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Insurreição Comunista de 1935
em Natal e Rio Grande do Norte

 

Garrancho, Ópera Sertaneja
Aécio Cândido e Crispiniano Neto

 

 

 

 

 

 

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Dedicatória

O Sindicato do Garrancho
Prefácio de Brasília Carlos Ferreira

Garrancho Ópera Sertaneja

Personagens

Créditos


Dedicatória
a Vivaldo Dantas,
Chico Guilherme
e Lourival de Góis,
pela dignidade com que vestiram a vida e a
militância política;

a Rodrigo e Marcondes Filho,
por razões do coração.

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Personagens
01 - Chico Guilherme
Foi presidente do Sindicato dos Salineiros de Mossoró, de 46 a 50. Preso duas vezes: de 36 a 37, cumprindo pena na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, e de 38 a 39. É motorista de taxi em Mossoró, onde mora com dona Francisca Clara, sua mulher. Está com 74 anos.

02 - Cândido Benedito
Mossoroense, foi o segundo presidente do Sindicato, iniciando o mandato em 1932. Mora em Fortaleza.

03 - Joel Paulista (Joel Martins do Nascimento)
77 anos, vividos em Mossoró, onde nasceu. Foi duas vezes presidente do Sindicato: em 34/35 e em 55 (interinamente). Preso duas vezes: em dezembro de 35, condenado a dois anos de prisão, cumpridos na Ilha Grande, ao tempo de Graciliano Ramos; e em 64, cumprindo um ano.

04 – Policárpia
Presidente da Associação de Mulheres Trabalhadoras de Mossoró. Foi presa em 36, acusada de insuflação. Organizava paneladas e grandes festas, a fim de levantar dinheiro para o Partido. Morreu fora de Mossoró.

05 – Alemão (José de Alencar)
Carioca, chegou em Mossoró em 35, com mais ou menos 24 anos. Era engenheiro, especialista em explosivos. Foi fuzilado no sítio Cigano, ao pé da Serra Mossoró, pelo sargento Francisco Felício (Chico Zaza), em 36, depois de dissolvido o grupo guerrilheiro.

06 - Miguel Moreira
Natural de Angicos/RN. Era rábula. Último resistente do Grupo. Foi preso em 36, cumprindo 5 anos de prisão em Natal.

07 - Feliciano Pereira de Souza
Entregou-se à polícia após matar Manuel Torquato, tendo antes passado na casa da família Fernandes. Cumpriu 5 anos de prisão, em Natal. Foi morto em Ceará-Mirim (RN) por um soldado.

08 - José Mariano (Luiz Manuel da Silva)
Sua militância no Partido foi quase toda na clandestinidade. Usou os nomes de Zé Mariano, Antônio Martins, além do nome de guerra assumido dentro do Partido: Pirajaba. Foi soldado do exército, tendo participado de uma rebelião. Em João Pessoa (PB), matou um policial integralista, durante um comício. Vendia pão-de-milho em Mossoró. Esteve envolvido na morte de Chico Bianor (14/10/34), feitor de uma salina em Areia Branca. Chico Bianor tinha ameaçado arrancar-lhe os dentes. Foi morto pela polícia em 36, em Limoeiro do Norte (CE).

09 - Jonas Reginaldo
Morreu em 74. Junto com os irmãos Raimundo, Lauro e Glicério compunha um núcleo de intelectuais ativos no meio operário mossoroense e ligados ao PCB. Era marchante.

10 - Sebastião Caldeira
Guerrilheiro grossense. Morreu em 36, quando detonou um cinturão de explosivos que conduzia à cintura.

11 - Manuel Torquato de Araújo
Chefe do grupo guerrilheiro. Antes de ser salineiro foi pequeno comerciante, ambulante. Foi preso pelo bando de Lampião. Fugiu e perdeu toda a mercadoria para o bando. Organizou um sindicato de trabalhadores rurais em Alagoinha e outro em Açu, quando despertou a raiva de fazendeiros locais. Morreu com 35 anos. Deixou 7 filhos, alguns ainda hoje morando em Mossoró.

12 - Raimundo Sacristão
Por mais de 50 anos foi sacristão da catedral de Santa Luzia. Morreu em 78, com 66 anos.

13 - Rafael Fernandes Gurjão
Médico e político, foi prefeito, deputado e governador. Diretor do jornal O MOSSOROENSE. Morreu no Rio de Janeiro em 1952, com 71 anos.

14 - Lauro de Escóssia
Jornalista e historiador, foi diretor de O MOSSOROENSE, onde escreveu uma série de artigos sobre o período da guerrilha. Vive em Mossoró.

15 - Edgard Barbosa
Professor, jornalista e escritor de Ceará-Mirim (RN). Morreu em Natal, em 1976, com 67 anos.

16 - Raimundo Juvino
Comerciante e industrial, foi prefeito de Mossoró de novembro de 32 a setembro de 33. Chegou a ser preso por ser cafeísta. Morreu em Natal, em 1980, com 93 anos.

17 - Saboinha (Vicente Carlos de Sabóia Filho)
Nasceu em 1889, no Ceará. Foi por muitos anos superintendente da estrada de ferro de Mossoró, adquirindo fama de terrível pelas arbitrariedades praticadas contra ferroviários e outras categorias. Morreu em 1965.

18 - Celina Viana
Natalense, nasceu em 1890. Esposa do Prof. Eliseu Viana. Entrou para a história de Mossoró por ter sido a primeira mulher no Brasil a votar (1928). Morreu em 1972, em Belo Horizonte.

19 - José Martins de Vasconcelos

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Créditos
Garrancho, Ópera Sertaneja
Aécio Cândido e Crispiniano Neto

Editora Universitária da UFRN
Natal - RN - 1985

Associação dos Professores de Mossoró – APM

Coleção Quadro Negro Vol. I
Mossoró - 1985

Apoio: Secretaria de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte

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O Sindicato do Garrancho
Prefácio de Brasília Carlos Ferreira

O Sindicato do Garrancho

Aécio me telefona e pede um prefácio para o trabalho que está publicando, uma teatralização do Sindicato do Garrancho. Joel Paulista, um dos personagens, me falara certa vez sobre a peça e eu até já esquecera. Não por descaso, mas pela quantidade de papel em branco em minha frente, recebendo registro dessa mesma história.

Coincidência? Não no fato em si. Acho que se inscreve na mesma trilha de tentar escrever/reescrever, contar/recontar nossa história. Talvez ajude aos que queiram refazê-la. Ou talvez sirva apenas para fixar com detalhes o tempo de um povo. O que já não seria pouco. "Houve um tempo aqui em Mossoró, que era proibido falar o nome operário. Quando o camarada citava o nome de operário se não fosse preso, pelo menos ficava em vista" (¹).

É desse tempo que o livro fala. E se a gente tiver o cuidado de ler vai que esse tempo é também o nosso tempo. Portanto, é do nosso tempo que ele fala. De um tempo de violência e opressão, de perseguição e de morte aos que tentam fazer do seu tempo, a sua história.

Pretende resgatar a luta dos trabalhadores das salinas de Mossoró para fundar o seu Sindicato. Uma história que se desenrola entre 1931 quando foi criada a Associação dos Trabalhadores nas Indústrias do Sal, até 1946, quando enfim, recebem a Carta Sindical. Ao começarem essa luta, já estava em vigor o Decreto n° 19.770, da Sindicalização. Mas, "só tinha valor por lá, porque ainda hoje as leis só vigoram lá no pé do Palácio, quando chegam aqui, perdem o valor, perdem ação, não valem mais nada, porque ninguém cumpre" (²). Essa legislação transformava os Sindicatos, de entidades independentes organizadas livremente pelos trabalhadores, em entidades burocráticas, atreladas ao Estado via Ministério do Trabalho. Os setores mais conseqüentes da classe operária resistiram vigorosamente à intromissão do Estado em suas formas de organização.

Os ecos dessa luta chegaram a Mossoró e as discussões iniciais apontavam para a criação do Sindicato fora da tutela do Ministério do Trabalho. Mas a reação dos proprietários de salinas à iniciativa da Organização dos Trabalhadores foi tão violenta, que eles procuravam se colocar ao abrigo da lei, agindo conforme os requisitos exigidos pelo Ministério, para obter a legalização. Registraram-se como Associação, tal como determinava a lei. Criou-se então uma situação insólita: os patrões se negavam a aceitar que a Associação representasse os trabalhadores sob a alegação de que ela não era ainda Sindicato, ao mesmo tempo lutavam por todos os meios para que a Associação não fosse reconhecida.

Nessa época, a oligarquia dos Fernandes, grandes proprietários incluse de salinas, detinha grande poder e influência em Mossoró. Os Prefeitos eram os Fernandes ou alguém de sua confiança. Nas eleições de 1934, Rafael Fernandes foi eleito Governador do Estado. A luta para impedir a legalização do Sindicato dos Trabalhadores nas Salinas, até então reservada, emerge em toda a sua intolerância na declaração de Rafael Fernandes de que enquanto fosse Governador, o Sindicato não seria reconhecido. O que de fato aconteceu. "Nós botávamos requerimentos, constituíamos advogados e não tinha jeito. Eles botavam pedras no caminho, os requisitos não eram atendidos e o Ministério do Trabalho não reconhecia o Sindicato" (³).

