Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
O Sindicato do Garrancho
Brasilia Carlos Ferreira, Segunda Edição, Coleção Mossoroense, 2000
2 – As Origens do Sindicalismo no Rio Grande do Norte
No Estado do Rio Grande do Norte, tal como em outros pontos do país, a prática associativa dos trabalhadores tem início com as sociedades mutualistas. Estas sociedades de socorro e auxílio mútuo tinham como objetivo proteger o trabalhador e sua família, de modo a assegurar ajuda e assistência em caso de doença ou morte.
Estas entidades marcam o início de nosso processo de industrialização. Sua constituição e natureza traduzem a própria realidade do processo de trabalho à época, pouco especializado e de baixo nível tecnológico. A composição interna, onde coexistiam operários, intelectuais e artistas, sem especificação por ramo de atividade, de um lado aponta para uma matriz de associação livre – que, de resto, foi à tônica em todo o país – e de outro, reflete o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas.
O caráter lítero-recreativo, traço marcante de tais associações, onde os intelectuais tinham livre acesso, aparecia na prática cotidiana como variante natural das atividades assistenciais. Embora dirijam alguns pleitos aos poderes públicos no que tange às condições de vida, como por exemplo, carestia dos gêneros de primeira necessidade, em nenhum momento punham em questão as relações sociais estabelecidas a partir do trabalho.
A primeira associação de trabalhadores de que se tem notícia no Estado foi fundada a 02 de fevereiro de 1873, na vila de Canguaretama, região agreste, onde desde 1604 estava em atividade o engenho Cunhaú. Segundo Câmara Cascudo, “a mais antiga organização de classe do Estado”. (1). Em 1888, com a Fábrica de “Fiação e Tecidos Natal” entrando em funcionamento, seus operários vão formar grupos recreativos, desportivos e beneficentes.
Em 1890 é fundado o “Centro Operário São Luís de França”, em Natal, sobre o qual não há maiores informações. Três anos depois, cria-se o “Centro Operário Natalense”, também em Natal, e também de vida efêmera, pelo menos neste primeiro período. Em 1904 nasce a “Liga Artístico-Operária Norte-rio-grandense”, esta de longevidade invejável, até hoje existente, que ostenta seu nome na sede própria situada na esquina das ruas Coronel Cascudo e Avenida Rio Branco, em Natal. A Liga Operária, durante quase um século de atividades, assistiu a diversas transformações, como a passagem da atividade mais artesanal para a atividade industrial propriamente dita, mudança na composição da força de trabalho e na sua agregação por setores. A nível interno, ela viveu o suficiente para sentir o reflexo de todas essas modificações que a levaria a um declínio gradativo entre a classe trabalhadora.
O numeroso corpo de associados e sua intensa atividade mutualista e cultural sofreram as conseqüências da especialização da força de trabalho necessária ao processo de industrialização em curso, ocasionando a sua perda de importância. Contudo, seu declínio foi lento e, mesmo com a constituição das associações profissionais e a seguir dos sindicatos, ainda tinha presença marcante no cenário das entidades dos trabalhadores.
Por volta de junho de 1902, Augusto Leite, intelectual, começa a escrever uma série de artigos no jornal Gazeta do Comércio sob o título “Unamo-nos” (2), sobre a necessidade e a importância da associação de trabalhadores. A repercussão desses artigos faz com que pessoas simpáticas às suas idéias venham procurá-lo no próprio jornal. Passam a se encontrar e a discutir, e no dia 28 de fevereiro de 1904, cento e seis operários fundam a Liga, com Augusto Leite na presidência da Comissão Provisória e mais Eduardo dos Anjos, Aristóteles Costa, Bartolomeu Moreira, José Façanaro e José Alcino Carneiro (3).
