Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
O Sindicato do Garrancho
Brasilia Carlos Ferreira, Segunda Edição, Coleção Mossoroense, 2000
6 – Conclusão
A reconstituição histórica da luta dos trabalhadores em salinas de Mossoró, por sua organização em sindicatos – e dos limites ultrapassados nesse percurso – faz emergir alguns pontos sobre os quais se faz necessário um mínimo de reflexão. Mesmo que no decorrer e ao seu fim não surja uma argumentação capaz de dar conta, de explicar suficientemente tais acontecimentos, quando menos, são expressas algumas indagações que poderão vir a ser desenvolvidas com maior propriedade por tantos quantos tenham algum compromisso com a vir-a-ser da classe trabalhadora.
Até que ponto, o “Sindicato do Garrancho” e os seus desdobramentos podem vir a ser considerados um caso singular, no quadro geral da luta dos trabalhadores brasileiros por sua organização como classe, sua constituição enquanto sujeitos políticos? Onde estaria contida essa singularidade? De início, podemos considerar a extrema radicalização atingida, expressa por exemplo no funcionamento clandestino do sindicato, na formação dos grupos de autodefesa, nos conflitos com as elites proprietárias ou seus agentes. O clima de confronto permanente envolveu os operários ligados à atividade sindical e os empurraria para o desafio à legalidade, via opção pela luta armada, (por mais defensiva que nos possa parecer). Esses elementos serão indicativos concretos de uma situação atípica em termos de processo de organização dos diversos segmentos da classe trabalhadora em sindicatos ou partidos? Afinal, onde buscar explicação para essa radicalização? Poder-se-ia pelos altos níveis de exploração praticada por uma classe dominante intolerante e refratária ao mais leve sinal de alteração de seus privilégios? Na conjunção de fatores característicos da conjuntura política local e regional na primeira metade dos anos 30 e que os teria levado a explorar até o limite as disputas interoligárquicas locais? No processo histórico de construção do capital mossoroense que engendrou desde cedo classes sociais antagônicas com contornos bastante definidos, e uma classe média pouco numerosa e sem um projeto político que a capacitasse a atuar como amortecedora dos conflitos? Poder-se-ia, também, dar um peso específico a estes fatores que refletem a teia das relações sociais que compõem o quadro político em nível local, dimensioná-la convenientemente a tentar aprender os elementos a partir dos seus movimentos mais internos, dos elementos intrínsecos a seu próprio desenvolvimento. Seríamos levados então a percorrer outra trilha, a partir de outras indagações. Qual a importância que desempenhou o Partido Comunista do Brasil, sua atuação, num quadro específico de preexistência do Partido ao Sindicato? Até que ponto a forma de relacionamento entre as duas instâncias organizativas, cuja tônica foi a indiferenciação dos limites da atuação, merece ser considerada como conseqüência direta do atrelamento do sindicato ao Partido? Por outro lado, devemos buscar os anexos entre a prática do Partido a nível local e a linha predominante a nível nacional? E nessa linha de raciocínio, com as orientações emanadas da III Internacional, principalmente através dos seus 6º e 7º Congressos (1928 e 1935), os quais vão deliberar a atuação do Partido no período aqui enfocado?
Estas perguntas mais abrangentes recobrem outros pontos de discussão que lhes estão diretamente ligados, como a dimensão da ANL (Aliança Nacional Libertadora), a nível local, e o nexo entre a “guerrilha” e o Movimento de Novembro de 1935.
Por outro lado, vale ressaltar que essa discussão adquire sentido para nós, principalmente na medida em que – subjacente a todos esses pontos de inflexão – ganha corpo à questão maior da emancipação da classe trabalhadora. Todas as perguntas formuladas, todas as indagações resultantes da reconstrução desse episódio, crescem em oportunidade e importância na medida em que apontam para essa questão, qual seja, a da participação dos próprios trabalhadores no processo de transformação da sociedade, na perspectiva dos seus interesses e a partir dos instrumentos que lhe possibilitem avançar concretamente em direção à sua emancipação.