Colocando as coisas dessa maneira, dou a impressão que a saga dos salineiros se limitou a esse espaço de tempo e se restringiu a lutar pelo reconhecimento no Ministério do Trabalho. Seria um grande erro pensar assim e estaríamos empobrecendo muito a história desses homens. Quase diria que esses marcos funcionam para nós como pretexto para contar outras histórias. Na verdade, no decorrer dessa luta pelo reconhecimento do Sindicato, abraçaram outras lutas (ou terá sido outros aspectos da mesma?), pegaram em armas e embrenharam-se na clandestinidade destinada aos que estão do outro lado da lei e da ordem (ou que estão empenhado na construção de outra ordem?). E tudo isso por quê? O que faz com que uma luta levada amplamente pela classe trabalhadora aqui se revestisse de tanta violência? O que faz com que tantos homens ganhem as matas, arranhando-se nos seus garranchos, enfrentando as armas e os homens mantenedores da ordem, num desafio que coloca na mesma trilha homens de calo nos ombros rostos queimados de sol, olhos cansados da explosão branca do sal, mãos duras de manejar as enxadas, com homens letrados e falantes? Manoel Torquato, Joel Paulista, Zé Mariano, Chico Guilherme, Miguel Moreira, Jonas Reginaldo, José Alencar, Horácio Valadares, Cândido Benedito... Por quê?

Procura-se aqui resgatar um pouco dessa história a partir da ótica de seus agentes: a classe trabalhadora. Essa preocupação se junta à de tantos outro que pretendem dar vez e voz aos agentes históricos de uma sociedade profundamente excludente, elitista e refratária à idéia de admitir sua existência, na tentativa de - ignorando suas vozes, suas ações e seus anseios - eliminá-los enquanto forças vivas e poderosas alavancadas de transformação.

A história da classe trabalhadora em Mossoró, está ligada à história da família Reginaldo. Impossível reconstituir sua trajetória sem referência à participação dessa família numerosa, cuja quase totalidade dos membros dedicou parte de suas vidas à causa da transformação social. Em conseqüência, uns mais como Raimundo, Jonas e Lauro Reginaldo, outros menos como Glicério, Antônio, João da Mata, Luiz e Amélia Reginaldo, tiveram de enfrentar a violência da repressão, as prisões, a clandestinidade. Conheceram de perto o tratamento que a sociedade reserva aos que ousam pensá-la diferente e através da ação buscam concretizar esse sonho. Principalmente quando essa modificação implica em alterar os próprios fundamentos da sociedade.

Suas primeiras incursões no movimento operário deram-se através da Liga Operária, fundada pelo Professor Raimundo Reginaldo, em 1921. Era uma sociedade de socorro e auxílio mútuo, que tal como tantas outras existentes no país desde o final do século passado, tinha como objetivo proteger o trabalhador e sua família de modo a assegurar ajuda e assistência em caso de doença ou morte. Mas, sob sua orientação a Liga passou a se constituir como um instrumento de resistência e luta em defesa dos interesses da classe trabalhadora. Isso irrita as elites dominantes locais que acabam por conseguir sua expulsão da Liga em 1927. Raimundo deixa a Liga, mas está formado o núcleo que daria origem aos Sindicatos em Mossoró.

Mossoró na época já concentrava um expressivo contingente operário, necessário ao trabalho nas salinas, na construção da Estrada de Ferro, no tratamento da oiticica, no beneficiamento da cera de carnaúba e na construção das Estradas de Rodagem. Mas, as salinas eram a atividade produtiva de maior importância para a economia da região. Por volta de 1930, cerca de 4.000 operários se distribuíam entre as 32 salinas existentes entre Mossoró e Areia Branca, enquanto pouco mais de 1.000 se distribuíram pelas outras atividades.

Em 1931, um grupo de operários entre os quais Manoel Torquato, Cândido Benedito e João Crisóstomo da Silva, orientados pelos Reginaldo, fundam o Sindicato dos Trabalhadores na Salina. De início, como Associação, tal como determinava a legislação vigente. Enquanto aguardam a resposta do Ministério ao pedido de reconhecimento vão propagando nas Salinas a importância de se associarem ao Sindicato, como forma de se organizarem para enfrentar juntos a opressão dos patrões.

E os operários vão chegando. "Todo mundo queria ir à reunião. No dia da reunião era homem, era mulher, era menino, tal qual um comício" (4). A sede ficou pequena para o número de trabalhadores que se acotovelava do lado de fora, pela calçada. "Era quase como uma festa, porque para os trabalhadores não havia diversão, lazer. A própria reunião do Sindicato se transformava numa festa para eles. Pessoas de outras categorias também participavam dos debates. Havia também elementos da rua, do povo, que compareciam até mesmo por curiosidade" (5).

Pode-se imaginar o mal-estar da classe dominante com essa situação. A repercussão dessas reuniões abertas, logo extrapolou as paredes da sede, todos debatendo os seus problemas particulares e descobrindo na discussão que o que lhes parecera até então uma situação individual, era na verdade, uma condição coletiva com suas especialidades. O problema do operário da salina diferente e igual ao problema do operário da construção civil, diferente e igual ao problema dos ferroviários... A dimensão pedagógica de tais reuniões era inquestionável, o povo tendo como assunto de suas conversas na calçada, na boca-da-noite, suas condições de vida, a causa de toda a exploração e miséria a que estavam submetidos e, sobretudo, o Sindicato como o instrumento de organização capaz de superar aquela situação.

Apesar da Aliança Liberal e do Decreto de Sindicalização em vigor, as elites dominantes não reconhecem limites ao seu poder, principalmente quando se sentem ameaçadas em seus privilégios. À falta de respaldo legal para proibir a existência do Sindicato, usam um recurso mais rápido e contundente: a repressão.

A polícia passa a perseguir violentamente o Sindicato. Chegar na sede, participar de reunião, se assumir enquanto sindicalizado é prisão certa. A polícia está na espreita: "Aí nós tratamos de nos reunir no mato. Tinha árvores aqui perto, na época, daqui a uma légua mais ou menos, tinha árvores grandes e era lugar ermo. A gente dizia: "tal dia é debaixo de árvore tal", por exemplo, uma quixabeira, que é uma árvore que a gente tem aqui e que é muito frondosa, nunca falta sombra nela. A gente ia para lá e traçava os planos. Não era uma assembléia, mas ali estava a fina-flor do operariado mais consciente" (6). Criou-se o Sindicato do Garrancho. As reuniões eram sempre durante o final de semana, aproveitando a folga da salina. Iam ao encontro uns dos outros protegidos pela escuridão da noite e nas poucas vezes que fizeram reuniões durante o dia, iam disfarçados, a espingarda, o bisaco e o cachorro, como se tivessem saído para caçar.

Apesar de tantas dificuldades o trabalho foi se consolidando. A intransigência dos proprietários locais em não reconhecer direitos já plenamente assegurados como conquistas da classe trabalhadora brasileira, levou-os a realizar muitas greves.

Em 1934, os patrões baixaram o preço do alqueire de sal, estabelecendo um valor inferior ao que fora pago durante a colheita do ano anterior. Os trabalhadores entraram em greve e receberam a solidariedade das outras categorias. Mossoró parou. Não houve pão, transporte, luz, carne, nada!
Na época, muitas outras categorias, seguindo o exemplo e a orientação dos salineiros, já haviam se organizado em Sindicatos. Foram surgindo a construção civil, ferroviários, padeiros... Iniciado o trabalho em Mossoró, partem em comissões para tentar organizar os trabalhadores das cidades próximas. Assim são criados os Sindicatos dos Salineiros de Areia Branca e dos Trabalhadores Rurais de Açu e Alagoinhas. Esta iniciativa coloca-os em confronto direto com as poderosas elites locais que se sentem ameaçadas em seus privilégios. Desencadeiam em resposta, uma onda de violência chegando à formação de caravanas de proprietários para perseguirem os trabalhadores, que se armam e passam a andar se protegendo por dentro do mato. Continuam sendo caçados e ocorrem diversos combates. Há mortes. A violência é redobrada. Os contingentes policiais locais são reforçados. Os trabalhadores encurralados entram de vez na clandestinidade.

No início de 1935, ao assumir o Governo do Estado, Rafael Fernandes lança uma ofensiva contra os trabalhadores. Dirigentes Sindicais são presos, reunião são interrompidas pela polícia. O objetivo é liquidar O Sindicato. Numa das investidas a polícia prende 200 trabalhadores. Ao final do dia estão todos soltos, numa tentativa clara de implantar o terror.

Os trabalhadores mais visados vão tendo que se esconder para não serem presos. Entram para o mato, vão fazer companhia aos que já se encontram na clandestinidade, em conseqüência dos conflitos de Açu e Areia Branca.

Há a notícia de uma revolução iminente. Decidem permanecer clandestinos. Vitoriosa a revolução sairão para a liberdade. O levante de novembro malogra e com ele as esperanças daqueles homens acossados. O Governador, de uma leva só, expede 964 prisões. Os Sindicatos são esvaziados. Os trabalhadores mais conscientes e atuantes vão povoar porões dos navios que se dirigem à Ilha Grande e outras prisões do sul do país.