Há referências de que sua fundação tenha sido também uma resposta ao convite que Bartolomeu Moreira recebera da “Federação Cristã Operária de Pernambuco”, solicitando a adesão do operariado natalense a uma mensagem dirigida ao Congresso Nacional pedindo a promulgação de uma lei sobre sindicatos profissionais, semelhante à já existente sobre sindicatos agrícolas (4). Primeira entidade voltada para auxílio e proteção do trabalhador, a “Liga Operária”, aos poucos, vai abrigando um número crescente de sócios.
Em 1911, uma divergência interna derivou numa dissidência liderada por Eduardo dos Anjos e mais 15 associados, os quais terminam por deixar a Liga e fundam uma entidade similar, o “Centro Operário Natalense”. Embora tenha permanecido em atividade por longo tempo, o “Centro Operário” não chegaria a igualar a Liga em número de participantes.
A “Liga” permaneceu em atividade, mesmo depois que os sindicatos foram fundados e estarem em plena atuação. Hoje, além da existência formal e de um presidente que se sucede no tempo desde 1954, restam os velhos militantes e suas lembranças. João Carlos de Vasconcelos, o Jotacê, é ex-presidente e ex-diretor do jornal da Liga. Ele narra com orgulho a atuação da Liga em apoio à greve por aumento de salário realizada pelos funcionários da Rede Ferroviária em 1920. Também recorda as reivindicações pelo congelamento de preço dos gêneros de primeira necessidade, encaminhados a Getúlio Vargas, em conjunto com entidades sindicais e se emociona ao acusar Café Filho de ter extraviado o Livro de Ata, contendo a Ata de fundação da Liga, quando era Chefe de Polícia, em 1932 (5).
Acusação firmemente rebatida pelos partidários de Café Filho, afirmando que a Liga estava sendo instrumentalizada pelos derrotados de 1930, os conservadores ligados ao governador deposto, que agiam contra o governo da Aliança Liberal e principalmente contra os cafeístas (6).
Até 1920, havia poucas entidades de trabalhadores no Estado. Por este motivo, é relevante citar a fundação da “União Caixeral” em 1911, na cidade de Mossoró, congregando os comerciários; e a fundação, em 1919, também em Mossoró, da “Sociedade União de Artistas”. No mesmo ano, em Areia Branca foi fundada a “Sociedade de Artistas de Areia Branca” e logo a seguir a sociedade “União Marítima Areiabranquense”, que pertencia à “classe marítima e aos estivadores” (7).
A partir de 1920 e até 1930, têm início as associações profissionais, que dariam origem aos sindicatos. No dia primeiro de setembro de 1920, nasce a “União de Operários Estivadores de Natal”, e, a seguir, as sociedades dos padeiros, pintores, carpinteiros, engraxates, lavadeiras e engomadeiras (8). Em 1921 são fundadas a “Liga Operária de Mossoró”, a Liga Artístico-Operária São José, em Macaíba, o Centro Operário Tourense, em Touros e a Liga Artístico-Operária Caicoense, em Caicó (9).
Nos raros artigos escritos sobre as origens do Sindicalismo no Rio Grande do Norte, têm presença garantida os nomes de Sandoval Wanderley, Viterbino de Paula, João Frederico Gregório, Osmídio de Castro, Pedro Rodrigues, Pedro Alves, Maria Ramalho e Café Filho.
Durante a década de 20, há referência constante a um atuante Sindicato Geral dos Trabalhadores, de orientação cafeísta, liderada por Sandoval Wanderley. Abrigava trabalhadores que não tinham “sociedade” específica e contava com mais de seiscentos associados. Funcionava na prática como uma espécie de Intersindical, estando a ela associadas à quase totalidade das entidades de trabalhadores existentes à época. Publicava um jornal de circulação semanal “A Folha Operária”, de grande penetração entre os trabalhadores.
Julieta Calazans refere-se a essa época como sendo o “pré-sindicalismo”. Entre os trabalhadores e suas entidades há uma prática pouco voltada para o questionamento das relações de exploração, talvez em função do ritmo lento do processo de industrialização.
