Insurreição
Comunista de 1935
ÀS ARMAS, CAMARADAS!
A Insurreição Comunista e o Governo Popular de 1935 em Natal
Natanael Sarmento
Os mortos,
os vivos e os mais vivos
A ressaltar
o peso do passado e da tradição, dos mortos
sobre os vivos, o filósofo Augusto Comte lembrava que os
vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos. Entenda-se
mortos da filosofia positivista, sem nada em comum com as crenças
espíritas de reencarnação. No diálogo dos mortos com os vivos, não obstante as fecundas
lições dos antigos jurisconsultos: mortem
omnes finibus, em verdade,
razão assiste ao toureiro de Pamplona, que não
acreditava em bruxas, mas sabia que elas existiam.
Alguns defuntos causam mais estragos do que causariam se estivessem vivos. Reza a lenda que El
Cid, morto, alçado ao seu
cavalo, foi decisivo na vitória contra os mouros. O cadáver que pertenceu a
João Pessoa foi mais útil à revolução do que a sua pessoa, sem
trocadilho. João Pessoa vivo não cheirava nem fedia, na oposição,
mas não movia uma palha pela revolução. Morto, antes de ser
sepultado, o cadáver do “mártir” circulou nas capitais do
Brasil. Fomentou a comoção social, favoreceu a agitação
revolucionária. Um cronista dos anos 30 anota que morto
João Pessoa serviu mais à causa da revolução do que vivo. Ele
corria da revolução como diabo da cruz, vivo, morto, foi o Grande
General do Acaso. Nosso citado Barão de Itararé, filósofo de Bagé,
emenda o francês Augusto Conte e diz: os
vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mais vivos. Este
livreto não tem veleidade de debater indagações filosóficas.
Contudo, trata da revolução e tem que tratar, inelutavelmente, dos mortos, dos vivos e dos mais vivos. Na Revolução de 1935, no Rio
Grande do Norte, há protagonistas das três categorias.
Examinando-se
o discurso ou a retórica legitimadora dos governos, nos planos
federal e estadual, percebe-se que estão sincrônicos,
afinadíssimos. O
inimigo eletivo o mesmo:
os comunistas.
Passo seguinte do receituário propagandístico de Josep Goebbels: a
manipulação das informações. Para degradar o inimigo,
desmoralizar, destruir, completamente. Calha destacar incapacidades,
fragilidades, material, intelectual e moral.
Nessa terra de antropófagos tupinambás e tupiniquins descabia
falar-se na superioridade da “raça”. O
ABC nazista traduzido e adaptado ao Brasil, onde se lê “Raça”
leia-se “Governo”. A superioridade intelectual e moral do
Governo. Essa superioridade a ser decantada. Uma enorme mentira. Mas
devia ser repetida. Tantas vezes quantas fossem necessárias, para
virar verdade.
A
Polícia do Rio Grande do Norte assimilou bem as lições da cartilha
nazista. Desqualificou o inimigo e suscitou desconfianças: “a
surpresa com que irrompeu o movimento e a sua má organização
levou-me a aceitar a versão de ter sido mesmo precipitado pelas
autoridades do Rio de Janeiro, a fim de que o plano subversivo não
surtisse efeito”. Manipulou
informações e falsificou documentos. Inventou factoides do além,
de comunistas conectados através de códigos entre o Rio
Grande do Norte e Pernambuco se anteciparam em decorrência de falsa
comunicação que se atribui à polícia da capital do País.
Nessa
mesma linha de factoides, o bilhete
de Bluche, encontrado num dos alojamentos do quartel do 21º BC,
dizia ele a “Sandimo”:
“Vocês não deram tempo para que se mobilizasse as nossas
forças”.
Na
lorota da polícia, o Rio de Janeiro do Sherlock Fillinto Müller,
descobriu a “senha da revolução”. Na posse da senha, o policial
teria espertamente provocado a precipitação da insurreição para
os revolucionários colocarem a cabeça de fora sem preparo, terem a
cabeças cortadas e ele receber todos os créditos da vitória. Em
Natal, o genérico João Medeiros criou o fantasma Bluche, o
comunista fantasma a quem atribuiu à escrita dos bilhetes
ameaçadores. Mas, do tal Bluche,
ninguém jamais soube, nem o viu nem “na feira dos grudes”. Outra
fraude da lavra do chefe de polícia do Rio Grande do Norte. O
fantasma existiu, enquanto fantasma, irreal. A reduzir os comunistas
a imbecis e despreparados, relapsos com a segurança, a deixar provas
documentais assinadas, contra eles. Com a firma reconhecida do
fantasma Bluche em bilhetes “encontrados” no 21º BC. Curiosamente, tais documentos
não constam do inquérito policial, nem do relatório policial, do
célebre processo criminal. É espantoso.
