Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Velhos Militantes
Velhos
Militantes
Depoimentos
Depoimento de João Lopes,
o Santa
Ângela de
Castro Gomes (coordenadora), Dora Rocha Flaksman,
Eduardo Stotz
Jorge Zahar Editor
Nosso
Projeto |
Mapa Natal 1935 | Mapa
RN 1935 | ABC
Insurreição | ABC
dos Indiciados | Personagens
1935 | Jornal
A Liberdade | Livros
| Textos
e Reflexões | Bibliografia
| Linha
do Tempo 1935 | Imagens
1935 | Audios
1935 | Vídeos
1935 | ABC
Pesquisadores | Equipe
de Produção
A
revolução popular acaba no Brasil
Novo
- Como foi sua viagem para o Nordeste?
- Eu e o Jabatão fomos de navio, clandestinos,
no camarote do imediato, que também era
do Partido. No meio da viagem, já aconteceu
que o Jabatão pegou de namoro com a mulher
de um sargento, que estava viajando com a filhinha.
A mulher não saía do camarote, e
falei para o Jabatão: "Rapaz, você
está procurando desgraça!"
O Miguel tinha ficado de esperar a gente lá
em Natal, mas o navio atrasou e disseram a ele:
"Só encosta amanhã às
seis horas." Ele foi embora. Acontece que
arranjaram para o navio atracar antes, e o resultado
foi que a gente chegou e o Miguel não estava
lá. O Jabatão quis saltar assim
mesmo, e eu fiquei com medo do tal sargento estar
esperando a mulher e dar algum bode. Afinal, saltamos
e fomos dormir num hotel lá que tinha umas
redes, eu preocupado porque estava dando tudo
errado. De manhã cedo, saímos e
fomos para a casa do Jabatão. Por azar,
a mulher dele estava saindo para comprar pão.
Ela não tinha notícia dele há
um ano e, quando viu a gente, deu um grito e desmaiou.
Juntou gente à beça, e no meio apareceu
um senhor que era músico da polícia
e disse assim: "Já sei do que se trata.
Esses rapazes não podem ser vistos."
Pegou nós dois e levou para a casa da filha
dele. Eu pensei: "E agora?" Nós
ali sem o Miguel, sem nada. Virei para o Jabatão
e disse: "Está aqui o seu dinheiro,
você vai para o seu lugar" - era Barra
do Açu "que eu vou tratar da minha
vida."
- E o que aconteceu com o senhor?
- Esse senhor músico me levou para a casa
de um tal de Agostinho, um sapateiro. Fiquei lá
quatro dias escondido num quarto sem nenhuma ligação.
O pior é que nessa casa só se comia
uma vez por dia: de manhã era uma manga
ou uma fruta junto com o café. ao meio-dia
era almoço e janta ao mesmo tempo, e às
seis da tarde era uma bolacha. E esse Agostinho
tinha um medo de mim danado. No fim de quatro
dias, o Miguel apareceu, e eu disse: "Não
vim aqui para ficar dentro de um quarto, não.
Vim aqui para trabalhar." O que eu queria
mesmo era sair dali para poder comer.
Nisso
morreu um dos homens feridos naquele choque com
a polícia, e eu disse: "Vamos fazer
o enterro." Eu tinha dinheiro e paguei. Foi
um enterro enorme, o comércio parou, todo
mundo ficou admirado. Fui assistir disfarçado
de retratista. Depois disso, pedi uma reunião.
A direção do Partido lá era
tudo sapateiro. Segunda-feira, eles não
trabalhavam e ficavam bebendo cachaça.
Disseram que era difícil fazer uma reunião,
mas insisti. Nos encontramos na praia, debaixo
de um pé de coco, e eu disse: "Companheiros,
trago ordens, não quero ser mandão
de ninguém. Primeiro: cooperativismo não
pode. Tem que acabar com isso, para poder tratar
da luta, Segundo: vou reorganizar a direção
aqui. Não pode ter valor a direção
de um partido com o sujeito embriagado. Muita
gente se afasta porque não quer se meter
com cachaceiro."
Nessa
primeira reunião saí vitorioso.