O processo de formação da classe operária mossoroense se dera desde o início num ritmo mais acelerado do que no restante do Estado. As especificidades no processo de constituição do capital local – charqueadas, empório comercial e indústria do sal – vão produzir com certa rapidez um contingente assalariável, oriundo principalmente da atividade agrícola e que gradativamente vai se transformando em operários, sobrevivendo exclusivamente às custas de seu assalariamento na atividade de extração do sal. A esses, somam-se os que embora vinculados à agricultura, através das mais diversas formas de trabalho, vêem-se obrigados a procurar outra atividade que lhes garanta a sobrevivência durante o período da entressafra agrícola. A salina àquela época completamente manual, era a atividade econômica capaz de absorver essa mão-de-obra numerosa e de baixa qualificação.
A concentração desse contingente, competindo entre si, disposto a se assalariar a qualquer preço, sem nenhuma prática associativa anterior e sem experiência de luta em defesa de quaisquer direitos, é a pedra de toque dos altos níveis de exploração praticados que os traduzem na mais valia, extraídas a partir das jornadas excessivas, baixos salários e péssimas condições de trabalho.
À medida que tem início o processo de organização, os confrontos vão acontecendo e no decorrer da luta vão se delineando os interesses que estavam em jogo, que era o inimigo e que ações poderiam sensibilizá-lo. Mais ainda, passaram a se ver enquanto ser plural, coletivo – nós – ligados pela mesma situação frente à exploração dos patrões – eles. O processo de sua constituição enquanto classe se dará no bojo de intensas lutas a partir das quais os campos de atuação serão demarcados. É no espaço resultante desse delineamento que se exercitará a prática de classe, em que se confrontarão enquanto forças antagônicas os operários e os patrões e seus instrumentos de dominação.
A conjuntura política da época, a República Nova, marcada pelo Estado de Compromisso (1), caracterizava-se, em nível local, pela teia de contradições secundárias que colocavam campos opostos, pelo menos em determinados momentos, os setores oligárquicos tradicionais junto às suas dissidências enformadas no bojo do movimento de 1930. Os setores da pequena burguesia politicamente organizados expressavam-se através do cafeísmo, o qual embora duramente combatido pelas elites proprietárias, jamais chegaria a ultrapassar a radicalização verbal utilizada nos limites do superestrutural. Em nenhum momento empunharam bandeiras de lutas que apontassem concretamente para a superação da exploração. O discurso cafeísta era amplo e genérico o suficiente para não comprometer as demandas vitais, como a questão da terra e a superexploração do trabalho. Mesmo se autoproclamando aliado da classe trabalhadora, sua prática sempre orientada para beneficiar-se dessa aliança, utilizando-a como base de sustentação política e como respaldo nas negociações com as demais forças, numa atuação tipicamente populista (2). Esse comportamento ficou exemplarmente evidenciado nos momentos de greve, em que ao se verem diante de reivindicações que feriam os interesses do patrono, procuravam intermediar o conflito, esvaziando pleito dos trabalhadores de modo a preservar os interesses patronais (3). Em se tratando de trabalhadores acusados de comunistas, essa relação perde as aparências e aparece com toda contundência de repressão (4).
O desenrolar dos acontecimentos mostrou que o envolvimento desses setores com o operariado se deu sempre com o objetivo claro e definido de utilizar-se, de suas iniciativas políticas para respaldar seus próprios projetos.
O cafeísmo no poder se revelou incapaz de respaldar os trabalhadores na luta pela negociação menos desfavorável do valor de sua força-de-trabalho. Dessa forma, ao buscarem uma atuação conjunta em nível de política global, foram impelidos não por uma definição da classe operária como aliada preferencial e sim porque com o acirramento das dissidências interoligárquicas no Estado, e o agravamento da crise política durante o processo eleitoral de 1930, não lhes restou outra alternativa que a de jogar com os trabalhadores para enfrentar o bloco de José Augusto na luta pelo governo do Estado. Derrotados nas urnas, alguns de seus integrantes chegariam a fornecer, por ocasião da “guerrilha”, algum apoio material ao grupo. Assim fazendo, tinham a convicção de estarem jogando pesado na desestabilização do Governo Rafael Fernandes.
Portanto, a polarização entre as classes fundamentais, expressas no enfrentamento contínuo e na radicalização dos processos de luta, apontam para a inexistência de uma classe média numerosa, capaz de atuar como amortecedora dos conflitos. Essa ausência deve ser levada em consideração como um dos fatores que funcionou como elemento catalisador, desnudando as contradições e favorecendo assim o exercício constante de uma prática de enfrentamento, espaço privilegiado em que se informam as classes sociais enquanto sujeitos históricos.
