Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
O Sindicato do Garrancho
Brasilia Carlos Ferreira, Segunda Edição, Coleção Mossoroense, 2000
5 – O Sindicato do Garrancho
5.1 – A Organização
Os trabalhadores insistiam na organização dos sindicatos, não recuando diante das acusações de ilegalidade que lhes faziam os patrões e que se traduziam em violenta repressão. A violência se dava pela repressão direta à prática sindical, mas alcançava níveis mais altos na ação em surdina dos patrões visando impedir o reconhecimento do sindicato. Formou-se um paradoxo: ao mesmo tempo em que os patrões impediam a legalização sindical, argumentavam não poder validar a associação, porque não era um sindicato legal.
Durante as reuniões, os oradores apelavam para uma radicalização verbal, cuja contundência literalmente assombrava a classe proprietária e que era decorrente da ação do Partido. Esse, embora na clandestinidade, prosperava naquele espaço propício e chegaria a se expandir por outras cidades da região. Primeiro sindicato a ser formado na região, as suas reuniões monopolizavam a atenção dos trabalhadores de diversas categorias.
“As reuniões do Sindicato eram muito concorridas. Normalmente, a sede não comportava a quantidade de trabalhadores que gostaria de participar das assembléias. Muita gente era obrigada a ficar de fora, no meio da rua, pelas calçadas. Essas assembléias não eram freqüentada apenas por trabalhadores da categoria. Era quase como uma festa, porque para o trabalhador não havia diversão, lazer. A própria reunião do Sindicato se transformava em festa para ele. Trabalhadores de outras categorias também participavam dos debates. Havia também pessoas da rua, do povo, que compareciam até mesmo por curiosidade” (1).
Pode-se imaginar o mal-estar dos grupos dominantes diante da ofensiva organizativa dos trabalhadores em salinas para se organizarem em Sindicato. A repercussão dessas reuniões abertas era enorme. Todos discutindo e descobrindo que o problema dos operários da salina era diferente e igual aos problemas dos operários da construção civil, diferente e igual aos problemas dos ferroviários. A dimensão pedagógica era inquestionável, o povo tendo como assunto de suas conversas, na calçada, na boca da noite, suas condições de vida, a causa de tanta exploração e, sobretudo, os desafios para promover a organização sindical.
“Dentro dos Sindicatos também havia discursos inflamados, de educação política, de conscientização. Um operário tomava a palavra e propunha aos trabalhadores: precisamos seguir o exemplo da União Soviética, onde existe uma Pátria que se chama Pátria dos Trabalhadores. Lá o trabalhador tem direito a tudo que produz. Isto é uma árvore que nasceu na URSS e que vem sombreando todo o mundo, e, um dia, o mundo inteiro há de se tornar comunista” (2).
Os operários se entusiasmavam com as propostas de luta pelo socialismo e pela derrubada da burguesia. Continuava o orador: “Diz Carlos Marx que a burguesia traz dentro dela o germe que irá destruí-la. Esse germe somos nós” (3). O Sindicato dos Salineiros funcionou como uma grande escola para a classe trabalhadora mossoroense. Então, o Partido passou a se preocupar com a fundação de outros Sindicatos.
“Na reunião do Partido eram destacados os trabalhadores mais preparados, para organizar os sindicatos de outras categorias. Eram escolhidos elementos da própria categoria, que já participavam das reuniões dos trabalhadores da salina” (4).
Iniciaram concentrando os esforços na organização do Sindicato da Construção Civil, fundado através da luta pelas 8 horas de trabalho. Na época, a jornada dos operários da construção civil era de sol a sol, iniciavam com o nascer do sol e suspendiam quando o sol se punha. Na verdade, era bem maior, porque os patrões não aceitavam que os trabalhadores amolassem seus instrumentos durante a jornada. Então ele tinha que se levantar cedo. “Era pegar 4 horas da madrugada para amolar os ferros de usar no serviço” (5).
Os trabalhadores começaram a discutir como diminuir as horas de trabalho. À frente do movimento, Joaquim Rodrigues da Silva, Vicente Cassimiro, Luiz Dantas de Carvalho e Barôncio Ananias, todos ligados ao Partido Comunista e que mais adiante fundariam o Sindicato. No dia 14 de julho se reúnem e decidem parar a construção civil. No dia seguinte, saem de construção em construção, parando todas as obras da cidade. As que não aderiam, eles tomavam os instrumentos de trabalho, de modo que, às 4 da tarde, na cidade inteira, todas as obras haviam parado.
Dirigiram-se em passeata à Prefeitura, exigindo do Prefeito, Paulo Fernandes, que assinasse as 8 horas de trabalho. Eram cerca de 400 pessoas. O Prefeito argumentou que não era de sua competência, mas que ia tentar resolver. Os trabalhadores então afirmaram que a partir daquela data trabalhariam 8 horas diárias, eles mesmos fariam respeitar a lei. Restava o problema de dar o sinal para que todos ouvissem. Dirigiram-se a uma empresa que tinha sirene, mas a empresa se recusou. A empresa pertencia aos Fernandes. Tentaram o cinema que também dispunha de sirene. O cinema funcionava no prédio do Grande Hotel. Eles foram falar com o proprietário e ele disse que não poderia atendê-los “porque não queria perder o prestígio da burguesia e estava sujeito a perder se fizesse isso” (6).
Não havia mais a quem recorrer. Os trabalhadores se reuniram e chegaram à conclusão de que eles mesmos é que teriam de avisar as horas. Então decidiram fazer uma cota entre todos eles e comprar foguetões. Dividiram-se em comissões por bairros que ficaram responsáveis pelo rodízio dos trabalhadores, que na hora de pegar e largar pela manhã e à tarde, soltavam os foguetões. Durante 8 dias, Mossoró ouviu o estouro dos foguetões avisando os operários o início e o final da jornada de trabalho. Depois de uma semana e sob ameaça de nova greve, o Prefeito consentiu que a sirene da usina anunciasse a jornada de 8 horas.
Como conseqüência dessa luta vitoriosa, os trabalhadores fundaram o Sindicato da Construção Civil. A repressão não se fez esperar. As lideranças sindicais passam a ser demitidas. Era um momento de grave crise, a seca prolongada fazia correr para Mossoró centenas de flagelados. O Governador lança programas de obras públicas, construção de estradas, açudes, etc., para absorver parte dos miseráveis que vagueiam pela cidade. Com um exército industrial de reserva violentamente inchado e aviltado, vendendo-se por qualquer coisa que lhe diminuísse a fome, os patrões sentem-se à vontade para combater as idéias de organização dos trabalhadores em Sindicato.
Por esta época saem notícias em jornais, informando que a redação foi procurada por uma comissão do Sindicato da Construtução Civil, para protestar pela “expulsão de Silvino Freire Sobrinho e a perseguição de Vicente José dos Santos pela estrada de rodagem” (7). Outro expediente usado para pressioná-los foi negar emprego, como denuncia Francisco Ananias, um dos fundadores do Sindicato, ao jornal que informa:
“Estar pedindo providência ao Governo do Estado, pela má vontade do Prefeito, negando-lhe trabalho nas obras públicas da cidade. Declarou ser calúnia chamarem-no de comunista” (8).
Nesse mesmo exemplar lê-se a notícia de que 8 operários foram despedidos sob alegação de pertencerem ao Sindicato (9). Vale a pena lembrar que esses fatos aconteceram com a Aliança Liberal no poder e depois de o Governo Federal criar a Legislação Sindical que deveria ser respeitada ao menos no âmbito do poder público. Os operários demitidos sob a acusação de fundarem um Sindicato, também perdem sua condição de sócios da Liga, sendo eliminados porque “receberam favores e não souberam corresponder à sua finalidade” (10). A situação da Liga àquele momento totalmente descaracterizada, sendo freqüentada pelos políticos, autoridades e patrões, leva a pensar que se trata também de uma forma de repressão aos sindicalistas.
A classe trabalhadora mossoroense começava a ter uma ativa prática sindical. No exercício dessa prática é confrontada pelos patrões locais e pelos poderes públicos, ao mesmo tempo em que adquire sua consciência de classe. Pouco a pouco outras categorias foram se organizando em Sindicatos, também orientados pelo Partido e auxiliados pelos companheiros que já tinham experiência sindical em suas categorias.
Essa mobilização vai se refletir no 1º de maio de 1932, que é comemorado com um grande comício na Rua Doze Anos, organizado pelos Sindicatos dos Salineiros e da Construção Civil (11). Continuaram a aglutinar trabalhadores de outras categorias, que formaram o Sindicato dos Sapateiros, dos Ferroviários e dos Merceeiros (uma espécie de Sindicato dos Comerciários).
À medida que a proposta foi ganhando adeptos entre os trabalhadores, mobilizou contra a classe trabalhadora a ira das elites e foi se configurando o quadro de violento confronto que se desenrolaria. Como não havia, entre os militantes locais, quem tivesse prática anterior em organização sindical, o Partido destacou para essa tarefa Zé Mariano, um quadro experiente, que teria um papel importante nas lutas da classe trabalhadora mossoroense.
Zé Mariano era cearense, chegou a Mossoró vindo de Pernambuco, com a missão de ajudar a organizar os Sindicatos. Envolvera-se em rebeliões no exército e já chegou em Mossoró na clandestinidade. Seu nome legal era Luís Manoel da Silva. “Era um grande sindicalista” (12). Aqui chegando, era necessário uma fachada de atuação legal. Zé Mariano alugou um local no mercado e lá fazendo cuscuz e vendendo, ao mesmo tempo, tinha acesso aos operários. Naquele tempo não havia supermercados e o Mercado Público era onde se concentrava os alimentos a serem comercializados. Ponto estratégico, onde, obrigatoriamente, circulavam os trabalhadores.
A partir do momento que em Mossoró o Sindicato vai se estruturando, penetrando na classe trabalhadora, ganhando o seu reconhecimento, passou a ser considerado como um grande instrumento de luta em nível das relações de trabalho. O núcleo dirigente do Partido começou a pensar em ampliar sua atuação, visando atingir outras cidades da região.
A proposta, seguindo a tática implantada em Mossoró, era fundar núcleos do Partido, atraindo os trabalhadores mais conscientes e, a partir daí, comprometê-los com a organização da massa trabalhadora em sindicatos. Para a execução desse plano, contavam agora com a experiência dos organizadores do Sindicato do Garrancho, e com a assessoria sindical de Zé Mariano. Priorizavam locais de concentração de salinas ou regiões de atividade rural que se sobressaíssem como fornecedora de mão-de-obra temporária para as salinas.
Com essa expansão, visavam assegurar os espaços conquistados pelos trabalhadores mossoroenses, comprometendo um contingente cada vez maior de trabalhadores, na resistência à exploração patronal. Ao mesmo tempo em que, ao organizarem os trabalhadores rurais, evitavam que ao ingressarem nas salinas, completamente alheios ao processo, diminuíssem o nível de mobilização já conquistado.
Agindo assim, pensavam que cimentariam a Aliança Operária Camponesa, como via necessária à emancipação. Assumiram a tarefa de trabalhar a proposta do Partido em nível nacional, quando da formação do BOC (Bloco Operário e Camponês), em 1928 (13). Deram início ao processo de organização dos trabalhadores no PCB e em Sindicatos nas demais cidades da região.
Areia Branca situa-se a 41 km de Mossoró. Uma cidade predominantemente operária, pela concentração de salinas e pelas atividades decorrentes da movimentação portuária. O porto lhe dava uma importância estratégica, pelas facilidades de comunicação que proporcionava. José Mariano foi deslocado para lá.
Em Areia Branca aportavam numerosos navios para o transporte do sal e enquanto esperavam o embarque, os marinheiros desciam e passavam o material de propaganda do Partido, trocavam informações e discutiam com os trabalhadores os acontecimentos lá do sul, de onde vinham.
Zé Mariano começou a organizar os salineiros. Feitos os primeiros contatos, formou-se um pequeno número que foi simpático à idéia e alugaram uma sede. A notícia começou a se espalhar, a sede ficava cheia, o povo vindo ao Sindicato para ouvir os discursos de Zé Mariano, que “falava muito bem, era um grande agitador” (14). As adesões começaram. Eram categorias exploradas, tanto os salineiros, como as categorias ligadas ao Porto, os estivadores e barcaceiros.
