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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Velhos Militantes

 

Velhos Militantes
Depoimentos

Depoimento de João Lopes, o Santa
Ângela de Castro Gomes (coordenadora), Dora Rocha Flaksman, Eduardo Stotz
Jorge Zahar Editor

 

 

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Do samba ao sindicato comunista

- Em que ano o senhor chegou ao Rio de Janeiro?

- Cheguei aqui em 1921. Eu tinha dois parentes aqui, um tio que morava na Gamboa e o meu primo Antônio Carlos, que tinha vindo de Campos antes de mim. Fui procurar esse meu tio e fui muito mal recebido: "O que é que você veio fazer aqui agora, nesse momento?" Estava havendo uma greve dos marinheiros remadores, e todo mundo estava desempregado.3 Só no quarto do meu tio tinha nove pessoas dormindo no chão, em cima de jornal. Ele também já sabia da minha vida, porque a minha mãe escrevia para ele reclamando, e foi logo me esculhambando: "Não quero confusão aqui com você." Eu disse: "Que confusão nenhuma, rapaz! Sou de maior, portanto agora mesmo vou embora."

Logo no dia seguinte, fui ao Corpo de Bombeiros. O camarada que me recebeu fez uma pesquisa sobre a minha compreensão de música: "Conhece música?" Eu: "Conheço, clave de sol, clave de dó..." Expliquei tudo direito, e ele ficou satisfeito. Mas deixa que eu estou vendo aquela torre lá no meio do pátio, e uns soldados se jogando lá de cima. Aí eu perguntei: "Músico também faz isso?" Ele disse: "Faz, tem que fazer." Eu digo: "Espera aí, então não quero, não."

- O senhor queria mesmo era tocar na banda.

- É. Aí então fui procurar o meu primo Antônio Carlos, que era caldeireiro. Ele me levou a uma oficina de caldeireiros de ferro em Niterói, uma oficina dos anarquistas.

- Esse seu primo era anarquista?

- Era anarquista, mas era contra a ação dos anarquistas, por causa das bombas, dessas coisas. Não tinha coragem de enfrentar isso, e aliás eu também não. Sabotagem eu sabia fazer, mas de bomba eu não gostava. Muito bem. Fomos então a essa oficina em Niterói, uma oficina muito bem montada, com altos e baixos alugados para restaurante, com máquinas modernas e tudo o mais. Mas tinha um problema. Se o camarada mandasse o ajudante fazer alguma coisa, ele respondia: "Eh companheiro! Você também está feito capitalista? Aqui manda você e mando eu, e não vou fazer isso porque estou cansado." Ninguém tinha autoridade para falar com o outro. Resultado: eles fizeram um contrato com a Marinha para fazer embarcações e não entregaram na data marcada. Tiveram que penhorar a oficina ao governo.

- O senhor chegou a trabalhar nessa oficina?

- Não. Fui só conhecer. Depois disso, fui com a minha carteira no Sindicato dos Padeiros. Seu Antônio José da Silva era o presidente, e fui muito bem recebido. Mas não gostei, sabe por quê? Porque era tudo anarquista espanhol, de camisa suja, deitado no chão com o chapéu na cabeça. Não topo esses caras de camisa sebosa. Eles me perguntaram se eu queria trabalhar como padeiro, e eu disse que não.

- Qual foi o seu primeiro trabalho aqui no Rio?