No seu processo de constituição enquanto classe, os trabalhadores mossoroenses travavam contato em primeiro lugar com o projeto político, tático e estratégico do Partido Comunista e em seguida com a proposta de organização sindical. Formada a “vanguarda”, coube-lhe, como primeira tarefa, organizar a massa de operários em sindicatos e seguindo o modelo clássico de inspiração leninista pinçar entre essa massa os elementos mais atuantes para reforçar o “destacamento avançado da classe” e dar seqüência ao esquema massa – vanguarda.
Desse modo, as reivindicações mais imediatas como, valor da força-de-trabalho, transporte e água por conta da empresa, regulamentação das medidas, etc..., Começam a fazer parte do universo de propostas dos operários, ao mesmo tempo em que surgem propostas de superação da relação capital/trabalho. A politização e o nível de ideologização dos trabalhadores demonstram através de seus discursos, ainda no início, durante o mais breve período que funcionaram legalmente enquanto Associação, são uma decorrência desse processo.
“Precisamos seguir o exemplo da União Soviética, onde existe uma pátria chamada Pátria dos Trabalhadores. Lá o trabalhador tem direito a tudo que produz. Isso é uma árvore que nasceu na URSS e que vem sombreando o mundo todo. E um dia, o mundo inteiro, há de se tornar comunista (...) Diz Carlos Marx que a burguesia traz dentro dela o germe que irá destruí-la. Esse germe somos nós (...) Temos que acabar com quem nos mantém sob esse sistema de exploração (...) (5).
Para se entender o grau de radicalização a que os trabalhadores chegaram, deve ser levada em conta a identidade de ação do Partido/Sindicato, ou seja, o espaço privilegiado onde o Partido colocava suas propostas e onde desaguavam naturalmente todas as suas orientações. “Na reunião do PCB se discutia sobre o sindicato, o PCB dava toda a cobertura ao sindicato, porque lá é que estava a massa” (6). O Partido agia através do sindicato de tal modo que não havia possibilidade de distinção entre as duas esferas de atuação. “O sindicato tinha a ação, mas era o Partido que estava agindo” (7). Naturalmente, a massa operária ignorava a presença do Partido, embora obedecesse as suas palavras de ordem, empunhasse suas bandeiras de luta e colocasse na prática sua orientação: “(...) e daí começou (o PCB), o sindicato, a direção dos operários, mas os operários não sabiam de coisa nenhuma (...)” (8). Daí, o sindicato ser percebido como instrumento capaz de alterar radicalmente as suas existências. Tanto assim, que um dos entrevistados, que fora na época dirigente do Partido, fez a seguinte reflexão: “os trabalhadores sabiam que as lutas sindicais poderiam mudar sua situação de vida e que aí é que ele poderia de livrar da miséria e da escravidão” (9).
Contudo, a comprovação de que “o sindicato do garrancho” funcionava como uma frente legal de atuação do Partido é insuficiente para justificar os caminhos para os quais esta luta derivou. Isso porque, o atrelamento do sindicato ao Partido sempre foi uma prática corrente, estando inclusive no cerne de uma das primeiras crises internas do PCB, em 1927, e que daria origem a primeira cisão do Partido (10).
