Comitê
Estadual pela Verdade, Memória e
Justiça RN
Centro
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Repressores
RN
Militantes Reprimidos no Rio Grande do Norte
Mailde Pinto Ferreira Galvão
Livros
e Publicações
1964.
Aconteceu em Abril
Mailde Pinto Galvão
Edições Clima
1994
Novas
prisões
As
prisões efetuadas pelo Exército
foram marcadas pelo aparato militar exagerado,
com exibição ostensiva de
armas e encenação de manobras,
como isolamento de quarteirões, cerco
e invasão de residências. Amedrontavam
as famílias e levavam o perseguido
sem explicações sobre o seu
destino.
Nas entrevistas com alguns companheiros,
falamos sobre as nossas experiências,
procurei apenas os mais íntimos respeitando-lhes
as emoções. Assim é
que as informações limitam-se
às lembranças de alguns momentos
vividos nas prisões e nas tentativas
de fuga.
EVLIM MEDEIROS
(Advogado
e ex-Presidente do Comando Estadual dos
Trabalhadores do Rio Grande do Norte)
O advogado Evlim Medeiros era membro do
Partido Comunista Brasileiro, dirigente
do Comando Estadual dos Trabalhadores do
Rio Grande do Norte e foi o primeiro a ser
preso no Estado pela ditadura militar de
1964. Sua prisão foi efetuada na
noite de 1° de abril, por ocasião
da invasão pelo Exército na
Prefeitura de Natal.
No relatório do delegado Carlos Veras,
foi acusado de pertencer ao Partido Comunista,
“contribuir para o partido
com a importância de cinquenta
cruzeiros mensais e haver disputado
a eleição para deputado
estadual sob a legenda do Partido Republicano,
apoiado não só pelo Partido
como por várias organizações
sindicais.”
Após vários meses de prisão
nos cárceres do 16° RI, conseguiu
habeas-corpus, concedido pelo Supremo Tribunal
Federal, requerido pelo deputado federal
Joaquim Inácio de Carvalho Neto.
HÉLIO XAVIER DE VASCONCELOS
(Advogado,
Professor de Direito da UFRN, Presidente
do Conselho Regional da Ordem do Advogados
do Brasil)
O advogado e ex-líder estudantil
Hélio Xavier de Vasconcelos encontrava-se
em vésperas de mudança para
o Rio de Janeiro e era hóspede de
uma família na rua Gonçalves
Ledo. No momento da prisão, ouvia
um noticiário político transmitido
através de um rádio, na voz
do jornalista Adalberto Rodrigues, que ameaçava,
entusiasmado: “Falta ainda muita gente
para ser presa ! Tem muita gente solta !”
(sic) Infelizmente, foi semelhante a este
o comportamento de muitas pessoas no Rio
Grande do Norte.
Hélio foi avisado pela empregada
da casa que um oficial do Exército
queria lhe falar e que a residência
encontrava-se cercada por soldados. Estando
no primeiro andar, foi até a janela
e viu o quarteirão até a esquina
cercado por soldados armados com fuzis e
metralhadoras, curiosas nas calçadas
e um jipe à sua espera. Apesar de
todo o aparato militar, o tenente Ronald
foi excepcionalmente gentil ao prendê-lo
e o fez como um convite para depor aconselhando,
no entanto, a levar a escova de dentes...
O tenente procurou pelos livros que possuía.
Estavam guardados na residência do
Sr. José Bessa, pai do estudante
Danilo Bessa, que era, igualmente, procurado.
Hélio respondeu que os livros estavam
em casa de um tio, já falecido. Deslocaram-se
à casa do tio que, em vida, fora
farmacêutico e, na sua biblioteca,
encontraram apenas livros sobre medicina,
farmácia e uns poucos de literatura,
entre os quais, um de capa vermelha intitulado
“Vingança Não”,
que foi levado. Os militares suspeitavam
dos livros de capa vermelha...
Hélio Vasconcelos consegue descrever
a prisão com ironia bem-humorada.
Conta que, chegando ao quartel do Regimento
de Obuses (RO) e entrando em uma cela especial
localizada dentro do alojamento transformado
em prisão, encontrou já prisioneiros.
Luiz Gonzaga dos Santos, Luiz Maranhão
Filho, o funcionário “Bual”,
da Rede Ferroviária, e José
Macedo, ex-tesoureiro do então Departamento
de Correios e Telégrafos, que já
fora preso em 1935, como participante da
intentona comunista. Hélio, ainda
atordoado pelo que lhe acontecia, perguntou:
“José Macedo, você, que
foi prisioneiro político, diga-me
como foi o tratamento?” Resposta:
Indescritível! Diante da enigmáticas
respostas. Hélio deitou-se na cama,
cobriu-se com um lençol e desistiu
de procurar saber o que o esperava.
O tratamento recebido pelos presos do Regimento
de Obuses era, no geral, menos repressivo
que o empregado no 16° Regimento de
Infantaria. Lá, a presença
ostensiva do Capitão Ênio Lacerda
deixava sob tensão permanente os
ocupantes das prisões. Certa vez,
Hélio teve a surpresa de ver, entre
os livros que chegavam apreendidos e que
se encontravam no corredor de entrada de
sua cela, um que ele mesmo havia oferecido
a Omar Pimenta, com dedicatória exposta,
em página virada, onde se lia: “Para
o professor Omar Pimenta, para que faça
da cidade de Natal o mundo do socialismo.”
O livro era “O Mundo do Socialismo”,
de Caio Prado Júnior.
No dia seguinte, chegou preso ao RO o professor
Omar Pimenta. Tentaram transformar o encontro
em gozação para se distraírem
e manterem o equilíbrio emocional
na comunicação entre os presos.
Hélio considera que a maior presença
no quartel era a do professor Luiz Maranhão
Filho. Entre todos era o único comunista
atuante e assumido. Mantendo-se com altivez
e força moral. Luiz distraía
os presos relatando suas experiências
em viagens e nos embates da vida. Entre
outras lembranças de Luiz, Hélio
fala de um momento de tensão entre
os presos quando iniciaram uma discussão.
O professor aproximou-se e falou para todos,
com muita calma: “Companheiros, lembrem-se
que o nosso inimigo estão lá
do lado de fora, não está
aqui dentro !” Repetiu a afirmação
e os presos exaltados contiveram-se, voltaram
às camas e ficaram em silêncio.
Hélio foi terrivelmente pressionado
nos depoimentos e vítima da técnica
da intriga usada pelos delegados Veras e
Domingos, que tentavam jogar os presos uns
contra os outros para conseguirem delegações
e confissões, mesmo que fossem falsas.
A justificativa para a prisão era
haver exercido liderança estudantil,
pertencer ao Centro de Cultura Popular do
Rio Grande do Norte e proferir palestras
nos sindicatos.
O primeiro habeas-corpus concedido
no Estado foi para ele, logo no mês
de agosto e requerido por orientação
de um parente militar e pertencente ao Superior
Tribunal Militar. A ordem de soltura foi,
rapidamente, divulgada entre os demais presos,
causando natural euforia.
Num anoitecer de agosto, o tenente Roosevelt,
assessor do capitão Lacerda, chegou
ao quartel da Polícia Militar, para
onde havia sido transferido Hélio,
a fim de prestar depoimentos com o delegado
Veras, ali instalado. O tenente chamou-o
e disse: “Há uma ordem de habeas-corpus
para o Sr.” e entregou a ordem de
soltura para assinar. Confiante e aliviado,
assinou o recibo e pediu para telefonar
chamando um táxi. O tenente respondeu,
sorrindo: “Não precisa. O Sr.
vai andando e encontra um táxi logo
ali”, e apontou para a saída
do quartel. Hélio saiu apressado,
com sua maleta de roupa e um travesseiro,
luxo permitido apenas no quartel da Polícia
Militar. Caminhou até o portão
de saída do quartel, deu mais alguns
passos e se deparou com um jipe do Exército
de onde saiam dois brutamontes e uma voz
que dizia: “Eu tenho uma nova ordem
de prisão com o Sr.” A voz
era a do coronel João José
Pinheiro da Veiga, que demonstrava nervosismo
como se fosse a vítima. Hélio,
muito surpreso, entrou no jipe e foi levado
para o quartel do RO, onde já havia
passado alguns meses, antes de ser transferido
para o quartel da Polícia Militar.