- O meu primeiro trabalho aqui foi na Ilha dos Ferreiros, na ponta do Caju. A companhia lá parece que era inglesa. Mas juntava muito ladrão por ali, e eu não me dei com aquilo. Os caras roubavam peças e de noite iam para lá vender. Eu ficava até besta! Porque eu sempre fui contra essas desonestidades. Fiquei poucos meses e saí. Mas lá encontrei cinco campistas, me juntei com eles e comecei a tocar música em Santa Teresa. Nessa época, encontrei também dois rapazes de São João da Barra, o Aristides Henrique e o Oscar Pinto. Vieram para o Rio e ficaram anarquistas. O Aristides Henrique então me levou a uma oficinazinha na rua Haddock Lobo. Cheguei lá e vi uma farda do Exército. Perguntei de quem era, e eles disseram: "Isso é do Rocha." Era o Manuel Alves da Rocha.4 "Ele é dos metalúrgicos, está no Exército, mas vem aqui fazer biscates. O pai dele foi anarquista, carroceiro brabo." Daí a pouco o Rocha chegou, me apresentaram, e ele disse: "O Aristides Henrique sempre fala de você. Mas aqui não tem lugar para você não, aqui só tem uma forjazinha, só tem biscate." Aí o Aristides Henrique tomou a frente: "Deixa ele comigo, que eu vou arranjar trabalho para ele." E me arranjou para vir para a oficina do Cais do Porto, como ferreiro. Entrei em 1922 e fiquei lá quatro anos.

- Como era essa história de tocar música em Santa Teresa?

- Eu morava na Saúde, mas me meti logo em Santa Teresa, conheci lá uma porção de músicos e tocava por aí. Tocava na praça Onze, tocava com Pixinguinha, era uma farra danada. Arranjei uma senhora que me protegia, me dava almoço e jantar. Depois abandonei aquele pessoal e formei cá mesmo na Saúde um bloco carnavalesco, chamado Bloco do Casquinha. Sabe por que esse nome? Antigamente, havia um baile, e ficava o sujeito na porta até que aparecia um conhecido e botava para dentro. Esse cara, a gente chamava de "casquinha". O bloco era grande, tinha mais de 40 aderentes: jornalista, estudante, gente do comércio, operário, tudo isso. E todo mundo se dedicava, porque carnaval naquela época era um mês antes e um mês depois. Um mês antes, todo dia era batalha de confete. Um mês depois tinha a mi-carême.

Quando entrei para o Cais do Porto, os metalúrgicos de lá começaram a me imprensar: "Vamos formar uma banda de música aqui, tal e coisa..." Mas não achei músico ali e não topei. O Aristides Henrique era músico, mas não trabalhava lá, embora tivesse muita força lá dentro. Foi ele que me apresentou ao Olinto Rabelo, ao José Casini,5 esse pessoal todo anarquista. Nessa época apareceu aqui também o Amaro de Araújo,6 vindo do Norte. Um dia, o Rocha me falou: "Olha aqui, vamos nos ligar ao Amaro de Araújo, que tem grande compreensão aí com o pessoal da política, para a gente reabrir o sindicato."

- Era o Sindicato dos Metalúrgicos, que nessa época estava fechado.

- É. Estava fechado o sindicato, mas eles clandestinamente se reuniam. Naquela época não havia união. Caldeireiro era caldeireiro, fundidor era fundidor, depois é que foi feita a fusão disso tudo. Foi quando reorganizaram o sindicato e botaram o Amaro de Araújo como presidente.

- O senhor entrou para o Sindicato dos Metalúrgicos quando ele foi reorganizado?

- Pois é. O Aristides Henrique sempre me dizia: "Como é rapaz? Entra para os metalúrgicos, rapaz!" E eu: "Não, espera lá."Eu não sabia o que fazer. Até que um dia eu disse: "Eu entro. Mas vocês vão fazer o seguinte: vocês me dão a sede do sindicato para eu fazer a festa do Bloco do Casquinha." Eles disseram: "Vocês podem fazer a festa, mas têm que entrar todos como sócios." Eu perguntei: "Quanto é?" Eles: "Dois mil-réis por mês." Levei mais de 30 pessoas, gente do comércio, disso e daquilo, e todo mundo pagou. Um diretor lá disse: "Mas isso não pode! Não são metalúrgicos!" A maioria então resolveu que depois, quem fosse alfaiate ia para os alfaiates, quem fosse padeiro ia para os padeiros. Aceitaram, e entrei com o meu povo todo. Logo na primeira reunião o Casini disse: "Olha, quando eu e o Claudino Peixoto levantarmos, você levanta. Quando a gente sentar, você senta." Eu disse: "Bom..." Não estava achando muito prático não, eu queria era farra, não é? Mas acabei ficando.