Afinal, quem foi o fantasma comunista Bluche?
Nenhum membro do PCB, seja da Junta Governativa, da direção
regional e nacional, jamais soube da sua existência, ou dele ouviu falar. Somente o Dr.
João Medeiros Filho soube, oito anos depois. Um fantasma surgido
do nada. Afinal, fantasma é. Não teve carne nem osso, matérias
incompatíveis com naturezas fantasmagóricas. Nasceu nos bilhetinhos
apresentados acompanhados do argumento da autoridade e da fé pública
do senhor chefe de Polícia, cidadão
acima de qualquer suspeita. Déjà
vu, não
lembro onde.
Bilhetes
supostamente encontrados no 21º BC e entregues ao chefe de polícia anos depois. Esse servidor leal
compartilhou o segredo do além com o respeitável público na obra Meu
Depoimento, livro editado pela Gráfica Oficial do Senado. Anexos em fac-símille, os dois bilhetes manuscritos assinados
pelo Bluche, a
desfazer dúvidas de São Tomé. Pelo bilhete o chefe de polícia
viveu momentos de extremo risco de morte durante a revolução. O
fantasma mandava matá-lo, logo. E eliminar os integralistas.
Previsível. Mesmo como fantasma fabricado, sem gênio.
O
chefe policial do RN, estranhamente, privou o Brasil e o mundo de conhecer
a identidade do Bluche.
Um fantasma anônimo. Até os dias correntes. Na versão policial
oficial não é fantasma. Existiu, em carne e osso, alfabetizado,
escrevinhador de bilhetes. Uma lástima fantasma não ter impressão
digital. Os bilhetes não seguirem ao exame grafotécnico. Louco é
quem remexe em coisas do outro mundo.
O
Santo fantasma produziu o milagre. O milagre realmente aconteceu. O
bilhete da loteria do fantasma Bluche faz do chefe de polícia que se entregou, voluntariamente, aos
sublevados, um herói. Livra-se assim, da chacota pública e vira
herói, a dizer que matou
dois coelhos com uma só canetada. Correu
altos ricos de morte, no cativeiro. Cativo no cassino dos oficiais do
21º BC, com oficiais e autoridades, nenhuma molestada. E todas elas,
inclusive o criador de fantasmas, foram conduzidas, com segurança,
aos navios de guerra mexicanos. Deitado ao portaló e inspirado no rio Potengi, João Medeiros repassou os fatos como
se tivessem ocorridos numa ilha selvagem e distante, cheia de perigos
e aventuras. O
poeta deve ser melhor que o policial, com assento na egrégia
Academia Norte-rio-grandense de Letras.
Mas,
o Bluche existiu apenas nos bilhetes forjados, fantasma sem ficha de filiação
ao Partido Comunista, sem passagem na ANL, sem laços com Café Filho
ou com Mário Câmara. Do Porto ao Sertão, do Sindicato ao Catete,
de Moscou a Santo Antônio do Salto da Onça, jamais o fantasma Bluche foi visto por viva alma.
Publicadas
as cópias desses bilhetes, davam-se provas sobejas da existência.
Da existência dos bilhetes.
Só.
Bilhetes foram escritos, eles existem. Alguém entre os muitos vivos,
os escreveu.
Também
declarava-se aberta a temporada de adulterações na área da
segurança pública norte-rio-grandense.
Modifica-se e adultera-se o relatório do delegado Enoch Garcia, em dolus
bonus do
fiador dos bilhetes fantasmas. Fabricar fantasma do Bluche e inventar o Soldado
Luiz Gonzaga.
A academia ganhava um ficcionista enquanto a polícia um defraudador.
Contudo,
ambos, fantasma e soldado, têm efeito devastador, pela técnica policialesca, alcançando os
fins, não importando os meios. Pessoas comuns, em boa-fé,
acreditavam em histórias forjadas nos gabinetes. Fantasmas não
existem. Porém, reais são os danos da ilusão. Elas criam dúvidas
e acirram cizânias. Engabelam populares e os próprios comunistas.