Ao entrar no alojamento-prisão alvoroçou
todos os presos. Omar Pimenta, com ironia
e decepção, perguntou: “Mestre,
o que é isso?” Hélio
respondeu, irritadíssimo: “É
habeas-corpus, em que dá...”
A reação dos demais presos
foi de tristeza e revolta pelo não
cumprimento e desrespeito à instituição
do habeas-corpus e por sentirem
que lhes eram tiradas as esperanças
e perspectivas de liberdade.
Na entrevista Hélio lembrou, com
emoção, os companheiros torturados
fisicamente no quartel do Regimento de Obuses:
Luiz Maranhão Filho, João
Doca Filho, Geraldo Mafra e Valter Nascimento.
Hélio continuou preso no RO até
o dia 18 de fevereiro de 1965, quando foi
libertado por um novo habeas-corpus,
mais de cinco meses após a sua segunda
prisão.
OMAR FERNANDES PIMENTA
(Advogado,
ex-Diretor do Ensino Municipal, ex-Chefe
de Gabinete da Secretaria Municipal de Educação
e Assessor Técnico da Secretaria
de Educação do Estado)
No dia 10 de abril, ainda exercendo funções
na Diretoria do Ensino Municipal, o professor
Omar Fernandes Pimenta foi preso por um
comando do Exército, no próprio
local de trabalho e levado para o quartel
do Regimento de Obuses. Foi ele o primeiro
técnico da equipe a ser encarcerado.
Sua prisão e a forma ostensiva como
foi efetuada assustou-nos muito. Todas as
prisões deixaram marcas profundas
nas famílias; a de Omar foi, simplesmente,
destruidora. Albaniza, sua esposa, sustentou
firmemente a luta em defesa do marido e
dos filhos menores, suportou humilhações
e dificuldades econômicas, resistiu
até à libertação,
mas sucumbiu ao esgotamento emocional e
hoje apenas sobrevive. De toda a equipe
de trabalho, Omar era o mais alegre. Descobria
e evidenciava o aspecto engraçado
de nossos apuros e conseguia superar, facilmente,
as “explosões temperamentais”
de Djalma, que não admitia erros
ou omissões na execução
dos trabalhos.
Na prisão, Omar conheceu a tortura
e sadismo de alguns militares. Certa noite
escura, levaram-no do local onde se encontrava
na prisão para uma cela de castigo,
diante do quartel, onde o largaram, sem
espaço para deitar, permanecendo
de pé até a madrugada, quando
vieram buscá-lo. A escuridão
era completa; era possível ouvir
o mar, mas não sabia onde se encontrava.
Nas noites de 1964, muitas coisas aconteceram
nos quartéis de Natal que não
queremos lembrar.
Omar falou do episódio pela primeira
vez vinte e oito anos depois, com a amargura
e a ironia de quem conheceu a tortura e
o desprezo pela dignidade humana. Sobre
os interrogatórios Omar guarda silêncio.
Recebeu habeas-corpus que, igualmente, não
foi cumprido. Libertaram-no e o prenderam,
em seguida; disse que teve liberdade para
caminhar apenas dez metros, sendo recolhido
novamente por soldados armados que já
se encontravam num jipe, à sua espera.
O ritual foi o mesmo vivido por Hélio
Vasconcelos. Conta que voltou à cela
irritadíssimo, repetindo para os
colegas que os militares brincaram de liberdade
com ele. Por sorte sua, tiveram que libertá-lo
três dias depois, como consequência
da chegada a Natal do general Ernesto Geisel,
que viajava em inspeção às
regiões militares, a fim de apurar
denúncias de não cumprimento
de habeas-corpus expedidos pelo
Supremo Tribunal Federal. Omar voltou, então,
para casa.
GENIBERTO DE PAIVA CAMPOS
(Médico
cardiologista, ex-professor da Universidade
de Brasília)
Geniberto despertou na manhã de 1°
de abril com as notícias do agravamento
da crise política nacional e ouviu
perplexo, pelo rádio, a informação
de que tropas militares já haviam
se deslocado de Minas Gerais, com destino
ao Rio de Janeiro. Sofreu, então,
o que considera “um impacto emocional”.
Com apenas vinte e dois anos de idade, não
possuía, ainda a perspectiva histórica
em profundidade para compreender aquele
momento da vida política brasileira.
Dirigiu-se à residência do
professor Moacyr de Góes, onde encontrou,
de passagem, o prefeito Djalma Maranhão,
com quem saiu de carro, tentando analisar
os acontecimentos e situar-se na nova realidade;
nos anos sessenta não existia ainda
a integração nacional através
de noticiários, como ocorre hoje,
via televisão.
Na condição de líder
estudantil, ajudou a organizar, no mesmo
dia, uma assembleia de estudantes universitários,
que se realizou na mesma sede do Diretório
Central de Estudantes. Nela procuravam avaliar
a crise nacional. Faziam pronunciamentos
e manifestações em defesa
da democracia e do presidente João
Goulart quando foram surpreendidos pela
invasão e ocupação
militar do DCE, comandada pelo então
major Estevão Mosca. A ocupação
foi pacífica, embora o universitário
Abelírio Rocha, desafiando baionetas
e metralhadoras, tenha subido em uma mesa
para lançar o seu protesto. Os colegas
conseguiram, rapidamente, imobilizá-lo,
retiraram-no e saíram sem outros
incidentes.
Com a intervenção do DCE,
as lideranças estudantis dispersaram-se
e procuraram se proteger, sumindo de circulação
por algum tempo.
Além da liderança estudantil,
Geniberto exercia o cargo de Diretor do
Ginásio Municipal e era integrado
à campanha “De Pé no
Chão Também se Aprende a Ler”.
Após um pequeno retiro em uma fazenda,
voltou às suas atividades de aluno
da Faculdade de Medicina, de onde foi levado
para a prisão do 16° Regime de
Infantaria, no dia 14 de abril.
Chegando cedo à prisão, foi
submetido a longo interrogatório
que durou até a noite, quando deram-lhe
uma refeição, um colchão
e uma coberta para dormir no chão
de uma cela. Na mesma noite foi, novamente,
levado para outro interrogatório,
quando o submeteram a impiedosa tortura
psicológica e aplicaram-lhe a técnica
nazista denominada “boite”,
que consistia em mantê-lo, por mais
de duas horas, em uma pequena sala escura,
sob uma forte luz contra o rosto e intenso
interrogatório. Geniberto permaneceu
nas celas dos quartéis por mais de
oito meses, suportando as humilhações
e constrangimentos impostos em 1964.
Até hoje sofre dificuldades com ambientes
fortemente iluminados.
FRANCISCO FLORIPE GINANI
(Médico
coloproctologista, professor da Universidade
de Brasília, Chefe de ColoProctologia
da UnB. Presidente da Sociedade Brasileira
de ColoProctologia)
Aos vinte e dois anos de idade, Ginani cursava
o segundo ano da Faculdade de Medicina,
era filiado à Juventude Universitária
Católica e participava da vida política
estudantil, como todos os jovens idealistas
e conscientizados de sua geração.
Em 1964, exercia o cargo de chefe de gabinete
da Secretaria de Educação
do Município assessorando o titular
Moacyr de Góes. Nos primeiros dias
do golpe militar foi convocado, algumas
vezes, para depor com o delegado José
Domingos, da Comissão Estadual de
Investigações.
Precisamente no dia 22 de abril foi levado,
por auxiliares do mesmo delegado, para depor
no quartel da Polícia Militar. Encerrado
o interrogatório, o escrivão
informou-o de que estava preso. Ginani perdeu
um ano de estudos, sofreu sete meses de
prisão nos quartéis da Polícia
Militar e 16° Regimento de Infantaria,
foi denunciado pela Auditoria Militar, que
julgou os atos de subversão no Rio
Grande do Norte, com as acusações
de haver participado de reuniões
da União Nacional de Estudantes e
proferir palestras em sindicatos. Obteve
habeas-corpus no final de outubro, foi solto
e novamente preso, na saída do quartel
do 16° RI, onde uma patrulha já
o aguardava. A nova prisão durou
mais cinco dias.
JOÃO FAUSTINO FERREIRA NETO
(Pedagogo,
Professor da UFRN, Deputado Federal)
O deputado federal João Faustino
Ferreira Neto presidia, em 1964, a União
Estadual de Estudantes e lutava pelas reivindicações
da classe.
