Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 1935 Mapa Natal
 1935 Mapa RN
 ABC da Insurreição
 ABC dos Indiciados
 ABC Personagens
 ABC Pesquisadores
 Jornal A Liberdade
 1935 Livros
 1935 Textos e Reflexões
 1935 Linha do Tempo
 1935 em Audios
 1935 em Vídeos
 1935 em Imagens
 1935 em CD-ROM
 Nosso Projeto
 Equipe de Produção
 Memória Potiguar
 Tecido Cultural PC
 Curso Agentes Culturais
 Guia Cidadania Cultural
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Rede DHnet
 Rede Brasil
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN

Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Velhos Militantes

 

Velhos Militantes
Depoimentos

Depoimento de João Lopes, o Santa
Ângela de Castro Gomes (coordenadora), Dora Rocha Flaksman, Eduardo Stotz
Jorge Zahar Editor

 

 

Nosso Projeto | Mapa Natal 1935 | Mapa RN 1935 | ABC Insurreição | ABC dos Indiciados | Personagens 1935 | Jornal A Liberdade | Livros | Textos e Reflexões | Bibliografia | Linha do Tempo 1935 | Imagens 1935 | Audios 1935 | Vídeos 1935 | ABC Pesquisadores | Equipe de Produção

 

No Partido: Ilha Grande, Moscou e Natal

- Quando o senhor foi para a Ilha Grande? Como foi isso?

- Foi um pouco depois. Eu estava no sindicato, o Otávio Brandão foi lá e me chamou para ir a um comício, em frente ao prédio que estavam fazendo, do jornal A Noite. Chegando lá, ele começou a meter o pau no Getúlio, e muita gente foi presa, inclusive eu. O Batista Luzardo disse que era por medida de segurança, mas levei 12 meses preso, porque veio uma ordem de Getúlio dizendo que ninguém podia sair. Só depois que normalizasse tudo.

Quando cheguei na Detenção, encontrei lá um camarada que era do Arsenal de Marinha e tinha sido expulso do Partido porque o pessoal chamava ele de policial. E ele foi para a polícia mesmo. Ele me viu e veio falar comigo: "Olha, o teu nome é o que está mais visado aqui. E daqui a pouco vão embarcar vocês num navio para mandar para a Ilha Grande." Ih, teve nego chorando, dizendo que tinha que telefonar para casa...

- Quem estava preso na Detenção com o senhor?

- Uma porção de gente, de político. A Detenção estava cheia mesmo. Quando foi na hora de embarcar fizeram a chamada, e deu um bolo danado com o meu nome. Chamaram: "João de Souza Lopes!" E eu fiquei quieto. "Está faltando um!" Vieram para mim: "ô rapaz, é você!" Eu disse: "O meu nome é João Lopes de Souza." E eles: "Bota esse cara lá!" E fomos. Chegamos à Ilha Grande às seis horas da tarde. O navio não podia encostar, ficava longe, e eles iam buscar a gente de bote. Sabe o que fizeram quando viram o navio chegar? Dispararam as armas. Sabe por quê? Para intimidar, para a gente ficar manso, que era tudo povo vindo da revolução. Duzentas e tantas pessoas no navio, rebocador Laurindc Pita.

- Tinha mais gente do Partido além do senhor?

- Só oito. Eu, Alberto, Caetano da Fonseca, João Júlio, Pafúncio, Cipriano, Zé Maria e mais outro. Mas quando cheguei na Ilha Grande encontrei aqueles ladrões do morro do Pinto, que eu conhecia do tempo que eu morava na Saúde. Todos eles me apoiaram, porque eu era muito cotado. Avisava eles quando a polícia vinha chegando, acoitava, ajudava. Os negociantes me pediam: "Avisa essa turma para não assaltar aqui não." Eu falava com eles, e eles me obedeciam. Quando cheguei na Ilha Grande, eles disseram: "Ué, você por aqui!" O outro pessoal dizia: "Sai do meio desses ladrões, rapaz!" Eu explicava: "Não, estou só estudando."