Um sindicalismo tão incipiente haveria de se caracterizar pela frágil organização e pelo pouco uso de instrumentos de luta mais incisivos. Durante os anos 20, há notícias de apenas dois movimentos grevistas: o primeiro, a Greve Central, em março de 1920, envolvendo os operários ferroviários da Great Western. Uma greve de caráter nacional, onde ao Governo Federal, na qualidade de empregador, eram dirigidas as reivindicações. Um movimento que terminou vitorioso e sob o qual não há notícia de repressão.
Outro movimento grevista da época foi a Greve Geral de 1923, liderada por Café Filho (10). Em seu livro de memórias assim ele se refere ao movimento:
“(...) No ano de 1923, coloquei-me à frente das primeiras greves havidas no Rio Grande do Norte. Os estivadores de Natal reclamavam melhoria de salários. Foi-me fácil, como para outros ainda hoje o é, liderar-lhes a reivindicação. Bastou-me na reunião de portuários, insistir no tema aumento salarial, explorando o seu poder mágico. (...) Vitorioso o movimento, fui procurado pelos operários da fábrica de tecidos, a única que então existia. Deflagramos a greve geral, sob o poder mágico da mesma expressão: aumento salarial. Paralisamos a fábrica e, em seguida, todos os demais setores de atividades da capital” (11).
Café Filho era advogado e jornalista, exercendo as duas atividades, às quais alude da seguinte maneira:
“De muito advogar a causa dos pobres, aderi ao drama deles e tomei a frente de suas reivindicações nos sindicatos e nas ruas. Quando mais tarde fundei o Jornal do Norte, já era conhecido com uma espécie de esperança dos deserdados do poder. Foi minha primeira atividade regular como jornalista, passando eu a agitar, nas páginas que escrevia, a questão social no Estado. Em desdobramento dos artigos que fazia publicar, atendia ao apelo do pessoal da única fábrica de tecidos que existia no Rio Grande do Norte. Eram mulheres famintas, mães que deixavam os filhos nus em casa. (...) Por estes caminhos, fui chegado à política. Aonde ela me levaria? (...)” (12)
Essas greves chamaram a atenção das classes proprietárias, sobre o movimento sindical. Café Filho passou a sofrer restrições às suas atividades, principalmente as tivesse indícios da organização dos trabalhadores. Termina o “idílio” com que as elites contemplavam a atuação “dentro dos mais sagrados princípios de respeito à lei e à ordem”, como eles denominam a ação conciliadora dos subalternos.
A repressão ao movimento se revelaria em toda sua extensão em 1928, durante o governo de Juvenal Lamartine. Ele manda “prender e espancar sindicalistas, arrasa as sedes, destrói os arquivos e o jornal, sob a alegação de estar havendo infiltração comunista nestas organizações” (13).
1930 marca o início de um período de grandes movimentações na área sindical do Estado. Há clima de expectativa diante do novo pacto social no poder, com a vitória da Aliança Liberal. O clima é favorável à retomada da prática sindical. O movimento sindical passa a se reorganizar com a volta dos sindicalistas que sofreram a repressão em 1928. Agora tratam de se adequar à legislação getulista cumprindo as formalidades legais e reaparecendo com o nome de sindicatos. Permanece atuando a Federação Regional do Trabalho que agindo como uma intersindical, englobava sindicatos de diferentes categorias, em clara oposição à verticalidade contida na legislação sindical posterior a 30.
Algum tempo depois a Federação seria extinta, em decorrência da negativa do Ministério do Trabalho em reconhecê-la. O Centro Operário Natalense de 1911, mutualista, também requer sua transformação em sindicato, de acordo com o decreto 9770, de 19 de março de 1931, do chefe do governo provisório, conforme expressa trecho da nota convocatória para a assembléia, que entre outras coisas diz que:
“a nenhum operário é dado ficar indiferente a tão momentoso assunto, de interesse geral do proletariado, pois a nova lei de sindicalização das classes não tem finalidade senão dar aos homens do trabalho uma assistência mais eficiente de equidade e bem-estar a que eles têm direito” (14).