Conforme consta de alguns depoimentos e
do relatório do delegado Carlos Veras,
no dia 1° de abril, convocou uma reunião
de universitários para manifestarem
apoio ao presidente João Goulart.
A reunião realizou-se na sede do
Diretório Central de Estudantes e
dela participaram Geniberto Campos, José
Arruda, Abelírio Rocha, Danilo Bessa,
Laly Carneiro e outros, tendo sido interrompida
pela invasão das tropas do Exército,
comandadas pelo então major Estevão
Mosca.
Esteve preso algum tempo no quartel da Polícia
Militar, foi denunciado pela Auditoria Militar
do Recife e excluído do processo
por habeas-corpus, requerido pelo advogado
pernambucano Roque de Brito Alves.
JOSÉ ARRUDA FIALHO
(Médico
cirurgião)
O médico José Arruda, universitário
de apenas 22 anos de idade em 1964, foi
mais um jovem a ter a vida interrompida
pela violência da ditadura militar.
Politizado e engajado no movimento estudantil
desde o curso secundário, Arruda
participava das lutas e reivindicações
estudantis, reuniões e eventos culturais
promovidos pelo Centro Popular de Cultura
da União Nacional de Estudantes,
Centro de Cultura Popular de Natal e congressos
sobre cultura popular.
No dia 1° de abril, encontrava-se em
reunião no Diretório Central
de Estudantes (DCE) no momento em que forças
do Exército ocuparam o edifício,
expulsaram os estudantes e fizeram intervenção
Expulsos da sede do DCE, alguns líderes,
entre eles Arruda, Francisco Ginani, Geniberto
Campos e Danilo Bessa, dirigiram-se à
Casa do Estudante para redigirem um manifesto
de protesto e em defesa da democracia, quando
foram interrompidos pelo presidente do Diretório
Estudantil da Faculdade de Direito, Sílvio
Procópio, que trazia um recado de
Hélio Vasconcelos recomendando a
se dispersarem e se protegerem, pois nada
restava a fazer; o golpe estava consumado
e as tropas nas ruas.
Pode se imaginar o desânimo e o espanto
daqueles jovens em luta pelos seus direitos
que, de repente, perdiam os sonhos, a esperança
e a segurança. O universitário
Sílvio Procópio transportou-se
às residências dos deputados
Djalma Maranhão e José Rocha,
onde já eram esperados e de onde
foram levados para uma fazenda, distante
da cidade. Arruda não viajou; refugiou-se
na Faculdade de Medicina, de onde foi retirado
pelos médicos Leônidas Ferreira
e João Campos, para a residência
do primeiro, onde permaneceu uns poucos
dias. Voltando a casa e às aulas,
foi logo procurado por uma patrulha do Exército,
que não conseguiu localizá-lo.
Acossado e sem condições de
escapar à perseguição
da ditadura, apresentou-se ao Quartel-General
do Exército, depois ao 16° Regimento
de Infantaria, onde esperava ser interrogado
e liberado, sendo recolhido à prisão
que durou mais de seis meses.
Arruda não sofreu a tortura física
maior, mas viveu o drama das constantes
ameaças pelos torturadores, que o
retiravam da cela nas madrugadas, para força-lo
a delatar companheiros, o que nunca aconteceu.
Os presos da sua cela, na defesa pela sobrevivência,
organizavam estudos de língua, história
e literatura; entre eles encontravam-se
alguns professores. As distrações
dependiam da criatividade de cada um dos
acontecimentos do dia. Apesar de pouca idade,
Arruda sentia-se forte e em condições
de suportar a violência daqueles dias;
acha que modificou a própria sensibilidade,
fortificando-a para os momentos mais diversos
de toda a sua vida. Relatou alguns momentos
de maior tensão no 16° RI, quando
os companheiros de prisão Valdier,
Eurico Reis e Moisés grilo eram torturados
fisicamente. Certo dia, no horário
de visitas, um sargento empurrou pelas costas
o preso Dr. Vulpiano Cavalcanti afastando-o
da esposa, dona Ângela. Naquele momento,
os presos sentiram tamanha revolta que renunciaram
às próprias visitas e entraram
nas celas. O oficial de dia, um universitário
oriundo do Centro de Preparação
de Oficiais da Reserva do Exército
e servindo em Natal, tentou dialogar com
os presos, que não cederam e a visita
foi encerrada.
Arruda relata uma visita feia pelo então
reitor da UFRN, aos presos do quartel da
Polícia Militar, ocasião em
que o Dr. Onofre Lopes ficou profundamente
chocado com a condição em
que se encontravam os universitários,
trancados em uma pequena cela e protestou
energicamente aos delegados Carlos Veras
e José Domingos, que o acompanhavam,
dizendo-lhes que “não podia
admitir aquele tratamento a jovens que representavam
o que havia de melhor na universidade”
e reclamou para todos os presos políticos
uma condição mais humana.
A partir daquela manhã, os presos
foram alojados no berçário
do hospital da Polícia Militar.
A ordem de soltura por habeas-corpus chegou
em outubro, na noite do dia do aviador.
Ele e Josemá Azevedo foram avisados
a se prepararem para serem libertados. Os
dois reagiram acuados e desconfiados: “Não
queremos sair para sermos presos novamente.”
O oficial insistiu: “Têm que
sair”. E chamou-os para dizer, confidencialmente:
“Rapazes, podem sair. Vocês
não imaginam a repercussão
daquelas prisões após os habeas-corpus.
A ordem de cima agora é para soltar
mesmo.” O oficial era um estudante
de odontologia do Recife, servindo temporariamente
no 16° RI. Eles confiaram, saíram
e não voltaram.
PAULO FRASSINETI DE OLIVEIRA
(Advogado,
Procurador Aposentado da Prefeitura de Natal)
O advogado Paulo Oliveira, com 27 anos de
idade em 1964, exercia o cargo de chefe
de gabinete do vice-prefeito Luiz Gonzaga
dos Santos e trabalhava, desde 1954, no
então “Jornal de Natal”,
posteriormente “Folha da Tarde”,
de propriedade do ex-prefeito Djalma Maranhão.
A entrevista com ele foi carregada de emoção
porque foi difícil para a sua sensibilidade
trazer à memória os amigos
de Djalma Maranhão, Luiz Gonzaga
dos Santos e Luiz Maranhão Filho,
que não sobreviveram à crueldade
da ditadura. Paulo falou, com muita amargura
e tristeza, dos sofrimentos dos pais pela
sua prisão e pela de seu irmão
Guaraci, mas conseguiu relatar alguns detalhes
dos episódios vividos em 1964.
Comentou que sua prisão deveu-se
à ligação pessoal e
de trabalho com Djalma e atuação
nas lutas estudantis desde o curso secundário.
Com destacada liderança universitária,
foi eleito, em 1961, secretário da
União Nacional de Estudantes (UNE),
cargo que exerceu durante um ano no Rio
de Janeiro, durante a gestão do então
presidente e líder da Juventude Universitária
Católica (JUC), Aldo Arantes. Para
os militares, o seu currículo foi
acrescido com uma viagem a Cuba, onde passou
um 1° de maio.
Na noite de 1° de abril, encontrava-se
no gabinete do prefeito Djalma Maranhão,
quando as tropas do Exército invadiram
a Prefeitura, armadas com metralhadoras.
Sua lembrança do episódio
é muito forte. Fala que sentiu pavor
da violência com que foram todos expulsos
naquela noite, com metralhadoras apontadas
em sua direção.
No dia 2, após as prisões
do prefeito e vice, refugiou-se com o irmão
Guaraci na fazenda de um tio, esperando
passar a truculência dos primeiros
momentos. Passados 8 dias e as prisões
se sucedendo, resolveu voltar. Três
dias após, saindo de uma matinê
de cinema, encontrou o desembargador Paulo
Luz e Louril do Nascimento que lhe comunicaram
a prisão do advogado Eider Moura.
Paulo compreendeu que estava chegando a
sua hora e comentou: “Não sei
o que fazer.” O desembargador aconselhou:
“Vá para casa pois ninguém
vai poder impedir a prisão de quem
eles decidirem.” Paulo foi para casa
e lá já encontrou os militares
do Exército, os pais chorando e os
livros espalhados pelo chão.
