AVALIAÇÃO
GERAL DO FENÔMENO SOCIAL DA VIOLENCIA
O fenômeno
social da violência tem se manifestado nos últimos anos no
Brasil onde a principal vítima é o trabalhador: moradores das
favelas e vilas periféricas, sindicalistas, posseiros,
lideranças; ora de forma seletiva, ou de forma indiscriminada,
chegando às chacinas. Se formos analisar mais detalhadamente este
fenômeno verificaremos que a violência interpessoal, que é um
número grande, está sendo superado pela violência estatal,
através de ações dos policiais nas mais diversas formas de
violações dos direitos fundamentais do cidadão; ou seja, a violência
“pública”. Por outro lado assistimos ao aparecimento dos
grupos de extermínio (os justiceiros esquadrões da morte), com
relações e apoio por parte da polícia, além do crime
organizado que vem quantificar a manifestação como também
complicar as ações de quem pretende entender e dirimir a
violência.
O que está em
jogo são as instituições que o movimento popular tem lutado
para consolidar, tais como a democracia, cidadania e a liberdade
– o direito à vida e à felicidade.
Num primeiro
momento as entidades de direitos humanos tinham como forma de
luta principal a denúncia e a cobrança das arbitrariedades
ocorridas perante os órgãos públicos. A maioria deles se
negavam em participar ou opinar dentro do Estado, e o resultado não
foi muito favorável, a tática se mostrou frágil e de poucos
resultados positivos.
Hoje já começamos
a ter uma postura diferente, pois nossas ações não se limitam
mais a denúncia pura e simples, como também tomamos iniciativas
jurídicas cabíveis, além de tentar influir diretamente nos órgãos
estatais que desenvolvem a política de Segurança Pública.
Continuamos omissos em relação ao poder judiciário e a
maioria de nossos atos se dirigem contra os policiais (nosso
bode expiatório preferido) ou o executivo, mais na pessoa de quem
está no poder do que na sua política global.
Porém, temos que
reconhecer também que existem alguns consensos no movimento de
direitos humanos: que o problema da violência é um fenômeno
complexo e não se resolverá a curto prazo, que é uma questão
eminentemente política. E por acreditar que as alternativas
para o problema são políticas, tentaremos fazer uma abordagem,
dentro desta ótica, sobre sociedade e controle da política pública,
pois precisamos saber onde estamos, para pretender ir a algum
lugar.
Se analisarmos os
conceitos jurídicos que se têm na sociedade sobre segurança
pública, ordem pública, por exemplo, chegaremos facilmente à
conclusão que a segurança pública do Estado, das classes e
grupos hegemônicos na direção política do Estado em
determinado momento histórico; ou seja, quem viola a ordem social
e jurídica, a paz social, em principio, é a sociedade, por
isso que ela tem que ser reprimida. Só cabe ao Estado estabelecer
a sanção, coação, a repressão
através de seus
órgãos específicos para esse fim. É seu monopólio da sanção
e repressão.
Usaremos uma
definição de Segurança Pública para visualizarmos sua concepção
e ideologia: “É o afastamento, por meio de organizações próprias,
de todo perigo, ou de todo mal, que possa afetar a ordem pública,
em prejuízo da vida, da liberdade, ou dos direitos de propriedade
do cidadão”.
“A segurança pública
assim se limita às liberdades individuais estabelecendo que a
liberdade de cada cidadão, mesmo em fazer aquilo que a Lei lhe
veda, não pode ir além da liberdade assegurada aos demais,
ofendendo-a” (de Plácido e Silva, 1987/1988).
Entenda-se da
mesma forma Ordem Pública como a situação e o estado de
legalidade normal, em que as autoridades exercem suas principais
atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem
constrangimento ou protesto. E o poder de polícia deve ser
exercido quando os interesses do Estado, superiores ao indivíduo,
indiquem a necessidade de uma restrição às liberdades e
direitos individuais. (de Plácido e Silva, 1987).
Essa definição
parte da concepção positivista onde prevalecem paradigmas
conservadores e estanques, onde foram muito bem cultivados na
cultura jurídica brasileira, como bem afirmou o professor e
advogado José Eduardo Faria: “Eles estão ainda associados a um
positivismo transcendente, segundo o qual o direito positivo é
postulado como um direito natural inerente ao homem, integrante
de sua personalidade. Por esse motivo, a Lei e a ordem passam a
ser os primeiros valores naturais a serem preservados. Encarando
o direito como objeto ético, que o indivíduo encontra na
sociedade e por ele se regra, dando ao ensino um enfoque
generalista, privilegiam-se aqui questões relativas à justiça,
à legitimidade e aos vínculos entre direito e moral”.
Dentro desta lógica,
onde o trabalhador, o “inimigo interno” é visto
potencialmente como um infrator, e a divisão de maneira
compartimentada de quem deveria elaborar uma política global de
Justiça e Segurança Pública
— da policia
civil, polícia militar, judiciário, ministério público — não
conseguem organizar uma ação conjunta no combate à
criminalidade e à impunidade. Na realidade, esse aparente caos
parece cumprir no final das contas alguns objetivos para o qual
foi “desorganizado”: garantir o privilégio e o “status”
de uma minoria, reprimir qualquer questionamento advindo da
sociedade. Não queremos aqui passar uma imagem de que a União e
os Estados ficam maquiavelicamente preparando a desordem em
suas políticas, mas que, sem dúvida essa desconecção
favorece em muito a quem eles representam, que no final das contas
são eles que ganham com esta desorganização.