A "guerrilha" resiste ainda 6 meses. Aos poucos vai se isolando, os elementos de contato e apoio sendo presos, a polícia massacrando quem encontrasse pelas estradas, acusando de auxiliar o grupo, que permanece escondido entre Mossoró e Açu.

Decidem sair 2 a 2. Alguns conseguem, são poucos. Manoel Torquato é morto por Feliciano, um companheiro de luta. Miguel Moreira é preso. Alemão é encontrado quase morto de fome e varado de balas pela polícia. Terminou a "guerrilha".

Estabelecida a paz dos cemitérios, os patrões puderam respirar em paz. Durante os 3 anos seguintes não houve aumento de salários. O trabalhador era contratado sem saber quanto ia ganhar pelo serviço. Caso arriscasse a perguntar, a chicotada vinha certeira: "Está procurando trabalho ou quer saber o preço?" Ao receber o salário no final da semana, o trabalhador tinha a resposta: o salário diminuíra. "O alqueire tinha baixado, baixou a diária, baixou o embarque, baixou tudo. E o trabalhador ficou amedrontado"(7).

Bem, é essa, em traços rápidos, a história do Garrancho. Este resgate nos coloca em contato com um sindicalismo, praticado em outros tempos. Embora possa nos parecer - se analisado a partir de um distanciamento crítico - idealista e ingênuo, mesmo em seus aspectos aparentemente revolucionários inclui atores de uma grandeza política e humana muito grandes, de um idealismo beirando patético. Mas que nos fazem lembrar a reflexão de Lênin sobre o sonho e a necessidade de concretizá-lo. E que coisa inspirou mais o homem para o sonho, que o impeliu à luta, mais que o ideal de liberdade?

Natal, 22 de julho de 1985
Brasília Carlos Ferreira


(1) José Moreira, Depoimento à 1ª. Semana de Filosofia do Rio Grande do Norte, promoção SEAF - Mossoró, maior de 1981.
(2) Francisco Guilherme, Entrevista concedida a Luiz Alves, em 1982.
(3) Idem (2), Entrevista citada.
(4) Idem (2), Entrevista citada.
(5) Idem (2), Entrevista citada.
(6) Francisco Guilherme, Entrevista concedida à autora em 15/06/85.
(7) Idem, Entrevista citada.

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Garrancho Ópera Sertaneja

Personagens

Apresentador

A Elite

Trabalhadores
Fotógrafo
Soldados
Manuel Torquato
Cantadores
Empregada
Saboinha
Rafael Fernandes
Celina Viana
Menino
Foliões
Barão do Dinheiro
Sargento
Chico Guilherme
Getúlio Vargas
Latifundiário
Industrial
Cândido Benedito
Jornaleiro
Joel Paulista
Alfredo Rebouças
Jonas Reginaldo
Policárpia
Alemão
Amante
Diretor
Edgard Barbosa
Técnicos
Feliciano
Miguel Moreira
Um Velho
Mulheres
Zé Mariano
Um Cego
Lauro da Escóssia
Clara
Tenente

GARRANCHO - ÓPERA SERTANEJA

Aécio Cândido
e Crispiniano Neto

PRÓLOGO DO PRÓLOGO

Apresentador e muitos figurantes. Recitado sob música feérica, tentando encaixar a fala no ritmo da música. Os figurantes dançam.

APRESENTADOR

Senhora e senhores,
distinto público,
meu cordial boa noite
O Grupo Terra apresenta
para a distinta platéia
a ópera sertaneja
soberbamente chamada
GARRANCHO.
Personagens saídos do escuro da história
para a luz
do palco
e conhecimento dos presentes.

(Corte na música. Entra uma valsa. Apresentador canta).

A peça se passa
no começo dos anos 30
e se divide em três partes,
cada uma assim intitulada:

(Anunciado).

1ª. parte: a Elite

(Música circense. Entra uma figura muito gorda, de legue, etc.: a Elite)

2ª. parte: o Sindicato

(Trabalhadores, com luvas de boxe, esmurram a Elite, que se defende, ri, ironiza - às vezes é atingida. A caracterização dos trabalhadores pode ser feita com adereços: capacetes, botas, etc.)

3ª. parte: a Guerrilha,

(Os trabalhadores trocam as luvas de boxe por rifles. Atiram na Elite.)

que no caso presente, infelizmente, quase nenhum arranhão causou à bem guarnecida Elite

(A Elite tira confeitos do cano dos rifles e chupa-os. Despindo-se dos personagens, os atores cantam a música Sindicato do Garrancho.)

TODOS:
Uma olhadela e rasgam-se
as cortinas da história.
Um sacolejo e abrem-se
as comportas da memória
para a passagem de nossos heróis.

Um borbotão de heróis silenciados
tipos calados habitantes do passado
mas presentes em nós.
Silenciados por quem pode gritar forte
e dizer que é sul o que todos chamam norte
e por sul ficar.

Manuel Torquato, Policárpia
Joel Paulista, os Reginaldo
Chico Guilherme, Benedito
Miguel Moreira, Herculano
e muitos mais.

A saga amarga da paixão
de corações dilacerados
sangue de justos derramado
pela paixão de querer bem
de querer bem
àqueles que sem voz se calam
que só têm as lágrimas
pra chorar
e choram impotentes choram
todo o mar

Pátria amada mãe gentil recebe agora
braços abertos, em teu seio um manso abraço
expõe o coração e o teu regaço
deixa transpor pra tua veia o sangue irmão,
deixa sangrar

Sangra, sangra, meu anjo
comova-te a história
a pouca glória
do Sindicato do Garrancho

Não te comove não?
Eu sei por que:
a história contada é mais alegre
do que o fato em primeira mão.

Sai à rua o Sindicato do Garrancho, ó povo meu!


PRÓLOGO

Cena I

Num tablado, de bruços, o corpo de Manuel Torquato, sujo de sangue e terra. Luz sobre o corpo. Um tempo. Uma máquina fotográfica lambe-lambe em frente, um pouco à esquerda do corpo. Fotógrafo encoberto pelo pano da máquina. Luz sobre a máquina. Tempo. Fotógrafo encoberto pelo pano da máquina. Luz sobre a máquina. Tempo. Entram dois soldados, suspendem Manuel Torquato pelos sovacos, ajeitam-se para serem fotografados. Fotógrafo compõe o quadro. Dispara. Um grito de mulher, fora de cena, alarmado: _ Mataram Manuel Torquato! ! ! Black-out.

Cena II
Cantadores. Luz sobre eles

CANTADOR 1:

No abrir dos anos 30
Tem na Europa os nazistas,
Nova Iorque vive a craque,
No Brasil, crescem golpistas;
Em Mossoró se debatem
Liberais e perrepistas.

CANTADOR 2:

Na Rússia os socialistas
prometendo um mundo novo,
os artistas em S. Paulo
cantam vida em vez de louvo.
Em Mossoró, a elite
tem pesadelos com o povo.

CANTADOR 1:

É o burguês contra o povo,
ocidente e oriente,
Ipiranga e Humaitá.¹
"Coroné" compra patente
e o peão das salinas
se torna mais consciente.

CANTADOR 2:

Uma classe prepotente
só de latifundiários,
de senhores de salinas
e altos funcionários
comprava poder às custas
dos calos dos operários.

CANTADOR 1:

Nesta peça os empresários
são como eles são na vida:
cruéis, antidemocráticos.
Pros pobres, cadê guarida?
É a divisão de classes:
opressora e oprimida.

CANTADOR 2:

Entre roçado e salinas,
entre peão e burguês
no ano de trinta e cinco,
descambando em trinta e seis,
deu-se a primeira guerrilha
de operário e camponês.

CANTADOR 1:

Na elite, Antônio Lúcio,
Saboinha, repressor,
os Rebouças e os Fernandes
e um Chico Bianor
que gostava de mandar
dar surra em trabalhador.

CANTADOR 2:

Lutando contra o opressor
estavam Manuel Torquato,
a família Reginaldo,
Chico Guilherme era exato,
Joel e Zé Mariano
lutavam no sindicato.

1 - Clubes esportivos de Mossoró, fundados nos anos 20.


1.° QUADRO - A ELITE

Cena 1

Casa de Saboinha.
Saboinha, Rafael Fernandes, Empregada e Celina Viana.

EMPREGADA (servindo licor): Licor, dr. Rafael Fernandes?

SABOINHA:

Não é verdade que o homem vive de lembranças do passado e das esperanças do futuro. A verdade é que o nosso presente é muito desestimulador. Antes de você chegar, Rafael, eu estava pensando no passado desta cidade. Outra época, Rafael, outra época. Mossoró já foi Mossoró. Hoje, a anarquia anda solta. Dissolução dos costumes, credos alienígenas. Empregado não respeita mais patrão, mulher discute as ordens do marido... avalie. Soube até que já existem na cidade mocinhas que freqüentam o Ipiranga sem a companhia das mães, sem meias e de cigarro no bico. Um exagero. Uma pouca vergonha. Até Igreja de Protestantes já temos, Rafael Fernandes. É o fim do mundo, o apocalipse. O mundo anda tão sem rumo que até um poeta de estatura de Olavo Bilac, o arauto do sentimento cívico-nativista, se acha ameaçado por esses tais modernistas, um grupinho de maricas paulistas, ainda nos cueiros, querendo destronar a verve parnasiana.