Talvez,
as fragilidades teóricas dos comunistas brasileiros, mergulhados em
estreitas disputas fraticidas, ordinariamente, são enredados em
farsas plantadas, pelos inimigos. Trocando acusações e suspeitas,
reciprocamente. Fazendo o jogo dos inimigos de classe, em nome do
“combate ideológico”. Nesse
sentido, certos fantasmas do movimento comunista brasileiro
permanecem a fazer mais estragos que os mortais.
Sobre
mortes reais, na insurreição de1935,
a
relação dos números, as contas, não batem. São desencontradas.
Há muita obscuridade e controvérsias na contagem. Na Serra do
Doutor, na trilha da guerrilha do Vale do Açu, em Natal, noutras
localidades. Diz o brejeiro que o
olho do dono engorda o boi.
Certo aritmético de Igapó lecionava que os números não mentiam.
Mas, na tabuada dos cálculos políticos, os números mentem
.
O resultado das contas varia,
conforme a nádega assentada, na gangorra.
Na
assentada do Coronel Brilhante Ustra, o famoso chefe do DOI-CODI de
SP, ocentro de torturas, durante a Ditadura, contavam-se
vinte mortos, na Intentona
Comunista de
Natal.
Coronel Ustra
não fazia as contas dos presos, torturados e mortos, do DOI-CODI.
Prestaria bons serviços à nação se declarasse suas fontes. Para
elucidar os “vinte” mortos, em Natal. E mais ainda, para
identificar os mortos pela ditadura em cujos porões ele serviu.
Já no relatório do inquérito do delegado Enoch Garcia, que foi o primeiro
documento, datado de 1936, contabilizam-se quatro mortos:
Durante os
combates e tiroteios foram mortas e feridas várias pessoa. Entre os
mortos contam-se os seguintes: Otácílio Werneck, assassinado
barbaramente à porta da residência a tiros de fuzil pelo comunista
Epifânio Guilhermino; Arnaldo Lyra, morto na residência particular
do Governador, transformada em quartel general dos comunistas;José
Pedro Celestino, morto na Detenção e Maria Carmen Tavares, morta no
Tyrol.
O
relatório do delegado Enoch Garcia distorceu um fato do domínio
público: o Sr. Arnaldo Lyra foi ferido “no quartel general dos
comunistas”, mas, foi transferido ao hospital, vindo a morrer, dias
depois. A morte não se dá na Vila Cicenatto, pode ser irrelevante, mas é necessário precisar
que não foi lá que o óbito se deu depois de passada a revolução.
Grave
mesmo foi o fato de
o Chefe de Polícia João Medeiros adulterar o relatório policial e
acrescentar mais um defunto ao rol: e transmudar o Doidinho em soldado Luiz Gonzaga:
Durante os
combates e tiroteios foram mortas e feridas várias pessoa. Entre os
mortos contam-se os seguintes: Soldado Luiz Gonzaga, do Batalhão
Policial; Otácílio Werneck, assassinado barbaramente à porta da
residência a tiros de fuzil pelo comunista Epifânio Guilhermino;
Arnaldo Lyra, morto na residência particular do Governador,
transformada em quartel general dos comunistas; José Pedro
Celestino, morto na Detenção e Maria Carmen Tavares, morta no
Tyrol.
Um
morto a mais, outro a menos, não faria a diferença, não fosse a
fraude do Chefe da Polícia. E a adulteração gerasse o mito do
herói Soldado Luiz Gonzaga, da banalizada e fastidiosa retórica
anticomunista, no dizer do brejeiro, quanto
mais se reza, mais assombração aparece.
A
morte de Maria Carmem Tavares, no bairro do Tyrol, foi dada como casual. Uma
bala perdida atingiu a indigitada, mortalmente. Na época, alguns
consideraram uma má “sorte
escolhida”,
uma fortuna delectis.
Por acaso, cunhada de Giocondo, um dos líderes dos rebeldes. Bala
perdida, ou achada, jamais suficientemente, investigada.
Os
registros de mortes, no interior do Estado, são escassos
documentalmente, fartos oralmente. Existem registros das lembranças, das memórias e
depoimentos. Em inquéritos, processos, quase nada consta. Sobre
vítimas do tão propalado cangaceirismo
açoitado à sombra de uma bandeira, nada
consta dos inquéritos nem dos processos do Tribunal de Segurança
Nacional.
