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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

Velhos Militantes

 

Velhos Militantes
Depoimentos

Depoimento de João Lopes, o Santa
Ângela de Castro Gomes (coordenadora), Dora Rocha Flaksman, Eduardo Stotz
Jorge Zahar Editor

 

 

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O Menino de Ouro descobre o anarquismo

- Seu João, quando e onde o senhor nasceu?

- Eu nasci numa vida agitada. Minha avó veio de Angola, escrava. Minha mãe nasceu do ventre livre. Então, desde garoto, eu fui um pouco rebelde.

- E a data e o local de seu nascimento?

- Nasci em 4 de maio de 1896, na cidade de São João da Barra, no Estado do Rio. Minha mãe era América Maria da Conceição, doméstica, e meu pai, Abrão de Sousa, marítimo. Fui o filho mais velho da minha mãe e tive sete irmãos.

- O senhor sabe como sua família foi parar em São João da Barra?

- Quando minha avó chegou, escrava, foi vendida para um fazendeiro do Espírito Santo que tinha terra perto de Itabapoana. Lá nessa fazenda ela viveu até quando veio a libertação de 13 de maio. Aí se juntou com outra mulher chamada Rosara, que também tinha vindo de Angola, e enquanto ela mesma foi ser babá de uma dona, essa Rosara criou a minha mãe. Como você sabe, o fim da escravidão teve um ponto bom e um ponto ruim. Porque o dinheiro que elas ganhavam - três patacas, como se dizia naquela época não dava para viver. Como escrava, minha avó tinha direito a um médico, a um tratamento, porque ela era um capital, desde que estava em serviço, produzindo. O que aconteceu com a libertação? Soltaram as escravas, e com um salário de três patacas elas não podiam viver.

Essa Rosara então veio para São João da Barra com a minha mãe, para fazer companhia a um português que tinha dinheiro. Minha avó ficou com essa dona que ela criou e só veio depois, quando eu já tinha nascido. De vez em quando ela chorava, porque nunca mais soube notícias dos parentes, nem os filhos ela sabia onde estavam. Teve um homem chamado Lídio que juntou com a minha avó - naquele tempo não casava, juntava. Vi esse homem uma vez quando era garoto, na cadeia de São João da Barra, e a minha avó dizia que ele tinha matado um camarada. Depois ela casou com outro.

Mas tudo aquilo que a minha avó contava - ela tinha muito carinho comigo - ficou no meu sangue. Eu ficava revoltado, indignado com aquelas histórias. Cheguei até a ser um moleque meio marginal. Agora, honesto: nunca roubei ninguém. Só vivia na rua brigando, rasgando os outros.

- E seu pai, onde trabalhava?

- No começo, ele trabalhava na companhia de navegação do Coronel Chico Pinto. Porque os navios saíam do Rio de Janeiro, iam até São João da Barra, descarregavam, e de lá as embarcações de água doce subiam o rio Paraíba para levar as mercadorias para as cidades, até São Fidélis. Mas só fui conhecer mesmo o meu pai mais tarde, em Campos. Minha mãe se aborreceu porque ele bebia um bocado, e se separaram quando eu ainda era pequeno. Tive então um padrasto, um bom padrasto, que depois morreu afogado.

- O senhor foi criado por seu padrasto?

- Não. Vendo que eu vivia na rua brigando, minha avó pediu ao seu Carrazedo para tomar conta de mim. Seu Carrazedo era um francês que tinha uma loja de fazendas, e a minha avó era empregada dele. Então fui morar na casa do Carrazedo. Ele tinha uma filha, tratada de Lulu, uma irmã, Custódia, e a mulher, Mãe laiá, Dona Maria Francisca. Elas não podiam comigo. Mãe Iaiá tinha um oratório bonito com cordões de ouro e um Santo Antônio. Quando ela não me dava o que eu queria, eu pegava aquela bola e dizia: "Olha que eu quebro este oratório!" Ela contava para o Carrazedo, ele me chamava, não batia, mas me dava uma lição: "Olha, rapaz..."