Fundado o Sindicato, foi constituída uma direção provisória que passou a funcionar regularmente, associando os trabalhadores e fazendo reuniões. Começaram a surgir ameaças e por segurança, os trabalhadores passaram a agir com maior discrição, mantendo inclusive em segredo o nome das lideranças do movimento.
Os agentes das Companhias desencadearam uma grande reação. Os trabalhadores de salinas passaram a ser perseguidos. Na época, existiam em Areia Branca a Companhia do Comércio e Navegação, a Wilson Sons e a Henrique Lage. Francisco Bianor era o agente da Lage, uma espécie de gerente e era um homem muito reacionário, muito prepotente. Tinha grande projeção social na cidade, era ligado ao Partido Popular que reunia a fina flor do empresariado potiguar. Ele começou a perseguir os operários, a torturá-los para saber do Sindicato, se eles faziam parte, quem era a diretoria. Destacou-se como o maior inimigo dos operários de Areia Branca.
“Aonde ele encontrava operário, no caminho das salinas, ele arrancava unha de alicate, pegava no bucho até tirar pedaço, isso para tentar descobrir onde estavam e quem eram os dirigentes do Sindicato” (15).
Isso foi criando um clima de pânico entre os trabalhadores, que começaram a se intimidar e a reclamar a Zé Mariano da situação que estavam enfrentando. Certa vez ele surpreendeu três operários que estavam fazendo propaganda do Sindicato e arrancou as unhas de todos. Eles foram a Zé Mariano e disseram: “Veja, Zé Mariano, o que o Sindicato deu pra nós” (16).
O clima era de terror: Zé Mariano reuniu a Direção Municipal do Partido, para discutir a questão. Propôs a execução de Chico Bianor. A maioria foi contra. Zé Mariano não respeitou a decisão e disse: o problema agora é pessoal” (17).
Terminada a reunião Zé Mariano convidou quatro operários e dirigiu-se para a fazenda de Francisco Bianor que ficava nos arredores da cidade. Passava de meia noite quando bateram na porta do vaqueiro, que se recusou a recebê-los. Eles ameaçavam botar a “porta dentro”. O vaqueiro abriu, eles colocaram as armas em cima dele e o obrigaram a ir chamar patrão (18). Mesmo reconhecendo a voz do empregado, Francisco Bianor relutou em abrir a porta. O grupo pediu para que o vaqueiro dissesse que eram homens de Mossoró, em busca de trabalho. Sem dinheiro, tinham vindo a pé, estavam cansados e famintos e queriam uma ordem para arranjar dormida e comida no barracão. Francisco Bianor continuou argumentando através da porta fechada que era tarde e o serviço estava pouco nas salinas. Diante da insistência, ele abriu a porta, vinha com um rifle na mão, mas não houve tempo. Atiraram na boca. Havia ainda na casa uma mulher e uma criança que não foram molestados.
Na manhã seguinte, a cidade foi surpreendida pelos papéis afixados em pontos de fácil acesso, como as portas da prefeitura, do cartório e da igreja. Continha uma lista de 11 nomes, o primeiro, Francisco Bianor, seguido de Antônio Lúcio, Francisco Souto, etc. (19) Todos eram donos de salinas ou seus prepostos, feitores e encarregados. Ao final diziam que caso não deixassem de perseguir os trabalhadores, seriam todos fuzilados.
Os primeiros que perceberam a novidade avisaram aos outros e foram formando aglomerações, alguns participantes da lista, as figuras de destaque na cidade, ao mesmo tempo surpresas e incrédulas com o que viam. Comentavam rindo “olhe só que magote de malucos, ora se eles são homens para enfrentar Chico Bianor, um homem que anda armado até os dentes e é muito valente” (...). Faziam estes comentários quando chegou o carro vindo da fazenda, trazendo o corpo de Francisco Bianor. Foi pânico geral. Fugiram todos, foram se esconder em Mossoró, outros passaram a “dormir fora, na barcaça, sobre água” (20). Apenas, Francisco Bianor, o 1º da lista, foi executado.
Era o dia 14 de outubro de 1934, dia da eleição em que se confrontavam a Aliança Social de Café Filho e Mário Câmara e o Partido Popular de José Augusto. A notícia estourou como uma bomba em todo o Estado e os estilhaços atingiram a Aliança Social. A disputa estava acirrada, o clima era de provocação e violência. Francisco Bianor era ligado ao Partido Popular. Os jornais da oposição deram a notícia com grande estardalhaço, acusando os partidários de Mário Câmara e Café Filho de responsáveis sobre o crime.
Zé Mariano tomara a decisão à revelia do Partido. Quando Francisco Bianor torturava os operários, mandava recados, jurando matá-lo. Ele havia participado pessoalmente de uma diligência com a polícia para capturar Zé Mariano que vivia clandestino.
“Zé Mariano era um homem moreno, Francisco Bianor chamava-o de ‘burro preto’; e por ser um homem avermelhado e cheio de manchas brancas, era chamado por Zé Mariano de ‘cavalo pampa’. Esses apelidos acirravam mais ainda os ânimos e havia promessas de quando se encontrassem, resolverem as diferenças. Foi decisão individual dele, era um negro valente e perdeu a calma” (21).
Ele foi acompanhado por Antônio Felipe de Miranda, João Alves da Silva, José Pinto da Silva e Francisco Félix. Eram todos ligados ao Partido e alguns faziam parte da diretoria do Sindicato.
A repressão baixou com violência sobre o Sindicato. No momento em que mataram Chico Bianor, Maria Jararaca, sua mulher, estava presente. Pensaram em exterminá-la, mas Zé Mariano falou: “não, o negócio é só com o homem, a mulher, deixa” (22). Vieram reforços policiais para fazer as investigações e proteger as pessoas cujo nome constava da lista...
Maria Jararaca foi acareada com os trabalhadores e apontou as pessoas que tinham participado da ação. “Nessas alturas, a mulher fazendo uma acusação dessas, valia mais do que a palavra do Presidente do Tribunal Federal” (23). Acusou toda a diretoria do Sindicato. Foi instruída pelas elites locais, que utilizaram o pretexto para atingir os trabalhadores mais conscientes. Até o presidente do Sindicato que estava de cama, doente foi acareado e “reconhecido”. “Havia um cara de quem a mulher disse: você estava com um chapéu bem grande na cabeça, e ele disse: minha senhora eu nem uso chapéu” (24).
Esta morte trouxe conseqüências para a classe trabalhadora de Areia Branca, que já era conhecida como Moscouzinho, pelo nível de organização do Sindicato e pela atuação do Partido. Ambos foram destroçados. As Companhias de Navegação exigiram uma repressão violenta, que atingiu principalmente os trabalhadores de salinas.
Zé Mariano e os outros não tiveram alternativa. Fugiram de Areia Branca evitando as estradas, por dentro dos matos e não puderam mais sair da clandestinidade. Continuaram foragidos pelos arredores de Mossoró, mantendo contatos com o Partido, até 1935.
Pouco depois da ida de Zé Mariano para Areia Branca, o Partido deliberou pelo deslocamento de alguns de seus militantes para Açu com a tarefa de organizar o Partido e o Sindicato dos Trabalhadores Rurais naquela cidade.
Situado a 80 km de Mossoró, o Vale do Açu era grande fornecedor de mão-de-obra para as salinas da região Oeste. Região fértil, com predominância do cultivo de carnaúba e de produção agrícola, que os trabalhadores alternavam com o trabalho da salina. Iniciavam o ano em Açu limpando a roça e plantando. O fim da colheita coincidia com a época em que as salinas começavam a furar, atraindo a mão-de-obra rural, ociosa naquele período. Essa combinação de atividades era muito utilizada tanto por assalariado, quanto por arrendatários, parceiros e até mesmo pequenos proprietários, como forma de completar a renda. Quando o ano era de pouco inverno, aumentava a procura das salinas, como a última possibilidade de conseguir sobreviver até a safra do ano seguinte.
Para lá se deslocaram Manoel Torquato e Joel Paulista. A experiência adquirida na organização do Sindicato dos Operários do Sal em Mossoró lhes mostrara que um dos maiores obstáculos ao progresso do Sindicato era aquele contingente que chegava a cada ano, sem qualquer experiência associativa, carregando uma vivência marcada pela submissão total ao senhor da terra. Ou os que, dispondo de um pedaço de terra, embora pequeno, para onde podiam voltar no período do inverno, não se percebiam vivendo sob as mesmas circunstâncias dos outros. Encaravam o período na salina como algo que tinham de agüentar, adaptando-se todas as circunstâncias para manter a si e a família até o início do próximo inverno. Além do mais, se no ano seguinte conseguissem um bom resultado na agricultura, talvez nem precisassem procurar aquele trabalho, que lhes fazia sangrar os ombros com os balaios pesados, rachava a pele salinada da água e castigava os olhos com a brancura incandescentes dos montes de sal.
A escolha de Manoel Torquato, para realizar o trabalho em Açu, se baseara em dois critérios. De um lado, na sua experiência anterior na organização do Sindicato dos operários de salinas em Mossoró, onde era reconhecido como um dos militantes mais ativos. De outro lado, porque sendo natural daquela região, de onde saíra já adulto, e onde ainda permaneciam seus familiares, haveria maior facilidade em estabelecer os contatos. Além do que, Manoel Torquato era reconhecido como um homem ponderado, de grande capacidade de convencimento, pela sua calma e firmeza no trato do movimento, qualidades que certamente seriam necessárias no decorrer do trabalho.
A esses argumentos foi acrescido o fato de Manoel Torquato estar vivendo na clandestinidade em Mossoró, sendo procurado pela polícia e perseguido por um dos grandes proprietários da região. Isso porque, certa vez, ele voltava de uma pescaria e como já estava sendo visado pela atividade sindical, procurou um atalho para evitar ser visto. Além do mais, vindo de uma pescaria no Rio do Carmo, esse atalho lhe economizaria percorrer 6 quilômetros. Adiante, já próximo à sua casa, deparou-se com uma porteira e um vigia que lhe impediu a passagem alegando que Dr. Soares, o proprietário, proibira a passagem. Torquato tentou convencê-lo dizendo que vinha de muito longe e estava cansado. E que não ultrapassar a porteira, significaria refazer todo o caminho de volta. O vigia irredutível respondia que tinha ordens do Dr. Soares para não deixar ninguém passar por ali. Manoel Torquato continuou a insistir, tentando retirar os paus da cerca que o vigia recolocava em seguida. O vigia recolocava e Manoel Torquato retirava outro pau da porteira. Irritado, o vigia investiu contra Manoel Torquato. Rolaram no chão, atracados. Manoel Torquato puxou sua faca e matou o homem. Ultrapassou a porteira, economizando mais de uma légua de caminhada. Mas passou a ser procurado, a ter sua família perseguida, por ordem do Dr. Soares, latifundiário que fora prefeito da cidade e que detinha grande poder. A seu mando, a polícia montou um cerco para pegá-lo. Manoel Torquato fugiu, mas não pôde mais se apresentar publicamente. Entrou de vez na clandestinidade (25).
Manoel Torquato trouxe grande surpresa a seus familiares. Afinal, fora ele que, com sua persistência, conseguira, há muito tempo atrás, vencer as resistências da família e convencê-los a entrar para o protestantismo. Os cultos em sua casa eram freqüentes, todos querendo ouvir as pregações que falavam que Jesus viria salvar a todos. Bastava que se entregassem a Ele e foi o que todos fizeram. Por isso surpreenderam-se ao vê-lo chegar, dizendo que a salvação estava na organização dos trabalhadores e orientando-os sobre como defender seus direitos.
O companheiro escolhido pelo Partido para auxiliá-lo na tarefa, Joel Paulista, era um negro alto e robusto. Nascido de mãe solteira foi criado sob orientação de Costinha Fernandes, um dono de salina que era seu padrinho e para quem sua mãe trabalhava como lavadeira. Adulto, entrou para a salina, em 1927. O trabalho era duro, mas ele foi logo subindo, passando a atividades de controle sobre os outros operários. Além de ser forte, era de confiança do patrão, qualidade principal para seu exercício. Algum tempo depois, em 1931, começaram a falar de sindicato, de se unirem para se protegerem da exploração. Mas haveria proteção maior do que ser afilhado do patrão? Onde chegava, Joel Paulista combatia o Sindicato. “Era um verdadeiro instrumento dos Fernandes”, uma família poderosa, dona de salinas, de indústrias. Dela saíram alguns prefeitos e o Governador Rafael Fernandes. Todos conservadores, reacionários, inimigos dos trabalhadores.