Levado para o quartel do 16° RI, foi
jogado em uma cela considerada “de
castigo”, onde encontrou o líder
sindical Evlim Medeiros, que advertiu para
o risco de serem torturados a qualquer momento,
como estava acontecendo com alguns presos.
Dias depois, transferido para outra cela,
encontrou o irmão Guaraci.
Os dramas dos presos políticos de
1964 assemelharam-se, são repetidos,
podem se tornar cansativos ao relato, mas
trazem o testemunho de uma tragédia
humana que não podia ter acontecido,
não pode se repetir o que não
se pode calar.
Com todos os demais presos, Paulo sofreu
o medo, a insegurança e a humilhação,
viu o terrível tenente Calado arrebatar
das mãos de sua mãe, dona
Iraci, e jogar fora, as frutas que lhe eram
destinadas e prescritas pelo médico
do quartel, capitão Dourado. Não
existiram super-homens nas celas dos quartéis
militares; existiram homens comuns, presos
num regime de exceção, convivendo
com torturadores, que chegaram a qualquer
hora da noite para aterroriza-los. Resiste-se,
resistimos com dignidade, até saímos
fortificados e engrandecidos, mas suportamos,
nos limites da resistência humana.
Transferido para o quartel da Polícia
Militar, com Djalma Maranhão e outros,
sentiu-se em quase bem-estar pelo tratamento
respeitoso ali dispensado aos presos políticos.
Lembrou, visivelmente tenso, a madrugada
da saída de Djalma Maranhão
para Fernando de Noronha. Naquela noite,
conseguiram com um policial uma garrafa
de aguardente, que tomaram antes de deitar.
Djalma, numa previsão incrível,
tomou a bebida e comentou: “Quem sabe...
está é a minha despedida...”
Ele sentia o peso do ódio contra
si, tinha ouvido no rádio de um soldado
um noticiário político e concluído
que a pressão para destruí-lo
politicamente atingia o limite.
A última visão que Paulo guarda
do amigo é da sua passagem pela porta
de saída, levando uma pequena mala.
Outra lembrança dolorosa ele guarda
ele guarda de sua estrada no quartel do
Regimento de Obuses, para onde foi, outra
vez, transferido. Os militares adotavam
o sistema de rodízio, seguramente
para aumentar a dificuldade de adaptação
dos presos. No RO, encontrou Eider Moura,
que relatou detalhes das torturas físicas
impostas ao professor Luiz Maranhão.
Paulo nunca esqueceu as marcas de óleo
na parede da cela, com a forma das mãos
de Luiz, ali deixadas no ato de se amparar,
quando voltava das sessões de tortura,
onde era pendurado pelos pés e mergulhado
num tonel contendo água e óleo.
Paulo comentou, também, a ajuda de
alguns, como o então recruta do 16°RI,
Fernando Bezerril, que fazia, secretamente,
a comunicação entre ele e
a sua família, e ressaltou a discreta
solidariedade dos oficiais e subalternos
do quartel da Polícia Militar de
Natal.
Foi libertado no dia 26 de janeiro de 1965,
por habeas-corpus, ficando ainda obrigado
a apresentar-se, todas as quintas-feiras,
no quartel-general. Para livrar-se daquela
obrigação novo habeas-corpus
foi impetrado pelo professor Carlos Varela
Barca.
Como todos os funcionários do Estado
e do Município, foi demitido por
decreto do então governador Aluízio
Alves. O mesmo advogado Varela Barca conseguiu
sua reintegração, pois o ato
de demissão contrariava até
o que dispunha o Ato Institucional 1.
GUARACY QUEIROZ DE OLIVEIRA
(Advogado,
Conselheiro da Secção Regional
da Ordem dos Advogados do Brasil, Procurador
Aposentado da Prefeitura Municipal de Natal)
Em 1964, o advogado Guaracy Queiroz encontrava-se
tranquilamente estabelecido no seu sistema
de vida, com um escritório e um emprego
na Câmara Municipal de Natal. Entre
seus amigos estavam o vice-prefeito Luiz
Gonzaga dos Santos e o então suplente
de deputado federal Aldo Tinoco, com quem
conversava sobre as reformas de base para
o país; desejava-as, mas não
participava das lutas reivindicatórias.
A única participação
política de sua vida aconteceu em
1948, durante a campanha de "O Petróleo
é Nosso", quando dirigiu um
jornal estudantil.
Deflagrado o golpe militar e as prisões
se sucedendo, inclusive de alguns amigos,
resolveu sair, por uns dias, e ficar com
seu irmão Paulo Frassineti, na fazenda
de um tio. Regressando a Natal, voltou à
quase normalidade de sua vida, embora angustiado
e inseguro, como acontecia com a grande
maioria dos brasileiros que viveram a ditadura
militar implantada em 1964.
No dia 13 de abril, encontrava-se em sua
residência com a esposa no sétimo
mês de gestação, quando
um comando do Exército chegou para
prendê-lo. Levaram-no para o quartel
do 16° RI de Infantaria onde permaneceu
alguns meses, sendo transferido para o quartel
da Polícia Militar e, por último,
para o Regimento de Obuses, completando
mais de dez meses nos cárceres militares.
Até o momento, até abril de
1993, Guaracy desconhece a causa real da
perseguição e prisão
que desarticulou, por longo período,
a sua vida. No processo não havia
uma articulação formal; foi
intimado a defender-se de corrupção
e subversão, sem especificarem atos
cometidos.
Dos diversos interrogatórios que
respondeu, lembrou que perguntaram "Você
é comunista?" Resposta: "Não,
sou nacionalista!” Ao que contestaram:
"Pois é a mesma coisa!"
Na comissão de inquérito da
Câmara Municipal, o vereador José
Guará interpelou: "Você
acha que o almirante Aragão é
almirante do povo?” Resposta: "Acho
que ele é almirante da Marinha."
As perguntas eram tão sem sentido
e irresponsáveis para um momento
grave e decisivo na vida dos acusados que
custa a acreditar tivessem os inquisidores
compromisso com a dignidade da própria
imagem. Guaracy comentou que, para todos
os presos, os momentos mais dramáticos
eram os vividos nos interrogatórios.
Referências amargas foram feitas sobre
a fome que passavam; a comida de péssima
qualidade chegava fria e descuidada, algumas
vezes sem talheres. Certa ocasião,
aproveitando uma visita aos filhos, dona
Iraci, sua mãe levou um sanduíche
de pão com carne. Ao tentar entregar,
recebeu, do capitão tapa na mão.
O pão caiu longe e ela saiu em pranto.
Na aparência, os detalhes podem ser
banais, mas são detalhes que tornaram
quase insuportável a vida nos quartéis.
Em janeiro de 1965, Guaracy, seu irmão
Paulo e outros presos continuavam, ainda,
no quartel do Regimento de Obuses e já
o comandante Caldas apresentava solidariedade
e preocupação com a demora
dos habeas-corpus. Finalmente, no mês
de janeiro, foram postos em meia liberdade,
com o compromisso de se apresentarem, semanalmente,
ao quartel-general do exército até
a concessão de outro habeas-corpus,
requerido pelo professor Carlos Varela Barca.
RAIMUNDO UBIRAJARA DE MACEDO
(Jornalista)
Raimundo Ubirajara de Macedo, jornalista
e funcionário do então Departamento
de Correios e Telégrafos, onde exercia
o cargo de Secretário do Diretor
da mesma repartição, foi preso
no dia 7 de abril e levado para o quartel
do 16° RI, onde já se encontravam
o prefeito Djalma Maranhão, o jornalista
Carlos Lima, o então deputado Aldo
da Fonseca Tinoco, o sindicalista Evlim
Medeiros, o advogado Geraldo Pereira de
Paula e outros.
Ubirajara não foi molestado fisicamente,
mas considerou uma tortura psicológica
a ameaça disfarçada do capitão
Lacerda, que o interrogou em frente ao símbolo
da justiça, fixo à parede
e, nele pendurado, uma virola que era o
instrumento usado para as torturas físicas
de aplicação de pancadas.
No interrogatório foi pressionado
para informar onde se reuniam os comunistas
dos Correios e Telégrafos e intimidando
a explicar os artigos que publicava no jornal
"Folha da Tarde", nos quais defendia
idéias políticas nacionalistas.
