VISÕES
ALTERNATIVAS DO SNDH - VOZES DISSONANTES DA CONFERÊNCIA
DEBATENDO
O TEXTO BASE DA IX CONFERÊNCIA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS
Hélio Bicudo - Guilherme de Almeida - Paulo de Mesquita
Neto
Até o ano de 2003 as Conferências Nacionais de Direitos
Humanos foram eventos de grande relevância no cenário político
nacional. Reuniam em média 1.500 pessoas: militantes de
direitos humanos, acadêmicos, servidores públicos, defensorias,
policias, universidades, embaixadas. À Comissão de Direitos
Humanos (CDH) da Câmara dos Deputados em parceria com entidades
nacionais da sociedade civil cabia a promoção do evento.
A CDH patrocinava os gastos de divulgação do evento. Cabia
aos participantes, das mais diversas regiões do país, ou
as suas entidades custear a viagem e a hospedagem em Brasília.
Apesar de não se denominarem explicitamente deliberativas
as Conferências Nacionais debateram temas substantivos que
acabavam por influenciar a agenda política.
Caso exemplar foi a IV Conferência (1999) intitulada "Sem
direitos sociais, não há direitos humanos" a discussão
desse tema resultou na 2ª versão do Programa Nacional de
Direitos Humanos (PNDH II) que teve por objetivo incluir
os direitos econômicos, sociais e culturais que ficaram
ausentes do primeiro programa.
As Conferências constituíram-se em um espaço privilegiado
de discussão e elaboração de novas linhas de políticas públicas
para direitos humanos. A participação da sociedade civil
sempre foi ampla aberta a participação de toda e qualquer
pessoa. Essencial que seja mantida a periodicidade anual
das Conferências e que ela seja preservada como espaço público
privilegiado da discussão dos mais relevantes temas de direitos
humanos do país. Inoportuna a idéia de reduzir a conferência
a um único tema o SNDH, já que será impossível a discussão
de temas substantivos e de caráter emergencial como: as
violação de direitos humanos cometidas no presídio de Urso
Branco (Porto Velho) e a violência policial.
De 1996 a 2002 podemos afirmar, sem sobra de dúvida, que
a Conferência Nacional de Direitos Humanos promovida pela
Comissão de Direitos Humanos da Câmara estabeleceu uma tradição
de diálogo, pluralismo político e independência do poder
executivo para a promoção dos direitos.
Todavia nesse ano contrariando essa tradição de sucesso
as entidades governamentais e não governamentais de direitos
humanos estão se organizando para realizar, de 29 de junho
a 02 de julho de 2004, a IX Conferência Nacional de Direitos
Humanos promovida pela Secretaria Especial de Direitos Humanos
e que terá como tema exclusivo a construção de um Sistema
Nacional de Direitos Humanos (SNDH).
Segundo o regimento do encontro as decisões da IX Conferência
terão caráter explicitamente deliberativo. A organização
do encontro tem sua inspiração no modelo adotado para as
convenções dos partidos políticos. Pela primeira vez a Conferência
é convocada pelo Poder Executivo, bem como, são financiadas
as passagens e hospedagens para os delegados eleitos nas
conferências municipais e estaduais.
Uma conferência não deve legislar, nem impor, mas recomendar
e trabalhar para que suas recomendações sejam levadas em
consideração. Nesse sentido as decisões das últimas conferências
nacionais, dentro de um marco democrático, participativo
e plural sempre tiveram caráter deliberativo. O que literalmente
significa que "tomaram uma decisão após uma consulta"
(Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, p. 932). Deduzimos,
na falta de maior clareza, que os organizadores da IX Conferência
Nacional de Direitos Humanos querem dotar as decisões dessa
Conferência não de um caráter deliberativo, mas de norma
vinculante na perspectiva de criação do SNDH.
A partir de um texto base intitulado "Construindo o
Sistema Nacional de Direitos Humanos" que está sendo
distribuído às entidades referidas, discute-se e vota-se
um organismo de extensão nacional, incumbido de racionalizar
e monitorar as atuações da sociedade civil em matéria de
direitos humanos. Tudo isto acarreta a criação de uma verdadeira
Burocracia Nacional dos Direitos Humanos com as mesmas características
de um partido político, dependente de verbas governamentais,
por meio das quais, buscar-se-á nortear e dirigir de forma
centralizadora sua atuação.
Como exemplo de atuação com grande desenvoltura, independência
e autonomia temos a Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados, a qual, nestes oito anos de atuação, tem
sido fator de vigilância e denúncia de graves violações
de Direitos Humanos no território nacional. Recorde-se que,
sob os auspícios dessa Comissão, importantes julgamentos
simbólicos, audiências públicas, caravanas da cidadania
e campanhas contra baixaria na televisão foram realizadas,
com evidentes resultados práticos, obrigando uma mudança
de rumo na atuação dos órgãos do Estado.