Durante os primeiros anos do pós-30, os sindicatos estiveram ocupados com sua legalização frente ao Estado e sua atitude frente ao “governo revolucionário” era de entusiasmado apoio. Elogiavam a legislação sindical da República Nova, vendo nela um instrumento de valorização não apenas das entidades sindicais, como também do próprio trabalhador, que passava a ter definida em lei, a defesa de suas condições de trabalho.
Não lhes ocorria, portanto, que esta legislação, que eles tanto agradecem, representava o controle total, manipulação e atrelamento por parte do Estado. Na região Centro-Sul – onde as entidades de trabalhadores eram mais numerosas e já havia influência ideológica da esquerda – caso dos sindicalistas ligados ao PCB – ao menos no início, houve resistência à burocratização. O mesmo não aconteceu onde o contingente operário era mais rarefeito e o movimento sindical incipiente, como no Rio Grande do Norte.
O movimento sindical aplaudia o governo, mobilizava-se para saudar cada novo interventor que aqui chegava, demonstrando sua confiança no pacto, que lhe reservaria no futuro surpresas bastante desagradáveis. Acontecimentos como os de 1935, ainda estavam muito distantes, e, naquele momento, a prática corrente era o apoio ao governo da Aliança Liberal.
“Todas as sociedades operárias sindicalizadas da capital e do interior do Estado, pelos seus representantes acreditados junto à Federação Regional do Trabalho, comparecerão incorporados ao cais do Porto, vindo uma comissão composta de todos os presidentes levar os votos de boas vindas ao Sr. Interventor Federal. Nas sedes dos sindicatos e da Sociedade dos Estivadores serão hasteadas as bandeiras sociais e nacional, ostentando a noite profusa em suas fachadas (...) Uma comissão de sindicalistas fará esta noite ornamentação das principais ruas por onde deverá passar o Sr. Interventor” (15).
O dado mais significativo do período é a presença da Legislação Sindical produzida nos gabinetes do Governo Vargas e que busca fixar uma fisionomia comum ao sindicalismo multiforme praticado até então. A criação do Ministério do Trabalho e o Decreto de Sindicalização forçam as associações a enviarem ao Ministério do Trabalho, a documentação, para obtenção da Carta Sindical, ou seja, o reconhecimento da “legalidade” de sua atuação.
Logo que tomaram conhecimento da publicação da legislação, as associações passaram a enviar toda a documentação exigida pelo Ministério do Trabalho e pleitear seu reconhecimento. Um dos primeiros a ser reconhecido foi o Sindicato dos Auxiliares do Correio de Natal, cuja Carta Sindical foi expedida em meados de março de 1933 (16). A seguir, foi reconhecida como sindicato profissional a Sociedade dos Estivadores, passando a ter a denominação de União dos Operários Estivadores, em 20 de maio de 1933 (17). A categoria foi comunicada do reconhecimento em assembléia extraordinária, onde discursou o Presidente da Federação Regional do Trabalho, Sandoval Wanderley; “estabelecendo um paralelo entre a República Velha, que tiranizava o operário e tudo lhe negava, e o regime revolucionário que cerca os homens do trabalho de todas as garantias e liberdade” (18).
Curiosamente, embora as entidades de trabalhadores tenham acatado rapidamente a necessidade de reconhecimento pelo Ministério do Trabalho, não demonstraram a mesma rapidez em aderir à disciplina que a nova legislação trouxe. A euforia dos trabalhadores frente ao “novo poder” do qual se julgavam parte integrante, dificultava o entendimento da amplitude do controle e da tutela que a nova legislação lhes impunha. Tanto é assim que, apesar da proibição de “estranhos”, a sessão solene dos estivadores contou, tal como antes, com a presença e a oratória de Sandoval Wanderley. Por sua vez, a própria Federação continuou aglutinando as entidades de categorias diversas, como se fora intersindical, contrariamente ao decreto 19.770, que previa a participação apenas dos sindicalizados de idêntica categoria em quaisquer das entidades, sindicatos, federações e confederações que lhes era permitido formar. No entanto, a Federação continuou incorporando novas entidades como nos mostra a seguinte notícia:
“A Federação do Trabalho reuniu-se em assembléia ordinária com a participação de onze sindicatos, tendo como objetivo o reconhecimento do Sindicato dos Trabalhadores de Ceará - Mirim e dos Trabalhadores das Docas de Natal” (19).