- Que tratamento os presos recebiam na Ilha Grande?

- Ah, quando chegamos lá, um tenente brabo como o quê foi logo dizendo: "Aqui quem trabalha tem tudo, quem não trabalha apanha." Me disseram: "Aqui você não chama mais nada, chama 168. Se não atender a chamada pelo número, já sabe."

- O senhor chegou a apanhar?

- Nunca apanhei, não. Mas vi três morrerem de pancada. Queriam que eu tocasse na banda de música, e eu disse: "Não quero banda de música, nunca mais. Eu vou tocar para o sujeito morrer? Vi um cara morrer na pancada, com o padre rezando e a música tocando. Não quero mais."

- E o que o senhor fazia lá?

- Trabalhava. Primeiro me mandaram trabalhar nos botes. O sujeito veste uma capa, mas fica todo molhado e tem que dormir com aquela roupa mesmo. Aí o Souto Maior, que era o chefe da administração, veio fazer uma inspeção, e eu disse: "Não posso apanhar friagem porque tenho uma doença venérea" - que eu tinha mesmo. Ele então me perguntou: "Você é ferreiro mesmo? Porque vou precisar de um ferreiro aqui. Vamos lá na oficina." Fui lá e fiquei como encarregado. Um dia o Souto Maior me falou: "Olha. vou fazer o seguinte, vou arranjar a sua libertação, mas você vai me ajudar. Preciso fazer uma estrada de ferro até o Abraão,17 preciso fazer uma lavanderia, e você é que vai fazer isso."

- E o Souto Maior conseguiu de fato a sua libertação?

- Conseguiu. Vim embora, e logo que cheguei fui chamado pelo pessoal do sindicato para contar o que se passava na Ilha Grande. Fizeram uma reunião na sede de um partido lá, na rua da Conceição, e eu falei: "Vi gente morrer, vi isso assim, assim. Cumpri ordens do engenheiro da oficina, que arranjou a minha libertação. Deixamos um companheiro lá" - era o Zé Maria. "Desde que chegou, fiz tudo para ele vir trabalhar comigo, porque ele era um bom mecânico. Não foi porque despedaçaram o rapaz." Estava um monte de gente lá, o Casini, o Josias Leão, tudo ali. Quando acabei de falar, o Vinagre saltou, e ficou contra mim. Ele disse: "Quero que o companheiro diga qual é o seu destino." Respondi: "No meu destino, quem manda é o sindicato. Mas, se forem continuar como estão, eu me retiro daqui."

- Ou seja, ele pôs em dúvida a sua conduta na Ilha Grande. E o que o Partido resolveu sobre o senhor?

- Tive um mês e pouco de estágio para fazer um balanço, para contar qual foi o meu procedimento. Estive quase para ser expulso do Partido, porque os companheiros não gostaram de eu ter ficado como encarregado do Souto Maior, disseram que eu estava traindo. Me mandaram dizer a minha posição, e expliquei que todo o dinheiro que eu arranjava trabalhando na oficina e vendendo coisas, eu mandava para o coletivo. Aí, para me castigar, me mandaram fazer um comício na praça da Bandeira e ser o orador. Um comício de combate ao capitalismo. O Batista Luzardo tinha avisado que seria um suicídio se a gente fizesse comício de protesto. Eu falei: "Que diabo, vocês não têm outro? Saí agora da cadeia!" Eles disseram: "Não, tem que ser você." Fui lá, fiz o comício, meti o pau, fui aplaudido e fui me embora. Mas senti aquilo. Pensei: "Poxa! Eu vim agora daquela ilha, e eles querem me jogar na cadeia de novo!?"

- Em 1931 o governo promulgou uma lei sindical subordinando os sindicatos ao Ministério do Trabalho. Nos anos seguintes houve um grande debate entre os antigos sindicalistas sobre a adesão ou não ao sindicalismo oficial. O senhor participou dessas discussões depois que voltou da Ilha Grande?