- A que corrente política pertenciam essas pessoas que diziam para o senhor levantar e sentar junto com elas?

- Tínhamos esse pessoal como anarquista.7 Eu sei é que aí nós fizemos lá no sindicato uma escola de música e uma escola de mecânico. A sede vivia cheia.

- O senhor tinha contato com Amaro de Araújo?

- Tinha. Ele confiava muito em mim, porque tinha uma cunhada, meninazinha, que se engraçou para o meu lado, e eu ficava sempre por perto, para ele me dar instrução sindical. Ele então começou a me levar, eu e o Rocha, na casa de um deputado chamado Gusmão. Chegando lá, eles escreviam uns manifestos para sair no jornal e mandavam a gente assinar. Eram uns manifestos metendo o pau nos anarquistas. O Rocha era distraído, não prestava muita atenção e assinava. Eu também. Até que um dia o Olinto Rabelo me chamou: "ô rapaz, por que é que vocês estão assinando isso, metendo o pau na gente?" Eu disse: "Eu não sei! O Amaro de Araújo leva eu e o Rocha para almoçar na casa do Gusmão e manda a gente assinar." O Casini falou: "Olha, rapaz, você está servindo de instrumento aí para os outros, está sendo enrolado. Você sempre foi um rapaz muito bom, muito recomendado, mas caiu nas águas do Amara de Araújo. Ele é um policial." Eu disse: "O quê?!" E aí foi que eu entendi. Quando tinha reunião lá no sindicato, o Amara de Araújo me dizia: "Olha, tem um cara lá dentro da secretaria. Fica com a chave e não deixa ninguém entrar." Eu via o cara ali, mas não estava sabendo quem era e não ligava. Teve um outro caso também: um dia o Amaro de Araújo levou eu, o Rocha e o Pedra de Sousa na rua Teófilo Otoni, porque ia ter uma reunião. Estávamos no botequim defronte tomando café quando vimos a polícia chegar, invadir a casa, prender o pessoal e dar pancada. O Amaro de Araújo viu aquilo e disse: "Vamos embora."

- Que reunião era essa?

- O Amaro de Araújo disse que era uma reunião de comunistas. Bom, mas aí o pessoal falou: "Olha, vamos fazer uma assembléia para botar o Amaro de Araújo para fora, e você e o Rocha vão contar tudo o que ele fez com vocês." Eu disse: "Está bem, eu conto."

Marcaram o dia, abriram a reunião, discutiram, e o Aristides Henrique falou: "Quero dar a palavra ao companheiro João Lopes de Souza, que tem muito o que contar." Falei então tudo o que eu tinha visto, disse que ficava um homem na secretaria, que eu não sabia quem era - mas era um policial espiando quem falava mal do governo -, contei que o Amaro de Araújo nos levou lá na rua Teófilo Otoni para ver o pessoal sair espancado, tudo isso. Ih, rapaz! Aí eu disse para o Amaro de Araújo: "Você sempre diz que o sindicato é um por todos e todos por um. Se é assim, a maioria aqui não quer mais você como presidente. Você está fazendo mal à maioria, e eu no seu lugar pedia demissão." Aí foi palma, todo mundo gritando: "Apoiado! Apoiado!" O Amaro de Araújo explicou três vezes: "Seu João Lopes está dizendo isso e isso. Vocês estão de acordo?" Todo mundo: "Estamos de acordo!" Aí caiu o Amara de Araújo.

- E quem ficou no lugar dele?

- Ficou uma diretoria provisória. Botaram o Rocha como presidente, eu como vice-presidente, e o Aristides Henrique como secretário. Eu disse que não podia, porque trabalhava até tarde, mas eles falaram: "Não, é só por 30. dias, até formar a chapa para a eleição." Aí eu já tinha saído do Cais do Porto e ido para o Arsenal de Marinha. Fui para lá com a responsabilidade de organizar o pessoal. Quase todo mundo do Arsenal foi para o Sindicato dos Metalúrgicos. Afinal, no fim de 30 dias formaram a diretoria. O Auto Lázaro Correia ficou como presidente, e eu fiquei como procurador.8

- Que atividades o sindicato desenvolvia nessa ocasião?