Também passei por uma questão racial danada em São João da Barra, e o Carrazedo tomou o meu partido. A primeira briga que ele teve lá foi quando mandou matar um cachorro que tinha me mordido. Por minha causa, rompeu com uns capitalistas da época. Tinha um sujeito lá, Francisco de Oliveira, chefe dos Correios, que brigou com ele e vivia dizendo: "Não vou na casa do Carrazedo, com aquele negro comendo na mesa." E o Carrazedo respondia: "Quem manda na minha casa sou eu, branco sou eu, que sou francês, o reste é tudo mestiço."

- O senhor freqüentou alguma escola?

- Duas. Em São João da Barra tinha três escolas: uma, a Professor Moreira,era só de filho de rico. Na outra, Amélia Ramos, estudei um bocado. Estudei também na Idalina Machado, escola pública. Mas aí veio a coqueluche, e eu não podia ir à escola porque era doença contagiosa. Veio a bexiga - hoje é varíola - e eu não podia ir de novo para não passar para os outros. Aí ficou o seguinte: a Lulu me dava alguma explicação. Acho que na escola mesmo fiquei uns três anos, não cheguei a tirar o primário. Agora, eu era muito afamado. Escrevia bem, isso tudo. O colégio era masculino e feminino, tudo junto, e era eu que tomava conta das meninas, não deixava os garotos baterem nelas. As mães me entregavam as meninas para eu levar para a escola, e ninguém mexia com elas porque eu era brabo mesmo.

- O senhor teve educação religiosa?

- Minha família era toda religiosa, e o seu Carrazedo era da Irmandade do Sacramento. A Lulu engomava as roupinhas dos santos, as toalhas. Também, ela não tinha o que fazer. Era considerada a menina mais bonita do local, era desejada, todo mundo queria namorar com ela, mas ela não dava confiança. Tinha uma cachorrinha e três gatos. Lavava os gatos, botava perfume neles, e aqueles cavalos sempre traziam coleiras bonitas do Rio, de presente, mas ela não dava importância. Tratava todo mundo muito bem, era fina, mas democrata. Agora, de namoro, ela não dava essa conquista.

Uma vez aconteceu um caso: apareceu uma criança afogada no Paraíba, e começaram a dizer que era filho da Lulu. Minha mãe, minha avó, até eu fui à polícia - queriam saber se eu tinha visto a moça doente em casa, alguma coisa assim. Nunca vi nada, e olha que eu vigiava muito ela, era muito fiel a ela. Mas foi uma trapalhada danada, e o Carrazedo passou muito mal. Foi para a Inglaterra tirar banha do coração e morreu no meio do caminho. Naquela época, gostei quando ele morreu. Tinha uns 12 anos, vivia preso com a Lulu e a cachorra na janela vendo os moleques na rua, e achei que tinha ficado livre.

Logo a primeira coisa que eu fiz quando soube da morte dele, todo mundo de luto, foi sair e ir a um teatro de revista. Caiu a noite e eu nada de voltar, o povo todo me procurando. Quando voltei, Mãe Iaiá me disse: "Agora que o seu Carrazedo morreu, a coisa é outra. Você fica almoçando e jantando aqui, mas vai dormir na sua casa. Que emprego você quer?" Eu disse: "Quero ser alfaiate." Ela mandou chamar o alfaiate, me botou para trabalhar com ele, mas cheguei lá, e o camarada queria que eu passasse o dia varrendo o chão. Eu pensei: "Ele quer é me fazer de empregado para eu limpar a casa dele; não vou mais lá, não." Mãe Iaiá perguntou: "Então o que você quer?" Respondi: "Quero ir para o estaleiro do Coronel Cintra."

- Havia um estaleiro em São João da Barra?

- Dois. Um era do Coronel Cintra e o outro do Coronel Chi¬co Pinto. Dividíamos a cidade em duas, um pedaço de cada coronel.

Muito bem, fui para o estaleiro. Queria ser torneiro-mecânico, mas o mestre, embora sendo preto, não admitia pretos. Era um racismo danado. Fui então ser ajudante de locomóvel, uma máquina de apitar. Às seis horas da manhã, eu já estava entrando para dar o primeiro apito das seis e meia. Depois me tiraram da máquina e me botaram como ajudante de ferreiro. Fui tocar forja no arrebite, e aquilo queimava a gente todo. Eu também era safado e queimava os outros. Aí me passaram para a carpintaria. Eu ficava lá botando fogo para dar volta na madeira. Aprendi um bocado. Mas um dia um compadre do mestre apanhou o serrote e escondeu. O mestre me perguntou: "Cadê a caixa de ferramentas?" Eu disse: "Sei lá!" Ele me deu seis bolos, e por causa dessa sova saí do estaleiro.