Todos eles me aceitaram e me obedeceram. Recebi
logo uma carta de elogio, dizendo que eu estava
trabalhando direito. Mas, dali a uns dois meses,
aconteceu uma encrenca. Veio uma ordem dizendo
para nós todos, comunistas, entrarmos para
a Aliança Nacional Libertadora. Eu queimei
com aquilo, discordei, e mandaram me chamar ao
Rio de Janeiro.
-
O senhor veio ao Rio?
- Vim, expliquei que já tinha acabado com
aquele negócio de cooperativa, já
tinha organizado uma direção, e
contei que o secretariado do Nordeste estava envolvido
num golpe que estavam preparando lá em
Natal. Levei 24 horas discutindo, e eles me disseram:
"Volta agora mesmo e desmancha esse golpe
com o secretariado."
- Que golpe era esse?
- Era o golpe que acabou estourando lá.
O golpe não foi comunista, não.
Tomamos parte no movimento armado, mas se não
tomássemos ia estourar de qualquer maneira.
Uma vez até me chamaram para uma reunião
com os dirigentes da política de lá.
Apareceu o Aluísio Moura, que queria derrubar
o governador. Mas ele também não
queria que ficasse no lugar o Café Filho.
Era um grupo de capitalistas, mas eles estavam
divididos.24
Quando cheguei de volta a Natal, fui logo dizendo:
"Café Filho está preparando
uma greve geral, e nós não temos
nada com isso." Mas aí o pessoal disse:
"Não, temos sim, companheiro. Temos
que tomar a greve." Aí concordei,
trabalhamos um mês Com o pessoal da Light
e fizemos a greve.
- Para esclarecer: o senhor volta a Natal,
está havendo uma agitação
encabeçada por pessoas de fora do Partido,
está sendo preparada uma greve, e o Partido
resolve participar da agitação para
poder atuar dentro dela.
- Foi isso. Quando cheguei, ia ter um comício
em praça pública, e eu disse para
a minha secretária -
era a Amélia, filha do Bangu:25
"Olha, vamos hoje para a praça pública
dizer que a Aliança Nacional Libertadora
é contra esse golpe." Quando a menina
começou a falar, eu só via nego
ficar com a cara virada. Ficamos como inimigos
daquele pessoal. Aí mandaram me chamar
de novo aqui no Rio, porque eu não obedecia
ao secretariado.
- Mais uma coisa: o senhor continuava
a ser contra o golpe, mas já tinha aderido
à Aliança Nacional Libertadora.
-É. Eu recebia A Classe Operária,26
recebia cartas clandestinas, e o pessoal dizia
que naquele momento todos os camaradas deviam
se filiar à Aliança Nacional Libertadora.
A Aliança foi o maior organismo de massa
que teve aqui. No Norte, então, todo mundo
aderiu. Vendo essa força, que modificou
toda a situação do país,
os golpistas se aproveitaram.
- O senhor então veio pela segunda
vez ao Rio de Janeiro. Com quem o senhor se encontrou?
-
Com o mesmo grupo que me trouxe de Niterói
e me mandou para o Nordeste. Eu só me ligava
a eles. Eles me mandaram voltar. e disseram para
eu procurar lá em Natal o Valadares, que
era do CC, e mandar ele vir embora para o Rio
imediatamente. Cheguei, mandei chamar o Valadares,
e ele me disse: "Já está tudo
pronto para o movimento. Contamos com Manaus,
com o Ceará, com a Paraíba. A senha
é essa: Maria teve um bom parto."
Eu disse: "Mas rapaz, você tinha ordem
de fazer isso? Estou vindo do Rio, e lá
eles são contra isso! Isso é um
golpe, não podemos fazer uma coisa dessas!"
- Quer dizer que as pessoas com quem o
senhor teve contato no Rio eram contra a insurreição?
- A palavra de ordem era essa: a Aliança
Nacional Libertadora é contra o golpe,
que é um golpe dos capitalistas, um golpe
fascista. Mas depois que eu falei com o Valadares,
o Praxedes, sapateiro,27
que era secretário lá, veio me dizer:
"Olha, o 21.° Batalhão vai fazer
o movimento agora. Temos que tomar parte."
Eu disse: "Não tenho nada com isso.
Não sou do CC, não sou do secretariado.
O Valadares é que é do CC, você
fala com ele e faz o que ele mandar."