As acusações eram, como todas,
forjadas para aterrorizar, sem apresentarem
fatos concretos. Lembrou detalhes que dão
a idéia da condição
humana na vivência diária dos
prisioneiros; falou de Djalma Maranhão
com admiração pelo equilíbrio,
resistência moral e liderança
conservados, ainda, na prisão. Do
preso Luiz Gonzaga de Souza, diretor do
então Correios e Telégrafos,
professor do Atheneu e dedicado à
literatura. contou que algumas noites ele
passava a recitar na cama, poemas de Fagundes
Varela, Castro Alves e outros. Certa noite,
interrompeu um longo poema, levantou-se
e indagou, solene: "Quando é
que a gente vai sair desta merda" Todos
riram. Comenta, ainda, que os presos conviviam
bem, apesar dos limites de espaço
e tensão emocional.
Falou também de um episódio
lamentável que demonstra os critérios
adotados para efetuarem prisões.
Um comentário infeliz do capelão
do Exército, padre Eymard Monteiro,
provocou a prisão de um homem simples
e sem militância política.
Visitando as celas dos presos, em companhia
do coronel Mendonça Lima, o capelão
exclamou: "Estou sentindo falta aqui
do meu compadre "Doca", porque
ele gostava..." No dia seguinte, chegou
preso João Doca Filho, que somente
foi libertado muitos meses depois, já
pelos últimos habeas-corpus. O "compadre
Doca” era um modesto funcionário
do Departamento de Correios e Telégrafos,
com muitos filhos e difícil situação
econômica.
Ubirajara lembrou os casos de tortura acontecidos
no 16° RI, foram torturados, em diversas
ocasiões, os presos Valdier Gomes,
Eurico Reis, Moisés Grilo e, uma
vez, Floriano Bezerra. As torturas eram
do conhecimento de todos os presos e pode-se
imaginar a tensão emocional em que
viviam, sob o risco constante de serem levados
pelo capitão Lacerda, para os mesmos
fins. Comentou, ainda, Ubirajara, que a
última seção de torturas
aconteceu num dia dedicado à assunção
de Nossa Senhora, fato que lhe fez reacender
a fé religiosa por considerar que,
naquele dia, acontecera um milagre.
Era feriado no quartel, não havia
circulação de veículos
e de pessoas quando viram chegar o capitão
Lacerda, dirigindo o seu próprio
carro. O preso Dr. Vulpiano Cavalcanti previu
o que ia acontecer e aconselhou aos que
eram comumente torturados e apanhavam em
silêncio a gritarem o quanto fosse
possível.
O capitão Lacerda levou o preso Valdier
e deu início a mais uma sessão
de tortura. Valdier gritou muito. Moisés
Grilo gritou mais. Eurico Reis apelou por
Nossa Senhora e gritou o mais alto que pôde.
Naturalmente, os gritos foram ouvidos por
todo o quartel. Daquele dia em diante acabaram-se
as torturas no 16° RI.
Poucos meses depois, com o fim das investigações,
o temido capitão Lacerda foi transferido
de Natal.
Libertado em 19 de março de 1965,
após 12 meses de prisão, Ubirajara
deixou, ainda presos, dois camponeses. Um
deles, o Sr. Manoel Bento, ruralista de
Canguaretama, nunca demonstrou, nas conversas
entre os presos, que tivesse qualquer envolvimento
político.
LUIZ GONZAGA DE SOUZA
(Advogado,
ex-Professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense,
ex-Diretor do Departamento de Correios e
Telégrafos)
Convivi com Luiz no então Departamento
de Correios e Telégrafos e conheci
seu gosto pela literatura francesa que lia
no original. Freqüentei a biblioteca
de sua residência de onde levava livros
emprestados e conversávamos sobre
poesia, uma de suas paixões.
Na avalanche de caça às bruxas,
lá foi ele parar nas celas do 16°
Regimento de Infantaria, como ex-integrante
do Partido Comunista Brasileiro e acusado
de executar uma administração
subversiva na repartição que
dirigia.
Carente de beleza e sensível, valeu-se
da poesia para suportar a solidão
e o tédio das noites da prisão.
Este era o Luiz que conheci, divagando acima
do feio da vida e construindo com as suas
cores o mundo que lhe convinha.
Luiz morreu há alguns anos e não
chegamos a conversar sobre a prisão.
Não tenho dúvidas, no entanto,
de que falaria com fina ironia e muita distância
dos seus perseguidores.
CARLOS ALBERTO DE LIMA
(Jornalista,
Empresário e Editor)
Entre as amargas lembranças de Carlos
Lima, preso nos primeiros dias de abril
e encarcerado no 16° RI, ficou, especialmente,
uma certa meia-noite em que o capitão
Lacerda, com a grosseria que lhe era peculiar,
acordou os presos ordenando que juntassem
os seus pertences e saíssem das celas
pois estariam sendo transferidos para o
confinamento da ilha de Fernando de Noronha.
Caminharam um pouco e apagaram-se as luzes
do quartel, ficando na escuridão
absoluta. Djalma Maranhão advertiu
em voz alta que todos ficassem parados,
sem qualquer movimento que pudesse justificar
uma reação armada contra uma
pretensa fuga. Percebeu a cilada e o risco
de serem metralhados com a desculpa de tentarem
a fuga. Passados alguns minutos, acenderam-se
as luzes e foram todos transferidos para
outras celas, nos fundo do quartel.
Carlos Lima foi uma das vítimas de
tortura por parte do capitão Lacerda.
Levado a depor e tendo o seu depoimento
coincidido com o do prefeito Djalma Maranhão,
o militar zangou-se e interrogou-o novamente,
afirmando que haviam combinado previamente
as respostas. Não conseguindo contradições
no segundo depoimento, o capitão
o levou para uma cela especial de castigo,
medindo um metro de diâmetro, deixando-o
incomunicável por três dias
sobre o cimento molhado.
A sensibilidade de Carlos Lima e seus problemas
de saúde inibiram-me de insistir
nas suas lembranças de 1964.
GERALDO PEREIRA DE PAULA
(Advogado,
ex-funcionário do Departamento de
Correios e Telégrafos)
Contratado como advogado das Ligas Camponesas,
uma sociedade civil com personalidade jurídica
criada para defender os interesses dos trabalhadores
do campo, atraiu contra si a fúria
do patronato rural e a acusação
de subversivo em 1964. Na primeira semana
de abril, encontrava-se na cidade do Recife,
acompanhando a cirurgia de uma filha. Voltou
a Natal no dia 10 e foi logo informado que
havia sido procurado por militares do Exército,
com um recado para se apresentar ao coronel
Estevildo Caldas, no 16 ° Regimento
de Infantaria.
Dirigiu-se ao quartel, convencido de que
prestaria algum esclarecimento, sem maior
conseqüência. Ao se apresentar,
foi logo colocado em uma cela, onde já
se encontrava o pastor protestante José
Fernandes Machado. No dia seguinte, o capitão
Dover levou-o para o isolamento de outra
cela, localizada nos fundos do quartel e
vizinha à sala do capitão
Guedes.
Levado a depor na noite do dia l l, foi
submetido à tortura conhecida como
'boite', que consistia em ficar sentado
frente a uma fortíssima lâmpada,
distante dos seus olhos apenas uns vinte
centímetros. De cada lado, um soldado
encostava-lhe uma baioneta abaixo de cada
braço. Sem poder se mexer, Geraldo
suportou a tortura por, aproximadamente,
três horas, rodeado pelo capitão
Dover e pelos tenentes Calado e Castelo
Branco, até a entrada do coronel
Mendonça Lina, a quem reconheceu
pela voz. Ao coronel, que antes havia comparecido
à cela e ironizado o preso, afirmando
que " quem tomou conta do Brasil foi
o Exército brasileiro, não
foi Hitler nem Mussolini", Geraldo
apelou: “coronel o senhor disse que
quem tomou conta do Brasil foi o Exército
brasileiro; no entanto, estão aplicando
os métodos de tortura usados pelas
SS de Hitler". O coronel disse apenas:
“Desliguem a luz”, e retirou-se.
De volta à cela sem alimento e sem
água por quarenta e oito horas; quando
levaram comida não lhe deram água.
O sol penetrava na cela, fazia muito calor
e, com a sede, entrou em desespero. Chamava
pelos sentinelas e não lhe atendiam.