- E para onde o senhor foi?

- Um companheiro me disse: "Vamos trabalhar como cigarreiro, a gente ganha mais." A gente fazia os maços, botava os rótulos, e de trezentos réis por dia passei a ganhar mil e duzentos. Mas um dia cheguei na casa de Mãe Iaiá, e ela falou: "Você está com catinga de fumo! Você anda fumando?" Respondi: "Eu, não." Mas ela chamou a minha mãe e disse: "Olha, leva ele para casa, porque ele já está fumando e daqui a pouco dá para beber."

- Nessa época o senhor morava com sua mãe?

- Morava. Quando voltei para casa, depois que o Carrazedo morreu, sofri um bocado, porque estava cheio de dengo, e a minha mãe me castigava, me botava para trabalhar. Ela não quis mais aquele negócio de cigarreiro, então saí e fui para a padaria. Ela se dava muito com o dono, o João de Oliveira Cintra, e falou com ele para eu ir trabalhar lá.

Mas antes disso fui um moleque perverso. Tomava conta de menino, filho de fulano, filho de sicrano, pegava os garotos e fazia eles aprenderem a nadar a pulso. Tomei conta de um, o Pedro Nolasco, que depois foi até secretário do presidente do estado em Niterói. A minha avó era empregada da mãe dele. Mais tarde, quando fui preso, ele foi lá na prisão e me ajudou. Mas logo depois me mandaram para a Ilha Grande.

Antes de eu ir para a padaria, também aconteceu um caso comigo. Tinha um camarada lá que era contraventor de bicho, brigado com o tabelião. Era uma briga política, questão de partido, e o tal contraventor jogou um tijolo e quebrou a telha da casa do outro. Eu ia passando com um companheiro, veio aquela correria, e a polícia saiu atrás de nós. Me botaram na prisão e disseram que no dia seguinte iam me mandar para a Escola de Aprendizes Marinheiros aqui no Rio.1 Era o tempo da chibata, e se apanhava feito um endiabrado.

Acontece que tinha chegado lá em São João da Barra o dr. Chaves Pena, sobrinho do presidente da República Afonso Pena. Aliás, ele foi abandonado pela família, porque chegou a vestir batina, mas gostou de uma menina e resolveu casar. A família se revoltou contra o rapaz e deixou ele na miséria. Ele então foi ser dentista em São João da Barra. A minha tia lavava roupa para ele e foi lá: "Doutor, doutor, o João vai ser deportado para o Rio, vá lá acudir ele." Ele se vestiu, foi à delegacia e disse: "Quero saber qual é o delito pelo qual vocês vão desterrar este rapaz. Quero uma testemunha que tenha visto ele jogar o tijolo." Disseram: "É, e tal, mas a mãe dele não agüenta com ele..." E o doutor: "Não interessa, o senhor não pode fazer isso. A lei não permite." Então fui solto e não fui deportado. Aí é que eu fui para a padaria. No dia em que fiz 15 anos comecei a trabalhar lá, e lá fiquei cinco anos.

- O que o senhor fazia na padaria?

- No começo me disseram: "Você vai trabalhar no balcão, entregar pão nas casas." De entregador passei a padeiro, e de padeiro passei a mestre. Esse João de Oliveira Cintra botou um camarada para me ensinar a ser fogueiro, biscoiteiro, tudo isso. Ele foi um pai para mim, igual ao Carrazedo.

- O senhor gostava dele?

- Não, não gostava. Ele é que tinha que gostar de mim, por que ele tinha um passado com uma prima minha. Teve um filho com ela, e depois o menino desapareceu. Eu sabia dessa patranha, a mulher dele era muito nervosa e desconfiava. Ele me protegia por isso, porque eu guardava esse segredo.

- Nessa época havia alguma organização de padeiros em São João da Barra?