- Eu dizia o seguinte: eu queria a autodeterminação do sindicato, como era feito lá na América do Norte. O Mário Sá Freire,18 que era um advogado safado do Getúlio Vargas, disse que ninguém fosse na minha proposta, que era uma proposta que eu aprendi fora do pais, contra o país.

- Como é que o senhor teve contato com essas idéias da América do Norte?

- Minha filha, eu fui andar para aprender. Me mandavam, eu tinha que ir.

- Foi através de alguma pessoa, de algum livro?

- Fui lá, está entendendo? Fui lá, vi, conversei, que lá também tem comunismo, minha filha.

- O senhor está dizendo que esteve na América do Norte?

- É, a gente foi lá.

- Pelo Partido?

- Minha filha, como é que eu ia ter meio de ir?

- Em que cidade da América do Norte o senhor esteve?

- Só sei que era América do Norte. Fiquei só três dias, por que estava em trânsito.

- E como é que o senhor se entendia com os americanos?

- Eu não sabia falar inglês, mas tinha uma cicerone. Eu também não sabia falar russo. Como é que eu ia fazer? Levei uma espanhola da Argentina, a Antônia, que foi minha cicerone. Mas também não demorei muito lá não, porque só ficava mais tempo quem ia para a Escola Leninista.

- Então o senhor também foi a Moscou. Como é que o senhor fez essa viagem, seu João?

- Clan-des-ti-no. Viajei como praticante de máquina. A polícia dizia: "Estamos atentos, não sei o quê..." Mentira. Tinha navio que levava gente para Hamburgo em camarote de primeira.

- Mas como é que ficou acertado que o senhor faria essa viagem, como foi feita a combinação?

- Foi o seguinte. Nessa época, tinham arranjado para eu trabalhar no Arsenal de Guerra. O Fernando Lacerda19 foi lá no meu trabalho e disse: "Olha, Lopes, você hoje vai comigo a uma reunião no Irajá, porque você foi fazer uma viagem. Vai estudar, acho que você deve estudar um bocado, e tal." Dos metalúrgicos, o primeiro que tinha ido para fora estudar era o Casini. Depois me escolheram, queriam que eu fosse ver o 1º de maio em Moscou. Fui a essa tal reunião, e lá me deram dinheiro e falaram: "Só compra sabonete e toalha de rosto." Comprei aquilo, pedi uma licença sem tempo no trabalho dizendo que estava doente, e fui para casa esperar o camarada que ia me levar. Nessa época, eu já tinha me separado da mulher, morava com a minha mãe e as minhas irmãs. Fiquei em casa esperando, e comecei a ficar nervoso de bater a repressão lá e complicar a vida delas. Três dias depois apareceu lá a Vera, dizendo assim: "Ô João, o que foi que houve com você? Está todo mundo revoltado, porque você combinou de viajar e não apareceu." Eu disse: "Como é que eu não apareci? Estou aqui esperando, com a mala pronta!" Aí eu vi que ela ia mandar o homem. Afinal foi o cara lá em casa e me pegou.

- Foi mais alguém junto com o senhor nessa viagem?

- Fomos quatro. Eu, Salvador Cruz e dois de São Paulo. Fui com um de São Paulo para Montevidéu, e de lá para Barbados, onde encontramos com os outros. De lá fomos para a América do Norte, depois para Hamburgo. Nessa época, já tinha a reação de Hitler. E sempre nesses lugares tinha camaradas esperando. Em Hamburgo encontrei com essa Antônia, de quem já falei, e de lá fomos para Odessa. E Odessa já é Rússia.

- Quanto tempo o senhor ficou em Moscou?

- Três meses. Ficamos numa concentração, numa escola. Tinha gente lá de quase todos os países que hoje são socialistas. Era gente à beça, não era brincadeira não.

- E o que o senhor fazia?

- Estudava. Fazia o que você está fazendo, conversava. Me perguntavam como era a vida dos trabalhadores aqui, quanto ganhavam, quantas horas trabalhavam, se tinham férias, se tinham aposentadoria. Eles também contavam a vida dos líderes deles, diziam como foi a revolução. Eram quatro horas de estudo por dia, e toda semana tinha uma sabatina.