Joel Paulista provocava constantemente os trabalhadores, reprimindo-os pela atividade sindical. “Quando um operário lhe abordava procurando trabalho, ele perguntava: porque não vai pedir emprego ao seu Sindicato? Ou então a Jonas Reginaldo?” (27). Os trabalhadores mais conscientes passaram a concentrar a atuação sobre ele. Procuravam se aproximar, discutir e aos poucos ele foi diminuindo as agressões, foi entendendo como agiam os patrões e o que significava ele dar as costas aos operários para ficar ao lado do patrão. Foi uma tarefa difícil e demorada. Nas conversas com ele acabaram por descobrir que seu pai, João Martins Paulista, era militante do Partido.
“Então Torquato foi a ele e disse: João, seu filho está sendo grande empecilho para o nosso trabalho nos sindicatos, sempre furando greve, provocando nossos companheiros. Depois de algum tempo ele foi pela primeira vez ao sindicato, estava havendo reunião, Joel fez um discurso e terminou chorando. Foi uma verdadeira autocrítica” (28).
Passou a freqüentar o Sindicato, começou a crescer com o movimento, tornou-se uma liderança respeitada. Certo tempo depois, em 1934, levado pelo pai, entrou para o Partido. Foi na qualidade de Secretário da Organização Sindical que ele se deslocou para Açu.
Em Açu o trabalho começou nas localidades de Cobé e Canto do Mangue, já próximo à Pendências. Era uma região que se caracterizava pela oferta de força-de-trabalho para as salinas, onde se entrelaçavam várias relações de trabalho. Havia um grande número de assalariados que batiam palha de carnaúba, arrendatários, meeiros e pequenos proprietários.
Nas reuniões, discutindo as condições de trabalho ouviam muitas reclamações. Era o arrendatário que estava sendo expulso por não ter podido pagar a renda, os meeiros que tinham suas roças invadidas pelo gado do patrão antes de terminar a colheita, etc. Redigiam boletins onde expunham os problemas que afligiam os trabalhadores da região e concluíam:
“Como sair dessa situação de roubo e miséria do regime capitalista? Somente organizados em uma potente frente única de todos os trabalhadores e todo o proletariado das cidades e dos campos unidos na luta sob a palavra de ordem de seu verdadeiro partido revolucionário – o Partido Comunista do Brasil – como único dirigente do proletariado por suas reivindicações econômicas e políticas”.
Em seguida colocavam as reivindicações de todas as categorias nas diferentes relações de trabalho. Assinava o Boletim, o C. L. de Açu do P.C.B. – R. G. do Norte (29). Como era de se esperar, os latifundiários começaram a se inquietar com aquela situação. Além dos trabalhadores andarem metidos com reuniões, sempre que algum problema mais grave entre empregado e patrão acontecia, Manoel Torquato e seu grupo denunciavam pelos Boletins, que eram espalhados pelas estradas, pregados nas porteiras. Quando não vinham em grupo, pressionar o patrão.
Assim fizeram com o Sr. Manoel Cortez, quando ele “mandou capangas, armados de rifles, invadirem a casa do rendeiro” (30). Chamava-se Raimundo Vivente, era rendeiro há 15 anos na mesma terra, adoecera e estava atrasado em 2 anos com o pagamento da renda. Colocaram tudo no Boletim e foram lá, como nos conta sua filha, que presenciou a visita: “Lá em casa vieram Manoel Torquato, Joel Paulista e Zé Domingos, que era cangaceiro, de muitas mortes. Raimundo estava sem pagar a renda há 5 anos, papai pediu a terra. Ele disse que não dava. E nem pagava. Papai já tinha entregue a questão ao juiz para expulsá-lo, quando eles vieram falar com papai. Eles disseram que papai tinha que reembolsar o homem, das benfeitorias. Papai disse: apenas não quero que ele fique lá. Mas não tenho nada contra ele. Não quero que bulam com ele. Apenas não quero que ele fique lá. Porque não está me dando lucro, eu não quero” (31).
Essa prática de pressionar diretamente os patrões para que respeitassem os direitos dos trabalhadores, se de um lado rendeu-lhe simpatia e adesão à proposta de formação do Sindicato, de outro lado, colocou a repressão no seu encalço. Sempre que chegava aos ouvidos dos patrões que eles iriam fazer uma reunião em determinada localidade, a polícia era a primeira a chegar para tentar impedir a sua realização. A violência e as armas da polícia eram compensadas pela disposição e superioridade numérica dos trabalhadores. Os confrontos se sucediam. Numa ocasião, a polícia atacou-os, eles tiveram que fugir pulando uma cerca de arame, porque estavam em minoria, “no outro dia acharam um saco de peixeiras. Caíram na carreira, no agarrado, rasgando o arame da cerca” (32).
Apesar disso, eles conseguiam burlar a vigilância e frequentemente a cidade e arredores voltava a se encher de boletins que eles pregavam nas casas e nos mourões das porteiras dos currais. Prosseguiam também reunindo os trabalhadores e associando-os ao Sindicato, mas nada feito às claras, abertamente.
“Era tudo escondido, tudo mascarado. Ninguém se declarava não. Hoje, todo mundo procura a carteira para assinar, mas nessa época, no começo, não. Quem falasse essas coisas perdia o canto. Quem era doido de falar em direito, essas coisas com o patrão? Falavam que o pessoal dos sindicatos era comunista. Os patrões pagarem o direito, eles diziam que era comunismo” (33).
Sentindo-se ameaçadas, as elites proprietárias mobilizaram a polícia. Os trabalhadores passaram a ser caçados permanentemente. Numa dessas buscas, conseguiram prender Manoel Torquato e alguns outros trabalhadores, e os trouxeram para a delegacia de Açu. A notícia chegou a Mossoró e o Partido enviou um dos seus membros para fazer contato com os presos. Francisco Guilherme, escolhido para a tarefa, dizendo-se parente de um deles conseguiu acesso à delegacia (34). Cândido Lúcio, um dos presos fazia parte da diretoria do Sindicato e conseguiu do delegado, Ernesto Carão, que era seu cunhado, uma certa flexibilidade na vigilância. Pouco tempo depois, Manoel Torquato e todos os outros organizaram uma fuga e se embrenharam pelas matas em direção a Mossoró. Lá se juntariam a outros que já estavam obrigados a permanecer na clandestinidade, como José Mariano e Miguel Moreira.
Portanto, foram imensas as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores na luta por sua organização sindical. Durante a primeira metade da década de 30 a região Oeste foi palco de lutas cruentas. Qualquer tentativa dos trabalhadores nesse sentido era prontamente respondida com violência. Antes de irem para o Vale do Açu, Manoel Torquato e Joel Paulista haviam iniciado a organização sindical dos trabalhadores rurais de Alagoinhas, situada a 24 km de Mossoró e área de fornecimento de mão-de-obra para as salinas. O trabalho foi facilitado pela presença naquele contingente de muitos trabalhadores que já haviam entrado em contato com a proposta, durante os períodos de atividade salineira. Cândido Benedito, um dos fundadores do Sindicato dos Operários do Sal, fora demitido em represália, numa das primeiras greves e sofrera boicote dos feitores que lhe negaram emprego. Retirou-se para Alagoinhas, onde se fixou como trabalhador rural e foi um dos organizadores do Sindicato, juntamente com Manoel e José Mateus de Souza, pai e filho.
Começaram a fazer reuniões e rapidamente chegaram a aglutinar quase duas centenas de trabalhadores. Instalaram-se numa sede, onde organizavam festas para levantar fundos para os trabalhadores impossibilitados ao trabalho por doenças ou acidentes. “Não havia ainda a conquista de acidente de trabalho (...) isso aí levantou o ânimo de todo mundo”. As reivindicações dos camponeses eram basicamente aumento nos preços da tarefa e da diária. A indignação dos latifundiários foi tamanha que muitos deles tomaram a si, pessoalmente, a repressão aos trabalhadores. Cândido Benedito foi uma das vítimas da violência patronal, preso e torturado por Anísio Pereira.
“Anísio Pereira, um dos proprietários, quando surgia notícia de reunião nas comunidades rurais distantes, enchia seu caminhão de soldados e ia perseguir os trabalhadores, que eram presos e torturados (...) o Major Moura era o delegado de polícia, vivia na casa dos patrões e a qualquer denúncia, ia procurar os trabalhadores para açoitar” (35).
Esse breve relato mostra as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores, na luta por sua organização sindical. Cada uma das tentativas de criação de associações ou sindicatos, seja em nível rural ou em nível urbano, desencadeou uma reação violenta dos patrões, expressa através de intensa repressão. Fugindo da repressão, eles vão se afastando das cidades, se internando nas matas, sendo obrigados a assumir uma clandestinidade forçada. Continua a perseguição. As elites dominantes querem impedir que se organizem e para isso na hesitavam em destruí-los fisicamente.
A reconstrução da história dos trabalhadores de toda a região oeste no período, passa pela história do PCB, e com ela se confunde. A pré-existência do Partido em relação aos sindicatos, somada à orientação nacional do PCB de organizar frentes de atuação política entre o operariado e os camponeses, são pistas importantes para o entendimento da direção que esse movimento tomaria a seguir: a organização para o Levante de 1935. Um dos aspectos mais importantes dessa preparação é a formação da “guerrilha”, que entre 1935 e 1936 se assombrou a região e que apenas o malogro de Levante de 35 colocaria um ponto final.
5.2 – As Greves
As primeiras formas de protestos contra a superexploração do trabalho da salina evidenciavam o baixo nível de organização dos trabalhadores. O protesto era quase individual e ocorria em salinas isoladas. O motivo principal era o balde do sal. As empresas não assumiam a limpeza dos baldes, o sal saía sujo, com resíduos de lama, mas os patrões não aceitavam receber o sal sujo. A solução era lavar o sal, o que naturalmente duplicava o tempo de trabalho, que era realizado por tarefas, prejudicando o rendimento dos operários, com um dispêndio a mais de energia, não remunerado.
Muitos trabalhadores não aceitavam a situação e abandonavam a salina. Deixavam de pagar o barracão e saíam à procura de outra salina, onde o problema não existisse. Suas primeiras lutas visavam que as empresas assumissem a limpeza dos baldes. Chegaram a acontecer greves isoladas em algumas salinas, mas não havia organização suficiente para obterem sucesso. Somente em 1932 teve início o processo de deflagração de “greve geral”, a categoria em conjunto, englobando todas as salinas na luta por suas reivindicações. Na primeira greve a reivindicação foi conquistada.
Os trabalhadores das salinas entraram em greve pela primeira vez no dia 28 de dezembro de 1932. A greve foi orientada pelo Partido e tendo como organizadores Manoel Torquato, Alcides Ferreira, João Crisóstomo e Oscar Ferreira. “O autor intelectual da greve foi Lauro Reginaldo, que fez passeata, chegou à porta da prefeitura e falou” (36). Os trabalhadores em salinas faziam sua primeira mobilização e não havia ninguém com experiência. A presença dos militantes do Partido, como os Reginaldo, principalmente Jonas Reginaldo, que dedicou a vida à organização dos trabalhadores mossoroenses, era muito importante e lhes dava força. Jonas era um orador brilhante e muito respeitado na cidade, sempre representando os trabalhadores na hora dos discursos, desde antes dos sindicatos, quando tentavam resolver algum problema tirando comissões para irem denunciar aos jornais ou reclamar às autoridades.
A greve foi decidida e planejada na reunião do Partido. As reivindicações principais eram aumento salarial e regulamentação das medidas usadas. Os patrões haviam definido o alqueire de sal contendo 36 cuias de 7 litros, quando a medida usual do alqueire era de 32 cuias de 5 litros. Ocorre que, aumentando as medidas, os patrões já estavam descontando a parte que inevitavelmente se destrói pela ação do vento e da chuva. “Isso era para dar o desconto do que o inverno ia comer. Nós não fazíamos parte dos lucros, fazíamos parte do prejuízo” (37). Essa era a reivindicação principal, porque implicava numa superexploração pela energia despendida, pelo valor criado e não pago. Pediram também água em condições de consumo humano e a volta ao trabalho dos companheiros expulsos por reclamarem das desumanas condições de trabalho.