Assim,
a contagem dos cadáveres fica na conta da freguesia. No desencontro
de lembranças, de registros e informações pessoais. Contudo, com
certa recorrência, diversas fontes dão conta de duas mortes, no
interior: uma, a do soldado morto e sepultado, anonimamente, na Serra
do Doutor, e outra, nas costas do Dr. Ivo Trindade, ocorrida em Serra Caiada.
É
impossível dizer quantas pessoas, efetivamente, participaram da
revolução, no Estado do Rio Grande do Norte, em 1935.
Contabilizam-se, todavia, as pessoas processadas e sabe-se as
condenadas e as inocentadas. Foi possível rastrear as pegadas das
andanças de alguns protagonistas da trama.
Começando
pelos comunistas, os atores obrigados a atuar nos bastidores da
clandestinidade, na maior parte do tempo. Algumas sagas pessoais, das
longas clandestinidades, prisões, fugas e torturas, davam roteiros cinematográficos.
José
Praxedes, o sapateiro comunista Ministro
do Abastecimento, depois
de queimar papéis comprometedores, tratou de fugir através dos
mangues de Igapó. Pelas margens do rio Potengi, alcançou as praias
da Redinha e de Genipabu. Adentra em clandestinidade antológica, 50
anos. Meio século depois, reaparece – 1985 – com o depoimento no
livro de Moacyr de Oliveira Filho.
Longeva militância e clandestinidade, durante Estado Novo e após.
Zé Praxedes morreu aos 84 anos, tuberculoso e pobre, na periferia de
Salvador. Lá viveu décadas, pseudônimo de Eduardo Pereira da
Silva.
João
Lopez, o Santa, foi
o assistente do Comitê Central do PCB junto ao Comitê Regional do
RN. Na prática, uma espécie de Primeiro Ministro do sistema
Parlamentar, o chefe de governo. Carioca, pedreiro e negro, nasceu no
ano da Lei da Abolição da Escravatura, 1888. Através do Partido
Comunista, estudou e foi a Moscou aprender a doutrina da revolução, o marxismo-leninismo.
Consta um relatório atribuído a Santa e dirigido ao CC, sobre a revolução. Esse relatório é dado como
apreendido pela polícia do Rio de Janeiro, com a queda da Direção
Nacional. Santa contava quarenta anos e era havido como dos mais experientes, na
revolução em Natal. Na fuga percorreu cerca de quarenta léguas, em
doze dias. Foi preso no Recife. Conseguiu escapar e retomar as atividades partidárias, clandestinamente, no Rio de Janeiro. Foi
preso e barbaramente torturado, pela Polícia de Filinto Müller do Estado Novo, o nazista
que faltou ao julgamento de Nuremberg
.
Empreendeu outra fuga e mais uma vez retomou as atividades partidárias clandestinas. Nessa longa vida de lutas, fundou ligas, associações de moradores e sindicatos.
O premier negro e comunista, José López, filho de escravos, morreu
em junho de 1988, pobre, no subúrbio do Rio de Janeiro, aos cem
anos. José Lopez, em 1935, recusou a Presidência da Junta
Governativa a ele ofertada pelos camaradas de Partido e do Comitê
Revolucionário Popular em Natal.
Na prática, Santa foi o principal mentor do breve Governo
Revolucionário.
Carismático e muito querido, no Realengo, comunidade onde viveu os
últimos anos de vida, o velho Santa “teve
um enterro digno do revolucionário”.
O
cabo Giocondo Alves Dias, foi um comunista revolucionário, dos mais
ativos, em 1935. Participou da tomada do 21º BC. Nas primeiras horas
da revolução, foi alvejado quando descia a ladeira da Rua São Tomé
em direção ao Teatro Carlos Gomes, para prender as autoridades.