Fui para casa e avisei à mulher: "Vai
haver o diabo. Tudo fracassado. Vim do Sul, e
não tem nada organizado. Ainda está
se estudando como é que se vai fazer. Pega
esses livros e vai para a casa do seu pai, porque
eu vou morrer. Se você quiser contar que
eu morri, diga só" - porque ela não
sabia nem o meu nome, só me conhecia como
"Maranhão" - "diga só
que morreu o João Lopes, dos metalúrgicos."
Ela ficou chorando, foi esconder os livros e voltou.
Dali a pouco bateram na porta: era um camarada
mandado pelo Valadares, dizendo para eu estar
às sete horas da noite num tal lugar. Virei
para a mulher e disse: "Vai embora para a
casa do seu pai." Ela falou: "Eu não,
eu vou com você."
- A mulher do seu João, desde aquela
época até hoje, é a dona
Letícia, com quem vamos conversar um pouco
também. Como é que foi essa história
da insurreição em Natal, dona Letícia?
A senhora não quis deixar o seu João
ir sozinho?
Dona Letícia - Não. Eu lembro que
estava fazendo uma galinha gorda, bacana, só
você vendo, quando o João chegou
e disse assim: "Apaga o fogo, acaba com isso
aí, apanha essa mala de livros e vai esconder,
porque a revolução vai começar
hoje." Nisso chega um cara dizendo para ele
a hora em que ia começar. Ele me disse:
"Vai embora para a casa do seu pai."
Eu respondi: "Para a casa do meu pai?! Pois
se vim de lá quando a coisa não
estava tão preta, agora é que eu
vou voltar? Não volto, não. Aonde
você for, eu vou." Ele disse: "Não
vai comigo porque eu vou morrer. Isso vai fracassar,
tenho certeza." Aí ele me contou que
não queria que a revolução
fosse naquele dia, mas um praxedes desses, um
chefe lá, disse que tinha que ser, porque
o 21 já estava pronto para mandar brasa.
- A senhora podia voltar um pouco para
trás e nos contar como conheceu o seu João?
Dona Letícia - Eu morava com a minha irmã
e dois irmãos numa casinha alugada lá
em Natal. Uma noite, o João e um outro
passaram por lá. A minha irmã era
muito levada, mexeu com eles, conversaram um pouco
e eles foram embora. O João não
falou muito não, porque tinha ido para
Natal escondido, não é? Depois nunca
mais vi ele. Foi como uma pessoa qualquer que
passou. Um dia, fui ao circo, ele estava lá
e chegou perto de mim. Conversamos, e dali para
a frente ele ficou indo lá em casa. Até
que um dia teve uma briga dos soldados de polícia
com a guarda civil. Ele estava lá em casa,
o pau comendo lá embaixo na avenida, e
então eu disse: "Não vai embora,
não, fica aí." Meus irmãos
eram o cão. Queriam saber quem era ele,
onde é que eu tinha arranjado aquele negro.
Porque lá no Norte negócio de preto
é fogo, minha filha.
- Fogo como?
Dona Letícia - Eles não gostam de
preto. É a ignorância, não
é? Porque nós brasileiros somos
raça negra mesmo, somos raceados de tudo
quanto é qualidade. Meus irmãos
ficaram naquela história, c eu disse: "Olha,
eu não sei quem ele é nem quero
saber. Só sei que ele vai ficar aqui porque
não vou deixar o rapaz sair sem saber o
que vai encontrar pelo caminho." Ele ficou
em casa essa noite, e daí ficou essa amizade
danada que está grudada na gente até
hoje.
- Desde então vocês ficaram
juntos?
Dona Letícia - É. Ele ficou indo
lá em casa, os meus irmãos amaciaram
mais, e afinal fomos visitar o meu pai, que morava
lá em Barra de Massaranguape. Depois nós
dois nos mudamos para a praia, para Ponta Negra,
porque os meus irmãos não tinham
cabeça e meu pai muito menos, e naquela
época não era para ninguém
saber onde o João estava. Primeiro fomos
morar juntos, depois é que a gente se casou.
Viemos casar no civil aqui no Rio. Na igreja casamos
lá, porque lá quem não casa
na igreja não é casado.
- Seu João disse que a senhora
não sabia nem o nome dele. A senhora tinha
idéia do que ele fazia, em que ele estava
metido?