- O senhor visitou fábricas, escolas?

- Visitei uma escola, umas igrejas. Levaram a gente nas igrejas para testemunhar que elas existiam. Fomos também convidados para assistir a um casamento numa fábrica, porque aqui eles diziam que lá não casava ninguém, que lá o amor era livre. Eu mesmo queria ver como é que vivia a juventude lá, compreendeu? Uma vez nos levaram a uma praia de nudismo. Cheguei lá, tinha aquelas fileiras de chapéus-de-sol grandes, com duas, três, quatro cadeiras. A gente chegava, tirava o roupão e sentava ali. Fui até censurado, sabe? Desculpe estar falando isso com vocês, não pensem que é abusar...

- Não.

- Chega uma mulher bonita, forte, revolucionária. Tira o roupão e senta ali, nua - bem perto, que nem você está sentada aí. A carne reina, não é? A Antônia me passou uma esculhambação: "Mas que homem! Você está pensando... "Eu disse: "Não estou pensando em mulher, não. Você é que fica aí toda nua sentada na minha frente."Diz ela: "Olha que você perde ponto, hein?"

- O que é que o senhor acha que aprendeu de importante nessa viagem?

- Vou dizer. Sou brasileiro, está vendo? Eu ganhei muito, porque a Antônia me auxiliou e falei a realidade. Falei o que estou falando com vocês. E todos queriam ouvir o que eu fiz, como eu nasci, como era a questão racial no Brasil, isso tudo. Por isso, nas sabatinas, eu passava à frente dos intelectuais. Eles não sabiam dizer, porque nunca fizeram o que eu fiz, só estudaram.

- O senhor conhecia a vida dos trabalhadores.

- É. Para ser um profissional, não precisa ser intelectual, não. A gente aprende. Na questão social, eu ganhava de todo mundo, daqueles intelectuais bons de lá que nunca te entendem.

- Portanto, foi ao voltar dessa viagem que o senhor foi acusado por Mário Sá Freire de ter idéias estrangeiras sobre o sindicato. Mário Sá Freire era ligado ao Ministério do Trabalho.

- Ele era secretário do Getúlio, lá do Catete, minha filha! Queria controlar os sindicatos. Queria fazer um estatuto para os metalúrgicos, mas nós não aceitamos, botamos ele para correr com estatuto e tudo. Quando cheguei da viagem, fui ao Palace Hotel, onde trabalhava o Bartolomeu Wanderley,20 e ele me avisou: "Olha. o Sá Freire veio lá de Botafogo e está querendo fazer um sindicato assim, assim."21

- Ele queria que os sindicatos se registrassem no Ministério do Trabalho.

- Ele queria, e eu era contra. A minha luta era contra, como essa que tem aí agora na Polônia. O princípio do sindicato é a luta independente de classe. O que é a independência de classe? Nós obedecermos a nós mesmos.

- E como terminou essa luta?

- Perdemos. O Ministério do Trabalho ia fazer isso, ia fazer aquilo, e o povo balançou. Portanto, o sindicato ficou como um adendo ao Ministério do Trabalho. Teve até um congresso aqui, para a filiação dos sindicatos ao Ministério do Trabalho, e eu e outros companheiros ficávamos em cima dos delegados: "Não vota com o Salgado Filho,22 não vota com esse cara, não." Aí, na véspera do congresso, me avisaram que eu ia ser preso, e tive que fugir. Fui para o Espírito Santo e passei uma semana lá. Os companheiros que sustentaram a nossa tese perderam. A maioria não quis.

- Em relação ao Partido, quais foram suas tarefas ao voltar de viagem?