Dessa maneira, quando falamos em órgãos do Estado incumbidos
da defesa dos direitos humanos, precisamos dar um passo
à frente ... O CDDPH e, depois, a Secretaria Especial de
Direitos Humanos foram iniciativas importantes. Mas esses
órgãos têm sua ação limitada pelos interesses do Estado,
tanto no campo administrativo como, e sobretudo, no campo
político.
Já é tempo de se dar a esses órgãos autonomia diante do
poder central (mandato certo aos seus responsáveis), provendo-os
de estrutura e de meios orçamentários adequados às suas
atividades. Temos uma oportunidade de seguindo os Princípios
de Paris, construir uma Instituição Nacional de Direitos
Humanos dotada de mandato amplo, claramente estabelecido
em lei, com previsão orçamentária e, mais requisito fundamental,
com independência e autonomia em relação ao poder público.
As Instituições Nacionais tem caráter consultivo, competência
específica para a promoção e proteção dos direitos humanos,
não integram o poder judiciário, nem o poder legislativo
podem ter uma ligação com o poder executivo mas são independentes
dele. A estrutura e o funcionamento das instituições nacionais
de direitos humanos são reguladas pelos "Princípios
de Paris". Esse documento aprovado pela Assembléia
Geral das Nações Unidas por meio da resolução 48/134, de
20 de dezembro de 1993, oferece parâmetros mínimos para
criação e funcionamento de Instituições Nacionais de Direitos
Humanos.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos
(ACNUDH) sedia o Comitê Internacional de Coordenação das
Instituições Nacionais de Direitos Humanos, cujo atual coordenador
é Orest Nowosad.
A independência das Instituições Nacionais é garantida por
um orçamento próprio que lhe deve ser destinado e pela sua
composição que se constitui de: organizações nãogovernamentais;
representantes do pensamento religioso ou filosófico; professores
universitários e experts qualificados; parlamentares e representantes
do governo (que só atuam em caráter consultivo, vale dizer,
tem voz mas não votam).
O caráter consultivo, a independência em relação ao poder
soberano e a rede internacional coordenada pelo Comitê de
Coordenação das Instituições Nacionais vinculado ao ACNUDH
fazem a Instituição nacional de Direitos Humanos algo essencial
para a coordenação das ações de promoção e proteção dos
diretos humanos em nosso país.
Desconsiderando o conhecimento e a prática do Alto Comissariado
e da comunidade internacional a IX Conferência propõe a
criação de um Sistema Nacional de Direitos Humanos, sobre
a qual a IX Conferência deverá deliberar, a proposta consta
do documento "Construindo o Sistema Nacional de Direitos
Humanos - Esboço de Texto Subsídio".
A proposta em tela não está muito clara para a maioria das
pessoas. Está evidente, entretanto, que a proposta transforma
radicalmente a natureza das conferências e dos conselhos
nacionais, estaduais e municipais de direitos humanos, atribuindo
a eles o papel de órgãos centrais de um sistema estatal
de direitos humanos, responsáveis pela definição de diretrizes
gerais, no caso das conferências, e de políticas, ações
e orçamentos, no caso dos conselhos - que também teriam
a responsabilidade de monitorar a situação dos direitos
humanos, receber, investigar e encaminhar denúncias de violações
de direitos humanos.
Na prática, a proposta transforma as conferências e os conselhos
em órgãos de governo, de um sistema estatal de direitos
humanos, ao qual seriam integradas as organizações da sociedade
civil. Produz uma confusão de papéis, atribuindo responsabilidades
que são da sociedade civil ao Estado e responsabilidades
que são do Estado à sociedade civil. Com a intenção de fortalecer,
desvirtua e enfraquece o sistema de proteção e promoção
dos direitos humanos constituído no país.
Ora, para um bom observador, temos hoje, no Brasil, um sistema
de proteção dos direitos humanos que tem atuado segundo
as nossas possibilidades e precariedades, mas que, na sua
grande maioria, é livre e autônomo. No nível municipal,
os centros, conselhos, comissões governamentais ou não oferecem
uma gama de serviços, que vão desde o atendimento inicial
às vítimas até o encaminhamento de suas denúncias aos órgãos
estatais competentes e, diante das omissões acaso verificadas,
a apresentação do caso aos sistemas internacionais.
No mesmo sentido, operam as organizações que exercem suas
atividades nos Estados e diante do ente federativo. As entidades
não governamentais têm contado, em inúmeros casos, com o
apoio da Universidade, como é o caso da USP, que mantém
um Núcleo de Estudos da Violência, que oferece assessoria
e, bem assim, propicia a formação de pesquisadores especializados
em direitos humanos, incluindo cursos de pós-graduação no
mesmo setor.
Além de relatórios sobre os mais variados problemas, incluindo
pesquisas de alto padrão técnico, o Núcleo promove eventos
em que personalidades dos direitos humanos, como foi o caso
dos breefings em que intervieram, entre outros a então alta
comissária da ONU para os direitos humanos, Mary Robinson,
e Jean Ziegler, relator especial também das Nações Unidas,
para o problema da alimentação. Aí está o Movimento Nacional
de Direitos Humanos de relevantes serviços prestados à causa
dos direitos humanos.