Ferimentos são leves e tratados, no Hospital das Clínicas,
de maneira que no dia seguinte retorna ao quartel e participa do
cerco que durou dezessete horas, ao Quartel da Polícia Militar, em
Natal. Após a derrocada da revolução, refugiou-se na Fazenda Primavera, de
Paulo Teixeira, município de Lages, RN. Nessa fazenda foi encontrado preso, amarrado numa árvore, quase morto, com
dezoito cutiladas de punhal no corpo. Era submetido a
“interrogatório”, pelo “amigo” anfitrião, Paulo Teixeira. O
tipo ciumento suspeitava de adultério da senhora esposa como Cabo
Dias. Giocondo não comentava em vida, essa aventurada “Primavera”
de Lages. Sabe-se que a esposa do Paulo Teixeira fugiu da casa do
marido violento. Paulo Teixeira foi levado ao tribunal do júri
popular e absolvido da tentativa de homicídio pela
legítima defesa da honra. Consta
a atuação brilhante da defesa sustentada pelo Dr. Manoel Varela.
Giocondo escapou das punhaladas e chifradas do Paulo, graças
ao comerciante Genésio Cabral de Macedo. Foi conduzido ao hospital,
preso e libertado. Em liberdade, foi condenado pelo TSN, a uma pena
de oito anos e seis meses de prisão. Entra na atividade
clandestinidade
e
desenvolve as atividades partidárias, na Bahia. Com a anistia e a
seguinte legalização do PCB, foi eleito constituinte estadual
baiano. Diante da cassação do registro do PCB em 48, voltou à
clandestinidade, transferindo-se para o Sudeste.
No Rio de Janeiro, era membro do clandestino Comitê Central e foi
secretário e responsável pela segurança pessoal do Secretário
Geral Luís Carlos Prestes, na clandestinidade, por anos. Foi eleito ao
Secretariado da Executiva do PCB em 1957 e, com o Golpe de 1964, condenado na Auditoria Militar de São Paulo a
sete anos
.
Integrava o CC do PCB, que desde 1976 estava no exterior
.
Com a anistia em 1979, retorna ao Brasil. Na dissidência entre
Carlos Prestes
e a maioria do CC, ficou com a maioria do Partido. Foi eleito o
Secretário Geral, o cargo mais elevado da hierarquia partidária.
Nessa mais alta função da estrutura partidária, morreu, idoso, com
vida modesta e simples. No pequeno apartamento do Botafogo, no Rio de
Janeiro, em 1980, onde morava, concedeu
essa entrevista exclusiva ao autor desse livro.
Pouco
se sabe da biografia do sargento músico Quintino Clementino. Foi
membro do PCB, o comandante do levante no 21º BC e Ministro
da Defesa do Governo Popular Revolucionário.
Quintino exerceu papel militar relevante, na insurreição de 1935.
Na opinião de José Praxedes, houve-se como herói e bravo,
consciente do papel, verdadeiro revolucionário, que “merece
respeito e louvor. Metralhadora na mão, controlando a situação no
quartel, enviando tropas para o interior, enfim cumprindo com suas
tarefas de chefe militar do movimento. Nunca vi um homem tão forte
como ele”.
Giocondo
Dias confirma o protagonismo do sargento:
Quintino
Clementino de Barros nos representava na Junta. Dizem aí que eu
fazia parte da Junta, nada disso, era o Quintino. Para mim era até
uma honra participar da Junta. O Macedo era um Nacional Libertador,
não tinha a ver com o Partido Comunista e o sapateiro devia ser a
figura de maior responsabilidade.
Contudo,
a biografia de Quintino fica nebulosa a partir de certo momento. Por
exemplo, apareceram em 1998, “casualmente” originais
datilografados, em achado particular material datado de 1938. Nesse
material constam duras acusações contra o Quintino Clementino. É
acusado de traição, pela precipitação do horário do levante,
pela indisciplina na antecipação de datas, pelo excesso de preocupação com a vida dos prisioneiros e pela fraqueza na
deposição de armas quando a Junta Governativa estava em fase de
consolidação. Segundo o “documento achado”, Quintino ouviu a
transmissão da rendição no Recife e a partir daí deu a revolução
em Natal por perdida. O tal manuscrito não pode ser outro “fantasma”
plantado pela polícia? Nele, consta: “Então
chamei
Mamede e Dante e todo o CR e discutimos a traição de Quintino”.
Nossas pesquisas não coletaram mais dados sobre o Quintino.
Objetivamente, o que se tem são
depoimentos
dos combatentes de 1935 e o documento datilografado, encontrado, décadas depois.