RAFAEL:

Ah, Saboinha, você precisa ver as danças. Estão querendo introduzir nos salões os remelexos do povaréu. Coisas dessa juventude modernista, futurista. Nesses dias, senhoras da sociedade vão dar de cara com meretrizes. É só o que falta: tirar o cabaré da Machado de Assis e botar no centro da cidade.

SABOINHA:

E agora, pra acabar de completar, a praga comunista. (Para Rafael) Quer mais licor?

RAFAEL:

Mais um pouquinho. E por acaso não são eles os responsáveis por esse desmantelo todo!? Isso é uma pintura deles. Idéias bolchevistas! Bastou a Rússia fazer uma revoluçãozinha de merda pra plebe nativa querer botar as unhas de fora. Comunista! E agora que se conluiaram com esses inocentes úteis da Aliança Liberal. Café Filho é o grande protetor dessas marmotas. Eles vão ver no que vai dar esse namoro. É pra Aliança Liberal que se escoa todo o oportunismo desses traidores da república.

SABOINHA:

O Partido Comunista anda solto. Aqui estão começando a botar o focinho de fora.

RAFAEL:

Estou sabendo, e não durmo no ponto. "Nem peleje", como diz a mocidade. Pras orelhas deles eu já tenho brincos.

SABOINHA (impetuoso):
A Liga Operária é um disfarce.

RAFAEL (Impetuoso):
O Partido, camuflado pelas mãos de Raimundo Reginaldo.

SABOINHA: (idem)
Um antro de agitadores.

RAFAEL: (calmo, marcando cada palavra): Mas você, Saboinha, tem como acabar com isso.

SABOINHA: (arreia na cadeira, abatido): Mais do que tenho tentado? Raimundo Reginaldo é imbatível ali dentro.

RAFAEL:

Besteira. Nada é imbatível. É uma questão de método, somente. Pegue duzentos homens da estrada de ferro e associe na Liga, pra votarem no candidato que você indicar. (Tempo). Eles são fiéis a você, não são?

EMPREGADA (entra): Com licença, coronel. Dona Celina Viana. Mando entrar?

SABOINHA:

Dona Celina? Claro, claro! (Levanta-se para esperá-la. Celina entra).

SABOINHA:

Como vai, professora? Como se sente, agora que é parte da História do Brasil? (Beija-lhe a mão)

RAFAEL:

Da América do Sul. Primeira mulher a votar na América do Sul. (Idem)

CELINA:

Muito obrigada pela bondade. Os senhores são muito gentis. Pra ser sincera, eu não me sinto envaidecida. Honrada, apenas. É, eu me sinto honrada. Cumpri minha obrigação: votei. E votei num homem.

RAFAEL:

E que homem. O senador José Augusto bem merece o primeiro voto da primeira mulher a votar.

CELINA:

Com certeza. (Senta-se num baú)

SABOINHA (rápido, grito nervoso)
Não sente aí, professora, por favor.

CELINA:

Não faça cerimônia, coronel. Eu sou de casa.

SABOINHA (um pouco constrangido):

Claro! Isto me honra.

CELINA:

O que me trouxe aqui, coronel, foi uma necessidade muito grande de ouvir os chefes políticos da cidade que adotei como minha. Alguma coisa conversei com meu marido, mas mesmo assim não tenho me acalmado. Dói-me falar... (Tempo) Nos últimos dias a cidade tem-se mostrado muito agitada, não acham?

RAFAEL:
Certamente, professora. É carnaval, e quem não gosta de trabalhar se vale dessa desculpa.

CELINA:
Não, dr. Rafael, eu não me refiro ao carnaval, somente. Há outras agitações. A Liga Operária, por exemplo...

SABOINHA:

É certo. (Demagógico). Estão se servindo da tribuna da Liga Operária para fazer a propaganda comunista. Arquitetura dos Reginaldo.

CELINA:

Coronel, o senhor acaba de tocar na ferida: os Reginaldo. É sobre eles que eu vim falar. São eles os cabeças de toda essa situação, coronel. E a culpa de tudo isso me cabe. Meu Deus! Tenho vivido dias de martírio! (Levanta-se trágica.) Se os senhores não sabem, fui eu que desencaminhei esses meninos.

(Tempo. Constrangimento na sala.)

SABOINHA: (Levanta-se pega-a pelo braço e caminha pela sala):
Não diga isso, dona Celina. Sua bondade jamais desencaminharia ninguém, muito pelo contrário: ela é força de resgate para o caminho da boa conduta e do bom proceder. (O gesto largo com que sublinha a frase faz derramar o licor no braço de dona Celina.) Por favor, dona Celina, desculpe. (Limpa com um lenço.) Eu sou muito enfático; em algumas ocasiões, é um defeito. (Tempo.) Mas, voltando à nossa conversa: esqueça esse pensamento. A senhora está se martirizando à toa.

RAFAEL:
Eu conheci a viúva Reginaldo desde que ela entrou em Mossoró, porque veio bater à minha porta - em 11, mais ou menos. A capetice daqueles meninos vem do berço. É sina, professora.

CELINA:
Eu agradeço o conforto de suas palavras, mas só eu conheço a dimensão da minha culpa. (Canta.)
So eu sei da minha culpa/ só eu conheço meus ais
nenhuma pena desculpa/ o gesto que fiz atrás.
Madalena arrependida/ pelo destino traída
por ter mole o coração/ espero sofrer calada
esta culpa tão pesada/ que me enlouquece a razão.

Senhor dos Passos, Jesus/ oh! tem de mim piedade
dissolve a pesada cruz/ dos ombros, por caridade.
Tão bondosas companhias/ não apaga meus dias
peço a ti de coração./ Me adotaram com ternura
deles descobre a brandura/ que me dará o perdão.

Cena II

Casa de dona Celina, há muito tempo.
D. Celina, Empregada, um dos Reginaldo (criança).

EMPREGADA (de fora):
Dona Celina, um dos meninos da viúva está aqui. (Tempo. Entra em casa, vinda da esquerda. Vai à direita da cena, como se falasse para o interior da casa.) Dona Celina, um dos meninos de dona Luzia Reginaldo está aqui. Quer falar com a senhora. Eu deixo entrar?

CELINA: (de dentro):
Deixe. (Um tempo. O menino entra pela esquerda. D. Celina, logo depois, pela direita.) Bom dia, como vai sua mãe?

(O menino responde baixo, encabulado.)

CELINA:
Que vergonha é essa, meu filho? Você já está um rapazinho, responda alto. Menino educado cumprimenta os mais velhos.

MENINO:
Dona Celina, mamãe mandou perguntar se ainda tem vaga no 30 de Setembro. É pra matricular Laurinho.

CELINA:
Só com Eliseu, meu filho. Deixe ele chegar, que eu falo com ele e me entendo com a sua mãe, depois.

MENINO (saindo):
Tá certo, eu digo a ela.

CELINA:
Espere aí. Eu estava mesmo querendo ver um de vocês. Meu marido comprou uns livros de um escritor alemão, um barbudo chamado Marx...
Você já sabe onde fica a Alemanha?!

MENINO:
Sei, é na Europa, né?

CELINA:
É, sim. Mas a gente nunca deve dizer "né", está bem? É errado. O certo é "não é"? "É na Europa, não é?" Bem, esse alemão escreveu uma porção de livros - eu não li não, mas meu marido leu alguns e não gostou, não sei por quê, mas como toda literatura serve para alguma coisa, eu pensei que você e seus irmãos pudessem gostar. Você quer?

MENINO:
Ora, dona Celina, se a gente é doido pra ler e não tem o quê!

CELINA:
Ótimo. É assim que deve ser. Os livros são a luz do espírito. Os bons livros, naturalmente. (Recita.) "Oh! Bendito o que semeia/ livros... livros à mão-cheia.../ E manda o povo pensar!/ O livro caindo n`alma/ é germe - que faz a palma./ É chuva - que faz o mar."² (Pega livros na estante.) Olhe aqui: A Luta de Classes na França, A Sagrada Família, A Ideologia Alemã, O Capital, O Manifesto Comunista... Tem também estes aqui, de Lênin, um russo careca e de barbicha: O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, A Teoria do Estado e da Função dos Sovietes, Cartas aos Camaradas... (O menino fica esperando mais.) Pronto! Você já tem com o que se ocupar por muito tempo. (O menino sai correndo, com os livros debaixo dos braços.)
2. Versos de Castro Alves.

CELINA (grita, rindo):
Não vai nem dizer obrigado?

MENINO (de fora):
Obrigado, dona Celina!

Cena III

Casa de Saboinha.
Os mesmos da cena I

SABOINHA:
Dona Celina, não se martirize em vão. São coisas do destino, embora a senhora, como educadora e positivista, acredite na força da ciência como modeladora do caráter. De qualquer modo, e por via das dúvidas, nós temos as nossas defesas. (Tempo) A senhora está sentada sobre um baú de armas.

EMPREGADA e CELINA (com espanto):
Armas?

SABOINHA (para empregada, ríspido):
Armas, sim, que é que você tem a ver com isso? (Para dona Celina, educadamente.) Sim, dona Celina, armas. E não somente armas. Há munição em vários cantos da casa. E não só desta casa. Para dar cabo dos revoltosos. (Tempo.) E comunistas.