- Aí transformamos num sindicato de luta de classes. Imediatamente. Logo que entramos, tratamos disso. Isso aconteceu da seguinte forma: eu não tinha nada com o comunismo não. Fui convidado para uma reunião, e disse ao Auto Lázaro Correia: "Olha, o Casini me chamou para ir a uma reunião assim, assim." Ele respondeu: "Você vai, mas não assume responsabilidade lá, não assina nada."

- Era uma reunião de comunistas?

- Essa reunião foi numa casa lá no subúrbio, em Osvaldo Cruz. Cheguei lá, entramos, tinha muita gente: Astrojildo Pereira, Otávio Brandão, Casini, esse pessoal todo anarquista. Aí o Casini disse: "Eu queria dar a palavra ao companheiro João Lopes, para vocês saberem quem é ele." Eu então fiz um histórico da minha vida lá em São João da Barra e Campos, tal e coisa, os outros também falaram, e escutei aquelas discussões. O Astrojildo Pereira fez uma explanação muito bonita, dizendo que todos deviam ajudar a classe dos metalúrgicos, que eles deviam dar mais atenção ao Sindicato dos Metalúrgicos. Fiquei todo envaidado.

- Ou seja, era uma reunião do Partido Comunista. O senhor foi sabendo que era?

- Não sabia. Me convidaram, eu fui. Aí, quando acabou, fui para o sindicato e disse para o Auto Lázaro Correia: "Eles estão dando apoio a nós. O Astrojildo Pereira mandou todos darem apoio. aos metalúrgicos."

- Depois dessa reunião em Osvaldo Cruz o senhor entrou para o Partido Comunista?

- Nunca me inscrevi, nunca entrei para o Partido.

- Mas o senhor entrou para esse grupo?

- Entrei.

- E o senhor passou a ter contato com Astrojildo Pereira e Otávio Brandão?

- Passei. Eles iam lá no sindicato, conversavam comigo assim como nós estamos conversando. E o Otávio, esse tinha mais liberdade. Cismava, ia lá em casa e dizia: "Vamos dar uma volta." Conversava, me levava a todo lugar. Foi meu professor, tinha uma confiança enorme em mim. Quando a polícia perseguia, ele ia se esconder na minha casa.

- O senhor fazia algum tipo de trabalho para esse grupo?

- Eles me mandaram formar comitês de empresa, e eu também era cobrador das mensalidades do sindicato. Eram 16 empresas que eu tinha que visitar. Conversava com os companheiros, organizava, era rápido. Produzi muito. E era fiscalizado, fiscalizado.

- E o senhor continuou trabalhando no Arsenal de Marinha?

- Não. Abandonei. Fiquei trabalhando só para o sindicato, recebendo pelo sindicato.

- Havia muita repressão da policia?

- A polícia atacava um bocado. Mas a gente trabalhava com paciência, não é?

- Há também outro dado importante: em 1926 terminou o governo de Artur Bernardes e entrou Washington Luís. Com a mudança de governo, a repressão diminuiu e a organização sindical cresceu.

- Porque o Washington Luís não interveio. Quando ele veio intervir na organização, foi quase no fim do mandato. Era a liberdade. Eu podia chegar, conversar, discutir, isso tudo.

- No período de Washington Luís, o Partido Comunista também chegou a ter uma preocupação eleitoral. Formou-se o Bloco Operário,9 depois Bloco Operário Camponês, lançaram-se candidatos...