Dona Letícia - Mais ou menos, por alto.
Sabe por que é que eu ,fiquei com ele e
ele comigo? Porque um dia ele me chamou para passear
na praia, passamos perto da cadeia, e no muro
estava escrito: Partido Comunismo do Brasil.
Seu João - Partido Comunista do Brasil.
Dona Letícia - É, estava escrito
lá. Então eu disse: "Já
vi um homem apanhar muito por causa desse nome."
Ele: "Que nome?" Eu falei: "Comunismo."
E eu disse que não sabia o que era nem
o que deixava de ser. Aí ele conversou
comigo alguma coisa sobre o Partido, não
coisas fundamentais, mas coisas que qualquer pessoa
podia saber. E juntos ficamos, até que
veio a revolução.
- Quando começou a revolução,
seu João pediu que a senhora fosse esconder
uns livros. Ele lia esses livros?
Dona Letícia - E ele tinha tempo de ler?
Ele já tinha lido um ou outro. Já
eu, pouco sei ler. Assino o meu nome para não
pedir arrego aos outros. Porque eu tive três
meses de aula na minha vida. Me lembro até
hoje qual foi o livro que eu li: Raciocínio
rápido. Fiquei duas semanas numa lição,
porque não sabia dizer "transatlântico".
Não saía da minha língua,
nem a gancho. O que é que eu podia ler?
Nada. E ele não tinha paciência de
me ensinar. Me chamava logo de burra, e pronto.
Eu achava que ele não devia me chamar de
burra porque quem sabe alguma coisa não
deve xingar o que não sabe, não
é, coitado? Era o meu caso. Mas deixa para
lá. Tudo já passou, e hoje agente
está aqui. Já vi muita coisa que
nunca pensei de ver.
Bom, mas aí peguei os livros e escondi
na casa da minha madrinha, debaixo de uma cama.
Depois a polícia foi lá, revirou
tudo, mas não viu a mala. Se tivesse visto,
pobrezinha, ela ia ter que dar conta daquilo,
e nem sabia o que tinha ali. Eu só ficava
pensando: "Aquela pobre vai morrer no cacete,
porque não vai dizer nada!" Ia dizer
que fui eu que deixei, mas quem sou eu? Onde é
que eu estou?
- Depois de esconder os livros, a senhora
saiu de casa com seu João.
Dona Letícia - Foi. Quando chegamos na
rua, ouvi o primeiro tiro e vi um bonde pegando
fogo. O João falou: "Pronto! Agora
não adianta mais nada. Se já deram
o primeiro, é o mesmo que ter dado mil."
E mandou de novo eu ir embora para a casa do meu
pai. "Não vou, rapaz." Fui com
ele para a casa de um sujeito que eu nem me lembro
o nome, e ficamos a noite inteira lá. Eles
disseram que tomavam a cadeia em duas horas, mas
levou a noite inteira. Toda hora chegava um e
dizia: "A cadeia está resistindo!"
Virgem Maria! Aquilo era amador que estava lutando,
e eu pensava: "Vão acabar as balas
todas na cadeia, e depois como é que vão
resolver a resta?" Aí eu já
estava sabendo de mais alguma coisa, já
estava entrando mais alguma coisa na minha cachola.
- A senhora sabia que revolução
era aquela?
Dona Letícia - Sabia por quê, para
quê, e, se fracassasse, o que é que
ia acontecer. Sempre fui muito assim. Apanhava
as coisas no ar. Sempre tive muita inteligência
das coisas que iam acontecer, ainda mais estando
dentro delas.
Quando a cadeia caiu, o dia vinha amanhecendo.
Mas ainda tinha o quartel da polícia, e
o João foi para lá. Ainda bem que
a polícia não resistiu muito, não.
Lá estavam os meus irmãos, e eu
fiquei com um medo danado que eles morressem.
Os coitados não sabiam de nada. Mas felizmente
o quartel da polícia caiu logo.
Seu João - Quando chegou nove horas da
manhã, vencemos. Eu disse então
para a minha gente: "Vamos fazer a direção."
- Como é que se formou o governo
revolucionário?
Seu João - Não tinha nada resolvido.