- Não tinha nada de organização. Tinha era clube carnavalesco e banda de música. Eu queria entrar para o Clube Concha, mas não podia porque era preto. Só entrei porque uma senhora me ajudou. A minha mãe tinha dado leite para o filho dela, o Cícero, que depois foi prefeito de São Fidélis, de maneira que ela tinha cotação. Com a banda de música foi a mesma coisa: não aceitavam pretos.

Mas eu sempre fui apaixonado por música, então estudei particular e aprendi a tocar violão.
Mas nessa época tive um desentendimento com a minha mãe. O meu padrasto morreu afogado no rio, e um dia me disseram: "Olha, a tua mãe está encostando naquele camarada assim, assim." Foi uma coisa! Me deu vontade até de tirar a vida. Larguei tudo e fugi para Niterói. O João Cintra mandou me buscar, porque eu era de menor, e quando cheguei preso, com dois guardas, a rua encheu: "Fujão! Fujão!"

Tinha chegado a São João da Barra uma moça branca, chamada Dalila, que começou a conversar comigo, me aconselhou a não fazer mais aquilo. Disse que gostava de mim. Nunca tive esse negócio de amor, eu era é farrista. Mas ela tomou aquele capricho. E aí a minha mãe fez política contra mim e contra ela, jogou o João Cintra contra mim. Ele disse: "Boto uma padaria para você, mas você arranja uma escurinha para casar. Você não sabe que negro não pode namorar com branca?" Assim, na minha cara. Aquilo doía. A velha Rosara então me deu um dinheiro, comprei tijolo, fiz uma casa bonita, e aí é que a coisa danou. Apareceram umas três querendo casar comigo. Eu só tinha vontade de casar com uma, chamada Clarinda, que me salvou um dia que eu caí dentro do rio, enterrei na lama e ia morrendo afogado. Ela gritou, e os pescadores me tiraram lá do fundo. Mas ela ficou noiva, e a mãe dela um dia saiu atrás de mim na rua e me deu com um sapato na cara. Tive que correr. Problema sério na minha vida...

- O senhor trabalhou na padaria do João Cintra dos 15 aos 20 anos de idade.

- É, saí em 1916. Por causa desses aborrecimentos com a minha mãe, fui-me embora para Campos. Fui trabalhar na padaria da Madame, na rua 7 de Setembro.

- Como era o trabalho nessa padaria em Campos?

- Mais ou menos a mesma coisa. Mas a maioria das padarias em Campos era de italianos, e eles também faziam macarrão. Comecei lá como padeiro, embora já fosse forneiro. Preparava a massa, e trabalhava com tanta agilidade que fiquei conhecido como "Menino de Ouro".

Agora, tinha o seguinte: lá em Campos, tanto os padeiros como os forneiros trabalhavam a noite toda e saíam de manhã para entregar pão na rua. O pessoal saía daquela quentura do forno para apanhar chuva. Resultado: muitos caíam doentes. Outra coisa é que as padarias pagavam 30 mil-réis e davam o almoço, mas tinha que ser às 11 horas em ponto. Se o camarada chegasse atrasado, perdia a bóia e tinha que ir comer no botequim, pagando. Então, todo mundo marcava encontro de manhã no mercado, depois de entregar o pão, para não dormir e perder a hora. Lá na minha padaria era eu que entregava a comida, e ficava com uma pena danada. As vezes chegavam dois ou três atrasados, e eu dizia: "O tabuleiro já subiu, vocês têm que ir comer no botequim." Às vezes o sujeito não tinha dinheiro, tinha que pedir emprestado. Isso foi me fazendo uma revolta.

O pessoal lá vivia dizendo: "A gente tem que acabar com esse negócio de padeiro entregar pão e perder a comida se chegar atrasado. Vamos fazer uma greve!" Eu digo: "Vocês todo dia dizem que vão fazer greve e na hora ninguém faz." Eles: "É nessa semana." Nada. AÍ eu me enfezei: fiquei com pena de uns três que perderam o almoço e não tinham dinheiro para a comida, e disse: "Ah, a greve é agora mesmo!" Puxei a toalha, joguei tudo no chão e saí correndo pelo corredor. A Madame, que era italiana, gritava: "Gioani! Ficou maluco, Gioani!" E eu: "É greve! É greve!" Daí a outra padaria que era mais na esquina se juntou, e ferrou a greve. Fui muito aplaudido pelos companheiros, e foi aí que eu conheci o chefe dos anarquistas, o Valdomiro da Fonseca Teles. Era um camarada que passava meses trancado dentro da padaria, só de tanga. Era gordo e forte, e os patrões tinham medo dele. Deitava nu em cima do tabuleiro, dizia palavrão, esculhambava todo mundo: "Galego filho da puta!" Também, com um revólver na cinta, quem é que ia querer negócio com ele?

