Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
O Sindicato do Garrancho
Brasilia Carlos Ferreira, Segunda Edição, Coleção Mossoroense, 2000
1 – Introdução
Este livro narra a luta dos operários de salinas de Mossoró, para se organizarem em sindicato, o “Sindicato do Garrancho”, tal como é conhecido até hoje. A história se desenrola entre os anos 1931, quando foi criada a “Associação dos Operários do Sal” e 1946, quando enfim receberam a carta sindical.
Mas a saga dos operários do sal não se limita a este espaço de tempo. A fundação do “Sindicato do Garrancho” não se explica sem a referência obrigatória à criação da Liga Operária em 1921, na cidade de Mossoró, pelo professor Raimundo Reginaldo da Rocha.
E a Liga Operária não pode ser compreendida, sem que se considere o surgimento da primeira célula do Partido Comunista, em 1928. O PC é o elemento fundamental para a compreensão da luta desenvolvida pelos trabalhadores e dos inesperados rumos que ela tomou.
Isto porque, junto com a luta pelo reconhecimento do sindicato, os trabalhadores abraçaram outras lutas – ou terão sido aspectos de uma mesma e grande luta? – foram perseguidos, pegaram em armar e embrenharam-se na clandestinidade forçada, que está reservada aos que estão do outro lado da lei e da ordem.
E por quê? O que fez com que a luta pela organização sindical, levada amplamente no país pela classe trabalhadora, aqui se revestisse de uma inusitada violência, capaz de jogar dezenas de operários nas matas, percorrendo veredas noturnas, enfrentando os homens e as armas das forças mantenedoras da ordem, num desafio constante? O que fez com que esses homens de calo no ombro, rosto crestado de sol, trocassem o balaio e a enxada a que estavam habituados por armas e munições? Manoel Torquato, Sebastião Cadeira, Gonçalo Izidoro, Feliciano, Marcelino, Sandoval, José Francisco e tantos outros... Por quê?
Desvendar este enigma é o nosso objetivo. Reconstruindo a luta dos operários do sal, queremos, a partir da análise dos fatos, estabelecer os nexos entre o “o Sindicato do Garrancho” e a “guerrilha”. Na tentativa de buscar o fio condutor desse período histórico e na medida em que acompanhemos a trajetória do movimento, seremos levados a percorrer outros caminhos, a penetrar outras trilhas que possam nos aproximar de uma compreensão satisfatória para as questões que ele suscita.
Até que ponto a prática do “Sindicato do Garrancho” seria um caso singular no contexto do movimento sindical do pós 30? A extrapolação de marcos tradicionais apontaria para as terríveis condições de vida e trabalho a que estavam submetidos? Ou para o atrelamento do sindicato ao Partido Comunista Brasileiro? Será suficiente explicar a “guerrilha” pelas orientações do MCI ou do PCB? Como justificar o “deslocamento” evidente em vários momentos, entre as orientações do PCB e a prática do núcleo comunista local? Pelas especificidades na constituição social do próprio PCB em Mossoró? Ou essa radicalidade é produto dos enfrentamentos de classe, potenciados pela ausência de uma classe numerosa, capaz de amortecer os conflitos? E por último, de que projeto o “Sindicato do Garrancho” é portador? De um projeto que aponta para a emancipação da classe trabalhadora? Ou que se limita a colocá-la a reboque de projetos idealizados para e em seu nome, estando aí a explicação para os rumos inesperados que o movimento tomou e as conseqüências que lhe seguiram?
Estamos longe de pretender responder satisfatoriamente a todas essas questões. De todo modo, parece importante ressaltá-las, na medida em que elas foram emergindo durante a reconstrução histórica e refletem a teia complexa de elementos que a constituem. Quando menos, estaremos caminhando em direção a uma maior clareza, que nos leve a pensar criticamente os projetos políticos e – principalmente – a prática decorrente dessas propostas, no interior dos movimentos.