- Na entrada do comunismo, eu entrei para o Bloco Operário. Me elegeram presidente do Bloco Operário Metalúrgico. E eu então tive que me ligar ao Azevedo Lima. Me liguei, eu e o Salvador Cruz, um campista, muito amigo meu. Eu ia lá no consultório do Azevedo Lima, que ele era operador, pegava ele, e a gente subia o morro para ele atender os doentes. Fomos muito amigos, mas uma vez tivemos uma briga. Ele queria botar como candidato a vereador o Moura Nobre, que era coronel e prestava muito serviço ao trabalhador, dava atestado para não ter que servir o Exército. Ele disse: "Você faz os seus companheiros votarem nele." Respondi: "Não posso garantir. Vou falar com os companheiros, Salvador Cruz, Agenor Marinho, todo mundo." O Agenor Marinho falou: "Mas se nós temos um programa, se é Bloco Operário Camponês, por que é que vamos botar, um militar?" O Azevedo Lima dizia: "Mas quem é que vocês vão botar? Vocês não têm dinheiro. O Moura Nobre tem." Eu disse: "A nossa chapa é Minervino de Oliveira e Otávio Brandão, e dessa não saímos. E vamos arranjar dinheiro para a campanha."

- Como era a campanha do Bloco Operário?

- A gente fazia comício relâmpago na porta das fábricas iam uns três da Juventude Comunista, o filho do Mangabeira,10 O filho de seu fulano, o filho de seu beltrano, e nós, eu, o Salvador Cruz, o Agenor Marinho.

- O senhor falava nesses comícios?

- Falava. Dizia quem era Otávio Brandão, o que era o Bloco Operário Camponês, isso e aquilo. Ganhava palma também. Tinha dia de fazer cinco, seis comícios.

- E aos comícios maiores, o senhor ia?

- Aí ia o Morena,11 ia o Pimenta.12 Para falar ao povo é preciso ter gente mais preparada. Você sabe, minha filha, um ser analfabeto vai ser criticado. E eu nunca gostei de ser criticado.

- O senhor achava que a população de trabalhadores do Rio era simpática ao Bloco Operário?

- Bom, dada essa questão de anarquista com comunista, dividia. Mas os comunistas levavam mais vantagem.

- Na ocasião da campanha do Bloco Operário, os anarquistas ainda tinham importância aqui no Rio?

- Tinham, tinham. Eles continuavam lutando pelo seu ideal anarquista, e os comunistas pelo seu ideal marxista.

- Os anarquistas não gostavam que os trabalhadores participassem de eleições, não é?

- É, eram contra chefe, contra governo. O estatuto deles dizia que todo governo é capitalismo. Só fala em governo quem é capitalista. Logo compreendi que com esse meio que os anarquistas queriam, não podíamos ir em frente. Dando uma mão aqui, parlamentando com um, com outro, a gente vai chegando.

- Em 1929, houve uma greve dos gráficos em São Paulo, que recebeu o apoio de vários outros sindicatos.13 O senhor se lembra de algum movimento de solidariedade aqui no Rio?

- Lembro. Fizemos um comício na praça Mauá, veio gente de Niterói, ficou tudo cheio, bandeiras de sindicato para todo lado. Saímos da rua Barão de São Félix, passamos em frente à Central, e quando chegamos em frente à Light, a polícia do Washington Luís caiu em cima de nós. Foi a primeira vez que ela veio atacando, rasgando bandeira, com cavalaria e tudo. Até pegamos um caixão para a Laura Brandão subir e falar com o comandante. Ela fez um discurso, uma poesia, o comandante ficou olhando e mandou debandar a cavalaria. Aí fomos para o sindicato, e quando chegamos a polícia estava lá.

- A polícia tinha ocupado o Sindicato dos Metalúrgicos?

- É, ali na rua Senador Pompeu, defronte da Central. A polícia estava na porta, tomou as bandeiras e fechou o sindicato. O meu irmão era da Marinha, então pedi para ele entrar lá e pegar todos os livros de registro. Ele foi, pegou os livros, e, como era militar, ninguém se incomodou. Levei os livros para guardar em Bonsucesso. A história foi esta: o sindicato abriu com Amaro de Araújo e fechou com esse comício de apoio aos grevistas. Só fomos reabrir em 30, depois da revolução.

- Como o senhor recebeu a Revolução de 30?

- Bom, nessa época eu já morava na Penha, e o pessoal vivia lá na minha casa: o Brandão, o Cristiano Cordeiro,14 essa gente toda. Fiz até uma padaria nos fundos para tapear. Quando o pessoal chegava lá, a companheira dizia: "Olha, chegou um irmão de vocês aí."