Passou a chutar a porta que foi aberta pelo
capitão Guedes que, surpreso, indagou
o que estava acontecendo. Informado de que
Geraldo estava sem tomar água há
dois dias, retirou-o da cela, mandou-o sentar
e ordenou à sentinela que trouxesse,
do restaurante dos oficias, um litro de
água gelada e um copo. O soldado
voltou e comunicou que o oficial de dia
havia dito que não era para fornecer
água por dois dias. O capitão
Guedes zangou-se e determinou: “Volte,
diga que mande a água se não
vou lá prendê-lo! Não
admito este tipo de tratamento a um preso.”
A Geraldo: “O senhor pode ser o que
for. Se é comunista prendam e processem
mas isso não!" Geraldo saciou
a sede.
No dia seguinte, foi retirado do isolamento
para uma cela maior, onde encontrou diversos
outros presos.
Geraldo foi interrogado apenas duas vezes
uma pelos militares e outra pelo delegado
Veras. Em outra ocasião, foi salvo,
mais uma vez, pelo coronel Mendonça
Lima, quando o capitão Dover mandou
buscá-lo algemado e escoltado. No
encontro, o capitão cumprimentou-o,
com desdém: - "Bom-dia "Seu"
Geraldo." - "Bom- dia 'Seu' Dover."
O capitão se enfureceu e vociferou:
"Seu" Dover? Eu sou capitão!"
Geraldo revidou: “Eu sou Doutor!”
O capitão partiu para agressão
física e Geraldo gritou: "Vai
me bater? Não pensei que um oficial
do Exército brasileiro batesse num
preso algemado!" Entrou o coronel,
advertiu o capitão e o preso foi
levado de volta.
Lembrou, ainda, o sofrimento e a resistência
física do companheiro de cela João
Soares, que apanhou oito surras, voltava
sangrando e o próprio Geraldo tirava-lhe
as roupas e lhe aplicava compressas molhadas.
O habeas-corpus de Geraldo chegou
em fins de outubro, juntamente com os de
Luiz Gonzaga dos Santos e outros presos,
quando se encontrava no quartel da Polícia
Militar, para onde fora transferido. O major
João Pinheiro da Veiga procurou-os
à noite, mandou assinar a ordem de
soltura, mas impediu que telefonassem para
a família ou pedissem um táxi.
Geraldo percebeu que militares do Exército
encontravam-se em frente ao quartel e propôs
dormir no chão do pátio, alegando
que não gostaria de sair a pé,
na escuridão da noite. O major argumentou
que estavam livres e não podiam pernoitar
no quartel. Obrigados a sair, foram presos,
novamente, na calçada, e levados
de volta. Geraldo perguntou: "Major,
eu gostaria que me dissesse qual foi a subversão
que fiz daqui para o portão. Pelo
que eu teria feito antes, o Supremo Tribunal
Federal já decidiu mandar me soltar..."O
major retrucou: "O senhor tem ainda
coisas a explicar..."
Geraldo conseguiu passar um telegrama, em
nome da esposa Anita, para o ministro Ribeiro
da Costa, presidente do Supremo Tribunal
Federal, e para o ministro da Guerra, general
Costa e Silva. Poucos dias depois, foram
postos em liberdade.
Em liberdade, conviveu com a rejeição
e o preconceito contra os considerados subversivos.
Nas rodas de conversas habituais no Grande
Ponto a que sempre freqüentou, passou
a ser discriminado, acintosamente. Resolveu
divertir-se, dissolvendo grupos; aproximava-se
e os companheiros de antes afastavam-se
e ele ficava só.
Da tortura na "boite", restou
a Geraldo Pereira de Paula séria
e irreversível lesão nos olhos.
CARLOS ALBERTO GALVÃO
(Economista,
Empresário)
Em 1964, o empresário Carlos Alberto
Galvão era funcionário do
então Instituto de Aposentadoria
e Pensões dos Industriários
e amigo pessoal do vice-prefeito Luiz Gonzaga
dos Santos, com quem colaborava na secretaria
do Partido Trabalhista Brasileiro, que Luiz
dirigia a nível municipal. Carlos
tocava seus negócios comerciais –
um bar e a então Sorveteria Oásis
- e sua vivência politica limitava-se
à consciência critica da exploração
do país pelas multinacionais americanas.
Viveu o l° de abril entre os negócios
e a preocupação com o país
comum a qualquer cidadão. No dia
4, ao sair da sua residência, foi
abordado por dois militares à paisana,
que se identificaram como sargentos do Exército
e o intimavam a comparecer ao quartel do
16° Regimento de lnfantaria. No quartel,
já ao anoitecer, colocaram-no em
uma cela de isolamento onde ficou sem nenhum
contato humano, além da sentinela
que trazia a comida em silêncio. Em
uma ocasião da troca da guarda ouviu
uma recomendação: "Cuidado
com este prisioneiro que ele é muito
perigoso." lncrédulo e assustado,
questionava se aquele prisioneiro perigoso
seria ele. A tensão do isolamento
crescia e foi agravada por um tiro casual
que um sentinela disparou na janela, cuja
bala entrou na cela. Houve um corre-corre
e nova recomendação: "O
prisioneiro é muito perigoso..."
Um oficial que se dizia espírita
passou e entregou-lhe uma Bíblia.
Fragilizado fisicamente, Carlos atingiu
o limite da resistência e foi acometido
por um colapso periférico. Quando
despertou, os que o rodeavam estavam muito
assustados; foi atendido pelo capitão
Dourado, médico do quartel. No dia
seguinte, levado a depor com o capitão
Lacerda, observou, em cima da mesa que os
separava, uns aparelhos usados para aplicação
de choques elétricos. O capitão
avisou que se tratava de um detector de
mentiras. O interrogatório, que iniciou
tenso, foi logo interrompido por ordem do
coronel comandante e retomado depois, com
a presença de um médico. Da
sala de interrogatórios foi levado
por uma escolta e, na passagem, viu toda
a tropa formada e perfilada Ficou muito
assustado, associando ao episódio
vivido por Luiz Maranhão em uma de
suas prisões, quando foi humilhado
e apresentado a toda a guarnição
como traidor da pátria. Carlos confessa
que era muito sugestionado pelas notícias
das torturas da guerra. No momento em que
entrava em outra cela, começaram
a tocar o Hino Nacional. Os soldados perfilaram-se
e ele parou, meio apavorado, olhos arregalados,
barba crescida, assustando os companheiros
que ali se encontravam e que o imaginaram
louco.
Meses depois foi transferido para o quartel
da Polícia Militar, onde conseguiu
saber que era acusado de contrabandear armas
e manter comunicação, via
radioamador, com Cuba, Pequim e Moscou.
Compreendeu, então, porque o consideravam
muito perigoso... Seu envolvimento com armas
resumira-se a possuir dois rifles sem uso
e, em algum tempo, haver vendido dois ou
três revólveres que um parente
havia trazido dos Estados Unidos. Da acusação
de radioamador sobrou um prejuízo
para o seu primo dentista Clemente Galvão,
que lhe entregou para mandar consertar um
receptor de radioamador, que foi apreendido
e nunca devolvido. As acusações
foram tão sem fundamento que a Auditoria
Militar do Recife não o denunciou.
No dia 23 de outubro, foi liberado por habeas-corpus
e, em companhia de outros presos, recolhido
novamente à prisão. Foi libertado
dias depois.
Carlos reassumiu os negócios e verificou
que se encontrava à beira da falência.
MARCOS JOSÉ DE CASTRO GUERRA
(Advogado,
Doutor em Direito Internacional do Desenvolvimento,
Consultor Internacional (UNESCO, FAO, OIT,
PNUD, UNICEF, CEE), Consultor das Nações
Unidas no Brasil, Secretário de Educação
e Cultura do Rio Grande do Norte)
Em 1964 o universitário Marcos Guerra
coordenava a aplicação do
método de alfabetização
do professor Paulo Freire no programa de
alfabetização de adultos desenvolvido
pelo governo, iniciado em 1962, na cidade
de Angicos, através do Serviço
Cooperativo de Educação do
Rio Grande do Norte (SECERN), autarquia
fundada com o objetivo de agilizar o acordo
de cooperação firmado entre
o governo americano e o governador Aluízio
Alves através da Aliança para
o Progresso e da SUDENE.