Embora a luta dos trabalhadores das salinas por sua organização sindical se desenrole entre 1931 e 1946, concentraremos nossa atenção no período que vai de 1931 a 1936. Este corte histórico demarca conjunturas distintas. É o período de ascenso do movimento, no qual os trabalhadores se insurgem no cenário mossoroense com uma presença pujante e vigorosa. A partir de 1935, com a repressão que se seguiu ao Levante de Novembro, teria início um longo período de descenso. De início, o movimento recua, ficando restrito ao grupo clandestino, que tentaria resistir, mas seria aos poucos encurralado, sendo a “guerrilha” finalmente derrotada em 1936.
A ausência de qualquer registro sobre o assunto nos encaminhou para a reconstrução histórica, o que foi feito a partir de duas perspectivas. De um lado, pesquisando exaustivamente a imprensa da época, os jornais publicados em Mossoró e em Natal, capital do Estado, pudemos montar um quadro histórico do período. De outro lado, através de depoimentos de trabalhadores que participaram do movimento. Apesar da razoável distância de mais de meio século, encontramos alguns poucos, capazes de ajudar nessa tarefa. Assim, a partir de longas e repetidas conversas fomos montando pouco a pouco, a sua história, o seu tempo.
Apesar de extremamente dificultados pelas distâncias e pelas seqüelas naturais da vida, esses recursos revelaram-se extremamente produtivos, de modo que a carga de informações a que tivemos acesso nos permitiu recuperar pelo menos os momentos mais significativos desse movimento.
Muito embora este livro seja uma resposta às exigências de conclusão do curso de Mestrado realizado na PUC-SP, gostaríamos de explicar nosso interesse pelo “objeto de estudo”. A escolha do tema, bem como a realização do trabalho, deveu-se menos a questões acadêmicas e mais à oportunidade de trazer à luz um pouco da nossa história, resgatar seus personagens e acontecimentos, a partir da ótica de seus agentes: a classe trabalhadora.
Portanto, esse texto se circunscreve no veio de tantos outros que pretendem dar vez aos agentes de uma sociedade profundamente excludente e refratária à idéia de admitir a sua existência, na tentativa de – ignorando suas vozes, suas ações, seus anseios – eliminá-los da história, enquanto forças vivas e poderosas alavancas de transformação.
Este resgate histórico nos põe em contato com uma prática sindical que embora nos apareça – a partir do distanciamento temporal e crítico – como reflexo de uma perspectiva política equivocada, inclui a ação e a existência de atores de profunda grandeza humana e política, bem como de um idealismo beirando o patético. Ao nos depararmos com tais atores e a carga de idealismo e ingenuidade que perpassam o conteúdo “revolucionário” de suas ações, somos levados a lembrar a reflexão de Lênin sobre o sonho e a necessidade de concretizá-lo. E que coisa inspirou mais o homem para o sonho, o que o impediu à luta, mais que o ideal de liberdade?
O tratamento dispensado ao tema reflete essa disposição interior e anterior. Parece-nos perfeitamente conciliável o trabalho de reconstrução histórica desse episódio da luta dos trabalhadores por sua organização e a reconstituição das vidas que possibilitaram tais acontecimentos. Vidas humanas, ricas em sentimento, plenas de atitudes, emoções, virtudes, perplexidades, contradições.
O sindicalismo aqui registrado terá, portanto, gestos, odores, cores. Terá olhos, narizes e bocas. Terá nomes. Tentará apreender a deliberação política, compreender sua motivação e, ao mesmo tempo, captar a emoção que se esconde atrás dessas decisões. Procurará falar da paixão que torna os homens capazes de dedicarem suas vidas a um interesse coletivo. Mostrará um episódio na luta da classe trabalhadora mossoroense pela sua emancipação, não deixando escapar o componente de beleza revolucionária, mas também a poesia que está subjacente ao ato humano de busca da liberdade.
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