No mesmo jornal, um editorial sobre a sindicalização, depois dos elogios de praxe, afirma:
“A Federação dirigida por Sandoval Wanderley é hoje uma força sindical de primeira ordem, já havendo mandado ao Rio o seu representante” (20).
Também surgiu na imprensa um genérico Sindicato Geral dos Trabalhadores e um Sindicato das Mulheres Trabalhadoras (21), não havendo maiores informações sobre sua composição. De todo modo, a própria denominação e a existência de outros sindicatos sem especificação de categorias, favorece a idéia de que se trata de sindicatos “mistos”, em desacordo, portanto, com a legislação em vigor.
Aqui, como de resto em todo o país, houve pressão sobre os trabalhadores para que colocassem suas entidades sob o raio de ação do Ministério do Trabalho. O Ministério do Trabalho enviou correspondência ao Interventor, onde alerta para que sejam admitidos de preferência, na execução de obras ou serviços a cargo de repartições ou funcionários federais, os operários sindicalizados nos termos do decreto nº. 19.770, de 19 de março de 1931, e solicita que em nível estadual se proceda da mesma maneira. Os governos no plano federal e estadual se completam quanto às medidas que apontam para o controle dos trabalhadores. Em resposta à correspondência do Ministro do Trabalho acima citada, o Interventor do Estado informou que se antecipara, tendo enviado para a administração estadual e todas as prefeituras do interior uma circular com o teor seguinte:
“Recomendo que para a rápida aplicação do decreto do governo provisório sobre a sindicalização de classes seja dada preferência, nos diversos serviços a nosso cargo, aos operários sindicalizados”. Recomendo, outrossim, que aos que já se acham no serviço seja marcado o prazo de trinta dias, para apresentarem caderneta de matrícula em sindicato que tenham seus estatutos aprovados pelo Ministério do Trabalho” (22).
Instalada a Inspetoria Regional do Ministério do Trabalho no Estado, a 5ª Inspetoria, para velar pela integral aplicação dos dispositivos em vigor, foi nomeado representante do Ministério do Trabalho em nosso Estado o tenente José Francisco Caldeira. Com a lei de sindicalização passa a ser competência do Ministério enquadrar as diferentes atividades e zelar para que somente os trabalhadores de mesma categoria se organizem.
Os trabalhadores passam a enfrentar a restrição legal a essa participação legítima. Ao mesmo tempo, são obrigados a aceitar a presença de “estranhos”, pois a partir de então, o tenente José Francisco, delegado do Ministério do Trabalho, estará presente às assembléias, principalmente nas solenidades de posse das novas diretorias (23). A inspetoria, com freqüência, faz publicar advertências neste sentido.
“Mais uma vez observo que pessoas estranhas não poderão, sob qualquer pretexto, interferir ou advogar interesses do operariado” (24).
Torna-se freqüente a publicação de notas como esta:
“Nota do M.T.I.C. A Inspetoria Regional do 6º Distrito convida os representantes dos Sindicatos dos Padeiros, Marceneiros e Carpinteiros de Natal a comparecerem à sede provisória desta Inspetoria, à rua Frei Miguelinho, 28, para sanarem irregularidades nos papéis relativos ao pedido de reconhecimento das aludidas agremiações e esclarecerem os motivos da presença de estranhos às reuniões da fundação das mesmas, como determina o Sr. Diretor da 4ª seção do Departamento Nacional do Trabalho, em ofício dirigido a esta repartição” (25).