Dentro deste
quadro, verificaremos, entre outras coisas, que o cerne da questão
é a concepção política e filosófica que temos não só de
segurança, ordem, justiça, mas principalmente de democracia.
Os paradigmas hoje usados, por não corresponderem a nossa aspiração
por um novo tipo de sociedade, devem ser superados, a fim de que
possamos começar a reverter essa lógica conservadora e excludente.
A sociedade
brasileira vive sob o regime democrático, pelo menos é o que está
escrito nas “cartilhas” oficiais e nos discursos do governo
e de seus políticos que lhe dão sustentação nas assembléias
legislativas. Porém, temos que questionar que tipo de democracia
é esta e quais são suas imutações.
Existem vários
conceitos sobre democracia, e cada qual define as formas do
povo participar no poder. No Brasil vivemos o tipo chamado democracia
representativa ou indireta. É aquela na qual, o povo, fonte primária
do poder, não podendo dirigir os negócios do Estado,
diretamente, devido a extensão de seu território, da
complexidade social, outorga as funções de governo aos seus
representantes, que elege periodicamente. Logo, na democracia
representativa, a participação popular é indireta, periódica
e formal, e se dá majoritariamente por via das eleições.
Foi assim que
surgiu o mandato representativo: alguém que lhe representa e
decida os rumos do país, Estados ou Município por você. O
mandato representativo é uma criação do Estado liberal-burguês,
que acaba cumprindo o papel de manter distintos Estado e
sociedade, como se fossem duas coisas estanques e incomunicáveis,
com exceção na hora da eleição. É na prática a forma de
tornar abstrata e distante a relação povo/governo.
Pois, ao se
eleger alguém, o eleito não fica, obrigatoriamente, vinculado
aos seus eleitores, já que não é uma relação contratual,
onde as duas partes têm direitos e obrigações vinculados entre
si, toma-se, portanto, um mandato irrevogável por princípio, e
não precisa que os atos realizados pelo representante sejam
ratificados, confirmados pelos “representados”. Ele (o
mandato) é geral, livre e irrevogável.
A história da
democracia brasileira é quase que a história de uma democracia
elitista. Na definição do Professor Manoel Gonçalves Ferreira
Filho, a democracia elitista é a “democracia que é possível.
Na realidade consiste no governo por uma minoria democrática, ou
seja, por uma elite formada na tendência democrática, renovada
de acordo com o princípio democrático, imbuída do espírito
democrático, voltada para o interesse popular: o bem comum”.
Ela deu a base teórica para a doutrina de Segurança Nacional, implementada
pelos militares no golpe de 64.
Em outras
palavras, essa elite “democrática” ao “ouvir” os
anseios e aspirações do povo, através de sua privilegiada
sensibilidade, já que possui um maior conhecimento da realidade
brasileira, tendo como consequência uma visão mais global e
elaborada dos autênticos desejos e necessidades nacionais. Ela
poderá com mais precisão definir os interesses do Brasil. Na
realidade, as elites brasileiras sempre viram com muita desconfiança
o povo, além de achá-lo profundamente incompetente para gerenciar
os negócios do Estado.
Dentro desta
conjuntura desfavorável encontramos dificuldade de interferir
na formulação de uma política de segurança pública, onde
muita das vezes somos obrigados a nos limitar à denúncia, sem
termos clareza de que esses escassos canais de pressão são
resultado prático desta democracia elitista que vivemos.
Devemos superar
essa compreensão de democracia, pois a democracia é um conceito
histórico, que se constrói na luta e na rebeldia de não se
contentar com os limites impostos. Sob esse aspecto, “a
democracia não é um conceito político abstrato e estático,
mas é um processo de afirmação do povo e de garantia dos
direitos fundamentais que o povo vai conquistando no correr da
história” (José Afonso da Silva, 1990/1991).
Imbuídos deste
espírito que devemos construir um “novo” conceito de
democracia, na nossa práxis de luta, que não se limitará à
representação, pois buscaremos outros caminhos, além de
garantir os já conquistados, e se dará com mais ênfase a
participação popular no processo político. Essa nova
democracia não temerá, muito pelo contrário, precisará fundamentalmente
da participação ampla do povo e de suas organizações de base
no processo político e na ação governamental.
Para isso, é de
fundamental importância que não ocorra a supremacia política
sobre a sociedade civil. Entenda-se sociedade política o
Estado, sendo uma realidade material articulada em aparatos,
sendo uma determinada forma de relação social entre os homens,
e sociedade civil o conjunto de organismos ditos privados. Para
que vivamos essa “nova” democracia é necessário que exista
uma equidade de poderes entre sociedade civil e política.
E para que isso
se concretize é estratégica a participação popular no
processo político, para que garanta a hegemonia da sociedade
civil, pois senão toda a nossa luta e conquista ou se perderá ou
terá que se limitar a denunciar as tentativas de sensibilizar
nossos representantes, já que não teremos outros mecanismos de
mediação com o Estado.
Nesse contexto, a
frase do poeta Baudelaire expressa com muita nitidez a nossa
contradição, ao expressar que: “Só se destrói realmente
aquilo que se substitui”, e realmente precisamos de uma política
de segurança pública da sociedade e não para a sociedade.
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