É preciso, portanto, não se limitar a essa questão tentar descobrir em outros aspectos os elementos dessa radicalidade. O PCB mossoroense recebia todo material proveniente da Direção Nacional através da Direção Estadual, localizada em Natal, capital do Estado. Afora esse fluxo natural de informações, no decorrer da pesquisa, chamou-nos atenção outras formas de acesso que passavam ao largo da Direção Estadual. No Porto de Areia Branca, na época o 7º do país em movimentação (11), o fluxo de cargueiros para o transporte do sal era intenso. Na época, parte significativa dessa tripulação era ligada ao Partido e funcionava como meio de comunicação altamente eficiente. Durante o tempo em que os navios permaneciam parados esperando cargas, a tripulação descia para a terra e além de passar documentos do Partido para seus contatos e discutir conteúdos, transmitiam todo o clima que o movimento atravessava nos pontos de seu trajeto no país. Tanto é assim que, nas entrevistas, ao se abordar o período próximo ao Levante, a referência é constante: “(...) notícias chegadas do sul, davam conta da proximidade do movimento” (...) (12). A proximidade do porto facilitava o trânsito das pessoas por Mossoró. O próprio comandante Sisson, secretário da Aliança Nacional Libertadora, acompanhado por Ivã Pedro Martins, permaneceu alguns dias em Mossoró, nos meados de 1935, trabalhando no núcleo local da ANL. Assim, mantinha-se um fluxo incessante de informações sobre os acontecimentos do eixo centro-sul do país e aquele núcleo do Partido, geograficamente localizado, tão distante da efervescência política do período. Além disso, Lauro Reginaldo da Rocha, um dos fundadores do Partido em Mossoró, mantinha-se no Rio de Janeiro, desde o episódio de sua “deportação” do Estado, por ordem de Café Filho, em 1932. Em 1934, por ocasião da 1ª Conferência Nacional do Partido, passaria a integrar o Secretariado Nacional (13). Nesse período, alguns dos membros da família Reginaldo, faziam parte da Direção Municipal, o que nos leva a supor que a presença de Lauro na Direção Nacional esteja por trás não apenas de um intercâmbio mais freqüente de informações, como também tenha influenciado na designação de quadros especialmente do Rio de Janeiro, para cumprirem tarefas organizativas em Mossoró por deliberação do Partido (14).
Esse rastreamento nos leva a supor que o núcleo mossoroense do PCB estava perfeitamente sintonizado com as orientações a nível nacional. E quais seriam as orientações? Quando surge em 1928, o PCB a nível nacional, caminhara do Bloco Operário de 1926, para o BOC (Bloco Operário Camponês). Criado em meados de 1927 e que colocava pela primeira vez “a questão da aliança política dos operários com os camponeses” (15). Nascendo sob o signo de “uma política independente de classe” (16), o núcleo mossoroense permanecerá fiel a ela, mesmo depois de desfeito o BOC, após as eleições de 1937 (17), tal como demonstra a leitura dos boletins que circulavam por volta de 1934 (18).
Uma das pistas prováveis, para explicar o rumo que tomou o movimento mossoroense, passa inevitavelmente pelo cotejamento entre sua prática a nível local e as deliberações em nível nacional e avançando um pouco mais nessa direção, pelas orientações emanadas da III Internacional e que norteavam toda a definição tática do Partido (19). Em primeiro lugar, cumpre lembrar que em 1928 foi realizado em Mossoró o VI Congresso da Internacional Comunista, onde pela primeira vez é produzido “um relatório específico sobre a conjuntura latino-americana, assim como aparecem questões sobre a estratégia a ser seguida pelos Partidos Comunistas dessa região” (20).De acordo com as análises produzidas nesse Congresso. “O capitalismo caminhava para a crise final, e o atual período “seria marcado por grandes lutas revolucionárias”, devendo-se portanto, “combater os socialistas e outras correntes de esquerda que não comunistas”, pois já estaria colocada a luta pela tomada do poder” (21).A partir de então:
“a revolução brasileira deixa de ser democrático-pequeno-burguesa, para ser democrático burguesa, anti-imperialista. Em conseqüência, suas tarefas mudam (...) O eixo das alianças políticas passa da busca de contatos com a pequena burguesia (urbana) revolucionária, para a aliança com as massas camponesas (...), e em decorrência assume-se palavras de ordem como ‘governo operário e camponês’” (...)(22).
Definindo-se ainda como formas de luta, (...) “armamento de operários e camponeses visando a criação de milícias populares”. (...) (23). Portanto, logo ao nascer, o PCB mossoroense passa a conviver com uma avaliação de conjuntura, absolutamente irreal, que ignorava as especificidades da formação brasileira, e ao desconhecer totalmente a sua realidade específica, lançava para aquele contingente de trabalhadores, extremamente ideologizados pelo discurso comunista, a ilusão da proximidadedo momento da tomada do poder, que aqui no Brasil seria traduzido em “radicalização político-partidária, visando a criação de condições insurrecionais” (24). Por ocasião do III Congresso do PCB (fins de 1928/início de 1929) foram referendadas posições do VI-IC, traduzidas na palavra de ordem de Frente Única. Suas deliberações afirmam que deverá;
“(...) adquirir a todo preço a hegemonia no movimento revolucionário que se desenvolve no Brasil, cujas principais forças motrizes serão o proletariado, a massa de assalariados agrícolas e os camponeses pobres” (25).