- Depois que voltei da viagem, fui trabalhar na comissão de organização do Partido. Tinha a comissão sindical, a de finanças, a de agitação, mas quem dava as ordens era a de organização. Ia ter uma conferência do Partido, e eu tinha que fazer um estudo para o temário. Levei 71 dias correndo as empresas e fábricas, vendo se tinha higiene, se tinha luz, quanto ganhavam os operários, quantas horas de serão faziam. Tinha que fazer um relatório disso tudo.

- O senhor visitava só as fábricas onde havia bases do Partido?

- Acontecia o seguinte: chegava muita gente de fora, e o Partido sempre arranjava emprego para esse pessoal. Sempre tinha um numa fábrica, nem que fosse um só. Esse sujeito me dava informação do que se passava lá. Algumas fábricas também davam consentimento para eu entrar, porque eu era do sindicato.

- Já que o senhor visitou tantas fábricas, como eram as condições de trabalho dos operários?

- Péssimas. Era uma luta. Ganhamos as oito horas, mas tinha muito patrão que não obedecia e não pagava extraordinário.

- Havia uma pausa no trabalho para comer?

- Parava para comer. O Arsenal de Guerra, por exemplo, dava uma comida boa: ensopado, arroz, um copo de leite. Muitos não almoçavam, levavam aquela bóia para casa. Eu era sozinho, não tinha família, não levava nada. Mas tinha um rapaz com quatro filhos que trazia um garrafão e uma lata de banha pra botar a comida e o leite que sobravam, para sustentar a família.

- E as condições de moradia? Onde moravam os trabalhadores?

- Os trabalhadores não eram muito chegados lá para cima dos morros, não. Preferiam pagar aluguel aqui embaixo. As fábricas de tecido, principalmente, faziam casa para operário. Agora, se saísse da oficina, perdia a casa. Tinha que ficar escravo daquele negócio ali. Muitos gostavam daquilo, porque sabiam que a mulher ficava em casa ali perto. O sujeito não queria mulher trabalhando, não. Havia essa concepção aqui. Mas vi na Rússia que a mulher tinha que trabalhar. Mulher não é só para cama e mesa, não.

- O senhor participou da conferência do Partido?23

- A conferência foi num sítio lá para dentro de Niterói. Durou seis dias, mas só cheguei no último, porque se desencadeou uma porção de greves no Rio, e eu tinha que estar aqui para ver, para escolher os sujeitos mais destemidos, mais combativos, para serem dirigentes.

- Para que foi feita essa conferência?

- Para receber Prestes dentro do Partido. Ele estava trabalhando como engenheiro em Moscou, teve vontade de pertencer ao Partido, mas lá não podia. Só aqui. Fizeram a proposta, e todo mundo apoiou. Teve também a questão de fazer o secretariado do Nordeste. Na verdade já estava feito, mas tínhamos que aprovar. Cristiano Cordeiro, Zé de Lima, esse pessoal todo é que era do secretariado do Nordeste.

- O senhor se lembra de outras questões que tenham sido discutidas na conferência?

- Discutimos sobre o integralismo, o fascismo, não é? Discutimos a questão do petróleo.

- Depois dessa conferência, o senhor recebeu alguma outra missão do Partido?

- Passei três meses em Barra do Pir,aí, organizando os camponeses. Chegando aqui, logo me mandaram para Niterói, para fazer um plano de greve geral. Eu era o cachorrinho para mandar para todo canto. Fui para lá com Zé Medina e João Medeiros, que era o mestre das barcas da Cantareira, e começamos a preparar.

- Qual era a razão dessa greve?

- Reivindicações do povo, barcas mais baratas, essas coisas. Mas o problema é que não tinha uma federação organizada. Só se pode fazer uma greve geral quando tem uma federação no comando. Uma greve qualquer se faz por uma situação econômica. Uma greve geral já é uma greve política. Então fizemos um comitê de greve geral, que saía instruindo a massa, fazendo manifesto, e um comitê ilegal, que era dos comunistas. Muito bem, quando estamos no meio da preparação, chega lá um deputado que esqueço o nome e diz assim para mim: "Santa, trago aqui um recado para você. Tem uma catraia te esperando para você ir para o Rio às 11 horas, que estão precisando de você urgente." Fiquei até com medo. "Meu Deus! Será que fiz alguma coisa?" Afinal vim.

