Comitê
Estadual pela Verdade, Memória e
Justiça RN
Centro
de Direitos Humanos e Memória Popular
CDHMP
Rua Vigário Bartolomeu, 635 Salas
606 e 607 Centro
CEP 59.025-904 Natal RN
84 3211.5428
enviardados@gmail.com
Envie-nos
dados e informações: |
 |
 |
 |
 |
 |
 |
Comissões
da Verdade Brasil | Comissões
da Verdade Mundo
Comitê
de Verdade Estados | Comitê
da Verdade RN
Inicial
| Reprimidos
RN | Mortos
Desaparecidos Políticos RN |
Repressores
RN
Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvão
Livros
e Publicações
1964.
Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvão
Edições Clima
1994
Depoimento
com o Capitão Lacerda
O
fim de julho chegou sem novidades até
uma manhã em que fui avisada pelo
oficial de dia que me levariam, às
9 horas, para depor, na comissão
presidida pelo capitão Lacerda. Pela
quinta vez eu iria responder a um interrogatório
sobre os mesmos assuntos. Torturavam-nos
demais com tantas inquisições.
Do capitão Ênio Lacerda, conhecíamos
a fama de torturador, violento, e de quem
dependia a sorte de todos os presos políticos
à disposição dos militares.
Presidindo a Comissão Geral de Investigações,
designado pelo alto comando do Exército,
exercia um poder diabólico e impiedoso.
Naquele momento, não lembro se senti
medo ou cansaço. Lembro, porém,
que às 9 horas encontrava-me na sala
do interrogatório que era bem diferente
da sala onde depus com o delegado Veras.
Sentado
por trás de uma mesa, auxiliado por
um tenente e um sargento, o capitão
indicou-me uma cadeira. Não me olhava
e folheava papéis. Assim, deu início
às perguntas sobre as minhas supostas
atividades comunistas, sobre o prefeito
e sua equipe. Atemorizada com imprevisibilidade
do capitão, respondia com cautela,
escolhendo palavras e controlando as emoções.
Passamos toda a manhã falando sobre
as atividades culturais da Diretoria de
Documentação de Cultura. Quando
o capitão se referia ao prefeito,
enfurecia-se e mal controlava os gestos.
Às 12 horas, suspendeu o interrogatório,
autorizou-me a voltar para o almoço,
recomeçando às 14 horas. O
capitão, então apresentou-me
diversos poemas que haviam apreendido na
minha mesa de trabalho. Os poemas compunham
o repertório de um grupo jogral da
DDC e haviam sido apresentados, no início
do ano, encerrando um seminário de
cultura. Entre eles encontravam-se "Morte
e Vida Severina", de João Cabral
de Melo Neto, "Pátria Minha"
e "O Operário em Construção",
de Vinícius de Moraes. O capitão
irritou-se por se usar aqueles poemas como
cultura para o povo, "Pátria
Minha", então, chocava-o enormemente;
considerava-o ofensivo ao seu sentido particular
de pátria. Apesar da impossibilidade
de entendimento, manteve o interrogatório
com respeito e sem agressividade.
Quando percebi que estava encerrando, perguntei,
com muito cuidado, qual era a dificuldade
que os militares sentiam para compreender
o nosso trabalho na Prefeitura. Respondeu,
irritado, que eram os civis os denunciantes
da subversão e do comunismo na Prefeitura,
que aos militares cabia a defesa da pátria
e que ele iria até o fim na apuração
dos fatos e na punição dos
culpados. Não pude falar mais nada.
Um soldado entrou com um recado de algum
repórter do "Diário de
Natal", através do telefone,
pedindo informações sobre
o inquérito e perguntando se haveriam
novas prisões. O capitão irritou-se
e criticou rudemente a interferência
da imprensa; não foi atender ao telefone
nem deu explicações.