Não se pode deixar, neste passo, de mencionar o trabalho
fecundo desempenhado pelas ouvidorias das nossa polícias.
Na medida em que se estabeleçam de maneira autônoma, serão
fatores que levam a uma polícia voltada para a segurança
das pessoas ao invés de fazê-lo, como até agora tem sido
feito, em benefício do Estado, produto dos equívocos que
levaram à sua instituição, como guardiã da então chamada
segurança nacional.
Outras organizações não governamentais têm, por igual, trazido
a sua colaboração na defesa dos direitos da criança, da
mulher, do negro, dos homossexuais ou das minorias excluídas.
De lembrar-se o trabalho desenvolvido contra a prática da
tortura, dos desaparecimentos forçados, pela restauração
da memória dos desaparecidos políticos, por respeitáveis
organizações não governamentais. E podemos ir, ainda, adiante,
mencionando os esforços do Ministério de Relações Exteriores
ao instituir um departamento com atribuições específicas
para a implementação dos Direitos Humanos no País. Não poderíamos,
neste passo, omitir os trabalhos que têm sido levados a
efeito pelo Ministério Público. A instituição, una e indivisível,
tem apoiado ações que objetivam a restauração de direitos,
sejam eles civis, políticos, econômicos, sociais, culturais,
ambientais, etc..
Ora, poder-se-á dizer que muitas vezes os órgãos do Estado
se omitem e, assim, dificultam ou impedem a investigação
das violações ocorridas, deixando de punir os responsáveis
ou de indenizar as vítimas. Nesses casos, e isto tem acontecido
ultimamente com relativa freqüência, as ONGs levam suas
denúncias à CIDH e, agora com possibilidades abertas pelo
novo Regimento Interno desse órgão da OEA, de pleitear perante
a Corte Interamericana de Direitos Humanos o reconhecimento
de direitos fundamentais, cujas sentenças devem ser obrigatoriamente
cumpridas pelo Governo Brasileiro.
As organizações não governamentais têm tomado, muitas vezes,
a seu cargo o acompanhamento do cumprimento das recomendações
da CIDH ou das decisões da Corte. Note-se, a propósito,
que as decisões da Corte são de execução imediata. Não necessitam
para tanto do nihil obstat do Supremo Tribunal Federal,
pois não são sentenças estrangeiras, mas sentenças emanadas
de um Tribunal Internacional, às quais o Brasil está obrigado
a cumprir.
Como se vê, temos no Brasil, funcionando, talvez não da
maneira que desejamos, um sistema de proteção e promoção
dos direitos humanos. Pois sistema é uma reunião ou combinação
de partes reunidas para concorrerem para certo resultado.
E é isto o que está sendo feito. Falar em sistema nacional
de direitos humanos como organização governamental é querer
entregar ao poder público a direção daquilo que compete
e deve ser realizado pela sociedade civil.
Ora, como proceder da maneira pretendida, entregando ao
Estado, direta ou indiretamente, o monitoramento da problemática
dos direitos humanos, se são os seus agentes os maiores
responsáveis pelas violações correntes? De citar-se as violências
policiais, as omissões no campo da saúde ou da educação,
as carências conseqüentes aos ajustes fiscais impostos para
o pagamento dos juros e das dívidas interna e externa.
O sistema interamericano, o sistema europeu ou o sistema
africano tem por finalidade proteger a pessoa humana contra
as violências praticadas pelo Estado. É certo que, além
das vítimas ou de terceiros engajados, o Estado tem acesso
a esses sistemas, mas apenas para apresentar denúncias contra
outros Estados. Mas, na sua maioria esmagadora as denúncias
partem das vítimas, de seus familiares ou de entidades de
direitos humanos. São denúncias contra o Estado. Tenhamos
claro que o Estado é o grande responsável por violações
dos direitos humanos.
À título de conclusão quero dizer que no município de São
Paulo, contamos com uma Comissão de Defesa dos Direitos
Humanos que goza de apreciável autonomia, pois a sua direção
é exercida através de mandato por tempo determinado que
para ser revogado deve obedecer a um procedimento que praticamente
inibe a revogação simplesmente política e que poderá ser
considerada tão somente diante de práticas irreconciliáveis
com a boa performance na defesa dos direitos da pessoa humana.
O relatório apresentado sobre as atividades da CMDH, em
2003, atesta a sua desenvoltura e autonomia no desempenho
de suas atribuições.
Gostaria aqui de anunciar que a partir desse ato montaremos
um grupo de estudos a fim de adaptar a CMDH aos princípios
de Paris. Para que ela seja um exemplo e uma semente de
nossa futura Instituição Nacional de Direitos Humanos.
O sistema brasileiro de defesa dos direitos humanos aí está.
Atua, até certo ponto, a contento, mas deve superar-se a
si próprio, mediante a instituição de uma rede que irá permitir
ações conjuntas coordenada por uma Instituição Nacional
de Direitos Humanos que permitirá atender à dinâmica de
complementação ao sistema interamericano e internacional
de proteção dos direitos humanos.
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