- Antes da greve começar.

- Antes. Depois eu soube que a greve não foi satisfatória como tínhamos planejado, porque não foi geral. Teve uma num estaleiro, outra noutro. Afobaram, e saíram sem o pessoal estar organizado.
Por isso é que no começo da luta nós queríamos ter uma federação.

- Ao chegar ao Rio de Janeiro, o que aconteceu com o senhor?

- Me puseram num carro e me levaram para uma casa rica lá no alto de um morro, passando a Praça Saens Peña. Estavam lá o Cristiano Cordeiro, o Fernando Lacerda e uns outros. Eles disseram: "Olha, Santa, chegou uma carta do secretariado do Nordeste dizendo que eles botaram um rapaz lá para tomar umas fazendas e houve um choque com a polícia. Há três pessoas feridas internadas na Santa Casa. Já mandamos um companheiro para lá - era o Miguel, um engenheiro da Light, rapaz jovem - e queremos que você vá também. Escolha aí alguém para seguir com você."

- Para onde o senhor tinha que ir?

- Para o Rio Grande do Norte. Chamei o Jabatão, que era de Natal, mas estava fora há um ano, recebemos um dinheiro e fomos embora.

- O que exatamente o senhor ia fazer no Rio Grande do Norte?

- Eu ia fazer o seguinte: tapar aquele buraco errado que fizeram, botando o povo da roça para assaltar as fazendas. Também me disseram: "Olha, o Partido lá está dividido. Está havendo uma briga de irmão com irmão por causa de uma cooperativa de sapateiros. Um grupo não quer obedecer à direção, e você vai para fazer a unidade."

- Tratava-se portanto de uma missão difícil. O senhor aceitou ir para o Nordeste por disciplina, ou foi porque ficou com vontade de ir?

- Aceitei porque sempre gostei de respeitar a opinião dos camaradas. Eu não adulava ninguém, não pedia a ninguém para ir a lugar nenhum. Havia uma certa simpatia sobre mim. Quando tinha algum trabalho duro, logo apontavam o "Santa". O Fernando Lacerda, quando precisava de alguma coisa, logo dizia: "Manda o Santa, que ele resolve esse problema."

^ Subir

Notas

17 - Abraão é uma pequena localidade com atracadouro existente na Ilha Grande, do lado oposto ao presídio.

18 - Mário Bolívar Peixoto de Sá Freire era fluminense, advogado e funcionário público. Durante os anos 20 praticou a advocacia para alguns sindicatos cariocas, e certamente devido a esses contatos foi designado oficial de gabinete do ministro do Trabalho, Indústria e Comércio em 9 de abril de 1932, função que exerceu até 23 de março de 1933. Nessa data foi nomeado procurador do Departamento Nacional do Trabalho, continuando a manter seus vínculos tanto com sindicatos quanto com autoridades ministeriais.

19 - Fernando Lacerda era médico e, tal qual seu irmão Paulo, ingressou no Partido Comunista nos anos 20. Nos inícios dos anos 30, foi um dos principais dirigentes do PC e um dos maiores responsáveis pela vitória da linha de "proletarização", que envolveu, inclusive, o afastamento de Astrojildo Pereira.

20 - Bartolomeu Maurício Wanderley (1892-1968) era baiano e metalúrgico, Aproximou-se do movimento anarquista em 1917, e em 1918 associou-se a União Geral dos Metalúrgicos. Em 1922, quando já se afastara do anarquismo participou da fundação do efêmero Partido Laborista do Brasil, juntamente com outros ex-militantes que não ingressaram no comunismo. Em 1923, colaborou na reorganização da União dos Operários Metalúrgicos do Brasil, tende integrado o grupo que derrubou Amaro de Araújo em 1926. Em 1932, foi um dos principais articuladores do movimento de "reorganização sindical", que reuniu a "velha guarda", ou seja, aqueles que haviam militado em um sindicato "livre do Estado". Escreveu um depoimento intitulado Histórico sobre a vida operária metalúrgica, datado de 1959, mimeo.