João
Batista Galvão, advogado, foi secretário do Colégio Atheneu e
ligado à ANL. Foi nomeado Ministro da Viação do Governo
Popular Revolucionário. Para
seu filho, Cipriano Santa Rosa, o pai foi comunista. Na casa da Praia
do Meio fazia reuniões do Partido. Ministro da Viação, decretou a
gratuidade dos bondes e transportes coletivos, em Natal. A evasão é
acompanhado de Lauro Lago
e
José Macedo, os três
engravatados de paletó,
no sentido da Baía Formosa. O trio elegante do paletó foi preso, em
Canguaretama, pelo Major Elias, da polícia paraibana. Como sequelas
das torturas sofridas, reduziu à metade as funções renais, com
perda do órgão. Cumpriu um ano e meio de prisão, foi liberado com
o Decreto Ministerial de 1937. Revogado o Decreto e a liberdade, não
voltou à prisão. Tratou de fugir e de ampliar o rol dos
perseguidos, do malsinado Estado Novo.
José
Macedo, tesoureiro
dos Correios, exerceu a importante função de Ministro
das Finanças do Governo Popular Revolucionário, em Natal. Responsável pela
contabilidade da Junta Popular, o homem forte do dinheiro fazia as
contas das expropriações e dos gastos da revolução. Na condição
de Comissário de Finanças, apresentou-se ao gerente Carlyle Magalhães, do BB. Comandou a
escolta rebelde do mecânico Manoel Severino para fazer o
arrombamento do cofre do Banco do Brasil. Foi incriminado ainda por
dois saques ocorridos, em São José de Mipibu, da Prefeitura e da
Agencia de Rendas Estadual. Do trio
engravatado,
foi preso em Canguaretama, e aparece na célebre fotografia dos
presos de gravata, no trem. Viajou preso no mesmo navio do escritor
Graciliano Ramos, personagem do registro chistoso, pela sua
preocupação com as finanças do governo deposto.
Quase
nada sabemos sobre Lauro Cortez Lago. Encontradas enormes
dificuldades à composição mínima de dados biográficos. Sabemos
que foi Administrador da Casa de Detenção, integrar
a tríade dos engravatados
do Governo Popular que
foragiu
e foi presa, conjuntamente, no Município de Canguaretama. No
Tribunal Segurança Nacional
,
foi condenado à pena pesada de dez anos de prisão.
Começamos
a trincheira dos políticos tradicionais, com o governador Rafael
Fernandes Gurjão. Médico formado no Rio de Janeiro, escreveu tese
sobre os
desvios do útero. Mas
seguiu sem desvio o caminho destinado aos filhos dos produtores
abastados e exportadores do algodão no Rio Grande do Norte: a
governança. Nasceu no município de Pau dos Ferros, no final do
século XIX. Liderou o Partido Popular, sucedâneo do Partido
Republicano Federal, tradicional das oligarquias potiguares,
dominantes desde o começo da República. Foi duas vezes deputado
Federal e governou o Rio Grande do Norte por oito anos, de 1935 a
1943, – em 35 foi empossado, deposto pela revolução e reempossado
e de 1937 a 1943
.
Foi nomeado interventor estado-novista. E morreu em 1949, aos 61
anos.
Dinarte
de Medeiros Mariz, nasceu na Serra Negra, no ano de 1903. Agricultor,
pecuarista e comerciante, fez carreira política tornando-se um dos
líderes mais influentes do estado. Foi um dos que fundaram o PP,
Prefeito de Caicó em 1930. Foi senador da República durante vinte e
dois anos. Governou o Rio Grande
por
cinco anos. O General
da Serra do Doutor promoveu-se
e ganhou notoriedade pela suposta condição de combate dos
comunistas. O autodenominado anticomunista
de fuzil na mão,
morreria octogenário, em 1984.
Mário
Câmara era membro de família tradicional do RN e morava no Rio de
Janeiro. Foi nomeado interventor Federal da Revolução
da Aliança Liberal de Getúlio,
em 1930,
como jogada getulista pra unir as oligarquias potiguares. Câmara
substituía o governador Juvenal Lamartine, deposto em 30, membro de
tradicional oligarquia do Estado. Na escolha do advogado carioca, mas
de família tradicional do Seridó potiguar, apostava Vargas
apaziguar as oligarquias. Vargas buscava aproximar a Aliança Liberal do PP de José Augusto de Medeiros. Nesse sentido, o interventor retira
o aliado Café Filho, aliancista de primeira hora, da Chefia de Polícia. Porém, a desejada
aproximação com a oligarquia do PP não prosperou. As relações
entre o interventor e ela azedam de vez, com o assassinato do coronel
Francisco Pinto, membro do Partido Popular, em Apodi. O crime foi o
pretexto dos populistas insatisfeitos para acirrar de vez a campanha
contra o interventor. Mário Câmara foi acusado de responsável pelo
infortúnio, mas em reposta, reforçava as suas bases, articulava
intervenções estaduais, nas municipalidades; nomeava prefeitos e
atraía os dissidentes do PP. Nessa toada ele sedimentou o Partido
Social Democrático no
RN. Diversos seguidores do interventor Mário Câmara, popularmente
conhecidos como maristas, participam ativamente do movimento de 35.