CELINA:
Mas... onde o senhor conseguiu... tantas?

RAFAEL (didaticamente):
Os proprietários de salina são uma irmandade, professora, e o governo também faz parte dessa irmandade. As salinas estão ameaçadas pelos agitadores comunistas e sua política de greves. Se nós proprietários já somos ligados, diante de tais ameaçadas nos ligamos ainda mais.

(Batuque de carnaval. Vai subindo, aproximando-se)

CELINA:
Compreendo. (Dirigindo-se, espontânea, à janela.) Esse povo não sossega, coronel. Nem a carestia esbarra essa torrente. (Um tempo.) Que bloco mais esquisito, coronel, venha ver: Bloco... dos... Cassacos... Venha ver também, dr. Rafael.


Cena IV

O Bloco dos Cassacos entra, cantando a sua marcha. Em destaque, a figura do Barão do Dinheiro, que, em tudo, imita Saboinha. Visual do Bloco: pás, picaretas, uma composição de andrajos e brilho; homens travestidos de mulheres grávidas, com crianças de peito.

FOLIÃO:
Enquanto os foliões da Capital Federal ocupam suas ruas ao som de A Malandragem, samba de Bide e Francisco Alves³, a mocidade laboriosa e independente da Capital do Sal traz para o carnaval de 1928 a bonita marchinha pomposamente intitulada de O Barão do Dinheiro, em homenagem a um vulto inesquecível da aristocracia local.

BLOCO (canta):
Lá vai Barão, lá vai Barão, lá vai Barão
O Barão do Dinheiro
maltrata meu coração, meu irmão
esse maldito carniceiro.

Eu peço dinheiro/ ele não me dá
trabalho dobrado/ não quer me pagar.
Cai fora, Barão/ do nosso terreiro/ maldito Barão do Dinheiro.

Lá vai Barão, lá vai Barão, lá vai Barão...

Trabalho a semana/ mas fico na mão
o Barão me toma/ até o calção
dinheiro pra feira/ não quer me arranjar/ no barracão eu tenho que comprar.

3. A Malandragem - Bide e Francisco Alves. O carnaval de 28, no Rio de Janeiro, produziu cerca de 120 músicas, inclusive adaptação de charleston americano.

Lá vai Barão, lá vai Barão, lá vai Barão...

O leite não tem/ _ como me arranjar?
só tem a farinha/ e couro de jabá.
Menino pequeno/ com fome mete o berro,/ Barão da Estrada de Ferro.

Lá vai Barão, lá vai Barão...

(O bloco evolui. O Barão tira dinheiro de papel de cigarros da cartola e sacode para o povo.)

Cena V

Luz sobre Saboinha, que aparece isolado, telefonando para a polícia apoplético, espumando de raiva - literalmente.
Luz sobre o Sargento, atendendo o telefonema de Saboinha.

Cena VI
A polícia intercepta o Bloco.

SARGENTO:
Parem a batucada!

FOLIÃO:
Nem peleje, sargento, caia na gandaia. Tá com vergonha? Tem disso não. O sr. já tá até fantasiado!... Fantasiado de macaco.

SARGENTO (pra cima do Folião, que foge):
Você é besta, sêo cabra! Parem a batucada!

(A batucada e o Bloco param de vez.)

SARGENTO:
Isso é um desrespeito, tão sabendo? Isso não é bloco de carnaval não. Isso é subversão. Vocês estão ridicularizando o coronel Saboinha. Tejam presos!

FOLIÃO:
Calma, sargento, é carnaval. Ou o sr. não tá sabendo?

SARGENTO (grita):
Tejam presos!
(O bloco cai em cima da polícia. Arranca as divisas do sargento. A polícia corre.)

Cena VII

Luz sobre Saboinha

SABOINHA:
Era só o que faltava! Está vendo, dona Celina? Sempre os Reginaldo. Viu como o tal do Jonas ia na frente, açulando a massa? Mas eles me pagam! Podem se esconder nas profundas do inferno, no cu do diabo - desculpe, dona Celina - mas essa eles me pagam!

Fim do 1°. Quadro

2°. QUADRO: O SINDICATO

Cena I

Palco completamente no escuro. No meio do mato, reúne-se o Sindicato do Garrancho. Chico Guilherme e Manuel Torquato.

CHICO:
Saiu a lei sindical de Getúlio. Decreto 9.770, assinado por ele. Lei estreita, mas, de qualquer modo, ser pra dizer que sindicato é legal.

Cena II

Foco sobre Apresentador
Apresentador, Getúlio Vargas, Trabalhadores, Industrial e Latifundiário.

APRESENTADOR:
Com licença, meus senhores, eu gostaria de esclarecer alguns pontos nesta peça, fornecendo-lhes um mínimo de organização cronológica, a fim de que todos entendam o que aqui está sendo representado. Assim sendo, com vocês... a Revolução de 30.

(Entram dois trabalhadores miseravelmente vestidos, lutando de espada. Por trás de um deles, um latifundiário empurrando-o para a briga; por trás do outro, um industrial.)

APRESENTADOR:
Não, não, de espada não. (Para o público.) Perdão, senhores, os atores se confundiram. (Os atores saem.) De espada foi na Guerra do Paraguai. Nós estamos em 30.

(Os trabalhadores voltam com mosquetões. Levantam as armas um para o outro. O Industrial e o Latifundiário, por trás de cada um, ajudam-nos a fazer pontaria. Detonam as armas. Ambos os trabalhadores morrem, sob o olhar ausente do Latifundiário e Industrial.)

GETÚLIO (discursa):
Operários do Brasil... (Segue em mímica.)

APRESENTADOR:
Para todo operário do Brasil/ ele disse uma frase que conforta
Quando a fome bater em vossa porta/ meu nome é capaz de vos unir
os amigos por certo vão sentir/ que na hora precisa estou presente
sou o guia eterno dessa gente/ e ao ódio eu respondo com o perdão.
Ele disse muito bem/ o povo de quem fui escravo
não será mais escravo de ninguém.(4)

(Enquanto dura a música, Industrial e Latifundiário ajudam Getúlio a se vestir de mágico de circo.)

4 - Ele disse, de Edgar Ferreira.

APRESENTADOR:
Agradecido a todos. (Saem.) O autor deste espetáculo é daqueles que admitem o teatro como uma tribuna e faz questão deste esclarecimento a fim de que ninguém guarde ilusões a respeito de Getúlio e sua revolução.

Cena III

Volta à escuridão da cena I, não completa: Chico segura um lampião. Chico e Manuel Torquato.

CHICO:
Saiu a lei sindical de Getúlio. Decreto 9.770, assinado por ele.

MANUEL:
Decreto funciona no sul, embaixo das escadarias do Catete. Mossoró fica a 500 léguas do Rio de Janeiro. Legalidade aqui é briga, trabuco e mosquetão. No oeste potiguar lei é bala, direito é polícia e justiça é cadeia.

CHICO:
Mesmo assim, Manuel Torquato, a gente tem que empurrar o sindicato pra frente. Sair do mato, ganhar as ruas, a luz do dia, deixar de ser Sindicato do Garrancho. A lei é acanhada, mas a gente não é besta: corre dentro e fora dela.

MANUEL:
Só que os patrões estão aí, vivos, morando em sobrado, comendo do alheio e se fazendo na política, fortes que nem barbatão, prontos pra passarem um meta-borrão em qualquer ajuntamento de trabalhador. Ou você acha que eles dormem no ponto, Chico Guilherme?

CHICO:
Não dormem e estão no papel deles. Rafael Fernandes já andou dizendo que enquanto tiver força na política do Estado, salineiro não forma sindicato. Com lei ou sem lei a briga é grande pro nosso lado. Mas a existência desse decreto, de qualquer forma, é uma arma que ajuda.

Cena IV

Foco sobre Cantadores, que cantam um Brasil do Pai Tomás.

CANT. 1:
Getúlio Vargas
entre operário e burguês
aprovou algumas leis
um pouco menos amargas,
porém as cargas
ficaram mesmo com a gente
o que ele dava de frente
mandava tomar por trás
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.

CANT. 2:
Em Mossoró
quem mandava eram os Fernandes
que ao lado de outros grandes
eram ruins de fazer dó.
Jucá, cipó,
pau, cassetete e corrente
para o peão consciente
polícia era capataz
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.

CANT. 1:
O salineiro
vivia um mundo de assombros,
calos nas mãos e nos ombros
no bolso pouco dinheiro;
o sal grosseiro
tornava a pele doente
só bebia água quente
no tonel dos animais
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.

CANT. 2:
Porém no mato
entre cactus e garranchos
semearam um sindicato,
Manuel Torquato
com a turma consciente
tava plantando a semente
das conquistas sociais
NO TEMPO DE PAI TOMAZ
PRETO VELHO E PAI VICENTE.

Cena V

Sindicato. Mesa tosca, tamboretes, uma lâmpada elétrica - fraquinha, - pendente do teto, bem em cima da mesa. Chico, Manuel Torquato, Cândido Benedito.

