em animais, por uma sociedade injusta, desumana, embora “cristã e temente a Deus”.

Fiquei mais de seis meses em “liberdade”. Uma liberdade que me impedia de trabalhar, de sair de Natal, de rever os filhos de uma anterior união, quando ainda tinha 19 anos. Lúcia que me fez avô aos 37 anos de idade.Marcos Wilson, que entrou num seminário do interior de São Paulo.Fábio César, que hoje, aos 21 anos, é universitário e líder sindical em Londrina.Esses, os meus filhos de uma relação fracassada e que, só muito tempo depois, consegui resgatá-los: como filhos e como pai.

Enquanto não saía o julgamento na Auditoria Militar, em Recife, sofri toda a sorte de constrangimentos em Natal.Fui levado, seguidas vezes, às salas de interrogatório da Polícia Federal e do Dops. Vi pessoas, que não imaginava, entre os interrogadores e que, hoje, são figuras respeitáveis e notáveis no Estado. Como vim descobrir, recentemente em Cuiabá, escondido sob o nome de um respeitabilíssimo advogado,a figura de “Cabo Henrique”, um dos mais frios torturadores do Brasil e que pertencia (?) aos quadros de oficiais das Forças Armadas Brasileiras.


APESAR DAS AMEAÇAS

Termino esta série de depoimentos.Que, é lógico não estão completos,mas representam a essência de todo um período em que fui participante. Corajoso ou não. Busco com isso deixar o meu testemunho.Algumas omissões de nomes e fatos foram necessárias. Por questão de segurança(não minha), mas de terceiros Apesar das ameaças recebidas por telefone, prossegui. Como quero prosseguir encarando a vida, como encaro meus filhos. Principalmente como encaro meu caçula Camilo, que escapou “aos perigos daquela vida”, vida minha, de Isolda Rubinho e Yasmine.e é a Camilo, como a todos os que lutaram (mortos ou vivos) e que continuam lutando pela verdadeira liberdade deste país, que dedico esse trabalho.


* O jornalista Rubens Lemos faleceu dia 04 de junho de 1999 aos 57 anos em Natal, vítima de hemorragia, decorrente de uma cirrose hepática.

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