João
Café Filho, advogado, organizador de diversos sindicatos de
trabalhadores, na década de 20, foi um dos principais opositores das
oligarquias tradicionais e do governador Juvenal Lamartine. Após a Revolução de 1930, João Café Filho ampliou sua influência, liderou o Partido
Social Nacionalista, do
RN. Café Filho ocupou a presidência da República, em curto período
de transição. O João
Rubiácea,
como o atacava a imprensa oligárquica, nasceu no Rio de Janeiro, em
1899. Foi deputado Federal por onze anos (1934-1945),
Vice-Presidente da República (1951-1954),
Presidente da República (1954-1955) e Ministro vitalício do TCU, da Guanabara. Morreu em 1970, aos 71
anos. Os cafeístas participam
da revolução e da deposição de Rafael Fernandes.
João
Medeiros Filho não teve expressão política com mandatos, mas foi o
chefe de Polícia durante as efemérides revolucionárias de 1935, no
RN. Nascido em Campina Grande, PB, na primeira década do século XX,
foi promotor de justiça da PB e do RN, cargos nomeados. Foi
advogado, jornalista, escritor de obras como: Meu
Depoimento, 82
Horas de Subversão, Notas
de Promotor, Elogio
da Justiça, O
Dever do Advogado Criminal, Aposentadoria
Compulsória da Magistratura.
Conferiu autenticidade ao Soldado
Luiz Gonzaga e aos bilhetes do Bluhce
. Pertenceu
à Academia Norte-rio-grandense de Letras e ao Instituto Histórico e
Geográfico do RN.
Foi Inspetor de Ensino e Diretor de Polícia Civilno DF. Recebeu das
autoridades governamentais do Estado por ele adotado, homenagens
dando o nome à escola e avenida
.
No
tocante aos mais vivos, os achadores
de dinheiro merecem destaque. Somente uma terça parte do dinheiro saqueado do
Banco do Brasil, retornou aos cofres públicos. Sem falar do dinheiro
saqueado das mesas coletoras de rendas do interior, perdido
pela estrada.
Foram
retirados 3.900 contos do BB, em Natal. A polícia potiguar devolveu
ao tesouro estadual 900 contos. Algumas horas se passaram entre o
momento do saque e o das buscas policiais “devolutivas”. Pelos
depoimentos e registros, uma parte do dinheiro foi partilhada entre
os membros da Junta revolucionária. Parte foi distribuída com a
população. Parte jogada nas casas do entorno da Praça Pedro Velho.
Na
folclórica estratégia, dos comunistas, de implicar a burguesia pela
posse do dinheiro do Banco do Brasil, essa “ideia” de jogar os sacos de dinheiro nos quintais e jardins das
casas dos ricos, teria partido de um
camarada que
argumenta:
[...] quem for
preso acusa os ricos de participação. Dessa forma, De madrugada
chove dinheiro. Numa mansão da Praça Pedro Velho um saco de cédulas
do Banco do Brasil, arremessado por cima do muro, esmaga o espinhaço
de um cachorro. [...] alguns respeitáveis cidadãos de Natal estavam
mais ricos. Uma ideia de um comunista sincero, mas precipitado, havia
aumentado a conta de alguns privilegiados.
Os
sobrados ricos da Praça Pedro Velho não foram vasculhados em
diligências de busca e apreensão da polícia. Em respeito à
inviolabilidade do lar. Nas periferias da cidade, Rocas, Quintas,
Areal, Alecrim, as garantias constitucionais ainda não tinham
chegado. Foram invadidas e muito cabra
chiou no cipó. No
dizer do brejeiro, pobre
só leva fumo, quando come galinha, um dos dois está doente.