- O senhor morava com mais alguém?

- Sozinho com a minha companheira. Essa companheira eu trouxe de Campos. Foi aquela que me valeu a vida na gripe espanhola.

- A dona Carola?!

- É, ela veio atrás de mim. O marido abandonou, e eu fiquei com ela. Bom, no dia em que rebentou a revolução, sabe o que aconteceu? Estava um pessoal reunido lá em casa, Cristiano Cordeiro, Josias Leão, tudo já sabendo que o movimento estava para rebentar. A gente estava esperando um emissário, o filho do João Mangabeira, que estava em contato com o Maurício de Lacerda. Ele chegou, avisou, e nós saímos para pegar em armas. Fomos para Benfica, e lá fomos presos e levados para um quartel. Acontece que o comandante era da nossa panela e deixou a gente sair pela porta dos fundos.

Aí fui para a Central, com um garoto que esqueci o nome e mais o Diamantino Domênico, mecânico bombeiro. Passou um carro com um tenente da Marinha, que me conhecia do Arsenal, e mandou a gente entrar. Ele dizia: "A revolução é fulano de tal!" Não lembro o nome era um grande lá da Marinha. Não era Getúlio, não. E falou: "Vamos lá na Detenção tirar os presos!" Chegamos lá na Detenção e estava Otávio Brandão preso, Minervino, uma porção de gente. Tinha um botequim defronte, ficamos ali e vimos lá no alto, na varanda, o pessoal do Washington Luís. Afinal entramos, esse tenente atirando, e os diretores falaram: "O que é isso? Não solta todo mundo não, nós trazemos os presos!" Mas aí o pessoal já estava quebrando mesa, quebrando cadeira, uma confusão dos diabos.

- E vocês soltaram os presos?

- Soltamos Minervino, Brandão, Maurício de Lacerda. Esse tenente queria soltar o Cabanas,15 mas ele não estava lá. Então ele disse assim: "Agora vamos para a Central de Polícia." Chegamos lá, ele mirou um lustr,e logo na entrada e "pá!", caiu aquele negócio no chão, um barulho danado. Os investigadores fugiram todos. Ainda me lembro de um tira gordo que pegou um lenço vermelho e botou no pescoço, apavorado. E nós: "Abre a porta!", de revólver na mão. O camarada abriu, e quando chegamos lá em cima os presos estavam revoltados, quebrando tudo. Nessa hora os ladrões também começaram a ir contra a polícia. Brancura, Baiaco, esse povo todo que eu conhecia lá da Saúde, aqueles valentes, queriam acabar com a polícia. Meteram o pau, mataram muito policial.

- Quando foi que o senhor ouviu falar em Getúlio Vargas pela primeira vez?

- Foi no correr da luta. Porque antes, Getúlio nem era falado. Ele estava lá no Rio Grande do Sul, lá para aqueles cantos farroupilhas. Aí é que ele entrou para o rol de candidatos. Chegou aqui num trem especial, trazendo tudo quanto é cangaceiro lá do Rio Grande do Sul, e aí foi que se deu o nome dele. Os políticos ,daqui aceitaram ele, e aceitaram porque ele chegou com um aparato enorme.

- O que o pessoal do Partido achava de Getúlio?

- O Astrojildo Pereira, que era quem tinha mais prestígio, dizia: "Antes Getúlio do que..."

- Júlio Prestes.

- Não tinha nada de Prestes, não. Era um outro cara lá.

- Batista Luzardo foi logo nomeado chefe de polícia. O que as pessoas do Partido achavam dele?

- Bom, o Batista Luzardo traiu. A mim, traiu, porque pouco tempo depois me mandou para a Ilha Grande. Logo no começo, reabrimos o sindicato, e o Paulo Lacerda16 levava ele lá. Fui até capanga dele. Um dia ele mandou me chamar, eu, o Agenor Marinho e o João Júlio, porque queria dar um cartão para a gente poder entrar no Lloyd ou no Laje, não lembro, para ver quem falava contra Getúlio. Aí o Astrojildo disse: "Não faça isso. Você dar parte de seus companheiros, não. Não vá." Eu não quis aceitar.