Falaram com o Aluísio de Moura, mas ele
não aceitou. O Café Filho também
não quis, fugiu. Chamei outro militar lá,
e ele não quis aceitar. Ninguém
queria aceitar aquele abacaxi, porque o povo estava
doido, cantando no meio da rua, não queria
trabalhar, não queria nada. Então
se formou a direção, com o Lauro,
o Macedo, e outro que eu não me lembro.28
A mim me botaram como segurança.
- O que esse governo fez?
Seu João - Lançamos um programa
bonde barato, pão barato. Demos pão
ao povo. Fizemos dez mil manifestos,29
e o Valadares falava pelos alto-falantes, chamando
o povo para se unir. Que nós queríamos
pão, terra e liberdade.
- Como é que ficou funcionando
a cidade nesse período?
Seu João - O povo não queria trabalhar,
só queria cantar: "Viva Prestes! Viva
Prestes!" Luís Carlos Prestes era
o menino dos olhos lá. O povo queria armas.
Gritavam: "Mata! Fuzila!" Queriam ir
buscar o pessoal do governo na embaixada para
acabar com a vida deles. Eu dizia: "Não!
Não podemos entrar na embaixada! O Brasil
tem uma responsabilidade!" Me perguntavam:
"Você quer trair, companheiro? Para
a frente, companheiro!" Cheguei a cair de
tonto no meio da rua, já não agüentava
mais.
- Houve um descontrole grande, tanto da
parte da população como do governo
revolucionário.
Seu João - Não tinha gente preparada
para aquilo. Um queria dar uma ordem, outro queria
dar outra, perdeu-se o controle. Cheguei até
a querer dar um tiro na cara do Praxedes. Disse
a ele: "ô miserável, eu não
disse que não estávamos preparados?
Agora o que é que você vai fazer?"
- Dona Letícia, a senhora se lembra desse
período do governo revolucionário?
Dona Letícia - Lembro. A junta governativa
ficou uns três dias. Eles pagaram ao povo
tudo o que estava atrasado, deram comida para
o povo, e ninguém queria mais sair de lá.
Prenderam um rapaz integralista, ruim feito uma
desgraça. Ficava lá dizendo que
era integralista até a morte. Mataram ele.
Seu João - Ele dizia: "Eu sou integralista!
Sou integralista!" Eu falava: "Rapaz,
cala a tua boca!" Aí chegou alguém
e falou: "Você está zombando
de nós?" Varou ele de um lado ao outro
com a baioneta.
- Foi um período agitado, não
é, dona Letícia?
Dona Letícia - Cruzes! Cala a boca! Era
preciso ter peito. Quando vocês ouvirem
falar em revolução, não batam
palma, não fiquem alegres não, porque
o negócio não é mole. Naquele
tempo não foi, quanto mais hoje, que tem
muito mais gente ruim por aí.
- Como acabou a revolução
em Natal?
Dona Letícia - Acabou quando eles receberam
a notícia de que Pernambuco tinha caído
e que os aviões já estavam vindo
para liquidar com agente.30
Seu João - No dia em que nós caímos
foi que começou no Rio: 27 de novembro
de 1935. Chegou um emissário contando que
o Giocondo Dias tinha fugido de madrugada, e que
o 21 tinha arribado desde meia-noite. Fui procurar
o Valadares, que era o nosso chefe de polícia
e era quem dava passaporte para quem quisesse
ir embora, e ele tinha sumido. Aí eu disse:
"Fracassamos." Às cinco da manhã,
fui-me embora.
Dona Letícia - Nós fugimos. O João
me disse: "Olha, eu vou fugir. Você
vai embora para casa do seu pai." O negócio
dele era me mandar para a casa do meu pai. Eu
disse: "Não, vou com você, que
eu sei andar por aí dentro dos sertões."
Mentira, que eu não sabia nada, só
de ouvir falar. Mas fui com ele e mais uns outros,
e nos salvamos.
Seu João - Fomos embora em dois automóveis
do governo. Num o chofer era Lauro, e iam dois
primos seus. No outro, o chofer era Zé
Pretinho, e fomos eu, ela e mais um garoto de
Pernambuco. O pior de tudo é que a gente
passava pelo povo, pelos rapazes que estavam dando
guarda nas estradas, e eles gritavam: "Viva
Prestes! Viva Prestes!" Ah, que tristeza!