Na
contagem do comunista Aurélio Poty, a maior parte do dinheiro foi
recuperada e só não apareceu, oficialmente. Pessoas desparecem, da
cidade, e pobres ficam ricos. Alguns ricos ficaram mais ricos, pessoas
da alta sociedade.
O historiador Hélio Silva faz registro dos três policiais recifenses
que arrecadaram, para si, o que puderam, do dinheiro roubado do BB.
Cipriano Galvão reproduz a história escutada do pai dos 200 contos
enterrados, mas, que o delegado devolveu apenas 20 contos:
“O engraçado é que o delegado de Polícia de Canguaretama pouco
depois tornou-se próspero comerciante e permaneceu rico até pouco
tempo”.
O
chefe de Polícia João Medeiros Filho foi intimado pela Assembleia
legislativa a prestar informação sobre achados e perdidos e sobre
abuso de poder. Em resposta, o delegado considerou normal a pífia recuperação do montante do dinheiro. A
seu ver, o dinheiro devia
estar bem escondido, nas mãos dos comunistas.
Ele e a polícia incorruptíveis registravam cada tostão apreendido
do dinheiro roubado. Dinheiro recuperado, dinheiro devolvido, cada
tostão de réis. O dinheiro que faltava, procurassem nos sítios dos comunistas.
Nos
bairros pobres, banalizava-se a truculência policial, a invasão de casas, surras, ameaças. Uma simples denúncia anônima
bastava para os diligentes representantes
da lei fazerem a vistoria aos costumes.
O
jornal trombeteou contra esses abusos da polícia, em artigo. A ousadia da
folha não passou em branco. Dia seguinte, o pasquim foi fechado, à
ordem do chefe
de polícia. Ele
explicou a arbitrariedade em nome do “estado de guerra”, a
matéria ameaça à ordem, uma campanha
difamatória.
Indignado,
o deputado Djalma Marinho protocola Pedido
de Informação ao
chefe de polícia. Quer esclarecimentos sobre a violência policial e
as providências adotadas para os desvios do dinheiro do BB, que
a Exa. Levou a sua testada na ladroagem, mas não defendeu mais
ninguém?
O
chefe de polícia respondeu à egrégia Assembleia. No tocante aos
supostos abusos, providenciou
em “abundância
de ordens e recomendações à apuração dos fatos [...] Mas a
natureza das diligências justificavam plenamente a demora na
conclusão dos inquéritos”. Quanto
ao desvio do dinheiro,
Os respectivos
inquéritos foram instaurados. No tocantea dita testada a ele
atribuída de ter levado a sua parte, o ônus da prova cabia ao
acusador. Sobre a censura e fechamento de O Jornal, as medidas
adotadas estão todas elas embasadas na legalidade do Estado de
Sítio.
Causava
espécie o surto imobiliário da capital potiguar. Novos sobrados,
bangalôs e casas são construídos, outros tantos, reformados.
Também benfeitorias voluptuárias davam sinais exteriores dessa
prosperidade. Principalmente, nas ruas próximas à Praça Pedro Velho.
Calhava
a Gentil Ferreira ser empresário da construção civile o Prefeito
de Natal. Na engenhosa administração do Gentil, metade da Praça Pedro Velho foi loteada, ao meio, por decreto.
O progresso da cidade exigia a utilidade daquela área nobre. O
fracionamento da praça pública e as construções e reformas do
entorno, levam a patuleia impiedosa a suspeitar de jaboti
em poste. Pessoas da mais alta sociedade e acima de qualquer
suspeita, na nobre
vizinhança, apontadas como donas das “casas
dos achadores de dinheiro”. Durante décadas, em Natal,
qualquer construção ou sinal de prosperidade, recebia a sentença
implacável echistosa dos populares: achou
dinheiro!
As
casas dos achadores de
dinheiro merecem a
imortalidade das lendas do folclore potiguar. Pois as fábulas, os
mitos integram a história. Reais e imaginárias, as lendas, desde
Homero, o antigo, são transmitidas, de geração em geração. Elas
são traços da cultura popular, do folclore, do qual, na BR 101, entrada de Natal, a capital do Rio Grande do Norte, uma placa
presta justíssima homenagem o filho ilustre: “Esta é a Terra de Luís da Câmara Cascudo!”.
Melhor assim. Terra do maior folclorista brasileiro e não dos
folclóricos achadores de
dinheiros.
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