CÂNDIDO (entra muito alegre):
É agora ou nunca, rapaziada, é tudo ou nada. Os patrões vão provar da quentura do nosso fogo. Vamos em cima: péssimas condições de trabalho, insatisfação da classe, diretoria resoluta e sindicato legalizado, que é que vocês querem mais? É negociação no duro. Temos cinco reinvindicações. Todas importantes: aumento de salário - de 500 para 1.000 réis(5); água n a sombra e livre da bebida dos animais; ranchos fechados e iluminados; transporte pras salinas e seguro contra acidentes. Vamos negociar no atacado, pei-bufo, todas de uma vez. Queremos todas atendidas. (Procura numa pasta.) Todas. Taí nosso manifesto, dando conta da situação - quentinho, redigido agora por Zé Martins.

MANUEL (pega o manifesto; lê só para si.)

CHICO:
E se os patrões não aceitarem?

CÂNDIDO: O manifesto?

CHICO:
Que manifesto, Cândido, as reivindicações.

CÂNDIDO:
Vamos à greve, não tem outro jeito. Greve não é sopa, mas se não tem outro remédio o jeito é esse purgante mesmo. (Sério) É a única brecha que temos, e é dentro dela que vamos correr. O sindicato é legal, encabeça as negociações. Se cassarem o registro, a gente arranja outro modo de negociar. O que não pode é continuar como está.

5 - 1 alqueire - 36 cuias de sal
1 cuia - 7 litros

MANUEL:
Assembléia neste domingo, então.

CÂNDIDO:
Neste domingo. Hoje é quarta, dá muito bem pra fazer o trabalho de convocação.

MANUEL:
Quem vai às salinas, fazer a convocação?

CÂNDIDO:
Chico Guilherme e Você.

CHICO:
Eu, por que eu? Eu não tenho muita experiência, estou...

CÂNDIDO:
Tem coragem, Chico, e os trabalhadores confiam em você. Manuel Torquato, porque conhece tudo quanto é balde de salina, de Macau a Grossos, sabe quem presta e quem não presta, quem merece confiança e quem é dedo-duro. Convençam os barcaceiros e os estivadores a apoiarem os salineiros.

MANUEL:
Você não acha, Cândido Benedito, que se a greve for decretada a direção do sindicato se estrepa? Quase ninguém tem reserva de nada em casa; uma semana parado é uma semana sem ganho. Muita gente vai ser presa, pode escrever aí. Como é que é? Ainda tem muito salineiro sem consciência e depois que a coisa apertar, muitos deles vão botar a culpa na diretoria.

CÂNDIDO:
São os ricos de toda luta, Manuel. Mas a gente precisa pensar nisto: organizar um fundo de greve. Entre nós mesmos e entre outras categorias. Quem te vai poder ajudar. Jonas Reginaldo pensa recolher alimentos no comércio de Mossoró; Policápia vai orientar um batalhão de mulheres para chorar por seus maridos nos ouvidos do prefeito e do delegado. Os ouvidos de Raimundo Juvino serão poucos pra tanto clamor e petição. O resto é com a coragem e decisão da classe.


Cena VI
Salina.
Chico Guilherme, Manuel Torquato e operários.

CHICO:
Companheiros, não é preciso tomar muito o tempo de vocês para falar do que vocês já sabem. Cada passarinho conhece bem o tamanho de sua gaiola. Basta de exploração ao nosso trabalho! Basta de fabricarmos riquezas com nossas mãos para nutrir as mãos que não se racham com a brutalidade do sal. (Gritos, aplausos. Canta - galope à beira-mar.)
Eu muito conheço o mar do Brasil:
só vejo peixinhos morando no mangue
e os peixes gigantes chupando seu sangue,
do mar para o sertão fazendo um funil,
mantendo o poder com bomba e fuzil
forçando o pequeno a se acomodar;
por isto estas águas temos que agitar
porque se estes mares ficarem serenos
os peixes maiores engolem os pequenos
seja no sertão ou na beira-mar. (Aplausos)

Somos passarinhos de vôo tão bonito
querendo alcançar toda a amplidão:
progresso, saúde e educação
e a liberdade, que é vôo infinito,
mas tem a gaiola, limite esquisito
cortando as estradas abertas no ar.
Mas se entendêssemos a força invulgar
das varas unidas quando formam feixes
a gente se unia e junto com os peixes
quebrava as gaiolas e redes do mar. (Aplausos)

Com quinhentos réis não dá pra viver.
Queremos mil réis para comer mais,
não beber mais água com os animais,
ter galpão fechado, a luz acender
e ter segurança para não morrer,
transporte gratuito pra ir trabalhar.
Vamos exigir, reinvindicar
e se o patrão não der o que deve
não tem outro jeito, nós vamos à greve
parando as salinas da beira do mar.

OPERÁRIOS:
Greve! Greve! Greve!

CHICO:
Vamos exigir, reivindicar
e se o patrão não der o que deve
não tem outro jeito, nós vamos à greve
parando as salinas da beira do mar.

OPERÁRIOS:
Greve! Greve! Greve!

CHICO:
Atenção, companheiros! Atenção (Faz-se silêncio.)
Assembléia no próximo domingo, no sindicato, em Mossoró. (Gritos de greve, agitação.)


Cena VII
Da platéia.

JORNALEIRO:
Salineiros decretaram greve ontem e hoje negociam com os patrões. Salineiros decretaram greve ontem e hoje negociam com os patrões.
(Sai gritando)


Cena VIII

Sala. Mesa grande. Negociação. Patrões: Rafael Fernandes e Alfredo Rebouças. Operários: Chico Guilherme e Joel Paulista. Cantam - martelo malcriado. Os patrões, ao cantar, apertam laços de corda no pescoço dos trabalhadores.

RAFAEL:
Nesta mesa nós somos 4 irmãos
conversando ombro a ombro, face a face,
sem haver distinção qualquer de classe
bons patrícios, amados cidadãos.
Com as propostas de paz nas 8 mãos
construindo um acordo salutar
em que cada um dos lados possa estar
confiante, tranqüilo e respaldado
e, depois, o patrão com o empregado
possa rir, beber junto e se abraçar.

JOEL:
Está fácil demais pacificar
neste pacto empregados e patrões:
basta que nossas reivindicações
vocês queiram deveras respeitar.
Pois a paz é a forma exemplar
de chegar-se ao amor e à beleza
ao afeto, ao carinho e à certeza
da justiça, do riso, da igualdade
do abraço feliz da liberdade
que é o bem mais real da natureza.

ALFREDO
Nossa classe, chamada de burguesa,
é amante fiel da liberdade
da justiça e da fraternidade
e da democracia - luz acesa -,
mas precisa mostrar sua grandeza
e não pode jamais perder terreno.
Se o acordo não for sincero e pleno
vamos ter outra conta e outro acerto:
a abraço transforma-se em aperto
e o risco em refresco de veneno.

CHICO:
Se o burguês fosse um pouco mais ameno
não quisesse pra si glórias eternas,
abraçar o universo com as pernas
seu diálogo não fosse só aceno,
não deixasse um espaço tão pequeno
respeitando deveras a igualdade
nas salinas, na roça e na cidade
não fizesse de nós gato e sapato,
não havia guerrilha, sindicato
luta e greve em favor da liberdade.


Cena IX

JORNALEIRO:
Jornal O MOSSOROENSE! Olha o jornal. PATRÕES SE NEGAM A NEGOCIAR COM SALINEIROS. É a notícia do dia. Olha o jornal. PATRÕES SE NEGAM A NEGOCIAR COM SALINEIROS. (Sai gritando a manchete.)

Cena X

Uma difusora de parque de diversões. A boca do alto-falante e o som da locução.

VOZ:
Difusora Parque São José, armado no largo dos Paredões, transmitindo mensagens musicais. (Tempo) Aviso: O destacamento policial da cidade, na pessoa do sr. delegado, sargento Antenor, avisa a todos os salineiros que por motivo das desordens perpetradas na região de Mossoró pela citada categoria de trabalhadores, que ora se encontra em greve, acha-se em vigência o toque de recolher a partir das 21 horas. Afirma o sr. delegado, baseado nas leis do País, que qualquer salineiros encontrado na rua depois das 21 horas será preso como subversivo. Este aviso é válido apenas para os salineiros, que passarão a ser identificados de hoje por diante através do calo no ombro, próprio da categoria. a) Sargento Antenor. (Tempo) E atenção um além das iniciais A. M., ouça esta gravação, na melodiosa voz do cantor Chico Alves, oferecida por um outro alguém que se assina com o singelo pseudônimo de Ferroviário Viajante. (Música de Chico Alves.)


Cena XI

Sindicato.
Chico, Manuel e Jonas.

CHICO (Entra, eufórico, com um pacote de panfletos):
Estamos escrevendo as páginas da história com nossa próprias mãos. O outro lado da moeda, o lado azinhavado; a outra banda da lua, a parte que não se conta. É a maior greve da década. Mossoró hoje amanheceu parada, completamente. E se Raimundo Sacristão não tivesse tocado o sino pra missa das seis, acho que a cidade nem teria amanhecido(6). Os padeiros pararam; os marchantes, Jonas, por apelo seu não mataram boi; a construção civil parou, a estrada de ferro, a força e luz, tudo, tudo, em solidariedade aos salineiros. O prefeito não tem mais quem lhe sirva um copo d`água; já telegrafou pro governador, o diabo.