Com a eficácia do método no
desenvolvimento do programa de alfabetização
em Angicos, e estando o professor Paulo
Freire na presidência da Comissão
Nacional de Educação Popular,
criada pelo Ministério da Educação
do governo João Goulart, o mesmo
sistema de alfabetização estender-se-ia
para outros Estados, a começar por
Sergipe, no governo Seixas Dória.
Para lá dirigiu-se Marcos a uma pequena
equipe do SECERN, com a finalidade de formar
professores e técnicos.
Em Aracaju, encontrava-se no dia 1°
de abril. Consumado o golpe, decidiram voltar
a Natal e o fizeram via cidade de Caruaru,
onde ficaria uma companheira, filha do prefeito
do município e aliado político
do governador Miguel Arraes. Na residência
do prefeito, foram cercados por uma companhia
do Exército de que iriam reforçar
o movimento de guerrilhas. Liderado pelo
prefeito. Presos e algemados, foram transportados
em cima de um caminhão para o Recife
e entregues ao centro de triagem e interrogatório
do coronel Ibiapina, que se destacou pela
repressão e tortura aplicada aos
presos. Identificados durante os interrogatórios,
irritaram o coronel que divulgara haver
descoberto um grupo de guerrilheiros e constatava
que executavam um plano de alfabetização
que ele, o coronel, considerava perigosíssimo
para o país. Na interpretação
do coronel, o programa de alfabetização
popular havia sido decidido em Moscou, para
ser executado em toda a América Latina,
onde o povo, conscientizado de seus direitos,
tomaria o poder.
Segundo o professor Marcos Guerra, o coronel
tinha grande lucidez sobre a força
da educação e enorme fantasia
sobre as ordens de Moscou.
No Recife, Marcos foi jogado, com os companheiros
de Natal José Ribamar de Aguiar e
Pedro Neves Cavalcanti, em uma cela superlotada,
onde dormiam no chão, colados uns
aos outros e de onde só puderam sair
por habeas-corpus, após um tempo
que não lembra - quarenta, cinquenta
dias.
Marcos não esqueceu a primeira visita
do pai, professor Otto de Brito Guerra,
que lhe declarou: "Houve um grande
mal-entendido sobre o trabalho que vocês
faziam. Você vai ter paciência;
é importante saber, que nós
conhecemos o que você estava fazendo.
Não baixe a cabeça!"
O conselho foi de extrema importância
para o jovem de 23 anos a dignidade da postura
política e responsabilidade social
duramente castigada pela ditadura militar.
Na prisão, conviveu com importantes
figuras da política pernambucana,
como o prefeito Pelópidas da Silveira,
o secretariado do governador Miguel Arraes
e, também Clodomir Morais, Francisco
Julião e Gregório Bezerra,
convívio que lhe permitiu adquirir
uma grande experiência de vida. Os
presos organizavam seminários permanentes,
analisavam acontecimentos políticos
e aproveitavam para comentar suas experiências
Entre as celas havia duas para isolamento
individual. Na entrevista Marcos lembrou
um momento de beleza humana na solidariedade
dos soldados, que conduziam o líder
comunista Gregório Bezerra, destinado
a uma cela do isolamento. Os soldados simularam
um engano e o colocaram na cela superlotada.
Gregório, que resistiu às
mais ultrajantes torturas, entrou na cela
exausto e faminto. O soldado comunicou:
"Ele vai ser posto aqui, por engano,
durante algumas horas." Gregório
recebeu a solidariedade de todos os presos.
Havia um bico de água onde ele conseguiu
banhar-se. Um preso que se encontrava doente
e recebia maçãs, deu-lhe uma.
Ele comeu, descansou, e a maçã,
como único alimento em muitas horas,
provocou uma crise de suor. Em poucas horas
o soldado voltou e o levou para o isolamento.
Marcos recebeu habeas-corpus requerido
por seu pai, foi libertado, mas voltou a
ser preso uma dezena de vezes. Conseguiu
transferir o processo para Natal e esteve
preso no 16° Regimento de Infantaria,
por algum tempo. As prisões se repetiram
até o ano de 1965, os habeas-corpus
também.
Esclareceu que assumiu, em 1962, a coordenação
da Alfabetização do SECERN
com o então Secretário de
Educação Calazans Fernandes,
no governo Aluízio Alves. Agia integrado
ao programa da União Nacional de
Estudantes que, sob presidência de
Aldo Arantes, convocou os universitários
a se engajarem no trabalho concreto de cada
região, dentro da especialidade de
cada um.
Após a formatura no curso de Direito,
em 8 de dezembro de 1965 e, no limite do
suportável, com tantas entradas e
saídas da prisão, decidiu
sair do Brasil para a França, de
onde lhe chegara convite e ajuda financeira
para viajar. Seguiu para São Paulo
onde recebeu ajuda do Sindicato dos Jornalistas
e de funcionários da VARIG, que lhe
facilitaram o embarque. Em Paris, participou
ativamente da organização
internacional de ajuda a exilados e refugiados
políticos.
A experiência de Marcos na ditadura
foi muito cruel mas muito rica de aprendizado
de vida. Viveu 25 anos fora do Brasil. Trabalhou
no Instituto de Pesquisas e Formação
em Educação e Desenvolvimento,
para onde foi contratado como professor
e onde encontrava-se outro brasileiro, professor
Heron Alencar, ex-vice-reitor da Universidade
de Brasília. Com carteira de trabalho
assinada, o que mudava sua condição
de exilado político, assumiu um cargo
de direção no mesmo Instituto
e pôde ajudar muitos estudantes da
América Latina, Ásia e África.
Pelo mesmo Instituto, orientou a coordenação
dos programas de desenvolvimento de alguns
países do terceiro mundo, entre eles
Níger, Costa do Marfim, Moçambique,
Angola, Cabo Verde e Nicarágua, concluindo
sua trajetória internacional em Paris
como diretor de uma Agência de Cooperação,
Solidariedade Internacional e Financiamento
de Projetos, e Consultor das Nações
Unidas.
Em condições privilegiadas
para atuar livremente no combate à
ditadura do seu país, participou
ativamente do movimento de denúncias
de torturas a presos políticos do
Brasil e da luta externa em favor da anistia
e redemocratização do país.
JOSÉ RIBAMAR DE AGUIAR
(Advogado,
Professor da UFRN)
PEDRO NEVES CAVALCANTI
(Advogado,
Funcionário aposentado do Banco do
Nordeste)
Universitários da Faculdade de Direito,
Ribamar e Pedro foram aprovados no curso
para monitor do curso de alfabetização
de adultos do sistema Paulo Freire a ser
implantado na cidade de Angicos. Selecionados
para comporem a equipe de execução
do método no Estado de Sergipe, encontravam-se
em Aracaju no dia l° de abril. Com o
golpe militar, voltaram para Natal, quando
foram presos na cidade de Caruaru, algemados
e conduzidos para o quartel da 2a. Companhia
de Guardas, em Recife, onde foram interrogados
pelo coronel Ibiapina.
Sem pertencerem a partidos políticos,
não participavam de lutas reivindicatórias
nem de organizações religiosas
ou estudantis. Os acontecimentos de suas
experiências foram os mesmos descritos
no depoimento de Marcos Guerra.
DANILO BESSA
(Advogado)
Estudante de Direito, aos vinte anos de
idade, Danilo foi estimulado pelo professor
Luiz Maranhão Filho a estudar o marxismo.
Convencido de que o regime socialista seria
a solução para as injustiças
sociais, filiou-se ao Partido Comunista
Brasileiro e passou a exercer atividades
políticas, através da União
Nacional de Estudantes e União Estadual
de Estudantes. Na mesma época, Danilo
sonhava fazer um bom curso, ingressar na
magistratura e exercer dignamente a profissão.
Em abril de 1964 mudou o país e seu
destino.
Consumado o golpe, procurou o amigo Luiz
Maranhão e a orientação
que recebeu foi: "cada um que procure
escapar porque o golpe é patrocinado
pelos Estados Unidos e pode significar até
a morte para todos." Com essa advertência,
tratou de sumir. Com a ajuda do deputado
estadual José Rocha viajou para Campina
Grande, de onde seguiu para uma fazenda
no interior do Ceará, ali trabalhando
como camponês até dezembro
de 1964. De lá, seguiu para o Rio
de Janeiro, adotou o nome de Leo Monteiro,
tentou mudar o visual, conseguiu trabalho,
mergulhou no anonimato. Fez contato com
militantes do Partido Comunista, colaborou
no jornal "Voz da Unidade", foi
novamente perseguido e obrigado a fugir
para o Paraguai, de lá voltando para
São Paulo.