Para forçar a adesão do operariado ao projeto de sindicalização varguista, decidiu-se que apenas aos sindicalizados caberiam os benefícios da lei. Dessa forma o governo liberal, procurava assegurar a implantação do plano de sindicalização, ao mesmo tempo em que desfechava um rude golpe nos setores do movimento sindical recalcitrantes à legislação, como nos mostra a nota que responde uma denúncia formulada pelo jornal.
“Se entre os prejudicados (...) existir alguém que seja filiado a sindicato legal (reconhecido), que reclame por intermédio da agremiação de sua classe, e, excepcionalmente, diretamente a esta fiscalização, a não ser que queira proceder como determina o artigo 7 do decreto nº.22.300 de 4 de fevereiro do corrente ano, pois as reclamações pela imprensa tomam um caráter de anonimato. E mesmo a legislação em vigor proíbe a interferência, sob qualquer pretexto, de pessoas estranhas às instituições sindicais, nos assuntos que lhe dizem respeito” (26).
O movimento sindical está institucionalizado, e é nesse leito que deve correr a sua prática, sendo a transgressão a essas normas punida imediatamente com a suspensão de diretorias e intervenção – aí sim – de pessoas alheias como demonstra a nota da Inspetoria Regional do 5º Distrito:
“Torno pública para conhecimento dos interessados que, por portaria de ontem o Sr. Inspetor Regional nomeou o tenente José Francisco Caldeira, para dirigir os destinos do sindicato “União dos Operários Estivadores de Natal”, cuja diretoria fora destituída por aquela autoridade” (27).
Ao final de 1933, em todo o Estado do Rio Grande do Norte, apenas três sindicatos estão reconhecidos: o Sindicato dos Auxiliares do Comércio de Natal, a União dos Operários Estivadores de Natal e o Sindicato dos Estivadores de Areia Branca(28). A reação dos sindicatos e associações à constatação de que apenas os trabalhadores filiados a sindicatos já legalizados teriam acesso aos “benefícios da lei” é de perplexidade. Acostumados a utilizar “O Jornal”, tradicional veículo do cafeísmo, para externar denúncias e reivindicações, ao tentar continuar a fazê-lo, têm como resposta as Notas da Delegacia do Ministério do Trabalho, reafirmando que sua atuação limita-se ao âmbito dos sindicatos legais. Passando o impacto, vão aos poucos submetendo-se à legislação em vigor, lutando para satisfazer as exigências da lei, como forma de garantir sua sobrevivência.
As entidades que não conseguem cumprir as normas vão sendo esvaziadas e por fim, desaparecem, como é o caso da Federação Regional do Trabalho, Sindicato Geral dos Trabalhadores e Sindicatos das Mulheres Trabalhadoras, que permanecem apenas enquanto registro histórico de uma época em que cabia aos próprios trabalhadores decidirem quanto a sua forma de organização. Morre o sindicalismo livre e toma corpo um sindicalismo burocrático verticalista e atrelado ao Estado. Os sindicatos passam a existir como uma “prática consentida” dentro de um espaço precisamente definido e numa estratégia clara de conciliação de classe.
De início, o movimento sindical no Rio Grande do Norte contou com a presença, o apoio e a orientação de Café Filho. Em 1928, a fundação do Partido Comunista Brasileiro e sua penetração ainda que gradativa entre os trabalhadores exerce sobre o movimento sindical e operário do Estado uma influência mais ideológica. Avançava um pouco mais do que o cafeísmo que se limitava a tentar negociar, com menor perda, o valor da força de trabalho. No entanto, a diferença entre as duas orientações não apareceu com clareza. De um lado, porque era lenta a penetração do Partido entre os trabalhadores, seus quadros eram inexperientes sobre a questão e concentrados mais em atividades artesanais, como os sapateiros(29). De outro lado, porque a atuação de ambas as correntes tinha seus limites definidos pela violência e intolerância do governador Lamartine, que por diversas vezes mandou invadir sedes de sindicatos e dar surras de virola nos integrantes(30). O próprio Café Filho esteve foragido do Estado no período anterior a 1930, fugindo da grande repressão imposta em 1928 aos sindicatos, por Lamartine.