Por outro lado, neste Congresso, em termos da questão sindical, tem lugar intensa polêmica, gerada dela dissidência de Barbosa e Pimenta, que criticavam o atrelamento do Partido ao sindicato e as conseqüências nefastas ao movimento, provocados pela busca incessante de hegemonia nas entidades sindicais. A discussão não se prendeu às questões substantivas, limitando-se à crítica aos dissidentes e legitimação das intervenções do Partido que estavam sendo criticadas, justificando-o, ao reafirmar o seu papel de “vanguarda centralizada e disciplinada do proletariado” (26). Ou seja, intercessão Partido/Sindicato, que em Mossoró chegaria a ter conseqüências drásticas, era fruto natural da visão predominante no PCS, a quem como o “destacamento avançado do proletariado”, caberia definir a tática correta, através da qual a massa chegaria a atingir os seus (dele) objetivos, que afinal seriam objetivos dessa mesma massa, que por sua inconsciência cabia ao Partido definir.
Vale ressaltar, também, que esse período que estamos tratando 1931-1935, se caracterizou por ser uma fase de grande sectarismo. As deliberações do VI Congresso da IC e III Congresso do PCB se traduziam no interior do Partido “num radicalismo obreirista e num ultra-esquerdismo” (27), cuja decorrência foi um período de muita instabilidade ao nível da Direção Nacional, onde quadros eram guinchados à cúpula e em seguida caíam em desgraça e eram afastados. O obreirismo, marco definidor desse período, privilegiaria a participação dos operários “puros” em detrimento dos quadros oriundos da pequena burguesia. Embora as substituições físicas não alterassem a política global do Partido. Portanto, o núcleo comunista mossoroense nasce sob os auspícios dessa política centrada na aliança operário-camponesa e no desprezo aos setores da pequena burguesia, na supervalorização do obreirismo, e em nível da questão sindical na recusa em repensar a atuação do PCB neste campo e na prática do atrelamento e luta pela hegemonia política no interior dos sindicatos. Na reconstrução da história do “sindicato do garrancho” esses elementos vão estar presentes e, curiosamente, vão apresentar-se muito resistentes a mudanças de rota, mesmo quando propostas pelo MCI (Movimento Comunista Internacional) e encampadas pelo PCB.
Em 1934, dois fatores vão determinar modificações radicais na atuação do PCB. A nível internacional, a vitória do nazismo vai colocar para a IC a necessidade de rever sua postura em relação a outras correntes da esquerda e setores da sociedade, o que vai derivar na política de Frente Ampla (28). Somado a isso, temo a nível interno a adesão de Prestes ao PCB, que vai influenciar uma abertura a setores de classe média, especialmente pela incorporação a seus quadros, de intelectuais progressistas e de parte significativa do movimento tenentista. Essas mudanças vão apontar para a criação da ANL (Aliança Nacional Libertadora) e seu potencial aglutinador de setores médios da sociedade. A partir de então, “O PCB se torna mais popular e menos operário, (...) os problemas da nação, sobrepujando aos da classe” (29).