Que vontade de dizer: "Não fica mais
aí." Eles iam prender os pobrezinhos,
e a gente não podia nem avisar. Até
hoje dá vontade de chorar.
- Por que vocês não podiam
avisar a essas pessoas que o movimento havia fracassado?
Seu
João - Porque se a gente avisasse aos que
estavam na frente ía ser uma balbúrdia
danada, entendeu?
- O senhor teve notícia de como
foi a repressão em Natal?
Seu João - Ah, foi muita calamidade. Muita
gente foi presa. Eu e ela levamos 15 dias no mato.
Largamos o automóvel, seguimos a pé,
e eu mandava ela pedir comida: "Dona, quer
me dar um pratinho de comida aí?"
Eu pensava: "Se ela vier com a polícia,
meto bala nela." Dali a pouco ela vinha com
farofa, coisa para a gente comer.
Dona Letícia - Fizemos uma volta e viemos
sair em Caraúbas. Tínhamos que passar
por um rio, e a passagem era um pau de coqueiro
atravessado. Aquilo criou lodo, não é?
Quando eu pisei, caí dentro d'água
e afundei. Mas ele me segurou e me salvou.
Aí fomos chegando perto da casa do meu
pai, em Barra de Massaranguape. Mas o meu pai,
com licença da palavra, era cagão.
Então o meu irmão, que estava lá,
nos levou para a casa de umas pessoas no meio
do mato, para a gente ficar escondida até
arranjar uma condução para ir por
mar até Pernambuco. Três dias depois,
de madrugada, o meu tio e mais um outro moço
vieram nos trazer um bote, e nós fomos
embora. Mas não chegamos até Pernambuco
não. Saltamos em Ponta da Pedra, porque
achávamos que era mais distante e não
devia estar muito vigiado. Que nada! Saltamos,
fomos a uma casa que tinha lá, dissemos
que estávamos indo para Pernambuco fazer
uma operação, e pedimos para almoçar.
Quando
estávamos almoçando, saiu um garoto
montado num cavalo. Aquilo me bateu em cima: "Ele
vai chamar a polícia." Comemos depressa
e saímos pela praia afora. Quando chegamos
lá adiante, encontramos uns sujeitos à
paisana. Eu pensei: "Estamos fritos."
Era a polícia mesmo. Nos prenderam e nos
levaram para o posto de Ponta da Pedra. Aí
veio a polícia de Pernambuco nos buscar,
tudo armado de metralhadora, o diabo a quatro.
O sujeito encostava a metralhadora em mim e dizia:
"Vou te matar, filha da mãe!"
Eu falava: "Pode matar, estou nas suas mãos."
O que é que eu ia dizer? Me xingavam feito
umas pestes. Levaram a gente para o Brasil Novo.
- O que era o Brasil Novo?
Dona Letícia - Uma cadeia lá de
Pernambuco. Uma desgraça! Quem nunca passou
pelo Brasil Novo não sabe o que é
prisão. Esse daí vomitava sangue,
de tanto que apanhou. Quando iam bater nele iam
me buscar para ele apanhar na minha frente. E
ele quase morto fazia assim com a boca para eu
não dizer nada. Bateram, bateram, bateram,
quase mataram ele. Aí me soltaram. Até
pedi para dormir lá, que eu não
conhecia nada em Pernambuco. Me botaram junto
com os tuberculosos, com o pessoal que vinha do
interior para ir para o hospital. Dormi ali e
de manhã saí por uma rua qualquer,
vi uma senhora e perguntei: "A senhora não
sabe de alguém querendo empregada?"
Ela disse que sabia, me mostrou uma casa e eu
fiquei lá como empregada. Mas eu não
sabia fazer nada, e a minha cabeça zunia.
Fiquei nessa casa algum tempo, e depois arranjei
de morar na casa de uma senhora no Pina. Todo
dia de visita eu ia na cadeia ver o João,
mas eles diziam que ele não estava lá.
- Quanto tempo o senhor ficou preso em
Recife, seu João?
Seu João - Mais de ano. Fui preso no dia
8 de dezembro de 35, e saí com a anistia,
em 37.31
Fui a julgamento, e disse para o juiz: "O
problema é que eu estava de viagem, quando
surgiu esse movimento, e me prenderam." O
juiz chamou umas testemunhas, mas ninguém
me conhecia. Além do mais, eu disse na
prisão que me chamava Francisco de Assis,
e o meu nome lá no Norte era Maranhão.