A vitória da Aliança Liberal em 30 trouxe modificações importantes para o movimento operário e sindical no Estado. Sob a influência do cafeísmo os sindicatos entram num estado de grande efervescência. A idéia predominante é de que, com a ascensão de Café Filho, também eles chegaram ao poder. Esse clima de otimismo, resultante da instrumentalização dos sindicatos por Café Filho e da subordinação dos interesses dos trabalhadores ao seu projeto político individual faz com que esses setores adiram acriticamente ao governo liberal, saudando os interventores e apoiando a política sindical do Governo Federal. Café Filho assume o papel de agente da política sindical varguista e todo o seu empenho é para que a legislação seja cumprida.
De parte dos trabalhadores sob influência do PCB, a situação não é muito diferente. Embora não tivessem participado do movimento de 30, a presença de Café Filho no cenário político era motivo de satisfação. Afinal ele foi um aliado especial e, em algumas ocasiões, chegou a prometer que “se algum dia fosse alguma coisa no Estado, não perseguiria comunistas”(31). Portanto, logo no início dos anos 30 o quadro era de reacomodação. De início, a posição do Partido era de resistir ao enquadramento pelo Ministério do Trabalho. Ou seu peso no movimento foi insuficiente para manter a posição, ou porque o tivesse revisto, não há registro de disputas nas entidades por esse motivo. Tanto assim, que um dos sindicatos onde o Partido tinha maior penetração, o dos estivadores, foi dos primeiros a regularizar-se perante o Ministério, solicitando e obtendo a carta sindical.
As divergências começariam a aparecer um pouco mais tarde, com a nomeação de Café Filho para o cargo de Chefe de Segurança Pública, na Interventoria Bertino Dutra. Investido nas novas funções, sua prática chocou-se com seu discurso anterior de respeito à atuação dos comunistas. Por sua militância junto aos trabalhadores, Café Filho ficara conhecido como “comunista”. Na Chefia da Polícia ele procurou se legitimar perante os ocupantes do poder e esvaziar as críticas que os conservadores ligados ao governo deposto lhe faziam. Tendo o movimento sindical sob sua influência, continuou manipulando, atrelando a prática aos seus objetivos políticos. A adesão irrestrita dos setores sindicais ao projeto Liberal facilitou a tarefa.
Os setores ligados ao PCB, embora minoritários, passaram a atuar com independência e começaram a se chocar com Café. De início, os incidentes foram contornados, mas, aos poucos, foi se firmando o distanciamento entre eles. O passo seguinte foi à perseguição pura e simples aos comunistas e repressão policial às atividades por eles lideradas. Na repressão aos trabalhadores comunistas, Café Filho lançou mão da abrangência de seu cargo, repetindo a violência vigente durante o Governo Lamartine, da qual ele fora uma das vítimas. As notas expedidas pelo Departamento de Segurança Pública durante sua gestão são um testemunho de violência empregada contra os comunistas:
“Departamento de Segurança Pública – Nota Oficial: (...) previne também ao operariado a fim de não se deixar envolver em movimento de agitação que porventura esteja sendo urdido por meia dúzia de indivíduos, que se dizem comunistas. A polícia tem esses indivíduos sob sua vista, estando pronta a segurá-los ao primeiro sinal de ameaça” (32).
A tentativa dos trabalhadores comunistas de fazerem funcionar a União Geral dos Trabalhadores, uma espécie de Intersindical por eles fundada é violentamente rechaçada, e os argumentos oficiais não são de que a entidade estaria em dissonância com a Legislação em vigor, mas por ela estar “promovendo propaganda subversiva à ordem pública”. A nota prossegue informando que o Departamento de Segurança Pública.
“(...) resolveu não permitir o funcionamento desta suposta sociedade, recomendando às autoridades policiais que dissolvam qualquer ajuntamento que se realizar não só na sede desse núcleo de agitadores, como em casas particulares, usando de medidas violentas, caso se verifique resistência, prendendo os cabeças que serão processados na forma da lei.”