Curiosamente, em Mossoró, embora a Frente Ampla possa ser detectada, e largos setores da classe média e da intelectualidade tenham aderido à ANL, em cuja direção o Partido tenha conseguira colocar 2 de seus membros, esse processo ocorre sobre certas especificidades. Em primeiro lugar, no âmbito do Partido, não há um número significativo de novas adesões. A própria radicalidade que o processo já atingira, fez com que a aliança tática aparecesse com toda a clareza. Com efeito, no início de 1935, já havia grupo de trabalhadores clandestinos e semi-clandestinos, perseguidos por sua atuação sindical. Ou seja, a luta de classes já acumulara experiências concretas na definição de contornos de seus protagonistas. A intensa mobilização pró ANL, embora fizesse afluir centenas de pessoas (30), não parece ter apontado para elas o caminho do PCB. Do mesmo modo, para o Partido, a aliança com setores de classe média não chegaria a estreitamentos maiores. Certamente, o clima, a efervescência política peculiar àquele período, influenciou no sentido do Partido se sentir mais fortalecido, atuar mais publicamente, muitos militantes sindicais assumindo em praça pública a vinculação ao Partido (31), mas não há registros de que o quadro de filiados tenha sofrido modificações de peso no período, no que se refere à adesão de outros setores, que pudessem alterar sua composição social. O PCB mossoroense permaneceu essencialmente operário. A não adesão de outros setores que não o proletariado ao PCB se explica pelas especificidades locais. Num espaço totalmente ocupado pelas oligarquias, aparece uma classe trabalhadora querendo se constituir como sujeito e portanto adversário político capaz de desafiar as elites. A própria intolerância dos patrões, ao fecharem todas as possibilidades de existência legal do sindicato, e os conflitos daí decorrentes fizeram com que esse contingente fosse ganhando rapidamente seus contornos de classe, e empurrando-os para uma radicalização política inesperada e atípica. Por isso o populismo cafeísta não conseguiu lograr êxito. Entre a oligarquia e o populismo da pequena burguesia, os operários optaram pela liberdade e autonomia da classe. Até porque, com a chegada da Aliança Liberal ao poder, os trabalhadores se depararam com a contradição entre o discurso liberal e a prática manipuladora e autoritária que não lhes deixava qualquer espaço de sobrevivência independente. O vigor que o movimento dos operários mossoroenses adquire, tem a ver com a indiferenciação Partido/Sindicato, através do qual a massa operária é trabalhada com discurso extremamente ideologizados e por outro lado, em nível de Partido, por essa “pureza de classe” que lhe afasta das acomodações próprias das composições e alianças.
Paradoxalmente, a política de Frente Popular (32), preconizada pelo 7º Congresso da IC (1935) vai coincidir com o período de maior radicalização do Partido em Mossoró, quando parte significativa de seus militantes, inclusive quadros dirigentes, se decidem por iniciar um movimento armado, uma “guerrilha”. Essa atitude, se à primeira vista parece surpreendente, começa a ganhar sentido quando se incursiona pelos documentos produzidos no âmbito do Partido, entre fins de 34 e meados de 1935. O manifesto de Preste de 5 de julho é bastante enfático, no que se refere à conjuntura política:
“A situação é de guerra e cada um precisa ocupar o seu posto. Cabe à iniciativa das próprias massas organizar a defesa de suas reuniões, garantir a vida de seus chefes e preparar-se ativamente para o assalto” (33).
Nesse manifesto, Preste propõe concretamente a derrubada do governo e a instalação de um governo democrático e popular. A resposta do governo de Vargas a este Manifesto é colocar a ANL na ilegalidade (34). É interessante notar que em Mossoró esse fato foi interpretado como um avanço a mais no processo pré-revolucionário. Afinal, no 7º Congresso da IC, um dos delegados do PCB, “assegurou que milhões de brasileiros se reuniam em torno da ANL” (35). Contava-se com esses milhões para realizar a revolução, da mesma forma que se acreditava que o PCB tinha “grande influência nas forças armadas do Rio de Janeiro (...) e junto ao movimento operário” (36). Certamente que avaliações desse tipo tiveram um papel importante na definição do movimento de 35, e mais ainda, faziam parte dos argumentos utilizados em Mossoró, para justificar a guerrilha. O fluxo de informações otimistas e absolutamente irreais em relação à conjuntura vivida em meados de 35 integrava tanto os informes prestados pelos Delegados aos Congressos da IC, como as avaliações que se faziam internamente. Essa superestimação das condições efetivas do nível do aprofundamento do processo revolucionário continua mesmo após o fracasso do movimento, aparecendo com toda clareza, por exemplo, num artigo de Henry Berger (37), onde ele afirma que;
“houve levante de massas populares e soldados em Pernambuco e no Rio Grande do Norte (...) organizações de colunas revolucionárias, armados e voluntários do Nordeste (...) os operários e soldados em armas, que não puderam se manter em Recife e Natal, deslocaram a luta armada para o interior (...) podendo absorver os milhares (de) novos combatentes surgidos das fileiras das massas camponesas” (38).