Às 18 horas, encerrou o interrogatório
e, sem me olhar, informou que, a partir
daquele momento, poderia aguardar o resultado
do processo em liberdade. Embora não
acreditasse completamente nas ameaças
do delegado Veras de me mandar para Recife,
não esperava sair da prisão
naquela noite. A liberdade era concedida
para responder a um processo que correria
na Justiça Militar, sob a vigência
de leis de exceção, impostas
pelos próprios militares. Aquela
liberdade significava, no momento, apenas
o sair da prisão. As ameaças
continuavam; bastava lembrar a expressão
contorcida do general Muricy pela televisão
para sofrer arrepios pela minha liberdade.
Despejando ódio contra os supostos
subversivos, o general transferia para eles
a revolta pelo episódio do acerto
de contas do então deputado federal
Leonel Brizola que, num inflamado e inconsequente
discurso no Fórum de Debates “Djalma
Maranhão”, em Natal, chama-o
de “gorila”. Mas, afinal, voltava
para a minha filha, minha família,
meus amigos e para meu quarto. Era quase
banal lembrar o meu quarto de dormir, mas,
naquele momento, ele fazia parte da minha
privacidade.
O estado emocional e luta para ser forte
na prisão já me cansavam enormemente.
O sofrimento de prisioneira, acrescido do
sofrimento pela família e pelos companheiros,
já me esgotava e fragilizava. Estávamos,
todos os perseguidos, unidos pelo mesmo
drama: na dor de meus pais estava a dor
de todas as outras famílias.
Diante de uma liberdade condicionada ao
resultado de um processo, senti-me comprometida
a comunicar ao capitão Lacerda que
gostaria de voltar ao quartel para visitar
o meu cunhado Moacyr de Góes, que
fora transferido do quartel da Polícia
Militar para as celas do 16° R1. Comuniquei,
ainda, que no dia da libertação
de Diva, teria que recebê-la em minha
residência, pois a dela não
mais existia; a mãe continuava hospitalizada
e ela sem emprego, demitida que fora pelo
governador e prefeito dos cargos de professora
do Atheneu e do Ginásio Municipal,
tendo a casa onde morava devolvida ao proprietário
por falta de pagamento do aluguel. O capitão
respondeu que Diva sairia no dia seguinte.
Ficou claro que as nossas prisões
Diva, Margarida e eu (Laly havia sido presa
pelo Exército) – haviam sido
decididas unicamente pelo delegado Veras,
presidente da Comissão Estadual e
de sua inteira responsabilidade. Os depoimentos
que decidiam nosso destino eram prestados
àquele delegado. O capitão
Lacerda nos interrogava para cumprir um
ritual da Comissão Geral do Investigações
mas não decidia sobre a nossa libertação.
Falou da liberdade de Diva antes mesmo de
ouvi-la e de ter elementos para julga-la;
sua liberdade fora decidida, então,
pelo delegado Veras, a quem Diva prestara
depoimento anteriormente. O capitão,
com aquela informação, confirmou
minhas suspeitas sobre a responsabilidade
de minha prisão e esclareceu algumas
dúvidas de ordem política
local. O capitão encerrou a conversa
autorizando visitar Moacyr e receber Diva.
Pedi-lhe, então, que mandasse vir
um táxi para voltar a casa. O então
sargento Elmar Guerreiro, datilógrafo
da comissão, ofereceu carona no seu
automóvel. Voltei à prisão,
pela última vez, para as despedidas
e apanhar meus objetos pessoais. Abracei
demoradamarte as companheiras e, por recomendação
do capitão, nada comentei sobre a
saída de Diva. Retirei-me sem pressa
daquele quarto de prisão, onde a
minha vida assumiu dimensões quase
infinitas. Cristo e eu sabemos quanta dor
e quanto apelo nos nossos diálogos.
Já era noite quando deixei o quartel
em companhia do sargento Elmar Guerreiro.
Sai para a liberdade, mas a liberdade na
ditadura era apenas um sonho e um desejo.