E conclui ameaçando:
“Apesar da deslocação de forças para o sul, a polícia encontra-se suficientemente aparelhada para manter a ordem em todo o Estado, e agirá com o máximo de energia, se as pessoas adversárias do governo entenderem de abusar da tolerância que o mesmo vem mantendo até agora” (33).
Como se vê, não eram exatamente cordiais as relações entre a Aliança Liberal no poder e os trabalhadores que se recusassem a permanecer a reboque de seu projeto político. Além das ameaças, procuraram ocupar todos os espaços existentes, de modo a obstar a ação dos comunistas. Tanto é assim que no final de 1932, foi criada a Federação Regional do Trabalho, como forma de esvaziar a atuação da UGT, de orientação comunista. É curioso perceber que neste combate eles usam instrumentos que passam totalmente ao largo do que dispõe a legislação em vigor, que não permitia a participação de categorias diversas numa mesma federação. A intenção é se contrapor à outra entidade, assumindo o papel de “sociedade controladora de todas as suas congêneres em nossa terra” (34).
A perseguição extrapola os limites do movimento sindical e invade a própria atividade de lazer dos militantes comunistas. Um time de futebol, o “Bangu Futebol Clube”, é acusado em nota de Departamento de Segurança Pública, de ter “o propósito de, por esse meio, atrair a mocidade e dela servir-se na campanha de subversão da ordem pública”. Além de proibir a atuação do time e confiscar todo o material desportivo, proíbem também a venda de bilhetes de uma rifa, com a qual os comunistas procuravam levantar fundos para a publicação do jornal “O Proletário”. Os bilhetes são apreendidos e é divulgada uma lista com os nomes de todos que já haviam adquirido bilhetes com a ameaça de que seriam presos se tentassem passá-los adiante(35).
Mas, o pior ainda estaria por vir. No final desse mesmo ano, a polícia reprimiu violentamente uma passeata operária organizada pelos comunistas, prendeu seus líderes e os deportou para o sul do país. Nesse momento, o Partido rompeu oficialmente com Café Filho a quem passou a combater com veemência. A partir daí as diferenças entre as linhas sindicais ganham contornos mais nítidos, e o partido se lança resolutamente na luta para conquistar maiores espaços no movimento sindical, para poder fazer frente ao cafeísmo. Esta pode ser uma pista para entender a prioridade de Mossoró, no movimento sindical norte-rio-grandense. Lá a concentração de numeroso contingente operário exercia forte atração sobre as propostas políticas e sindicais em disputa.
Durante 1932 e anos seguintes, além da criação de numerosos sindicatos, ocorreram muitas greves. O clima era de mobilização, principalmente na região oeste, onde os operários de salina desafiavam seguidamente a intolerância dos patrões e se chocavam com a ambigüidade do governo liberal.
A prática da Aliança Liberal no poder evidencia que não se trata de uma ruptura com a política anterior a 30 e sim de uma espécie de rearranjo que, se por um lado abre a possibilidade de acesso a novas forças políticas, como é o caso do cafeísmo local, por outro, não exclui nenhuma das frações da classe dominante. Além de passar ao largo dos interesses da classe trabalhadora, vai manipulando-a em busca do respaldo político necessário para o exercício do poder.
A classe trabalhadora não participa do poder recém-instalado. De início parece confusa diante do fato de aliados seus, como Café, estarem próximos ao poder. A própria atuação dos dirigentes vai mostrando a verdadeira proposta da Aliança. Diante do quadro posto, os comunistas rompem com o governo e os outros mantêm-se ligados e aderem ao sindicalismo burocrático, que lhe é reservado pelo poder central.
A ambigüidade do discurso da Aliança somada à imprecisão do discurso tenentista reflete-se sobre os movimentos sindicais, mantendo-os na posição passiva de espectador e de objeto.
^
Subir
|