Esse relato foge muito à realidade. No Rio Grande do Norte, as “colunas” que se encaminharam para o interior, não chegaram sequer a dispor de tempo suficiente para empreender tantas lutas. Malogrado o movimento, 3 dias após o seu início, essas “colunas” dispersaram-se, fugindo, a começar pelos integrantes da Junta Revolucionária, procurando assim fugir à repressão. Apenas em Mossoró, o grupo armado sobreviveria ao fracasso de 1935 e permaneceria atuando até meados de 1936, quando enfim é derrotado.
Vale a pena examinarmos as eventuais ligações entre o Levante de 35 e a “guerrilha”. De um lado, já foi bastante ressaltado que a proximidade desse movimento teria sido o argumento mais consistente dos que defenderam início imediato da “guerrilha”. O outro argumento levava em consideração à existência de um grupo numeroso já vivendo na clandestinidade, para escapar da repressão. Segundo alguns autores, o Levante teria sido programado pelos quadros dirigentes do PCB (39) e da Internacional a partir dos informes apresentados sobre a situação vigente no país. Leôncio Martins Rodrigues afirma que em junho de 1935 “um levante armado, decidido pelo Partido foi marcado para Novembro, devendo contar com a participação de militares e civis” (40). O autor em questão não coloca nenhuma argumentação que sirva de apoio a essa informação. Mesmo assim, tomemos como base para raciocinar sobre as ocorrências em Mossoró. Julho de 1935 coincide com o início da guerrilha. Será que podemos afirmar a existência de ligação entre os dois fatos? Já foi mencionado anteriormente o eficiente sistema de informação que ligava esse núcleo interiorano aos acontecimentos do sul do país, especialmente dos documentos e orientação gerados pela Direção Nacional do Partido. Mas, se havia essa orientação porque em outros Estados do Nordeste não se concretizou? Essas indagações nos encaminham a pensar os acontecimentos em Mossoró, independentemente das indagações do Comitê Central, respondendo muito mais à dinâmica interna do movimento, expressa nas especificidades locais de radicalização da luta de classes. Ou seja, apesar de se orientar expressamente pelos documentos do Partido, a dinâmica concreta do movimento escapa ao procedimento geral e aponta para algumas especificidades. Sabe-se que uma das propostas do Partido era a deflagração de greves por causa do Levante. No decorrer da pesquisa não apareceu nenhuma vez alusão à preparação de greves com o objetivo de respaldá-lo. A tônica das preparações é a luta armada. Por quê? Estaria o sindicato numericamente enfraquecido pela adesão de seus principais quadros, os que formavam “o destacamento avançado do proletariado”, a “guerrilha”? Contudo, parte dos quadros dirigentes do Partido que não aderira à luta armada, permanecia ligado à produção, nas salinas. A luta do “garrancho” aparece neste período deslocada das orientações mais gerais da Frente Popular e antecipada em relação à questão do Levante de 1935.
A constituição social do Partido em Mossoró era majoritariamente operária. Os raros representantes da pequena burguesia como, os Reginaldo, votaram contra a luta armada e contra as ações de justiçamento, mas foram ultrapassados, mesmo fazendo parte da Direção, pela massa operária. O “abandono” da atividade sindical parece ter a ver com a radicalização do processo político local, a partir do qual foram privilegiadas outras formas de luta, mais contundentes.
A preocupação demonstrada em formar alianças horizontais como os camponeses, pode ser satisfatoriamente explicada pelo fato de o Partido ter surgido e vivido seus primeiros anos, quando predominava essa orientação (41). Com efeito, conforme documento produzido pela representante da IC para a América Latina,
“O proletariado e seu partido devem, em primeiro lugar, unir-se estritamente ao campesinato, organizando os operários agrícolas, como ponte para organizar os camponeses pobres, os colonos (...)” (42).
Em nível interno, essas posições eram forçadas quando os documentos oficiais do Partido afirmavam que,
“a organização e a política do BOC excluem também, por sua mesma natureza, qualquer espécie de colaboração, ligação ou acordo com as organizações políticas, não operárias e camponesas” (43).