JONAS:
Essa alegria também é minha, Chico. Mas acontece que à medida que a gente avança fica mais difícil dar o passo seguinte, porque eles são mais fortes e podem a todo momento mudar a tática de luta. Descobriram que nossos boletins são impressos na gráfica de Zé Martins. A polícia identificou os tipos. Nosso material, a partir de agora, terá que ser impresso em Natal ou Fortaleza. Outra: os Fernandes, Antônio Lúcio e Lages estão oferecendo recompensa a quem furar a greve: 500 mil réis a cada um, coisa que não se ganha num mês. Os judas que aceitaram estão desfilando com o dinheiro amarrado nos ferros pra todo mundo ver e seguir o exemplo. O mau exemplo.

CHICO:
Mas, pelo que eu soube, apenas uns três ou quatro. Não afetam o movimento.

JONAS:
Realmente, apenas uns três ou quatro, até agora. (Tempo) Mas o cerco cresce. A polícia e os patrões agem conluiados.

CHICO:
A classe está firme, Jonas, e vai resistir.

JONAS:
Sim, mas até quando?

CHICO:
Ora até quando! Não demora muito. Os patrões estão perdendo rios de dinheiro e sujeitos a perderem mais. Os navios estão no porto de Areia Branca, atracados esperando que nós voltemos ao trabalho. E o tempo conta muito pra eles. A Cia do Comércio e Navegação ameaça fazer voltar seus navios, mesmo escoteiros. Nas salinas, os baldes estão cheios, esperando a colheita. E logo logo o inverno. Nós estamos com todos os trunfos na mão.

6 - MAX: Terezinha, Big Ben é o meu homem - relógio. (...) No dia em que ele, parar, Terezinha, é capaz de nem amanhecer. (ÓPERA DO MALANDRO, Chico Buarque)

JONAS:
Eu sei, Chico, eu sei. Mas esse povo precisa comer. Todo mundo tem família, cada uma maior do que a outra. E o sindicato não pode deixar ninguém desamparado. O comando de greve está ficando pequeno, com tanta gente presa. O que temos de feijão, farinha e jabá não vai além de uma semana.

CHICO:
É o bastante. Os patrões também não agüentam mais de uma semana.

JONAS:
Não é o que diz O MOSSOROENSE. (Mostrando o jornal.) Está aqui: "Os honrados proprietários da cidade não se renderão jamais às descabidas exigências dessa horda de vândalos e agitadores pagos por Moscou..."

CHICO (muito ironicamente):
... pelo comunismo internacional,

JONAS (entrando na brincadeira):
... pelo ouro vermelho,

CHICO (rindo muito):
... pelo materialismo leninista,

JONAS:
... pela agitação anti-cristã e atéia.

CHICO (ainda rindo, cai numa cadeira):
Mas também, Jonas, tu querias o quê? Que o jornal dos Fernandes oferecesse uma noitada do novenário da padroeira aos operários, com a Matriz de Santa Luzia rescendendo a bogari e flor de mufumbo? Tenha paciência. Os lobos e os cordeiros ainda custarão muito para pastarem juntos.

JONAS:
Não se pode dizer que eles não evoluíram: antes, me chamavam de líder operário, hoje não passo de um agitador comunista. Eles estão começando a compreender a luta de classes.

CHICO:
Mais do que o necessário. Eles bem podiam ser, pelo menos, cafeístas. Mas não: são parrepistas da pior espécie.

JONAS:
Tudo uma merda só, Chico. Café no governo repete os mesmos trejeitos dos perré. Qual a diferença? Os liberais exploram com mais ternura, vão ao lombo dos trabalhadores com macacas democratas, prendem e arrebentam civilizadamente. Isso é diferença? O lanho no corpo é o mesmo, não importa se causado pelo rebenque de um coronel perré ou pelas luvas de um empresário liberal. (Noutro tom) Lauro esteve essa semana em Natal. Foi decretado só falar com João Café. Disse-lhe o diabo. Ele esqueceu muito ligeiro que foi eleito com votos de operários e que fomos nós, os Reginaldo, os únicos a garantir-lhe apoio em Mossoró, num momento em que a reação o via como um perigoso candidato de esquerda. É a paga que nos dá. E é o que merecemos por querer entrar na política cheirando os fundos da burguesia.

MANUEL (entra correndo, agitado):
Jonas, prenderam Joel Paulista!

CHICO e JONAS:
Prenderam Joel?

(Black-out)

Cena XII

Cândido Benedito e dois soldados.
Cândido Benedito amarrado, botando sangue pela boca, nu, de costas.
Soldado 2, um pouco à distância, come pipocas e lê.

SOLDADO 1 (arrancando-lhe a língua):
Como é, Cândido Benedito, perdeu a vontade de falar? Hein? Você não fala, Cândido Benedito, você não fala, sabe por que? (Mostrando a língua arrancada.) Porque não tem mais língua. Taqui a sua arma, sem serventia nenhuma. (Olhando para a língua.) Bichinha malcriada: disse tanto desaforo a patrão!... (Cândido, num supremo esforço, sopra sangue no rosto do soldado.) A vingança do condenado (Limpa-se, dá-lhe um tapa): cuspir a justiça. Não se pode dizer, no entanto, que você não tem fibra. Tem. (Com um gesto indica ao outro que está precisando de ajuda.) Tem muita. (Friamente.) Só que ninguém mais vai herdar esta fibra! (Arranca-lhe os testículos e o pênis, e os joga fora. Cândido grita e desmaia.)

7. Lauro Reginaldo, irmão de Jonas.

SOLDADO 2:
Está doido?! Jogar este troféu fora!? Isto aqui é a prova do serviço.
(Coloca o pênis e os testículos num saco. Amarra-o e dependura-o no cinturão. Black-out.)

Cena XIII

Sindicato. Desce uma tabuleta com a inscrição: COMITÊ MUNICIPAL DO PCB - 1935
Chico, Joel, Policárpia e Jonas

JONAS:
Camaradas, o Comitê Municipal do Partido se reúne hoje para iniciar uma avaliação da situação política nacional, da organização comunista local e do movimento de massas da região. A nível nacional, a situação se apresenta com o malabarista Getúlio Vargas tentando se equilibrar em cima de uma corda podre segura por duas varas de bambu. Se não cuida, vai ao barro, até porque não existe rede de segurança. Essa rede poderia ser a classe operária, mas decididamente essa não é a política de Getúlio. Subiu ao poder na esteira de uma revolução burguesa, que até agora não conseguiu homogeneizar as forças dominantes, principalmente no Nordeste. Aqui, com muita força, ainda vigora o coronelismo, marca maldita do feudalismo verde-amarelo. O que compete a nós revolucionários, diante desse saco de gatos? Saber capitalizar em proveito da classe operária os choques de interesses evidentes no seio das classes dominantes.
(Pausa. Toma água.) Nas salinas, o movimento aumentou, em força e abrangência. O sindicato dos salineiros é hoje um sindicato respeitado em todo o Estado. É claro que o nosso avanço significou sacrifícios muito grandes e perdas irreparáveis. Não foram poucos os companheiros inutilizados para o resto da vida pelas torturas de proprietários e policiais. Algumas derrotas foram varridas por amplas vitórias. Não somos uma força política considerável, mas somos uma força social ameaçadora. Quando ao Partido, encontra-se bastante atingido nos seus quadros. Gente do melhor quilate acha-se na clandestinidade: Manuel Torquato, Zé Mariano... O julgamento de Chico Bianor deixou-nos um saldo terrível: muita gente presa sem ter nada a ver com o peixe, incriminados unicamente pelo falso testemunho daquela mulher dele.

JOEL:
Mas o pessoal envolvido com a morte do Chico Bianor, Jonas, fugiu quase todo da cadeia.

JONAS:
Sei, Joel, só que estão sendo caçados pela polícia. Do mato não podem sair. E que ajuda os clandestinos podem dar, neste momento, ao Partido?

JOEL:
É encaminhar logo a guerrilha.

POLICÁRPIA:
Inda mais que os grandes do lugar parece que escutam o cochicho do diabo. Eles estão se armando. Vocês sabem que a função das empregadas domésticas na Associação das Mulheres é darem conta do que se passa na casa dos patrões. Pois bem. Têm chegado baús e mais baús de armas na casa dos Fernandes e de outros graúdos. E esses papos-amarelos não são pra enfeitar parede feito reclame do Almanaque Biotônico. São pra ter uso. E contra nós.

JONAS:
Certamente. Mas esse é um assunto que exige calma para ser pensado. Miguel Moreira e o Alemão estarão chegando em breve, a mando do Partido para reforçar o núcleo guerrilheiro. O Alemão é engenheiro, especialista em sabotagem.


Cena XIV
Alemão e a Amante. Foco sobre eles.

AMANTE (fatal, passando-lhe a mão no peito, pela camisa entreaberta):
Você não vai me deixar, Alemão, isso eu sei. (Meio desesperada.) As cartas me dizem e os sonhos me confirmam. Você é o homem que eu jamais tive, mas que todas as experiências de Santo Antônio me predisseram; pousou na minha vida e eu não vou permitir que levante vôo tão cedo.

ALEMÃO (calmo):
Você está falando pra se consolar, porque sabe que eu vou.