Os trabalhadores das diversas salinas se encaminharam em passeata, para Mossoró. “No dia 28 deste, uma grande massa operária salineira entrou nessa cidade, sob sol causticante, em greve pacífica” (38). Dirigiam-se à prefeitura, comunicaram ao prefeito as razões do movimento e solicitaram sua intermediação junto aos patrões. O prefeito Raimundo Juvino de Oliveira, da Aliança Liberal, convocou os proprietários de salinas a discutirem a questão uma reunião. Os poucos patrões que compareceram mantiveram-se intransigentes e a reunião terminou sem resultados concretos. Finalmente, os proprietários concordaram em aumentar o preço do alqueire, que passou de 300 para 600 réis, e rebaixavam um pouco a medida da cuia, mas mantiveram-se irredutíveis quanto à medida do alqueire. “Ainda hoje o alqueire é de 36 cuias, disso eles não abrem mão, o alqueire oficial é de 32 cuias, mas aqui é de 36 cuias” (39).
Apesar da Aliança Liberal no poder local, e da posição de aliado que o movimento operário desfrutava, Lauro Reginaldo foi preso na frente da prefeitura durante a concentração, ao fazer veemente discurso “responsabilizando os patrões pela miséria e a fome que atormentavam a classe trabalhadora” (40).
O movimento deixou um saldo organizativo muito grande, menos pelo número de reivindicações atendidas e mais pela descoberta, na prática, da possibilidade de enfrentarem a arrogância dos patrões e não serem massacrados. Encerrada a greve, voltaram para as salinas e continuaram a arregimentar sócios para o Sindicato, àquela época na clandestinidade.
Durante a colheita de 1934, novamente os trabalhadores entraram em greve. A reivindicação principal foi o aumento no preço do alqueire do sal, seguida do pedido de transporte por conta da empresa, água para beber gratuita e seguro em caso de acidente. Nesse momento a cidade estava mobilizada pela campanha eleitoral na qual em todo o Estado se defrontavam os políticos afastados do poder em 1930 e os representantes da Aliança Liberal. Os aliancistas se concentravam numa coligação, a Aliança Social, que reunia os partidos liderados por Mário Câmara e Café Filho. Os conservadores organizados no Partido Popular apresentaram como candidato a governador Rafael Fernandes, mossoroense e proprietário de salinas.
A disputa foi muito acirrada. Os trabalhadores, naturalmente, voltavam as costas ao Partido Popular, composto pelas elites proprietárias locais. Os votos do numeroso contingente de trabalhadores eram disputados pela Aliança Social, que apesar das ambigüidades, concentrava alguns aliados. Nessa conjuntura foi deflagrada a 2ª greve dos operários do sal, na tentativa clara de explorar a seu favor, as contradições e divergências que o processo eleitoral exacerbara.
Respaldados na orientação do Partido e na experiência da greve anterior, procuraram ampliar o espaço da greve através da participação de outras categorias. Conseguiram a adesão de todas as demais categorias. Pararam eletricitários, ferroviários, padeiros, construção civil, barcaceiros e estivadores. A Associação de Mulheres mobilizou as mulheres, irmãs e filhas de operários, numa grande concentração em solidariedade à greve. Todas as atividades deixaram de funcionar. A cidade parou completamente. “Não teve luz, pão e transporte. Jonas Reginaldo era marchante e convenceu os outros marchantes a não matarem boi, então também não teve carne” (41);
Formaram um comando de greve do qual faziam parte Francisco Guilherme, Joel Paulista, João Crisóstomo e Cândido Benedito pelos operários do sal, além do presidente de cada Sindicato solidário com o movimento. O comando de greve organizou uma coleta entre os pequenos comerciantes que doaram a alimentação dos trabalhadores mais necessitados e suas famílias. Souberam explorar bem o interesse que o comércio tinha de que aumentassem os seus salários. Afinal, aos sábados, quando desciam das salinas para a cidade, o mercado público, tradicional entreposto local, em meia hora ficava vazio. Por menos que ganhassem, o potencial consumidor de cerca de 5.000 homens não era algo a ser desprezado.
De Mossoró até Areia Branca, todas as salinas pararam. Eram 32 salinas paradas, além dos trabalhadores de outras categorias. Chegava a quase 5.000 o número dos grevistas. As classes privilegiadas ficaram revoltadas porque foram obrigadas a experimentar um pouco da vida de operário. Nesse dia não comeram carne, não tiveram pão para o café e à noite faltou a luz para iluminar seus sonhos.
Pressionados, os patrões chamaram os trabalhadores para um acordo e concordaram em aumentar em 100% a colheita de um alqueire de sal, além de atenderem a todas as outras reivindicações. Foi uma grande vitória. Além do ganho econômico, deixou saldos organizativos para toda a classe trabalhadora mossoroense. Os trabalhadores viram na vitória o resultado de sua capacidade de luta e organização. O sindicato saiu extremamente fortalecido, como o instrumento adequado para suas lutas.
Por outro lado, as elites dominantes locais, apesar de terem se submetido a negociar e acatado as reivindicações, sentiram-se traídas. A ousadia dos trabalhadores em confrontá-los despertou neles uma fúria desmedida. A partir de então, comportarem-se em relação aos trabalhadores como se estivessem numa guerra, onde todas as armas deveriam ser usadas para quebrar “o moral” do inimigo, fazê-lo reconhecer sua fragilidade e impotência.
Nas primeiras greves, os patrões queriam a todo custo desmoralizar o movimento. Procuravam os trabalhadores menos conscientes e lhes ofereciam grandes quantias para furarem as greves. Chegavam a oferecer por um dia de trabalho o valor equivalente ao que ele ganharia trabalhando mais de um mês. “O dinheiro ficava amarrado no cabo do ferro de cortar sal, bem à vista (...)” (42). Em comissão os trabalhadores procuravam esses operários para convencê-los de que agindo contra a categoria estavam ajudando os patrões a explorá-los. No início, faziam o discurso que os patrões ou seus prepostos colocavam em suas bocas. Pouco a pouco, porém, o sindicato foi se fazendo respeitar, a força que emanava daquele conjunto de homens foi se propagando e então de um total de 4.000, apenas dois ou três furavam a greve.
O momento escolhido para deflagrarem as greves era no pique da colheita do sal, ou quando muitos navios estivessem ancorados no porto, esperando carga. Como os prejuízos decorrentes do atraso eram enormes, nos dois casos, os trabalhadores entravam para negociação em posição mais favorável.
No início de 1935, os salineiros realizaram uma greve diferente. Dessa vez, não se tratava de qualquer reivindicação salarial ou por melhores condições de trabalho. O resultado da greve de 1934 fortalecera o Sindicato. As classes proprietárias estavam preocupadas com os desdobramentos. Era preciso fazer os trabalhadores avaliarem que o sindicato não podia servir de escudo contra eles. Na época, o Presidente do Sindicato era Joel Paulista. Os Fernandes guardavam mágoa antiga de Joel, por ter traído o seu padrinho Costinha Fernandes e se tornado um líder dos trabalhadores.
Arrumaram um pretexto e prenderam Joel Paulista, que eles achavam ser o mentor da movimentação dos salineiros. Francisco Guilherme soube da prisão, foi às salinas e arregimentou os trabalhadores, que paralisaram as salinas. Desceram 300 operários até a cadeia pressionar pela liberdade de Joel Paulista. Foram vitoriosos. Joel foi solto e na saída da fez um discurso veemente na porta da cadeia.
Pouco tempo depois prenderam Joel novamente. Dessa vez haviam pedido reforço policial em Natal e estavam preparados para fazer uma surpresa aos operários. Esses se organizaram, pararam as salinas e vieram buscar Joel. Chegando à cadeia, foram surpreendidos pelo numeroso contingente policial que cercou a passeata e prendeu cerca de 200 trabalhadores. Superlotaram a cadeia. “Não tinha onde sentar, comer, dormir, nada, nada” (43). Então, a policia foi soltando de 4 em 4. Joel Paulista foi o último a ser solto. Dessa vez, não houve clima para manifestações. Saíram em silêncio.
O cerco estava se fechando sobre os trabalhadores de salina. Joel Paulista ficou sendo seguido, vigiado e, certo dia, foi preso mais uma vez. Só que agora não houve tempo para que os operários viessem soltá-lo. Ele foi cercado por policiais, colocado em um jipe e levado para Natal.
Nos primeiros meses de 1935 ocorreram as últimas greves e os salineiros foram violentamente reprimidos. Primeiro, porque as reivindicações haviam mudado: já não eram mais demandas econômicas, como aumento salarial. Agora reivindicavam a liberdade dos companheiros presos, o que em última instância, significava reivindicar a liberdade de se organizarem e de se mobilizarem, de se assumirem enquanto classe. Os patrões bradavam através dos seus jornais, acusando o movimento de subversivo e os operários de comunistas. Segundo, porque Rafael Fernandes, mossoroense e salineiro assumira o Governo do Estado. Ele conhecia de perto a mobilização dos operários das salinas e usou as prerrogativas do cargo para colocar a máquina repressiva em perseguição aos trabalhadores e na defesa dos seus interesses de classe.
5.3 – A Guerrilha
Em 1935, Rafael Fernandes tomou posse do Governo do Estado. A repressão que até então agira a partir de ações isoladas, passou a ser uma política de Estado. Havia um plano a ser cumprido organizadamente, para destruir os sindicatos. Rafael Fernandes destacou-se como o idealizador e executor desse plano. Evidentemente, o plano não visava exclusivamente Mossoró, mas no Rio Grande do Norte, naquela época, era lá que se concentrava o operariado. Natal, apesar de ser a capital, não tinha um pólo industrial desenvolvido e apenas a atividade portuária concentrava um número mais significativo de operários. Daí o furor repressivo sobre os trabalhadores mossoroenses.
A vitória do Partido Popular, em 1934, colocara o poder nas mãos dos grupos conservadores do Estado. As relações entre o poder e os trabalhadores perderam a ambigüidade, que o mascaramento dos conflitos ocorridos nos primeiros anos do governo liberal produzira. Principalmente em Mossoró, onde os embates constantes entre trabalhadores e patrões forjaram de lado a lado uma consciência aguda dos interesses e dos meios de realizá-los. A partir daí, para o governo já não se tratava mais de buscar conciliar os conflitos e sim de resolvê-los com a destruição da organização dos trabalhadores. Para vencer essa guerra todas as armas seriam válidas.
O Governo Fernandes inaugurou uma nova postura em relação à política sindical varguista. Ao invés de funcionar como seu agente, passa a atuar em sentido contrário, desconhecendo a legislação e recusando-se a admitir direitos já assegurados, na tentativa de desestimular a prática sindical. Sua atitude se explica porque em sendo salineiro e conhecendo desde o início a luta dos trabalhadores por organização, Rafael Fernandes agiu com firmeza para realizar os interesses de sua classe.
A movimentação ocorrida nas salinas nos últimos anos mostrava que a classe trabalhadora encontrara o caminho e não iria submeter-se docilmente às relações de trabalho praticadas até então. Os salineiros, principais interessados na derrota do movimento, contavam com o apoio irrestrito da burguesia oriunda das relações rurais. Eles levaram para a atividade industrial urbana o peso e a marca que caracterizam as relações no campo e nas salinas. Juntaram-se todos, concentrando os esforços na tarefa de combater o surgimento de novos Sindicatos e a continuidade dos já existentes.
Mobilizaram-se para agir sem se dar ao trabalho de analisar a proposta sindical do governo. Tivessem tido essa iniciativa, constatariam rapidamente que seria menos difícil conviver com a existência de um sindicato, conformado em seus limites de ação, por determinação do próprio Estado. A intolerância levou-os a enfrentar um movimento sindical vigoroso, fortalecido pelas greves vitoriosas e práticas que extrapolavam os limites dos Sindicatos. Práticas que continham uma concepção sindical que, nas regiões mais desenvolvidas do país, já se encontravam domesticadas pela nova legislação.
Mas esse não foi o entendimento de Rafael Fernandes e das elites dominantes. Lançaram uma furiosa perseguição aos sindicatos. A repressão atingia prioritariamente os trabalhadores que no processo de formação dos sindicatos haviam entrado em conflito com os patrões e estavam na clandestinidade. A vigilância sobre qualquer movimentação passou a ser constante. O governo queria dar uma lição ao movimento sindical que servindo como exemplo, desencorajasse qualquer tentativa de organização.