Aí veio uma testemunha de acusação
e falou: "Esse negro vai aí para os
jornais para falar mal do governo! Ele tem ligação
com a maçonaria, com isso e mais aquilo."
Eu disse: "É mentira. Nunca fui jornalista,
nem sei onde é que tem jornal aqui em Pernambuco."
Acabou a audiência, saí dali e dei
um jeito de arranjar uma gilete. Eu ia me cortar
os pulsos, porque não agüentava mais
tanto sofrimento. Mas um cara lá descobriu
a gilete e disse: "Queria se matar, complicar
a polícia, não é?" E
me jogou no castigo, 30 dias sozinho a pão,
e água.
Teve
um dia lá que eu estava na minha cela,
e, não sei como, veio uma coisa no meu
ouvido dizendo que o prefeito do Rio, o Pedro
Ernesto, tinha sido preso.32
Quando o guarda abriu a porta para trazer comida,
eu perguntei: "Que foi que houve com o Pedro
Ernesto? Foi preso?" Lá não
entrava jornal, não entrava nada, e o camarada
ficou assombrado. Chamou o outro: "Esse crioulo
é adivinhador!" E começou a
me dar prestígio. Até que um dia
ele veio me avisar que tinha saído a anistia.
E disse assim: "Trepa na janela da cela que
eu vou ficar lá fora do lado de uma mulher
que sempre vem aqui. Aí você vê
se essa mulher é a sua." Quando fui
subir, botei uma golfada de sangue de tanto apanhar.
Arriei logo, mas cheguei a ver a cara dela. Quando
o guarda voltou, perguntou: "É aquela?"
Eu disse que sim, e ele fez a ligação.
Aí, às seis horas da tarde, mandaram
a gente embora por causa da anistia. Esse guarda
me pegou e me levou para a casa da irmã
dele, lá perto do campo do zepelim. O marido
dela chamava Paim, trabalhava nos ônibus
e era do Partido. Foi ele que me disse: "Olha,
eu também sou da coisa. Vou te ajudar."
Aí chegou lá um outro irmão
da mulher, dizendo que conhecia uma dona que botava
cartas e que dizia que tinha um marido carioca
que estava preso. Fiquei ouvindo, e no fim disse:
"Essa dona que ele está falando é
a minha mulher." No dia seguinte bem cedo
o Paim saiu para buscar ela. Fiquei no quarto
espiando pela janela, e daí a pouco vejo
ela saltar do ônibus, toda enfeitada, toda
bonita. Trouxe um presente para mim, me deu um
abraço.
- E aí vocês ficaram juntos?
Seu João - Não, ela não podia
ficar lá, tinha que ser um lugar de segurança.
No outro dia me levaram para encontrar com ela
lá no Pina, numa casa amarela. Era dia
de São João, tudo cheio de bandeirinha.
Tomei o bonde na parte de trás e o cara
que me levava foi na parte da frente. Quando ele
saltasse, eu tinha que saltar junto. Mas fui entretido,
vendo aquelas bandeirinhas, e, quando olhei, o
cara já tinha sumido. Aí saltei
sozinho, perguntei onde era o Pina, acabei achando
a casa tarde da noite e bati. Ela estava aflita,
com saudade de mim, e se assustou. Aí veio
um pessoal me buscar, me esconderam de novo, e
depois vim para o Rio. Ela ficou e só veio
depois.
Logo
que cheguei aqui, fui procurar os companheiros.
Estavam no Rio o Bangu e o Mário Lino.
Eles me deram um mês para eu descansar,
e depois fizemos uma reunião para eu dar
o informe. Aí resolveram me mandar para
Minas, mas a mulher apareceu e eu não fui.
Dona
Letícia - Cheguei aqui em dezembro de 1937
e fui morar com ele na casa da mãe dele,
no morro do Pinto.
^
Subir
Notas
24
- A eclosão e as características
da revolta comunista em Natal estiveram, sem dúvida,
vinculadas às disputas entre facções
oligárquicas pelo controle da política
estadual. A eleição para governador
em outubro de 1935 opôs o grupo do interventor
Mário Câmara ao grupo político
tradicional. chefiado por José Augusto
Bezerra de Medeiros. A vitória coube a
Rafael Fernandes Gurjão, desta última
facção. o que foi contestado por
Mário Câmara e João Café
Filho, chefe de polícia do antigo governo.