21 - Desde 1929, o antigo sindicato metalúrgico atravessava um período difícil. Fechado nesse ano, reabriu em 1930 logo após a vitória da revolução, para ser mais uma vez colocado fora da lei por manter uma linha politicamente independente. Foi nesse contexto que surgiu, através das articulações de Mário Bolívar de Sá Freire, uma nova entidade sindical: o Sindicato dos Operários em Artefatos de Metal. Instalado a 12 de abril de 1931, logo após a primeira lei de sindicalização, c situado na Rua Mena Barreto, em Botafogo, foi liderado pelo operário Mário Coelho Teixeira. Esse sindicato foi reconhecido oficialmente pelo Ministério do Trabalho em 3 de agosto de 1931, mas só subsistiu até a "reorganização sindical" em 12 de novembro de 1932, que resultou na União dos Trabalhadores na Indústria Metalúrgica, nova designação da tradicional associação de classe dos metalúrgicos, dessa feita sob chancela oficial.

22 - João Pedro Salgado Filho (1885-1950) era advogado e em 1930 apoiou a revolução. Com a vitória do movimento foi designado 4° delegado auxiliar da polícia do Distrito Federal, função que ocupou até 6 de abril de 1932, quando foi nomeado ministro do Trabalho, Indústria e Comércio em substituição a Lindolfo Collor. Nessa posição coordenou e exerceu influência no processo que elegeu os deputados classistas da Assembléia Nacional Constituinte de 1933. Permaneceu no ministério até 23 de julho de 1934, quando da promulgação da nova Constituição.

23 - A I Conferência Nacional do PCB realizou-se em 1934, e nessa ocasião Antônio Maciel Bonfim (Miranda) foi eleito secretário-geral do partido, integrando, juntamente com Lauro Reginaldo da Rocha (Bangu), Honório de Freitas Guimarães (Martins) e Adelino Dúcola dos Santos (Tampinha), o Secretariado Nacional. Data dessa época, com a entrada de Luis Carlos Prestes no PC, a predominância de uma linha putschista que iria provocar reações tanto na ANL quanto no interior do próprio partido.

< Voltar

Nosso Projeto | Mapa Natal 1935 | Mapa RN 1935 | ABC Insurreição | ABC dos Indiciados | Personagens 1935 | Jornal A Liberdade | Livros | Textos e Reflexões | Bibliografia | Linha do Tempo 1935 | Imagens 1935 | Audios 1935 | Vídeos 1935 | ABC Pesquisadores | Equipe de Produção

História dos Direitos Humanos no Brasil
Projeto DHnet / CESE Coordenadoria Ecumênica de Serviço
Centro de Direitos Humanos e Memória Popular CDHMP
DHnet - Rede de Direitos Humanos e Cultura
Centro de Direitos Humanos e Memória Popular
Rede Brasil de Direitos Humanos
 
Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: dhnet@dhnet.org.br Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
Linha do Tempo RN Rio Grande do Norte
Memória Histórica Potiguar
Combatentes Sociais RN
História dos Direitos Humanos RN Rio Grande do Norte
Guia da Cidadania Cultural RN
Rede Estadual de Direitos Humanos Rio Grande do Norte
Redes Estaduais de Direitos Humanos
Rede Brasil de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
Direito a Memória e a Verdade
Projeto Brasil Nunca Mais
Comitês de Educação em Direitos Humanos Estaduais
Djalma Maranhão
Othoniel Menezes Memória Histórica Potiguar
Luiz Gonzaga Cortez Memória Histórica Potiguar
Homero Costa Memória Histórica Potiguar
Brasília Carlos Memória Histórica Potiguar
Leonardo Barata Memória Histórica Potiguar
Centro de Direitos Humanos e Memória Popular CDHMP RN
Centro de Estudos Pesquisa e Ação Cultural CENARTE