Nessa época já havia entre os trabalhadores alguma experiência em termos de defesa pessoal. Desde o início do movimento, incidentes violentos e constantes haviam mostrado a necessidade de se organizarem coletivamente para se proteger. Daí surgiram grupos de autodefesa que reuniam os trabalhadores mais fortes e mais experientes. Quando ocorria – e era freqüente – de algum operário ser molestado pela polícia, sofrer algum constrangimento físico esses grupos eram responsáveis pela defesa do companheiro. Várias vezes foram levados a entrar em confrontos armados com as forças repressivas. Certa vez um operário chamado Chico Belo levou uma surra do delegado de polícia. “Veio apanhando de Passagem de Pedras até aqui”. Pediu aos companheiros: “se eu morrer vinguem minha morte, se eu não morrer, vingo minha surra com vocês”. Quando ficou bom, “nos reunimos com ele no sindicato e mais 19 pessoas do Partido. (...)” Decidiram procurar o delegado que ao ver o grupo recuou. “Aí foi bala. Eles mataram um companheiro nosso de nome Luís Goela e nós matamos um sargento (...)” (44).
Vingaram a morte do companheiro, mas a polícia apertou o cerco e eles tiveram de se esconder nas matas, pelos arredores da cidade. Entraram para a clandestinidade.
Como conseqüência dos conflitos e da extrema violência policial foi aumentando o número de operários que já não podiam circular livremente, sem que corressem o risco de ser presos. Esses trabalhadores, ligados ao Partido e com destacada atuação na formação dos sindicatos, foi sendo empurrado para a clandestinidade. Rapidamente o número de trabalhadores clandestinos chegou a mais de 30. À medida que a tática do governo foi se traduzindo em maior vigilância e perseguição, começou a ficar difícil permanecer naquela situação. Decidiu-se então, convocar uma reunião do Partido para deliberar sobre os rumos que o movimento deveria tomar.
A reunião foi realizada à noite em casa de Chico Guilherme. “Foi na minha casa, era uma casa de subúrbio, tinha um quintal muito grande”. Participaram a Direção Municipal do PCB, representantes de todas as células, simpatizantes e aliados. “Tinha gente de sindicato, comunistas, cafeístas, liberais e militares” (45). Eram mais de 100 pessoas. A reunião começou às 8 horas da noite prolongando-se até mais de meia-noite. Foi aberta por Jonas Reginaldo, que colocou as duas questões a serem discutidas: a situação das pessoas que estavam na clandestinidade e a preparação para um movimento revolucionário prestes a eclodir em todo o País, através do qual o Partido, se vitorioso, chegaria ao Poder.
Findos os informes foi avaliado que estava próximo o momento da explosão do movimento e que seria plenamente vitorioso. Passou-se a discutir, então, de que maneira aqueles homens, que estavam impedidos de aparecer publicamente, poderiam ajudar ao movimento. Surgiu a proposta de se formar a “guerrilha”, “porque a revolução vinha e então já estaria todo mundo pronto para o que desse e viesse” (46). As informações que chegavam e as notícias que as pessoas traziam, reiteravam a iminência do movimento. Formando o grupo armado, estariam a postos para atuar e ajudar a implantação do movimento. Vitoriosos, sairiam para a liberdade.
Encaminhada à discussão, surgiram duas posições. Uma, liderada por Miguel Moreira, defendia que começassem logo o movimento armado. Outra, moderada, liderada por Jonas Reginaldo, propunha que todos se mantivessem organizados, aguardando o início do movimento em nível nacional. Então iniciariam o movimento em Mossoró. Com Miguel Moreira formaram a maioria dos clandestinos e operários presentes. Contra a proposta da luta armada ficou a maioria da Direção do Partido, os cafeístas, liberais, simpatizantes e aliados presentes.
Postas em votação, a proposta de guerrilha amplamente majoritária, para surpresa da Direção do Partido que resolveu recolocar o assunto em discussão. Alternaram-se as argumentações pró e contra. Horácio Valadares, também clandestino, votara contra a guerrilha e voltou a defender sua posição, baseando seus argumentos na inexistência de uma infra-estrutura para servir de apoio ao grupo guerrilheiro. Dizia ele:
“Companheiros, nós perdemos, mas vocês estão inconscientes. Nem toda a maioria é consciente... Nós estamos conscientes (...). Nós vamos jogar no escuro, se acaso a revolução estourar, bem, e se não estourar, estaremos condenados (...)” (47).
Chico Guilherme argumentou contra o movimento dizendo:
“Eu também sou contra. Porque se a reação pegar, ela não vai pegar como guerrilheiro. Ela vai pegar como bandoleiros, como cabras de Lampião, e nós não somos (...) Guerrilheiros, somos nós que chamamos (...)” (48).
Finda a argumentação pró e contra, exigiu-se ainda outra votação. A proposta da “guerrilha” foi amplamente derrotada. Alguns dos que estavam na clandestinidade acompanharam a posição de Horácio Valadares. Mas foram poucos. A grande maioria dos clandestinos e demais membros do Partido votaram pela “guerrilha”. Derrotados na 2ª votação permaneceram defendendo sua proposta e comunicaram ali mesmo que a levariam adiante, mesmo à revelia do Partido: “Nós vamos fazer a guerrilha, não vamos nos insubordinar” (49).
A “guerrilha” foi formada a partir de duas premissas. Em primeiro lugar, acreditava-se que haveria uma revolução no país, que seria de caráter comunista e que a fundação da Aliança Nacional Libertadora marcava o início do movimento. Essa avaliação serviu de esteio para os clandestinos – e eis a segunda premissa – sem poder se apresentarem publicamente, foragidos pelas matas, não viam como pudessem ajudar no processo revolucionário em seu início legal via ANL. Mas viriam a ser fundamentais quando de seu desdobramento em luta armada. Além do que “isto é questão de dias, a revolução vem, nós sairemos da clandestinidade e seremos vitoriosos” (50). Então o plano era aguardar o início do movimento armado, que aqui no Estado se daria em Natal, de onde sairiam as caravanas para o interior, às quais eles se juntariam.
A reunião se deu em meados de 1935. Desde o ano anterior começara a circular entre os trabalhadores notícias de que estava em marcha um movimento armado para uma ação mais incisiva frente à repressão. “O movimento começou a se organizar em dias de 1934, já se preparando para o movimento de 35, para a tomada de poder pelas armas” (51). O início corresponde à fase de expansão do Partido e dos Sindicatos quando, estruturados em Mossoró, definem militantes para as cidades circunvizinhas, com a tarefa de organizar os trabalhadores. Lá, as dificuldades encontradas e o enfrentamento com os patrões os levariam à clandestinidade e à procura de outras formas de luta, sempre tomando como referência o movimento que estaria sendo preparado em nível nacional pelo PCB. “O que encorajou muito foi à proximidade da revolução” (52).
A presença em Mossoró na época, de quadros do Partido, enviados pelo Comitê Central, corrobora com a tese de que o trabalho lá realizado e o nível de confronto a que se chegara, era de conhecimento da direção da direção do PCB. Realmente estava sendo pensada a eclosão de um movimento em nível nacional, que teria na região oeste do Rio Grande do Norte, o ponto de apoio. José de Alencar, por exemplo, viera do Rio exclusivamente para assessorar o Partido em nível local no preparo de armas e explosivos. Horácio Valadares, por sua vez, viera em meados de 34 também do Rio de Janeiro com a tarefa de organizar a ANL em Mossoró. Há referências de que o próprio Miguel Moreira, embora natural de Lages, no Rio Grande do Norte, estivera morando no Rio de Janeiro, onde se ligara ao Partido, sendo enviado de volta para atuar nesse movimento (53).
Terminada a reunião, ficou claro que a “guerrilha” teria início apesar de ter sido derrotada e não contar com o apoio da maioria da direção local do Partido. Frente à firmeza dos que defendiam iniciar o movimento, a direção do Partido decidiu que, mesmo discordando, daria toda a ajuda necessária em relação à infra-estrutura material. Ocorre que, apesar da não aprovação da proposta pela direção local, o corpo do Partido e em especial os trabalhadores que na militância sindical haviam se defrontado com a violência patronal e respondido com a organização dos grupos de autodefesa, concordaram com a deflagração do processo de luta armada. Para eles não havia outros meios para fazer respeitar seus direitos. “Nós aqui, individualmente, a repressão prende a gente, leva, espanca, faz e acontece, mas nós estando armados, seremos respeitados” (54).
A origem das armas utilizadas na “guerrilha” também fortalece a idéia de que não se tratava de uma proposta repentina. As armas haviam sido “confiscadas”, já há algum tempo. O Partido orientava a quem soubesse da existência de armas, informar a localização, para que fossem capturadas pelas comissões organizadas com este objetivo. As empregadas domésticas, através da Associação de Mulheres, tiveram um papel fundamental nessa aquisição. Mas não apenas dos lares da burguesia foram retiradas armas.
“De uma só vez, pegamos 12 rifles na Força e Luz de Mossoró. Viram quando o empregado estava limpando e avisaram o Partido. Ela era do Partido. Quando elas viam um revólver, botavam no seio e traziam” (55).
Também contribuíram com armamentos e munições, os simpatizantes do Partido, bem como alguns liberais e cafeístas cujas expectativas eram de que o movimento derrubasse o governador Rafael Fernandes, cuja vitória desalojara do poder os setores mais próximos à proposta da Aliança Liberal de 1930.
A infra-estrutura material de apoio aos clandestinos foi montada pelo Partido, junto aos camponeses da região. Já havia um trabalho anterior entre os trabalhadores no meio rural.
“A exploração no campo era muito grande. O cara trabalhava de meia, de terça, não tinha terra. A diária era 10 tostões, 2 cruzados. O saldo do agricultor era de 3 ou 4 mil réis e do operário de salina era de 20 mil réis. É tanto que quando a salina furava, todo mundo ia para salina” (56).
Na salina, a organização dos trabalhadores em defesa de seus salários abria para esses homens uma nova perspectiva. Uma certa altivez. “Criavam coragem e diziam: não vou, desse preço, não vou” (57). Daí o ódio comum dos salineiros e latifundiários ao Sindicato. Mesmo entre os que não haviam convivido nas salinas, circulavam notícias sobre essas lutas, e os trabalhadores nela engajados eram vistos com muito respeito e admiração. Não houve quem se negasse a ajudar. “Os companheiros davam mandioca, farinha, feijão, galinha” (58).
Alguns pequenos proprietários rurais permitiram que eles permanecessem em suas terras, doavam farinha, feijão, e autorizavam que eles sacrificassem animais de seu rebanho. Contaram também com o apoio material de grandes fazendeiros como: Benedito e Joaquim Saldanha, politicamente ligados ao movimento liberal, principalmente à ala cafeísta. Recém-saídos do processo eleitoral em que se envolveram profundamente e do qual saíram derrotados, julgavam que o movimento poderia derrubar Rafael Fernandes do Governo do Estado. Os pequenos proprietários ajudavam mais por medo de represálias. Àquele tempo, de bandos cruzando o sertão e de milícias particulares, era temerário deixar de atender a uma solicitação daquele tipo. Esse trecho do depoimento de um desses proprietários, preso em 1935, nos dá a dimensão exata dessa ajuda:
“O major disse: então você é coiteiro. (Naquele tempo o sujeito que guardava conivência era tido como coiteiro, co-autor, como sujeito que compra roubo). Aí ele disse: é eu guardei conivência e do jeito que guardei você guardaria também. Eu sou fazendeiro, tenho propriedades, gado, vivo na minha casa sozinho, esses homens têm 20 ou 30 homens no mato, eu vivo lá só, não tenho a polícia para me guarnecer, eu tenho que fazer com que esses homens não me persigam, então eles andaram na minha casa e eu disse que eles vendo uma rês minha podiam escolher, sendo o meu ferro, podia. Se tivesse fome, matasse e viesse buscar a farinha lá em casa” (59).