- Vivendo trancado dentro da padaria, ele tinha contato com os outros padeiros?

- Tinha, os padeiros iam de noite lá na padaria dele para conversar. Eu não ia não, só ouvia falar. Nesse dia da greve, ele mandou me chamar para conversar com ele, e eu fui. Aí disseram: "Olha, vamos formar esse negócio de Liga dos Padeiros." Assinei e fiquei como sócio.

- O que é que a Liga se propunha fazer?

- O programa foi este: acabar com essa história de padeiro entregar pão na rua, que botassem outro encarregado. E acabar com o almoço. Em vez de 30, pagar 70 ou 80 mil-réis a seca. E também fazer revezamento: trabalhamos à noite e só à noite. Pegamos das três da tarde às oito da manhã, e não vamos ficar até uma, duas horas da tarde para fazer rosca e biscoito.

- Desse jeito os padeiros trabalhavam 24 horas por dia!

- Padeiro só tinha descanso sabe que dia? Sexta-feira da Paixão. Nesse dia, a gente pegava às dez da noite.

- Além da Liga dos Padeiros, havia alguma outra associação de trabalhadores em Campos nessa época?

- Tinha a Liga dos Carroceiros, que eram os anarquistas mais brabos de Campos. Brigavam, batiam, quebravam, faziam o diabo.

- O senhor se lembra de alguma ação, alguma outra greve que os anarquistas tenham promovido nesse período?

- Depois da greve dos padeiros, fui morar na casa do Fonseca. Aí ele fazia o seguinte. Virava para mim e dizia: "Menino de Ouro, você vai para Tocos - era no município de Campos - e acaba com a padaria de lá. O dono manda os padeiros lavarem cavalo! Acaba com aquilo lá." Eu ia e acabava.

- Como?

- Sabotando. Por exemplo: na padaria, tinha um bolo de massa com fermenta pesando um quilo. Na dia seguinte, a gente juntava mais massa e aumentava a bolo para três, de três aumentava para dez, vinte quilos. Mas se a gente lavar a mão cam sabão virgem antes de desmanchar aquele bolo de massa, o pão não cresce, e o sujeito não descobre o defeito. Sem pão, a padaria vai à falência. Acabei com duas padarias em Campos.

O Fonseca sabia cem mil segredos de padeiro. Ensinava também a fazer bomba-relógio, o diabo. Agora, isso era uma coisa que eu não topava nos anarquistas: andar com bomba.

- Valdomiro Fonseca foi preso alguma vez?

- Não, pelo seguinte: nessa época não havia reação policial. Se um camarada era preso, logo era mandado embora. O Fonseca não tinha medo da polícia, não tinha medo de ninguém. Só mais tarde é que ele acabou assassinado, perto de Friburgo.

- Ele lia algum livro, mandava os outros lerem? O que ele dizia que era a anarquismo?

- Ele lia, tinha livros, e ensinava os padeiros na questão social. Dizia que o anarquismo ia salvar o mundo. Hoje nós vemos que é o socialismo. Os anarquistas não queriam saber de educar o povo, não. Iam na força: "Esse camarada não vai fazer greve, não? Mete o pau nele, derruba ele no cacete!" Eu achava isso um pouco brabo.

- Os padeiros também se reuniam na casa do Valdomiro Fonseca?

- Tanto nos reuníamos na casa dele como tínhamos um encontro diário de manhã num botequim na rua Aquidabã. Lá é que iam as pessoas do interior procurando padeiro: "Não tem um padeiro aí que queira ir para tal lugar?" A gente avisava os outros: "Vai lá no botequim que tem uma vaga não sei onde."