- Quando foi que vocês reabriram o sindicato?

- Foi logo depois que começou a revolução. O Astrojildo e o Casini me procuraram e disseram: "Vai abrir o sindicato. Você conhece todo mundo, vai até lá." Fui falar com a dona do prédio, e ela disse: "Tem que dar o dinheiro do depósito." O Paulo Lacerda arranjou dinheiro, um outro rapaz que tinha apólice da Prefeitura também emprestou para pagar o aluguel, e nós reabrimos.

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Notas

3 - A greve dos marítimos iniciou-se em setembro de 1920 e só terminou definitivamente em fevereiro de 1921, sob forte repressão policial e grande antipatia popular. Noticiada amplamente no seu início pelo jornal Voz do Povo, a greve foi avaliada, pelos próprios anarquistas, como um terrível fracasso.

4 - Manuel Alves Rocha (1901-1979) era carioca e metalúrgico. Em 1917, começou a participar intensamente do movimento operário, tendo sido um dos fundadores da União Geral dos Metalúrgicos, criada em 1.0 de maio desse ano. Essa associação, que mais tarde deu lugar à Federação Metalúrgica do Rio de Janeiro, fechada devido à intensificação da repressão ao anarquismo em 1922, foi reorganizada em 1923 com o nome de União dos Operários Metalúrgicos do Brasil. Em 1925, Manuel Rocha foi secretário-geral dessa União, e em 1926 seu vice-presidente. Com a renúncia forçada do então presidente Amaro de Araújo, assumiu este cargo. Afastado do sindicato entre 1928 e 1932, retomou para participar do movimento de "reorganização sindical".

5 - Olinto Rabelo de Morais (1886-1967) era baiano e chegou ao Rio em 1914. Após participar das atividades de várias associações operárias vinculadas à FORJ, foi um dos fundadores da União Geral dos Metalúrgicos e, quando da "reorganização sindical" de 1932, ocupou vários cargos na diretoria do novo sindicato. Preso e solto várias vezes ao longo de sua vida, sempre manteve a militância sindical.

José Casini (1895-1959) nasceu em Minas Gerais. Em 1922, foi secretário ¬geral da Federação Metalúrgica do Rio de Janeiro. Foi também um dos fundadores da Aliança dos Operários Metalúrgicos de Niterói, da qual foi presidente em 1925. Membro do Partido Comunista, representou os trabalhadores brasileiros num congresso em Moscou em 1927, e em 1928 foi eleito membro do Comitê Central. Em 1932, também integrou a "reorganização sindical", tendo sido o primeiro presidente do sindicato então criado.

6 - Amaro de Araújo era um operário ferreiro, natural de Alagoas, que che¬gou ao Rio de Janeiro já experimentado nas lutas operárias da cidade do Recife. Em 1923, com a reorganização dos metalúrgicos na União dos Operários Metalúrgicos do Brasil. foi eleito presidente dessa associação. Permaneceu no cargo até 1926, quando foi afastado por pressão de um grupo de trabalhadores auto-intitulado "vanguarda metalúrgica", ligado ao PC, então interessado em infiltrar-se e ganhar a direção dos sindicatos cariocas. Sobre o sindicato dos metalúrgicos, ver Eduardo Stotz, A União dos Trabalhadores Metalúrgicos na construção do sindicato corporativista; 1920-45, Niterói, UFF, mimeo.

7 - É interessante observar que o depoente insistirá na designação "anarquista" mesmo ao relatar reuniões com pessoas conhecidas na época como comunistas. É com o decorrer do relato e com a participação dos entrevistadores que o termo comunista ingressará e tomará conta de sua fala. A resistência do depoente em dissociar anarquismo de comunismo é ilustrativa de como era e continuou sendo difícil separar essas duas experiências para um militante do movimento operário.