Ajudavam não por solidariedade de propósitos, identidade de projetos, mas porque, assim fazendo, defendiam seu próprio patrimônio. Normalmente os grupos clandestinos deixavam intactos os bens dos proprietários que eles sabiam que não iriam informar à polícia sobre sua localização. Também respeitavam aqueles que lhes ofereciam víveres e procuravam utilizar os bens daqueles mais reacionários, que tinham ligações com a polícia. Esses animais que eles abatiam, muitas vezes salgavam a carne, faziam em mantas e um dos elementos menos conhecido do grupo, ou algum contato, ia vendê-la em Mossoró. Era a maneira de comprar alguns artigos difíceis de encontrar na região, como cigarros e remédios. “O inverno de 34 tinha sido bom e era muito açude, muito riacho, feijão, era tudo favorável” (60).
Ficaram se movimentando entre Mossoró, Açu e Areia Branca, dentro das matas, parando quando encontravam um lugar mais seguro, saindo em seguida para confundir a polícia que estava sempre no seu encalço. O grupo contava com a vantagem de conhecer bem o terreno, de dominar bem a geografia do lugar. “Os arredores era todo mata. Não tinha estrada de rodagem, era tudo vereda. A polícia não sabia andar. Entrava na mata com guia” (61). Quando a polícia era informada, por algum patrão, da presença do grupo próximo às suas terras, dirigiam-se para lá e como não sabiam se orientar no mato fechado, sem estradas, pedia ao fazendeiro um guia para conduzi-los até o grupo. Ocorria quase sempre do guia, simpático ao grupo, orientar a polícia em sentido contrário ao que eles estivessem.
Desde o início a “guerrilha” teve um caráter defensivo. Não foi elaborado qualquer plano de ataque. O objetivo era manter o grupo que estava na clandestinidade, coeso, preparando-se para intervir na “revolução” que estaria prestes a eclodir. Enquanto esse momento não chegava, caberia a eles alargar a base de sustentação do movimento, trabalhando a adesão dos camponeses. A tarefa foi facilitada porque já havia chegado até aqueles homens relatos de acontecimentos de Mossoró, Açu, Alagoinhas e Areia Branca, de modo que, mesmo que não conhecessem os objetivos, sabiam de suas lutas naquele sertão, onde mal se conseguia disfarçar a escravidão. A coragem de enfrentar os poderosos era o que os alimentava. A decisão de permanecerem até o início do movimento nacional não se manteve por muito tempo. Atacados pela polícia, tiveram de travar vários combates.
O primeiro confronto deles com a polícia aconteceu numa localidade chamada Três Vinténs, na saída de Mossoró, próximo ao Hotel Thermas. Naquele tempo ficava a 6 quilômetros da cidade. Era uma região de vegetação rala, sem árvores grandes e muito plana, com uma lagoa chamada Três Vinténs. Naqueles arredores moravam Feliciano e Marcelino que eram do Partido e faziam parte do grupo. Era um lugar seguro, as únicas casas próximas eram habitadas por familiares deles, que apoiavam o movimento. Feliciano, até então não visado, foi à cidade em busca de mantimentos e envolveu-se em conflito com um soldado da polícia. A polícia, que desconhecia suas ligações com o grupo, ficou sabendo na perseguição que os homens estariam naquelas imediações e cercou o grupo. Eles conseguiram furar o cerco, depois de intenso tiroteio de mais de uma hora. “Mas, a polícia correu” (62). Na época era muito difícil transporte e o acesso era muito ruim. Depois dessa derrota a polícia intensificou a procura, sendo assessorada pelos patrões, que cediam carros para serem utilizados na perseguição ao grupo. Ao mesmo tempo, resolveram perseguir os familiares dos “guerrilheiros”. Como em sua grande maioria eram trabalhadores de salinas, concentraram suas atenções nos bairros operários. Criaram uma ronda para circular permanentemente na intenção clara de intimidá-los, o que passou a ser fonte de novos e constantes conflitos, dada a superioridade numérica dos operários.
A notícia do grupo amotinado espalhou-se rapidamente e chegou até a Interventoria Estadual através dos prefeitos da região. A República, jornal oficial, publica no dia 10 de julho comunicação dos prefeitos de Açu e Macau, os quais informavam que “na várzea desse município, grande número de pessoas do povo, armadas, se achavam fazendo depredações”. Tomando conhecimento do fato, diz A República, o Interventor em exercício fez seguir desta capital uma força de 20 praças, a qual encontrou desbaratados os assaltantes, contra quem já se havia movido o destacamento de Açu, e por ordem do governo, de Angicos, Sant’Anna do Mattos e Macau (63).
Essa parece ter sido a primeira vez que o movimento é mencionado em nível da imprensa. Curiosamente, apesar de denominar os envolvidos por assaltantes, o Interventor, em telegrama ao Ministro da Justiça, refere-se explicitamente a movimentos “irrompidos há poucos dias, com caráter extremista” (64). Isso nos encaminha para aquela hipótese de que àquela altura já as autoridades estaduais tinham bem claro a dimensão exata do tempo, de episódios de grande tensão, nas últimas e recentes eleições, concentravam-se naquele momento e, por razões distintas, duas frentes de combate ao Governo Estadual. De um lado, os inconformados com a derrota eleitoral, os quais embora não estivesse liderando qualquer ação concreta para desalojar Rafael Fernandes, eram vistos pelo governo como potencialmente capazes de fomentarem alguma rebelião, tamanhas eram as fissuras que as contradições interoligárquicas haviam gerado. De outro lado, os trabalhadores através do PCB, empenhados na luta pela sua liberdade de organização sindical. Ora, os trabalhadores e os liberais, em que pese à presença de candidatos próprios vinculados ao PCB, estiveram lado a lado nas eleições, ao colocarem-se terminantemente contrários ao Partido Popular. Portanto, utilizando-se de querelas partidárias, o Governador sugeria nitidamente a existência de uma articulação entre os seus adversários políticos e o grupo amotinado, ao mesmo tempo em que procuravam sempre tornar público rumores da proximidade “de um movimento sedicioso no Estado” (65).
Essa expectativa de uma rebelião liderada pelos descontentes é reforçada pelo Governo Estadual, que dela se utiliza para pressionar o Governo Federal a lhe conceder auxílio necessário à repressão dos trabalhadores. Tanto é assim que o Ministro da Guerra envia telegrama ao 21º BC sediado em Natal, “dando instruções no sentido de ser prestado ao Governo do Estado todo o apoio moral e material na manutenção da ordem pública” (66). O Governo Estadual se apressa a publicar uma nota oficial, em que:
“torna público que está devidamente aparelhado, já com elementos próprios, já com a cooperação da Força Federal, para manter a ordem, em qualquer emergência com garantias plenas a toda a população. (...) Já sendo conhecidos todos aqueles que poderão estar empenhados nesse movimento, o governo não os deixará fugir à responsabilidade criminal por qualquer atentado ou tentativa de perturbação de ordem pública que se verifiquem” (67).
Os acontecimentos futuros demonstrariam que as divergências políticas foram utilizadas como pretexto para o Governo Estadual aparelhar-se militarmente para mover uma verdadeira guerra contra os trabalhadores e suas organizações. A insistência do governo em obter auxílio federal, estava ligada ao fato de que, durante a gestão passada, seu antecessor havia reformado administrativamente os oficiais leais aos conservadores, colocando, em seu lugar, oficiais do exército e elementos de confiança dos liberais. Daí, Rafael Fernandes buscar respaldo fora do Estado, até que, em outubro de 1935, conseguiu anular a decisão anterior e chamou para a ativa todos os reformados, readquirindo, a partir de então, a confiança no aparelho repressivo estadual.
Recomposto o quadro de oficiais de sua confiança, a administração estadual passa a realizar modificações no âmbito da Polícia Militar, procurando dotá-la de maior mobilidade, de modo a adequá-la para exercer a repressão sobre os trabalhadores. Assim, nos meados de Novembro, em nota oficial, o Departamento de Segurança Pública informa que “Ninguém pode possuir em hipótese alguma, sem estar devidamente autorizado, armas utilizáveis como de guerra ou como de instrumentos de destruição” (68). Logo em seguida o Governo Estadual, através do decreto nº. 19, de 20 de novembro de1935, resolve extinguir a guarda civil e criar a Inspetoria de Polícia. A extinção da Guarda Civil, que fora criada por Café Filho, em 1932, desempregou 300 homens, gerando uma forte crise social, que viria a ser considerada, posteriormente, um dos elementos para explicar a relativa adesão ao que tivera o Levante.
O segundo grande confronto se daria pouco tempo depois, 24 km distante dos Três Vinténs nos arredores de uma salina denominada Jurema (69). O grupo estava naquelas imediações há algum tempo. O lugar era seguro e eles contavam com o apoio de Chico Baixa Verde, um vaqueiro da fazenda de Antônio Rodrigues. Como das outras vezes, ele colocou os caçuás nos cavalos e foi para a cidade comprar mantimentos para o grupo. Voltou com a polícia. “Ele viu a reação apertando, talvez tenha achado que esse era o meio de se limpar, denunciar” (70). Foram atacados por um contingente bem mais numeroso do que nos Três Vinténs. A polícia local, sentindo-se insuficiente para derrotar o grupo. Depois do combate de Três Vinténs, requisitara reforços à capital. Chegou e cercou o grupo.
Novamente eles furaram o cerco, mas dessa vez com uma baixa muito importante; o guia do grupo.
Sebastião Cadeira era um trabalhador de salina, ligado ao Partido e profundo conhecedor da região. Atuava como guia do grupo em toda a região. Naquele dia ele portava uma espécie de cinto repleto de bombas. “Um tiro acertou o depósito. O corpo dele estraçalhou-se, desapareceu” (71).
Apesar das duras condições de vida nas matas, das dificuldades com a perseguição da polícia ao grupo, e à sua família, havia a perspectiva de que se iniciasse o movimento nacional, quando se tentaria conquistar o poder pelas armas. Por essa época as notícias vindas do sul davam conta de que o momento de sua eclosão estaria bem próximo. Os membros da Direção Local do PCB permaneciam numa discreta prontidão, aguardando a chegada da mensagem que traria as instruções. De acordo com o que fora combinado com a Direção Estadual, a comunicação seria feita pelo telégrafo, meio de comunicação mais rápido e seguro, porque eles contavam com cumplicidade do funcionário, membro do Partido. A mensagem viria em forma de senha. “Mamãe está boa” seria a senha positiva que autorizava entrar em ação imediatamente: “Zeca baixou o hospital” seria a senha negativa indicando que o movimento fracassara (72). O Partido organizou pequenas equipes que se revezavam no correio, esperando sua chegada.
Em 1935 havia em Mossoró o Tiro de Guerra 42 e um destacamento da Polícia Militar. O Instrutor do Tiro de Guerra, Amaro Potengi da Silva, aproximou-se do Partido, durante sua permanência na cidade e sabia do movimento que estava sendo aguardado. Combinou que quando fosse iniciado, elementos do Partido simulariam um ataque ao Tiro e seus subordinados estariam instruídos para entregarem as armas sem resistência. Em meados de 35 chegou a Mossoró para comandar o destacamento policial, o tenente Moisés da Costa Pereira, que tinha ligações com o PCB. Discretamente ele foi se aproximando, começou a participar das reuniões e ficou inteirado do que estava sendo planejado. Chegou a mostrar telegrama do Chefe d Polícia nestes termos: “Estou informando que há movimentos subversivos aí, procure investigar e tomar as devidas providências” (73), aos quais ele respondia negando a informação tranqüilizando seu Chefe. Ele preparou um Cabo de sua confiança para fazer a guarda no momento preciso e ceder as armas.
Durante o período em que a polícia mossoroense esteve sob o comando do tenente Moisés da Costa Pereira, a classe trabalhadora e em especial os operários das salinas viveram uma breve trégua. A perseguição ao grupo “guerrilheiro” e seus familiares foi interrompida. Evidentemente que foi por pouco tempo. Logo chegaria novembro de 1935, trazendo um Levante Comunista frustrado e uma repressão sem precedentes na história do operariado mossoroense e que, ironicamente, faria do tenente uma de suas primeiras vítimas.
Mas, os acontecimentos de novembro ainda estavam por vir, e o intervalo de paz foi utilizado para intensificar sua preparação. À medida que os informes que chegavam davam conta da proximidade do movimento, os “guerrilheiros” procuravam alargar sua base de sustentação através do estreitamento dos contatos com os camponeses, cujo apoio seria decisivo para o êxito do Levante. No âmbito do PCB, tanto a parcela que integrava o grupo, quanto os que haviam permanecido na cidade, vivia-se um momento de intensa expectativa, não destituída de uma certa dose de euforia pela iminência de sua eclosão.