Comigo aconteceu até um caso muito grave. Eu já estava disposto a deixar a vida de padeiro, não agüentava mais aquilo, mas fui convidado lá no botequim para tomar conta de uma padaria em Barcelos, levando mais dois rapazes. O Fonseca disse: "Vai, vai, para lá." Ele é que mandava, que dava opinião. Fui então como forneiro, e levei o Zé Caolhinho e o Zé Marcante como padeiros. Mas chegamos lá e só trabalhamos uma noite. O dono da padaria estava estirado com a gripe espanhola, e no final de uma noite nós três arriamos. Saí de manhã sem ver nada, com uma febre medonha, voltei para Campos e passei na casa de uma senhora chamada Carola, para pegar umas roupas que eu tinha guardado lá. Era uma senhora casada, que me estimava muito porque eu passeava com o filhinho dela, jogava bola com ele. Eu ia para o hospital, mas ela disse: "Não, você vai ficar aqui em casa. O meu filho já está caído de febre, eu cuido dos dois. Quando o meu marido chegar, converso com ele." Quando o marido chegou, não gostou do negócio.

- E o senhor se recuperou?

- Me salvei porque tinha um médico à disposição. Quem ia para o hospital morria. Fiquei lá um mês e pouco, e aí decidi mesmo que não ia mais ficar na vida de padeiro. Combinei com um primo meu de vir para a Rio de Janeira, fui lá na botequim e avisei aos companheiros: "Vou I11e embora, que a ambiente não está bom lá na casa dessa dana." O marida não estava satisfeito de eu estar morando lá, embora eu respeitasse ela como respeitava a minha mãe. Ela foi um braço que me auxiliou, me salvou da espanhola. "Vou me embora para o Rio, sentar praça na Corpo de Bombeiros." Eles disseram: "Você não pode ir! Não podemos perder a Menina de Ouro!" Estava Já no botequim um engenheiro, que ouviu aquela conversa e perguntou para o gerente: "Quem é esse rapaz? Ele é bom assim coma estão dizendo?" O gerente respondeu que sim, e a outro falou: "É que recebi uma carta da minha irmã pedindo para eu procurar um padeiro para ir para a fazenda dela, em Quiçamã."2 O gerente me chamou, a homem falou comigo, disse para eu ir ver cama era a negócio, que se não gostasse eu ia embora, e no fim me deu 25 mil-réis para a viagem. Mas aí encontrei com o pessoal da banda de música - eu tocava clarineta -, e as meninas não me deixaram ir no dia marcado, parque ia ter uma festa. Eu me meti no baile mesmo e não apareci na casa do homem. O pessoal dizia: "O homem está te procurando!" E eu: "Ai, que eu estou enrascada..."

- Seus companheiros anarquistas aprovavam que o senhor tocasse na banda, fosse a bailes?

- Não, criticavam, achavam que eu perdia muito tempo com as meninas. Também não gostavam muita que eu jogasse futebol. Mas eles não mandavam em mim. Eu era um sujeito autônomo nesse negócio. Não respeitava ninguém, fazia o que eu queria, ninguém podia me manobrar. Uns cinco eu carreguei para o meu grupa de música.

- E onde o senhor jogava futebol?

- Nos clubes. Joguei no Lacerda, no Paladino, na Selva, na Norte-Guanabarense, na Liga do Avante. Uma vez teve um joga lá, numa festa de doutores, e o dr. Coelho das Santos me pediu para jogar. Fui com mais dois, e no fim eles nos pagaram e nos mandaram embora, não deixaram a gente ficar na festa porque a gente era preto. Fiquei muito aborrecido.

Mas aí, como eu ia dizendo, resolvi ir mesmo para Quiçamã, para ver como era aquela história. Isso foi mais ou menos em dezembro de 1918, depois que a guerra acabou. Peguei um trem e fui. Ah, vou lhe contar!

- O que aconteceu?

- Quando a trem parou na estação, tinha uma casa comercial enorme, e eu me apresentei ao camarada no balcão. Ele falou: "Ah, é você, seu moleque safado! Trapaceiro! Que apanhou o dinheiro da minha tia e não apareceu! Aqui você vai andar na ordem!" Eu, todo metido, chapéu castor, guarda-chuva, sapato amarelo de abotoar da lado, todo fino, receber uma esculhambação dessas na vista de todo mundo! Já não gostei. Dali a pouco chegou o trem deles, que ia para a fazenda, e o homem chamou o chefe do trem: "Leva esse moleque trapaceiro lá para a fazenda." Assim ele me tratou. Eu até conhecia o chefe do trem, e assim que começamos a andar ele me disse: "Rapaz, como é que você veio parar aqui? Daqui você não sai nunca mais! Só fugindo. Isto aqui é um feudo."