8 - Auto Lázaro Correia presidiu a União dos Operários Metalúrgicos do Brasil logo após a deposição de Amaro de Araújo em 1926.

9 - O Bloco Operário foi formado pelo PC tendo em vista as eleições para a Câmara dos Deputados de 24 de fevereiro de, 1927. Seus dois candidatos foram Azevedo Lima, médico e conhecido político de São Cristóvão, e João da Costa Pimenta, líder operário muito respeitado e conhecido e o maior responsável pela formação da União dos Trabalhadores Gráficos. Contudo, só Azevedo Lima foi eleito, passando a representar o BO no Congresso. Em 1928, o então Bloco Operário e Camponês (BOC) voltou a lançar candidatos, dessa vez para o Conselho Municipal do Rio de. Janeiro. Otávio Brandão e Minervino de Oliveira foram eleitos e tomaram posse, apesar das dificuldades do reconhecimento eleitoral. Finalmente, em 1929, o PC resolveu não aderir à Aliança Liberal e lançou como seu candidato à presidência da República o mesmo Minervino de Oliveira. O clima nesse, ano já era distinto do de 1926-7, e a repressão foi intensa.

10 - Francisco Mangabeira era filho de, João Mangabeira, político baiano que participaria da fundação do Partido Socialista Brasileiro (PSB) em 1947. Veio para o Rio quando da eleição de seu pai para a Câmara dos Deputados e, ainda como estudante, da Faculdade de Direito, integrou a diretoria provisória da Federação da Juventude Comunista, Embora tendo-se afastado do PC, foi um dos organizadores da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e secretário de. seu diretório nacional. Preso por ocasião da revolta de 1935, foi libertado em maio de 1937, passando a exercer a advocacia liberal.

11 - Roberto Morena (1902-1978) era um marceneiro carioca que desde 1917 iniciou sua militância política entre os trabalhadores. Anarquista e depois comunista, participou do movimento que, resultou na criação da Confederação Sindical Latino-Americana em Montevidéu. Preso várias vezes ao longo dos anos 3D, lutou na Guerra Civil Espanhola de 1937 a 1939 e esteve em um campo de concentração na Argélia. Voltou ao Brasil em 1943, e em 1945 foi eleito para a direção do PCB, além de ter sido escolhido secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB).

12 - João da Costa Pimenta foi anarquista, comunista e um dos integrantes da "cisão barbosista", que deu origem ao grupo trotskista no Brasil. Considerado um dos mais brilhantes e ativos líderes do movimento operário das primeiras décadas do século, militou no Centro Cosmopolita do Rio e, como gráfico, foi um dos principais responsáveis pela organização da União dos Trabalhadores Gráficos (UTG) em 1926.

13 - A greve geral dos gráficos em São Paulo teve início em março de 1929 e durou mais de três meses, terminando por acordos parciais. A greve foi violentamente reprimida pela polícia, e a sede da UTG em São Paulo invadida e fechada. Mesmo assim, os gráficos resistiram e receberam apoio de vários sindicatos do país.

14 - Cristiano Cordeiro era natural de Pernambuco e foi um dos fundadores do PCB em 1922. Como Everardo Dias, era maçom. Membro do PC durante toda a vida, foi contrário ao levante de 1935 por discordar dessa forma de l uta, mas dele participou.

15 - João Cabanas (1895-1974) era paulista e tenente quando aderiu ao movimento militar de 1924 contra o governo de Artur Bernardes, tornando-se um personagem mítico por seus feitos militares. Em 1935, já em oposição a Vargas, assinou juntamente com outros militares a ata de fundação da ANL. Em julho de 1937, esteve preso em Natal, e em novembro denunciou o golpe de Vargas que implantou o Estado Novo.

16 - Paulo Lacerda, irmão de Fernando e Maurício de Lacerda, era jornalista e foi importante nome do Partido Comunista. Participou das campanhas eleitorais do BOC, sendo lançado em 1929 como candidato ao Senado pelo Distrito Federal. Passou boa parte de sua vida em prisões e fugas, e após 1931 tentou o suicídio, acabando por enlouquecer.

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