O Levante iniciou-se em Natal, no dia 23 de novembro de 1935. A compreensão da escolha dessa data permanece até hoje dificultada, pela diversidade das versões disponíveis. Há quem afirme, por exemplo, que a data teria sido marcada através de um telegrama falso com que o Chefe de Polícia na época, informado de toda preparação por um dos membros da Direção do Partido de quem se fizera amigo, arquitetara determinar o seu início e ficar em posição privilegiada para agir contra os comunistas. Outras versões negam a versão anterior e avisa que houve má interpretação da senha: “A senha era 2 e 3, era para ser 25, mas Natal disse 2 e 3 é 23, aí rebentou em 23” (74). Há versões que apontam para interferências do próprio Getúlio, que estaria acompanhando a atuação dos comunistas desde a fundação da ANL. Não é objetivo desse trabalho tratar o episódio de 35, além de sua repercussão em Mossoró e – principalmente – as conseqüências do malogro do Levante para os que estavam na “guerrilha” esperando sua deflagração.
Em Natal, o movimento conseguiu por em fuga o Governador do Estado e todo o secretariado, e constituiu uma Junta Revolucionária (75) que durante 3 dias permaneceu no poder. Além disso, tentou se expandir para as cidades do interior para onde partiriam caravanas dirigidas por militantes do Partido, com a função de destituir os Prefeitos e nomear pessoas de confiança em seu lugar.
Em Mossoró estranhamente, não aconteceu nada. Além de toda a preparação anterior e da combinação prévia de não resistência por parte das corporações ali sediadas, havia a “guerrilha”, homens armados, experientes e dispostos, esperando apenas o sinal para saírem das matas e começarem a luta. Há qualquer coisa não muito bem explicada até hoje nesse episódio. “(...) A gente estava com Mossoró na mão. A gente estava com o Tiro de Guerra, a Polícia Militar e a guerrilha. Mossoró seria dominada na hora, sem um tiro (...)” (76). Segundo Francisco Guilherme, na época integrante da Direção Local do Partido, além da secretaria do sindicato e de uma das equipes que se revezava no correio à espera da mensagem, as coisas se passaram assim: “Aí quando nós recebemos o telegrama era ‘Zeca baixou o hospital’ (...). A senha significava que o movimento já tinha fracassado” (77).
A mensagem encheu de perplexidade a quantos estavam na expectativa. Além da frustração pelo malogro do Levante, naquele momento eles tiveram a certeza de que os companheiros que haviam aderido à “guerrilha” estavam condenados. “Aí a gente veio todo mundo triste, parece que tinha morrido gente, lembrando os companheiros da guerrilha (...)” (78). Como justificar que um dia antes da data marcada para o início do Levante, tenha chegado a mensagem afirmando o seu fracasso? Embora não haja qualquer evidência concreta, faz sentido pensar que a autoria desse telegrama pode ser creditado à própria polícia, já que hoje não há nenhuma informação segura de que alguém do Partido tenha assumido sua autoria.
Portanto, a mensagem, tal como era de se esperar, impediu qualquer possibilidade de efetivação das ações anteriormente planejadas. O único acontecimento significativo foi à fuga de um grupo de presos da cadeia pública para se integrarem à “guerrilha”. Esse grupo era constituído basicamente por presos políticos, os acusados da morte do feitor de salina em Areia Branca. Curiosamente, eles conseguiram a adesão de Júlio Porto, preso desde 1927, quando Lampião atacou Mossoró. Naquele momento a cidade que já estava de sobreaviso, conseguira organizar-se para a defesa. Lampião é rechaçado e alguns cangaceiros são presos entre os quais Júlio Porto. Na cadeia começou a ter contato com os acusados da morte de Chico Bianor, operários de salinas, ligados ao sindicato e ao Partido. Eles convenceram Júlio Porto a se integrar ao movimento.
Com o fracasso do Levante, o Governador Rafael Fernandes reassume o Governo do Estado e junto com as elites proprietárias, ainda estupefactas, começam a montar a grande revanche.
Planejaram uma verdadeira expedição punitiva, através da qual penalizam indiscriminadamente, tanto os que de uma forma ou de outra haviam se envolvido, como também numerosas pessoas cujo crime se limitava apenas a serem identificadas com a oposição. A perseguição aos adversários ganhou tal dimensão que os deputados ligados à Aliança Social, após intensos debates, resolveram telegrafar ao Ministro da Justiça, Vicente Rão, nesses termos:
“Delações correligionárias dá lugar verdadeira caçada humana, fins exclusivos satisfazer paixões partidárias, arrancando lares para prisões comuns centenas cidadãos pacatos, burgueses exemplares, pais famílias dignos, visando atemorizar nosso partido, pelo excesso de pânico” (79).
As prisões são o destino certo de quem não consegue fugir a tempo. Jonas Gurgel, ex-prefeito de Caraúbas, sentindo-se ameaçado, refugia-se em Brejo do Cruz, na Paraíba, de onde telegrafa ao Ministro da Justiça, dizendo: “despeito Rafael Fernandes ser padrinho meu filho, sinto-me hoje sem garantias, ameaçado prisão, motivo vim refugiar-me aqui, junto outros amigos (...)” (80).
Interrogado, Rafael Fernandes lança sobre seus adversários a acusação de extremistas e legitima toda a perseguição: “não sendo meu governo culpado alguns adversários menos avisados hajam participado do movimento extremista aqui irrompido (...)” (81). Vivia-se um intenso anticomunista e a referência ao movimento “extremista” era suficiente para justificar todo tipo de atrocidades.
A ocasião era favorável para se livrar de pessoas que, por um ou outro motivo, seja de ordem política, seja de ordem pessoal, fossem considerados indesejáveis, pelos Populistas à frente do comando do Estado. Ainda estava presente nas memórias o clima em que se desenrolava a eleição no ano anterior, as feridas, muitas ainda não haviam cicatrizado. Muitos episódios não absorvidos voltaram à tona, como por exemplo, a atuação de latifundiários, como os Saldanhas e suas milícias particulares que distribuídos pelas cidades da região oeste, pressionaram os eleitores do Partido Popular, chegando até o constrangimento físico, para impedir que participassem da eleição. Ou o uso da máquina administrativa do Estado em favor dos candidatos da Aliança Social, diziam os opositores. Todas as acusações feitas anteriormente, todas as indisposições geradas pelo aguçamento da campanha, ou mesmo, desde a chegada da Aliança Liberal ao poder no Estado, puderam enfim ser julgados, ou melhor, punidas.
Sim, porque, imediatamente após o fracasso do Levante Comunista, uma repressão sem precedentes na história do Estado pegou de cambulhada todos os adversários do grupo no poder. Os cafeístas foram violentamente perseguidos, presos. Os partidários da Aliança Liberal, mesmo os não cafeístas, foram envolvidos. Foram todos acusados de comunistas e de participarem do Levante. Uma temporada de caça às bruxas, que teve facetas como a expedição de 963 ordens de prisão de uma única vez, pelo Governador Rafael Fernandes.
Efetivamente, embora os liberais e cafeístas que não fugiram a tempo tivessem sofrido perseguições, processos, prisões, não se pode comparar à fúria que se abateu sobre os sindicatos, em especial sobre o sindicato das salinas. Nesse processo, de organização dos trabalhadores, pode ser exteriorizado. Todas as vitórias que os trabalhadores haviam conseguido com suas lutas, e que permaneciam nas garantias da burguesia, engasgando-a, como afrontas ao seu poder ilimitado, sucumbiram diante da vaga repressiva. O fracasso do levante de Novembro ofereceu, enfim, o pretexto de que os proprietários ansiavam para arrasar os sindicatos. À acusação de implicação do movimento comunista, seguiu-se a mais violenta repressão sobre a atividade sindical e seus agentes. Fecharam o sindicato e apreenderam todo o material existente, como mesa, cadeiras, máquinas de escrever, etc. Toda a diretoria do sindicato foi presa.
Até então, a vinculação orgânica de muitos operários ao PCB era praticamente desconhecida, e as acusações genéricas. Nessa oportunidade as delações revelaram à polícia parte da estrutura do Partido em Mossoró. O instrutor do Tiro de Guerra e o delegado de polícia foram dos primeiros a serem presos. Seus substitutos chegaram com a tarefa de realizar um verdadeiro expurgo e, para realizá-lo a contento, foram providenciadas modificações no aparelho repressivo: o contingente policial local foi reforçado. “Aqui era soldado a toda hora, corrigindo as casas, açoitando o povo” (82).
A organização dos trabalhadores revelou-se forte o suficiente para resistir. Mesmo com a diretoria do sindicato e parte dos militantes mais ativos na prisão, inúmeros trabalhadores vinculados ao PCB que não tiveram sua militância revelada, ligaram-se à produção e à continuidade do trabalho sindical.
De outro lado foi montado um cerco à “guerrilha”. Os fazendeiros da região, suspeitos de auxiliarem o grupo com alimentos, passaram a ser rigorosamente vigiados. Pessoas que moravam em lugares nos arredores vistos comprando alimentos na cidade eram seguidas, interrogadas, açoitadas. Tinha a mesma sorte quem fosse surpreendido à noite pelas estradas. Dessa maneira, as ligações entre os grupos e os possíveis contatos foram interrompidas. Isolados, sem notícias, sem mantimentos, as pessoas das redondezas que até então lhes apoiaram, apavoradas com a violência da polícia, assim à resistência foi sendo minada.
A notícia do fracasso do Levante foi recebida pelos “guerrilheiros” como sua condenação. Empurrados para a clandestinidade, aquela lhes parecera uma saída para resistirem até a eclosão do movimento. Iniciado o Levante, abandonariam a mata para participar da luta. Vitorioso o movimento, voltariam à vida normal como homens livres, empenhados na construção de um novo poder.
No dia 26 de novembro de 1935 foi decretado o Estado de Sítio sobre todo o território nacional. Dois dias depois, partiria de Fortaleza para Mossoró o 23º BC, 564 homens, sob o comando do Major Roberto Dantas Barreto, como reforço ao contingente policial local, empenhado na repressão decorrente do Levante. O 23º BC se demoraria em Mossoró até o dia 2 de dezembro. Durante sua permanência na cidade os trabalhadores viveram intensa perseguição. Teve início o toque de recolher que se extinguiria apenas em meados de 1936, após a destruição total do grupo. “A reação andava cercando casas, dessa hora em diante, ninguém mais podia andar na rua, a polícia procurando o pessoal, em vez de procurar no mato, vinha para as casas” (83).
O empresariado mossoroense manda um telegrama ao Governo do Estado, assinado por todas as autoridades legais, em que pressionam: “vimos apelar V. Excia. acudir nossa terra, haveres familiares, sob ameaças incríveis audácia bandoleiros que zombam todos recursos combate até agora empregados” (84).
No início de 1936, o grupo deslocou-se em direção a Açu. Os latifundiários reagiam violentamente à presença dos “guerrilheiros”, especialmente a de Manoel Torquato, natural da região, onde ainda permaneciam os seus familiares. Os proprietários rurais ainda não haviam esquecido que, em 1934, Manoel Torquato tentara organizar os trabalhadores rurais em sindicatos, numa subversão sem precedentes das relações de trabalho ali vigentes. Chegando na região, o grupo tentou ficar nas imediações do açude Campo Comprido. Arthur Felipe, um dos proprietários rurais, soube da localização do grupo e resolveu tomar a si a tarefa de combatê-los. Formou um grupo com outros proprietários e saiu à procura. Encontraram os trabalhadores próximos à embocadura do açude e começaram à batalha. Do lado dos proprietários morreu Arthur Felipe e do lado dos trabalhadores, Luís de Paula. “Os chefões, os latifundiários, botaram a polícia para perseguir o grupo”. A polícia foi direto para a casa de São Sebastião Silvestre, pai de Manoel Torquato.
“Ele morreu dentro de casa mesmo. Fizeram um fogo lá, esburacaram a casa todinha de bala. Mataram até galinha. A velha escapou dentro de uma caixa de farinha de guardar rapadura em época de inverno” (85).