Aluísio de Andrade Moura, militar e interventor
no Rio Grande do Norte em 1931, era um dos interessados
na definição da política
do estado.
25 - Lauro Reginaldo da Rocha
- o Bangu - era professor, natural do Rio Grande
do Norte. Na época da preparação
da revolta de 1935, foi escolhido como elemento
de ligação entre os revolucionários
do Nordeste e os do Rio de Janeiro, tendo realizado
várias viagens e incentivado o movimento.
Após o fracasso da revolta, conseguiu escapar
à repressão, tornando-se o mais
importante líder do PC a permanecer em
atividade. Foi eleito secretário-geral
do PC em junho de 1936.
26 - A Classe Operária
era o nome do tradicional jornal do PCB lançado
pela primeira vez em 1° de maio de 1925. Daí
em diante desapareceu e ressurgiu várias
vezes.
27 - José Praxedes de
Andrade, natural do Rio Grande do Norte, era membro
do PC. Em 1935, juntamente. com João Lopes,
foi "surpreendido" pelo início
do movimento. Ver seu pequeno depoimento em Veja,
19 de dezembro de 1984. p. 45.
28 - O Governo Revolucionário
Popular foi integrado pelos funcionários
José Macedo (Finanças) e Lauro Cortez
Lago (Interior); pelo estudante João Batista
Galvão (Viação); pelo sargento
Quintino Clementino de Barros (Defesa) e pelo
sapateiro José Praxedes de Andrade (Abastecimento).
É interessante observar que a revolta eclodiu
em um sábado (23 de novembro) e terminou
em uma terça-feira (26 de novembro). Por
isso, e por sua feição francamente
popular, ela é por vezes comparada a um
"carnaval". Ver, por exemplo, o relato
de Fernando de Morais em Olga, Rio de Janeiro,
Alfa Omega, pp. 94-5.
29 - O manifesto mencionado é
o primeiro e, único número do jornal
do Governo Revolucionário Popular, intitulado
A Liberdade.
30 - A revolta em Recife começou
no dia 24 de novembro e, já na noite de
25 estava contida. Houve inúmeras mortes,
e todos os principais líderes foram presos.
31 - O episódio da anistia
concedida aos presos políticos sem processo
formado, em 7 de junho de 1937, ficou conhecido
como a "macedada". Isto porque a medida
foi tomada por José Carlos de Macedo Soares,
empossado pouco antes, a 30 de maio, no Ministério
da Justiça. Macedo Soares permaneceu no
cargo até as vésperas do golpe do
Estado Novo, quando pede demissão.
32
- Pedro Ernesto Batista, médico que aderiu
ao movimento tenentista em 1922 e à Aliança
Liberal em 1929, interventor no Distrito Federal
a partir de 1931, tornou-se um político
popular nos anos 30. Participou da comissão
organizadora do Partido Autonomista do Distrito
Federal, e em abril de 1935, com o apoio da maioria
da Câmara Municipal, tornou-se o primeiro
prefeito eleito da cidade do Rio de Janeiro. Em
decorrência de seu envolvimento com a ANL,
e por suas denúncias à ameaça
de uma ditadura, acabou sendo acusa¬do de
participação no levante de 1935,
sendo afastado da Prefeitura e preso, em abril
de 1936. Julgado e condenado pelo Tribunal de
Segurança Nacional, foi absolvido e solto
pelo Superior Tribunal Militar já em setembro
de 1937.
<
Voltar
Nosso
Projeto |
Mapa Natal 1935 | Mapa
RN 1935 | ABC
Insurreição | ABC
dos Indiciados | Personagens
1935 | Jornal
A Liberdade | Livros
| Textos
e Reflexões | Bibliografia
| Linha
do Tempo 1935 | Imagens
1935 | Audios
1935 | Vídeos
1935 | ABC
Pesquisadores | Equipe
de Produção
História
dos Direitos Humanos no Brasil
Projeto DHnet / CESE Coordenadoria Ecumênica
de Serviço
Centro de Direitos Humanos e Memória Popular
CDHMP |
 |
 |
 |
|