Nossa realidade era a vida um sobressalto
e nos movíamos em círculos
muito estreitos.
A vida da cidade aos poucos me era devolvida,
com ruas escuras e eu querendo claridade.
Desejava sentir a alegria de estar livre,
mas estava cheia de sombras. Em casa ninguém
me esperava. As lembranças do reencontro
com a família são vagas distantes.
Lembro os amigos chegando com flores e emoção.
Quase imediatamente apresentaram-se à
porta da casa um repórter e um fotógrafo
da “Tribuna do Norte”. procurando
entrevistar-me. O mesmo jornal do dia 20
de junho havia publicado a minha prisão
com a seguinte notícia:
“TRÊS AUXILIARES
DE DJALMA MARANHÃO DETIDAS NO 16°
RI.
Por determinação dos senhores
José Domingos e Carlos Veras, que
presidem o chamado inquérito da
subversão, foram detidas, na manhã
de ontem, as senhoritas Mailde Pinto,
Maria Diva e Margarida Cortês, responsáveis
pelos setores de “educação
e conscientização”
da Campanha de Pé no Chão
Também se Aprende a Ler.”
No domingo, 21, a mesma "Tribuna do
Norte" publicou:
“MULHERES.
Ainda repercute a prisão efetuada
sexta-feira última das três
professoras da Campanha de Pé no
Chão Também se Aprende a
Ler, a senhora Mailde Pinto e senhoritas
Margarida Cortês e Maria Diva, e
interrogações quanto aos
papéis que elas tinham na trama
subversiva abortada a 31 de março.
Fala-se em método de politização
com base na linha Havana-Pequim."
Os meios de comunicação cumpriam
o seu papel na divulgação
dos fatos e não se davam conta do
quanto expunham as nossas dores e o quanto
violavam a nossa intimidade. Unidos no processo
de massificação popular e
no anticomunismo indiscriminado, usavam
os perseguidos com sensacionalismo para
aumentarem suas vendas. Recusei-me a conceder
entrevista e prestar qualquer informação,
mas, no dia seguinte, lá estava eu
sendo notícia no jornal “A
Tribuna do Norte”:
“MAILDE E DIVA FORAM
LIBERTADAS.
A ex-diretora da DDC; senhorita Mailde
Pinto e a coordenadora da Campanha de
Pé no Chão Também
se Aprende a Ler, que se encontravam detidas
no Quartel do 16° RI há mais
de um mês, foram liberadas pelos
homens do chamado inquérito da
subversão na noite de segunda-feira.
Procurada pela reportagem em sua residência,
a professora Mailde Pinto, aparentemente
calma, negou-se a prestar qualquer declaração.”
Não foi possível defender
a minha privacidade e, naquela noite, toda
a minha sensibilidade estava exposta. Tive,
também, a surpresa de ver chegarem
à porta de minha casa dois oficiais
que, quando nas funções de
oficiais de dia, haviam sido meus carcereiros.
Recebi-os na calçada, sem entender
o que buscavam. Bastante encabulados e em
trajes civis, queriam cumprimentar-me pela
liberdade. Confessaram que haviam conseguido
ouvir a gravação de meu depoimento
com o capitão Lacerda, torcendo por
mim a cada pergunta e resposta. Agradeci,
surpresa e emocionada, àqueles homens
a quem temíamos tantas vezes, que
tinham as chaves de nossa prisão
e que, agora, demonstravam esconder uma
solidariedade que só podiam confessar
fora do quartel. Entreguei-lhes uma rosa
das que havia recebido e pedi-lhes que a
entregassem às companheiras. Despediram-
se e voltaram às suas obrigações
de carcereiros. Dias depois, indo ao quartel
visitar Moacyr, emocionei-me ao ver a rosa,
já murcha, dentro de um copo, por
trás das grades.