Em Mossoró, essa aliança esbarrava concretamente na situação da população rural, uma massa amorfa, desorganizada, submetida aos donos da terra através de leis de servidão. O caminho encontrado pelo Partido para superar essas dificuldades foi começar a deslocar quadros para iniciar a organização dessa massa em sindicatos. Mas, à medida que a fundação de sindicatos respondia às necessidades do Partido de expandir-se horizontalmente, cumprindo à palavra de ordem da aliança operário camponesa, sua organização além de ser meramente tática, como frente legal de atuação do Partido, se colocava tarefas que estavam em desacordo com o nível de organização e de conscientização política que eles apresentavam. Como decorrência natural desse “atropelamento”, temos um processo de organização que não leva em consideração o nível de massa, que a manipula e instrumentaliza, não deixando possibilidades de intervir no processo, indo a reboque de propostas e práticas que, além de lhe serem estranhas, dificultava o entendimento que se passava ao seu redor. Esse típico processo de “introjeção” da consciência, da “interiorização” de objetivos táticos e estratégicos pode ser considerado como um ponto de inflexão importante para entendermos toda essa contradição entre a existência de uma massa até 1931, sem nenhuma forma de organização coletiva, sem sequer terem despertado para a organização de Associações Operárias, comuns naquele período, e a rapidez com que essa massa se “politizava” e “radicaliza sua prática” a ponto de se propor a combater não apenas o patrão, ou mesmo a classe dominante, mas combater o eixo da sociedade capitalista, ao pretender tomar o Estado e destruir a classe proprietária.
Ao imbricar tão profundamente Partido/Sindicato, as áreas de atuação perdem seus contornos, o que vai gerar um movimento de supervalorização em nível da vanguarda em contraposição a uma massa que, embora siga as palavras de ordem não tem clareza suficiente para intervir, mudar o curso, ou pelo menos exercer com um mínimo de autonomia sua prática. Tanto é assim que, em meados de 1935, quando as lideranças mais representativas ingressam na “guerrilha”, deixam a área sindical a descoberto, pela inexistência de lideranças intermediárias, de elementos de ligação entre a base do movimento e sua vanguarda. De forma que o “sindicato do garrancho” prestou algum apoio aos companheiros em armas, ou pelo menos, como prosseguiram as lutas dos operários das salinas? Mesmo que se considere a gravidade da conjuntura de 1935, o furor repressivo pós-movimento de novembro e a existência de um “grupo” amotinado lhe davam características particularidades – num certo sentido, ao se insurgir contra a lei dos patrões e resistir à repressão, – de quase dualidade de poder. Nesse contexto, tem-se de admitir que ao se tomar à prática sindical recortada, ela perde sua expressividade e se dissolve no âmbito de sua atividade partidária radicalizada, enquanto a massa operária, desarmada continuamente pela cooptação de seus quadros mais conscientes pelo Partido, pouco ou nenhuma reação demonstram.
Ou seja, exposta à saga dos operários de salina, restam algumas perguntas inquietantes e que dizem respeito à questão da emancipação da classe trabalhadora. O desfecho do movimento, seu refluxo se deu em função de uma correlação de forças desfavorável ou porque colocar-se objetivos que eram previamente definidos pelo Partido para serem incorporados pela massa, cujo nível de organização e de conscientização estava muito aquém dessas propostas, não tiveram o seu respaldo?
Além do mais, as conseqüências foram muito duras. A repressão em Mossoró pode ser visualizada em dois momentos distintos. Em 1935, embora alguns trabalhadores já publicamente identificados como comunistas tenham sido presos, as grandes vítimas foram os adversários do governo. Esse primeiro “round” repressivo procuraria derrotar as forças englobadas na Aliança Liberal, principalmente os cafeístas. A “guerrilha” sobreviveria a Novembro de 35, assim como a estrutura do Partido permaneceria quase intocada. Passado esse primeiro momento, a repressão concentrou suas forças para exterminar o movimento armado. Essa luta ultrapassaria 35 e chegaria a meados de 1936. Durante esse período, à medida que a “guerrilha” sendo sufocada, perdendo seus contatos, fiando isolada, os trabalhadores das salinas perdiam pouco a pouco sua capacidade de atuação e a atividade sindical vai se extinguindo lentamente. Ao final, ao derrotar o movimento armado, uma operação “pente fino” varreu da cidade centenas de operários, além de destroçar toda a estrutura do Partido. Mas, mais do que afastar esses homens, a repressão golpeou fortemente uma idéia que começava a se firmar entre os trabalhadores da região e que apontava na direção da organização como o instrumento de emancipação de toda a classe trabalhadora.
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