Em São Paulo voltou à militância
do Partido Comunista, foi preso e levado
para o DOPS, onde ficou 17 dias, no mesmo
bloco em que esteve Luiz Maranhão.
Ali foi interrogado diversas vezes, levou
tapas e choques elétricos, aplicados
através de um chuveiro elétrico.
Desesperado pelas ameaças de morte
e acossado por muitos interrogatórios,
solicitou papel para escrever as informações
que lhe exigiam. No escrito, expôs
suas idéias e atividades políticas,
concluindo com um apelo dramático
pela vida e liberdade.
Para ser solto, Danilo pode ter contado
com a ajuda do amigo Oswaldinho, filho de
general Oswaldo Cordeiro de Farias. Em liberdade,
voltou ao Rio de Janeiro, fez concurso para
a Confederação de Comércio,
foi aprovado, conseguiu a nomeação
com a interferência do senador Dinarte
de Medeiros Mariz.
Danilo não esqueceu o convívio
com militantes na clandestinidade e o desespero
de alguns, quase garotos, quando, emocionados,
despediam-se para cumprirem tarefas do Partido.
Uns voltavam, outros desapareciam.
Novamente em Natal, concluiu o curso de
Direito, exerce advocacia na capital e no
interior mas perdeu o sonho de ingressar
na magistratura estadual.
EIDER TOSCANO DE MOURA
(Advogado, Geógrafo, Professor da
UFRN)
Exercendo as funções de Promotor
Público, Eider foi preso pelo Exército
nos primeiros dias de abril e levado para
as celas do quartel do Regimento de Obuses,
onde permaneceu por nove meses, sob as mesmas
acusações que justificaram
todas as demais prisões. Foi interrogado
por oficiais do Exército e pelo delegado
Veras, sendo libertado por um dos habeas-corpus
requeridos pelo deputado federal Carvalho
Neto, concedido pelo Supremo Tribunal Federal.
Eider faleceu em 27 de agosto de 1990.
JOSÉ
FERNANDES MACHADO
(Advogado, Pastor Evangélico, Juiz
de Direito)
Machado, pastor evangélico, funcionário
do então Departamento do Correios
e Telégrafos foi, também,
uma das maiores vítimas da perseguição
do 1964.
Através de Eunice, sua viúva,
registro alguns episódios daqueles
dias.
Preso pelo Exército nos primeiros
dias de abril, foi levado para o quartel
do I6° Regimento de Infantaria onde
permaneceu por seis meses. Na Diretoria
do então Departamento de Correios
e Telégrafos ocupava o cargo do Inspetor
Regional. Em alguns setores do então
DCT havia, em 1964, delatores e caluniadores
assumidos. A vida que Machado levou na prisão
é semelhante à aqui relatada
pelos outros presos.
Em um dia determinado para visitas aos presos
políticos, Eunice compareceu acompanhada
por um irmão de Machado, residente
no Recife, o que tornou difícil a
aproximação com o marido pelas
restrições ao acompanhante.
Na preocupação de vigia-lo
esqueceram de revistar a roupa levada para
Machado. Às onze horas da noite ela
foi procurada em casa pelo tenente Calado,
acompanhado por dois outros militares quo
a obrigaram a acompanhá-los. No quartel,
rodearam-na em tomo de uma mesa, para confirmar
que o cunhado havia sido portador de uma
carta "de outro comunista do Recife”
Como não encontraram vestígios
da carta, exigiam dela uma confirmação.
Eunice entrou em desespero, ameaçou
gritar, descontrolou-se e eles mandaram-na
de volta com um motorista.
Machado foi solto por habeas-corpus, no
mês de outubro.
Na ocasião de uma ação
terrorista no aeroporto do Recife, quando
colocaram uma bomba que explodiu no desembarque
de alguns generais e matou um almirante,
ele se encontrava naquela cidade, participando
de um congresso de igrejas evangélicas.
Regressou a Natal e foi novamente procurado
por militares do Exército e da Policia.
Chegando à Secretaria de Polícia
para atender um chamado do secretário
Ernâni Hugo, foi preso, algemado e,
sem nenhuma explicação, transportado
de avião para a Base Aérea
do Recife. Ali foi duramente interrogado
para confessar sua participação
no atentado. Machado apresentou testemunhas
da sua permanência no congresso e
os pastores assinaram termo de responsabilidade,
o que permitiu a sua liberação.
Demitido do emprego, Machado sobreviveu
a muitas dificuldades econômicas,
passando a residir, com a família,
em casa de parentes. Conseguiu ajuda do
professor Ulisses de Góes, que o
contratou para ensinar na Escola Técnica
de Comércio, e do professor Woden
Madruga, então diretor da Escola
Técnica de Comércio “Visconde
de Cairu”, que o admitiu como professor
de português. Woden conviveu alguns
anos com Machado, guarda dele boas lembranças
e fala com respeito da sua competência
e responsabilidade pela formação
dos alunos.
Nos anos setenta, Machado submeteu-se a
concurso para professor do Departamento
de Direito da UFRN, quando obteve o primeiro
lugar, mas foi preterido e nomeado um outro
candidato. Não foi o único
a ser perseguido pela direção
da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, nos anos da ditadura: diversos professores,
estudantes e funcionários foram vítimas
da delação interna e responderam
a processos junto à Comissão
de Investigação constituída
por determinação do reitor
Onofre Lopes, através das portarias
de números 57, 65 e 70, dos dias
4 e 29 de maio e 3 de junho de 1964, respectivamente.
A comissão era presidida pelo professor
Genário Alves Fonseca, tendo como
membros auxiliares os professores Antônio
Pipolo, José ldelfonso Emerenciano
e o capitão Hugo Manso.
Em outro concurso para Juiz de Direito,
foi aprovado e nomeado.
No livro "O Cristo do Povo", o
escritor Márcio Moreira Alves escreve
sobre Machado o seguinte:
“Professor
da escola dominical, presidente por
duas Vezes da Federação
da Mocidade Presbiteriana Independente
do Norte, presbítero e secretário
do Conselho da igreja, queria fazer
sentir a presença de seus irmãos
no grande debate social que então
se realizava e onde a única influência
cristã marcante era a dos católicos.
O prefeito de Natal, Djalma Maranhão,
realizava urna administração
revolucionária, quebrando a anterior
tradição imobilista e
burocrática, lançando
a campanha "De Pé no Chão
Também se Aprende a Ler"
e trazendo a discussão de temas
de cultura popular para a praça
pública. José Fernandes
participava desses debates - sobre arte,
cinema, educação - que
semanalmente movimentavam o marasmo
intelectual da pequena capital provinciana.
Em sua repartição liderava
os estudos de reivindicações
salariais e na UBSPT, União Brasileira
de Servidores Postais Telegráficos,
fora eleito para o cargo de orador oficial,
sendo, portanto, incumbido de saudar
as personalidades políticas que
visitavam a entidade.
As múltiplas atividades do jovem
presbítero foram devidamente
anotadas pelos organismos de informação
militar que, mesmo no auge do delírio
esquerdizante do governo Goulart, sempre
funcionaram na anotação
de possíveis subversivos e comunistas.
Com o golpe de 1° de abril, as fichas
foram imediatamente promovidas a libelos
de acusação. José
Fernandes foi preso a sete de abril,
logo no primeiro bote da repressão,
ficando sete meses na cadeia.”
José
Fernandes Machado faleceu a 11 de setembro
de 1982.
VULPIANO CAVALCANTI DE ARAÚJO
(Médico)
O
médico Vulpiano Cavalcanti, considerado
um competente profissional, era militante
do Partido Comunista Brasileiro. Preso nos
primeiros dias de abril de 1964 foi conduzido,
inicialmente, para o quartel da Polícia
Militar.
Com a experiência de outras prisões
onde, inclusive, sofreu torturas físicas
ajudou os demais presos com o exemplo de
sua formidável resistência.
Após maus de oito meses de prisão,
foi libertado por habeas-corpus concedido
pelo Supremo Tribunal Federal, requerido,
igualmente, pelo deputado federal Carvalho
Neto.
Faleceu em Fortaleza, a 19 de novembro de
1988.
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