Diva chegou no dia seguinte, como estava
previsto; abatida e triste, sem lar, sem
emprego e sem referencial de vida. Laly
e Margarida só foram libertadas dez
dias depois, após a revogação
da prisão preventiva de Laly, que
fora decretada pela Auditoria Militar de
Recife. Diva levou ainda alguns meses para
conseguir condições de deixar
Natal e partir para o Rio de Janeiro.
Não consegui das companheiras de
prisão os depoimentos sobre as suas
experiências; razões pessoais
impediram-nas de voltar às lembranças
daqueles dias. Diva falou apenas do espanto
de ver serem queimados os livros das bibliotecas
que existiam nos Acampamentos Escolares
e as Cartilhas de Alfabetização
de Adultos da Campanha "De Pé
no Chão Também se Aprende
a Ler". Militares do Exército
fizeram uma fogueira com os livros em frente
ao então Centro de Formação
de Professores, no Baldo, onde funcionava
o Ginásio Municipal de Escola de
Comércio do Município. Ela
confessa que chorou.
Laly, que reside em Paris, de passagem por
Natal leu este relato e apenas comentou
detalhes sobre o que já estava escrito.
De Margarida ouvi apenas um desabafo: “Foi
tudo muito dolorido, muita destruição
na minha vida, tudo muito difícil,
não quero falar mais.”
Dias depois de minha libertação,
recebi de Djalma Maranhão um recado
pedindo para ir vê-lo no quartel da
Polícia Militar. Relutei bastante
em atender, mas acabei cedendo; havia tanta
insegurança em todos nós e
Djalma era tão odiado que temi pela
minha liberdade. Ele recebeu a mim e Dora
Furtado com o mesmo sorriso, tentando demonstrar
otimismo e crendo, ainda, numa esperada
volta do país à normalidade.
Não sei se por desinformação
dos reais acontecimentos políticos
ou porque desejava tanto a liberdade, ele
acreditava, para breve, a volta da democracia
ao país. Era difícil encarar
a realidade de ver Djalma naquela prisão,
politicamente destruído. tentando
sustentar uma esperança, enquanto
lá fora os militares endureciam cada
vez mais o regime. Dora Furtado e eu quase
não falamos. Ele queria detalhes
da minha prisão e das outras companheiras;
preocupava-se pela nossa segurança
e, principalmente, pelas consequências
que ainda poderiam vir, em decorrência
dos depoimentos. Queria saber, também,
se guardávamos dele alguma mágoa
pois considerava-se o responsável
pelo nosso envolvimento. Sentia-se causador
do sofrimento da equipe que fora massacrada,
como consequência da perseguição
política para destruição
de sua liderança. Preso e impotente,
Djalma comportando-se como um pai que não
pôde proteger os filhos. Despedimo-nos
com tristeza e admirando a resistência
daquele homem que lutava sempre e não
se sentia vencido.
Em nenhum instante daquele encontro comentou
o sofrimento da prisão nem as violências
físicas a que foi submetido e reveladas,
apenas, à sua esposa Dilma Ferreira
Siqueira, que acompanhou Dária, na
ocasião de uma visita.
Naquela tarde, uma das primeiras após
o golpe, elas foram ao quartel visita-lo.
Levadas pelo tenente Calado a uma cela onde
Djalma se encontrava, sozinho, tão
logo entraram receberam dele o apelo de
que procurassem o coronel Mendonça
Lima para denunciar que havia recebido pancadas
na cabeça. Estava nervoso e abatido.
O tenente Calado, que era conhecido pela
crueldade para com os presos, ficou muito
zangado, desmentiu a afirmação
e encerrou a visita.
Dário e Dilma dirigiram-se à
residência do coronel Mendonça
Lima, fizeram o relato e o apelo. O coronel
demonstrou espanto e despediu-as, deixando
a impressão de que tomaria providências
e seguiria, naquele instante, para o quartel
do 16° RI.
^
Subir
<
Voltar |