A polícia passou a perseguir sua família para saber onde estava Manoel Torquato. “Os irmãos desse Manoel Torquato apanharam de largar o couro, viviam escondidos” (86). Mesmos os familiares mais distantes foram acossados e a polícia chegava a açoitar quem trabalhasse para eles. O velho Chico Nilo era sogro de Antônio Silvestre, tio de Manoel Torquato.
“Foi cortar um babaçu, chamou muita gente, e o povo assombrado, mode esse negócio de apanhar não foi ninguém. Pra não dizer que não foi, de trabalhador só foi um, um cara de fora, um tal de Assis Higino. Quando chegou a turma de soldados aí pegou os trabalhadores e foi arrastando um a um para açoitar. Esse dito Assis não apanhou porque tinha uma pessoa que era conhecida dele, na hora deu uma palavra por ele, que ele não tinha culpa, que era um simples ganhador, aí foi quando liberaram ele para sair, empurraram ele para fora, para sair do meio dos comunistas. Aí Assis Higino correu tanto que quase perdeu as apragatas. Os que apanharam era porque eram da família de Manoel Torquato, mas era família longe, eles diziam que eles davam cobertura, que davam assistência ao bando de Manoel Torquato” (87).
A família de Manoel Torquato caiu em desgraça. Ninguém se aproximava dele com medo de ser açoitado. Deixaram de sair à noite, porque se encontrassem à polícia, ela podia pensar que estavam fazendo contato com o grupo.
As elites locais enfurecidas desencadearam uma repressão brutal sobre a população que morava afastada da cidade, próximos da região onde o grupo fora encontrado.
“O povo ficou muito amedrontado, ninguém andava, era difícil sair de noite naquele tempo. Porque se encontrassem, a polícia obrigava eles a dizerem onde estavam. Quer soubesse, quer não soubesse, se viu hoje, se viu tal dia, tinha que dar um roteiro” (88).
De Açu o grupo caminhou para as proximidades de Mossoró. O cerco estava se fechando sobre eles. Passado o impacto do levante e superado o auge da perseguição aos envolvidos, o aparelho repressivo do Estado concentrou sua atuação no combate à “guerrilha”. “Eram caçados por todo o canto. Haja botarem soldados que traziam de Natal, daqui para Areia Branca. Até dentro das salinas eles iam aborrecer a gente” (89).
O grupo foi sendo empurrado para o isolamento. Os fazendeiros vigiados, o povo amedrontado, a orla da mata cheia de soldados. Não havia como chegarem notícias, alimentos.
Na cidade, o Partido se reuniu para discutir a situação do grupo. Chegaram à conclusão que não havia mais condições para eles permanecerem na mata. Decidiram montar um esquema de emergência entre membros, simpatizantes e aliados do Partido, para fornecer apoio material a quem quisesse sair.
A irritação das elites com a insistência dos trabalhadores levou-os a persistirem no plano capaz de levar o grupo ao aniquilamento total. A vigilância foi redobrada nos bairros operários. Agora já não apenas nos familiares dos integrantes do grupo e sim sobre todos os trabalhadores, seus filhos, mulheres, família. Todos eram suspeitos e mesmo que não tivessem ajudado diretamente aos clandestinos, era importante dar-lhes uma “lição” antecipada, que lhes faria desistir quando surgisse a oportunidade. “A polícia perguntava se tinham visto Manoel Torquato, o cara dizia: ‘não, não vi’. Aí toma peia, teve gente de apanhar e quase ficar morto” (90).
O grupo já avaliou que se haviam esgotado as possibilidades de sobrevivência naquela situação. Nesse momento, a guerrilha fora isolada. O grupo fraco, faminto, semi-nu, mal podia se esgueirar pelas matas para sair da região que estava sendo esquadrinhada pela polícia. Não existia outra saída. Era tentar ir se afastando da zona sob observação, ou do contrário, cair nas mãos da repressão. Resolveram recuar organizadamente, saíram das matas aos poucos, dois a dois, deslocando-se em direção ao Ceará, cuja fronteira pouco depois de Mossoró, não seria difícil alcançar. Mas a travessia era muito perigosa. A polícia estava lá. Cercando-os, aterrorizando o povo, caçando-os como os animais ferozes.
“A família ficava vigiada. A mulher de Manoel Torquato foi presa, a polícia mantinha as mulheres como reféns. Eles vinham visitar a família, despistados de caçador, mas era difícil. O movimento no mato era restrito. O pessoal quase não caçava, porque a polícia ficava em cima, tomava até faca da mesa. Se aparecesse algum caçando, chamava logo a atenção deles”.
As duplas foram se formando e procurando se afastar, conforme o combinado. A Manoel Torquato coube a companhia de Feliciano. Feliciano era um negro alto, forte, a barba preta cerrada. Analfabeto, um homem rude, respeitado por sua valentia. Era operário da salina e membro do Partido, e juntamente com seu irmão Marcelino votara a favor da realização da “guerrilha”. Manoel Torquato foi avisar a família que se afastaria por algum tempo da região, se despedir. Justificou a saída para a mulher: “é, ta uma vida danada, não tem onde pegar água, não tem onde buscar comida, a polícia tomando todos os becos (...)” (91). Era asmático, estava em crise e faminto. A mulher propôs que se escondessem nas imediações enquanto ela preparava alguma coisa para eles comerem. Era noitinha, logo que eles saíram, Feliciano matou Manoel Torquato.
“Ele morava perto lá de casa. Eu ouvi os tiros lá de casa. Foram 2 tiros. E eu disse, caçador uma hora dessas? E aquilo é rifle. Naquele tempo não havia estação de rádio e somente pela manhã eu soube da notícia” (92).
Embora não houvesse uma hierarquia no interior do grupo, desde o início, as decisões tomadas tinham influência de Manoel Torquato, Miguel Moreira e do Alemão. Principalmente de Manoel Torquato, que pela sua grande liderança entre os trabalhadores, acabou sendo naturalmente considerado o líder do movimento. Com o aperto do cerco, a polícia passou a espalhar que daria um prêmio a quem capturasse Manoel Torquato.
Depois de matá-lo, Feliciano procurou a casa de um proprietário e contou-lhe o ocorrido. O proprietário levou-o a presença da polícia que lhe prometeu a liberdade em troca de informações. Então Feliciano passou para a polícia o nome de todas as pessoas direta ou indiretamente envolvidas naquele movimento. “Isso foi desespero de causa, como uma pessoa que recorre ao suicídio como última etapa. Ele achou que era uma saída, que isso ia salvar a situação dele” (93).
A polícia foi buscar o corpo de Manoel Torquato, em um caminhão.
“Quando o carro parou em frente à cadeia pública, a polícia puxou-o pela perna, como um bicho, chega bateu com a cabeça no chão. Ele estava assim com uma espécie de mescla, tinha umas divisas, parece que era coronel. Aí ficou estirado no chão e o povo correu pra ver” (94).
Espalhou-se a notícia da morte de Manoel Torquato e das declarações que Feliciano fizera. Agora, tratava-se de sair o quanto antes. Feliciano denunciou todos que estavam no grupo e toda a estrutura de apoio que se formara, a partir da cidade. Como elemento ligado ao Partido, revelou toda a sua estrutura, desde os que eram ligados organicamente, até os simpatizantes e quem, de uma forma ou de outra, tivesse auxiliado o grupo.
Alguns dos denunciados ao serem presos, por desespero ou inexperiência acabaram delatando outros companheiros.
“Eu fui delatado por outro companheiro que também compunha a guerrilha. O nome dele era Herculano José Barbosa, era ex-soldado, um cara valente e estava a par de todo o movimento, porque era do Partido também. Não sei porque entendeu de me complicar” (95).
O último combate aconteceu num lugar chamado Cigano, próximo da serra Mossoró, uma região de vegetação mais fechada e maior do que a de Três Vinténs, distante 18 km de onde se dera o primeiro conflito. Por essa época, meados de 1936, o grupo já estava praticamente destroçado. Grande parte dos “guerrilheiros” conseguira burlar a vigilância e já haviam saído da mata, como Zé Domingos e Júlio Porto, que se refugiaram pelo interior, ou João Paulo que junto com outros tomaram o rumo do Ceará. Outros não conseguiram escapar da polícia e foram presos durante a fuga, como Herculano Barbosa, ou Miguel Moreira, preso em Pendências. Alguns poucos ainda estavam tentando encontrar o caminho da fuga, quase perdidos na mata.
José de Alencar, o Alemão, chegara a Mossoró no ano anterior, vindo do Rio de Janeiro. Era muito jovem, alto, louro, daí o apelido. Especialista em explosivos viera ensinar o fabrico de bombas e munição a serem usadas no Levante de 35. A notícia da retirada surpreendeu-o com o que restava da roupa em farrapos e muito enfraquecido pela fome. Além do mais, não conhecia a região, tinha dificuldades de se orientar pelo mato, desgarrou-se e acabou vagando sozinho. Depois de muito caminhar, encontrou uma casa no meio do roçado. Havia uma mulher e uma criança. Pediu comida e uma roupa que pudesse alcançar a estrada sem chamar a atenção. A mulher mandou a criança avisar ao pai, ocupado na roça. Ele chegou, o Alemão falou que estava quase morto de fome e que precisava de uma roupa, pois estava sendo perseguido pela polícia. Ainda apelou que não comentassem com ninguém a sua presença ali. O homem mandou-o deitar-se à sombra de uma árvore e esperar o almoço. A mulher iria matar uma galinha e enquanto isso ele descansaria da caminhada. Imediatamente, mandou avisar a polícia. Alemão despertou com os gritos do contingente armado que lhe gritava ordem de prisão. Ainda teve tempo de dizer: “Não me matem, que já estou morto” (96) e foi sacudido pela saraivada de balas.
O comandante do destacamento, Sargento Francisco Felício, ou Chico de Zaca, como era mais conhecido, era filho de um antigo militante do Partido, morto numa briga com um dos irmãos de Reginaldo, Glicério Reginaldo, há algum tempo atrás. Zaca administrava uma das terras dos Fernandes que fazia divisa com uma das propriedades de Glicério. Iniciaram uma divergência a partir da demarcação dos limites e os Fernandes passaram a instrumentalizar Chico de Zaca, colocando Glicério como obstáculo à resolução da questão. Teceria tamanha intriga, que ao se encontrarem, começaram uma discussão que rapidamente derivou para a agressão física. Zaca puxou a faca e Glicério atirou. Os Fernandes mandaram chamar seus filhos e lhes asseguraram que o Partido mandara matar o se pai. Colocaram os dois na polícia, todos analfabetos, um como sargento e outro como cabo. O Sargento transformou-se num agente de repressão e ganhou destaque como instrumento da burguesia na perseguição aos comunistas. Daí a ferocidade com que executou o Alemão, um homem indefeso e quase morto.
Destroçado o grupo, a repressão passou a se concentrar nas denúncias e as prisões se encheram de trabalhadores. Seu grande delito era terem ousado tentar se organizar para enfrentar a tirania dos patrões. Por esse crime, muitos foram para a Ilha Grande como, Francisco Guilherme, Joel Paulista, Francisco Freire de Amorim, Jonas Reginaldo, Anastácio Lopes, Gonçalo Izidro, Antônio Reginaldo, João Batista de Menezes, Francisco Dobrinha, Marcelino, Herculano, o próprio Feliciano e tantos outros. Alguns jamais voltariam, vítimas de doenças e maus tratos na prisão (97).
A burguesia atingira seu objetivo. O Sindicato e o Partido estão destruídos, as pessoas amedrontadas. É preciso agora que todos os trabalhadores tenham conhecimento do que está reservado a quem se atreva a percorrer os mesmos caminhos. Por isso, o Alemão, encontrado quase morto de fome, teve de receber uma fuzilaria. Para servir de exemplo. Enquanto persistisse a lembrança de seu corpo perfurado, certamente seria mais difícil que outros tentassem insistir na sua luta.
Os trabalhadores que naquele ano dirigiram-se à salina para trabalhar na colheita, ao perguntarem ao feitor o preço do alqueire, escutaram a resposta: “quer trabalhar ou quer saber o preço?”. No dia do pagamento tiveram uma grande surpresa: o preço do alqueire tinha baixado um nível inferior ao do ano anterior” (98).
Não houve qualquer reação. O sindicato estava mudo. Enfim, os proprietários puderam respirar em paz.
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