- O senhor se lembra do nome do dono da fazenda?

- Não. Mas tudo lá era parente, cada um tinha uma fazenda. Só casava primo com prima, tudo a mesma família.

Dali a pouco o trem pára na ponta final, e vem outro parente: "Moleque trapaceiro, e tal..." Eram cinco da tarde, estava chuviscando, abri o meu guarda-chuva e dei para chorar que foi uma coisa horrível. "Onde é que eu me meti? Estou desgraçado, nunca mais vau sair daqui." Afinal veio um sujeito num carro de boi me buscar. Me levou para a casa do delegado Juanito, e o delegado veio de novo com esculhambação, perguntando ande eu nasci, se era casado, se fumava, se bebia. No final ele perguntou: "Você é padeiro mesmo ou é conversa fiada? Porque já esteve aqui um padeiro do Rio que não sabia fazer pão, dei uma sova nele e mandei embora." Aí chamou as duas filhas, que eram adotivas. Desculpe eu usar essa expressão, mas havia esse direito de pernada: as meninas eram filhas de lavrador que ele batava dentro de casa para serem amigas dele. Bem, chegaram as meninas com uma bandeja, e ele disse: "Sabe fazer pão coma esse?" Eu respondi: "Igual a esse, não, que isso não é pão. Isso é bolo de massa. Sei fazer melhor. "

Já tarde da noite cheguei na sede da fazenda. Era um palácio! Chorei a noite toda pensando: "Nunca mais vou sair daqui!" Que o chefe do trem tinha dita: "Só fugindo."

- Quanto tempo a senhor ficou na fazenda?

- Dois anos. E saí fugido. Montei a padaria lá, e todo o dinheiro que eu ganhava guardava para poder fugir. Porque eu não podia sair de lá. Como é que eu ia fazer, se eles não deixavam?

- E como foi que o senhor fugiu?

- Desculpe eu dizer, mas aconteceu que eu gostei de uma pequena, filha de uma criada da fazenda, morena bonita, e fiz mal a ela. Ela ficou grávida, a mãe descobriu, e tive que fugir mesmo. Combinei com ela: "Olha, vou para Campos e depois mando te buscar." Vendi o meu cavalo, peguei o dinheiro, deixei a mala com tudo meu e fugi com um companheiro que sabia o caminho.

- O senhor foi para Campos.

- É. Quando cheguei, fui procurar aquela senhora Carola, que me salvou da espanhola. Ela também era uma morena bonita, desejosa, e me acoitou outra vez, porque lá em Campos também tinha parentes do pessoal de Quiçamã. Fiquei três meses escondido. Um dia chegou a notícia de que a minha pequena de Quiçamã tinha morrido, e o garoto também. Essa senhora Carola foi lá, arranjou de trazer a minha mala, que estava perfeita, com tudo dentro, e aí eu disse: "Bom, agora chegou a hora. Agora vou-me embora para o Rio de Janeiro."

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Notas

1 - A Escola de Aprendizes Marinheiros do Rio de Janeiro foi criada por decreto imperial em 1885 e é um exemplo de instituição cujo objetivo era recolher e educar crianças órfãs, pobres ou abandonadas. O medo que João Lopes transmite ainda hoje ao relatar a possibilidade de seu envio a esta escola é elucidativo do teor da disciplina que aí imperava e da fama que ela possuía em inícios do século.

2 - As terras de Quiçamã, povoadas a partir do século XVII, situam-se na região dos Campos dos Goitacases, próprios à exploração da cana-de-açúcar. O grande proprietário da área no período imperial foi José Carneiro da Silva, primeiro visconde de Araruama, antepassado comum de uma numerosa família mantida unida por freqüentes casamentos consangüíneos. Até hoje, Quiçamã - distrito de Macaé - abriga as ruínas de velhos casarões, sedes das fazendas de Mato de Pipa (a mais antiga), Machadinha (1867), Mandiquera (1874), Boa Esperança (1883) e Quiçamã, que, data de inícios do século passado e chegou a possuir 48 quartos.

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