AMANTE (trágica):
Cadê suas entranhas? Você não tem coração. Não me ama nem nunca me amou.

ALEMÃO:
Não diga isso. Não me acuse do que você não compreende. Amar não é prender nos braços, tecer laços que aprisionem; é, ao contrário, ajudar o outro a cortar as amarras que o prendem longe de seu destino. Que estranho amor é esse que para manter perto de si o ser amado carece de gaiola?

AMANTE:
Cale a boca, Alemão. Suas palavras podem ter muito sentido para quem usa a cabeça como guia do amor; para quem usa o coração elas não dizem nada. (Pausa) Eu me guardei toda para você, Alemão, pro homem que eu sabia que viria, porque o vento me anunciara. Não sabia quem era nem sabia do seu rosto, mas adivinhava seu fogo e sua gulodice na cama. Veio você, um querubim louro que incendiou minha vida e desarrumou para sempre a rota dos meus dias. Meus seios nunca se endureceram tanto pra homem nenhum, Alemão. Quer prova maior de amor?

ALEMÃO:
A prova maior é você me deixar seguir livre.

AMANTE:
Livre pra quê? Pra você se enroscar no seu destino de redemunho, que só conhece curvas e nenhuma linha reta? Que revolução é essa que você prepara, Alemão? A revolução você já faz dentro de mim.

ALEMÃO:
Você não iria entender. Nunca. Ninguém entenderia. Pensa que eu também não sonho com a calma, o mar sereno a espelhar barcos luzentes, uma casinha doce sacudida por pássaros, filhos, filhos transparentes voando no ar da manhã, e você, você no leito guardada pra minha fome? (Outro tom.) Mas meu destino é mar revolto, onda seca sobre pedras de ponta. É preciso aplainar montanhas, destruir as cercas que aprisionam o homem.

AMANTE:
Você cavalga uma ilusão de cinzas, Alemão. Sempre haverá alguém a levantar cercas, turvas águas claras, ondular a correnteza mansa e nublar a alvorada.

ALEMÃO:
Que haja. Mas também haverá sempre alguém a tentar impedi-lo. Eu já vou.

AMANTE:
Isso não vai dar certo, Alemão:

ALEMÃO:
Você não é a história.

AMANTE:
Seu lugar é ao meu lado.

ALEMÃO:
Meu lugar é ao lado do povo.

AMANTE:
Eu vou com você, então.

ALEMÃO:
Seria o pior dos males. Você estaria entregue a um homem e não a uma causa. Duas coisas que não se podem confundir.

AMANTE:
Você abraça uma ilusão. Abrace-me. Eu, pelo menos, sou real.

ALEMÃO:
Talvez menos do que a certeza da revolução. Você é o fim de muitos sonhos enlinhados e desfeitos.

AMANTE:
Você me ama?

ALEMÃO:
Como nunca amei mulher nenhuma. Adeus! (Vai saindo.)

AMANTE (grita):
Alemão!
(Alemão pára. Cantam - Gemido de Dois)

ELA:
Você não vai me deixar
não seja louco, Alemão.

ELE:
Quem fala é seu coração
mas só pra se consolar

ELA:
Você não pode voar
tem que viver preso a mim

ELE:
Mas isso seria o fim
de quem quer revolução

ELA:
Homem, deixe de ilusão

ELE e ELA:
Ai, ai - ui, ui
gemer de dois é assim

ELE:
Vou me embrenhar no sertão
lutar pela igualdade

ELA:
Amor, paz e liberdade
tem tudo no meu colchão

ELE:
Você é satisfação
o povo é princípio e fim

ELA:
Não seja louco nem ruim
desprezando quem o ama

ELE:
A história é quem me chama

ELE e ELA
ai, ai - ui, ui
gemer de dois é assim.
(corte. Os dois, distantes, olhando uma lembrança qualquer do outro.)

ELA:
É muito triste o meu drama
o meu amor foi embora

ELE:
Guerrilheiro briga e chora
com saudade de quem ama

ELA:
Fugiu, deixou minha cama
com meus lençóis de cetim

ELE:
Espinho, pedra e cupim
hoje beijam minha face

ELA:
Ah, se meu amor voltasse

ELE e ELA
Ai, ai - ui, ui
Gemer de dois é assim.

ELE:
Meu amor é minha classe
porém o meu peito dói

ELA:
Não pensei que meu herói
meu grande amor me deixasse

ELE:
Aonde a revolta nasce
o bredo cobre o jardim

ELA:
Meu amor, meu querubim
como uma louca te chamo

ELE:
Estou aqui, mas te amo

ELE e ELA
Ai, ai - ui, ui
GEMER DE DOIS É ASSIM.


Cena XV

A reunião da cena XIII

JONAS:
Sei, de antemão, que a proposta de Miguel Moreira é que, diante do número de clandestinos existentes, a guerrilha deve começar já.

CHICO:
Mas isso é um contra-senso. A revolução comunista está sendo preparada para estourar em novembro, em todo o Brasil. (Didático) Temos que fazer coincidir a explosão da guerrilha com o levante nacional. A guerrilha será o braço armado do governo proletário que se instalará no Estado.

JONAS:
Um fato, Chico, é incontestável: o cerco se adensa.

CHICO:
Mas não de forma aberta e declarada. Não devemos antecipar a história. Principalmente quando não temos forças para fazê-lo.

JONAS:
Uma coisa me tranqüiliza, porém: é que temos muitos militares envolvidos no movimento, inclusive do Tiro de Guerra de Mossoró.

CHICO:
A mim não. Me tranqüilizaria saber que não ficaríamos isolados. Deflagrar a guerrilha agora é nos colocarmos como presa fácil. Claro que conseguiremos sem muito esforço 60 homens para os quadros guerrilheiros. Mas, e depois? Munição, alimentação... Certo, muitos fazendeiros ajudarão, uns por simpatia, outros por covardia e medo. Só que a repressão virá com tal força que será fácil confundir mesmo aqueles que nos têm simpatia.

JONAS:
Naturalmente, não será o Comitê Municipal quem irá decidir aqui e agora se a guerrilha deve começar logo ou não. Essa decisão deve ser a decisão de todos os comunistas de Mossoró.

CHICO:
Exatamente. Quando será a Assembléia?

JONAS:
Hoje mesmo.

CHICO:
Aonde?

JONAS:
Na sua casa, de madrugada.

Fim do 2°. Quadro


3°. QUADRO: A GUERRILHA

Cena I

Gravação num estúdio de tv. Agitação de estúdio: técnicos cruzam a cena
testam instrumentos, etc.
Diretor, Edgard, Técnicos.

DIRETOR (entra com uma prancheta numa mão e na outra, um copinho de café):
Um momentinho, gente, por favor. Vamos gravar agora o depoimento do escritor Edgard Barbosa. (Para o escritor.) Não se preocupe com a câmara, professor, olhe sempre nesta direção, que o câmara se encarrega de pegar o melhor ângulo. Não ligue pros microfones. (Pros técnicos.) Mais luz! (Mais luz. Tempo. Examina o escritor) Um momentinho. (Chama.) Maquiagem! Tudo entendido, né? Um, dois, três, gravando!

EDGARD (sentado por trás de uma mesinha):
O ano era o de 1935. O mês, o de Santana. Sob o governo do sr. José Lagreca, irrompeu na Várzea do Açu, com irradiação por outros lugares vizinhos, um movimento de caráter... (Reluta em dizer o nome)... comunista. (Cospe.) A insurgência de tal bando armado, liderado pelo bandido Manuel Torquato e pelo facínora Miguel Moreira, deveu-se muito mais ao ambiente político e à confusão reinantes naquele ano de 1935 do que ao entusiasmo do povo pelas doutrinas vermelhas. O bando armado se compunha de homens rudes, analfabetos e dispostos a todas as modalidades de crime. Era o cangaceirismo acoitado à sombra de uma bandeira que encarnava um credo exótico. Em nome das idéias de tal credo, os malfeitores puseram em xeque as forças policiais de Açu, Angicos, Santana de Matos e Macau. Inúmeras depredações e saques cometeu essa gente por toda parte onde pôde exercer o seu terrorismo. Tendo se levantado nos dias 5 e 6 de julho de 1935, lançando proclamações e desafios contra o governo, os... comunistas da Várzea do Açú e de Mossoró fizeram uma verdadeira rebelião, que aliás constou do relatório de um representante brasileiro em uma das sessões da III Internacional, reunida em Moscou. (8)

DIRETOR:
O quei! Corta. (A cena se imobiliza. Som de fita voltando. Quando soltam a fita gravada, o som sai completamente distorcido: chiados, rotação alterada, etc. Black-out.)
8 - Trecho - pouquissimamente alterado - do livro História de Uma Campanha, de Edgar Barbosa, pág. 189.

Cena II

Luz sobre Manuel Torquato, Feliciano e Miguel Moreira, que estão estáticos e arrumados como numa fotografia. Todos armados. Manuel veste uma farda de tenente-coronel. Miguel Moreira tem um olho cego, resultado dum acidente com arma.

MANUEL (agitado):
Bandidos! O nome flutua fácil nas bocas, ácido pegajoso. É assim que nos chamam: bandoleiros. (Segurando O MOSSOROENSE) E não é só o jornal dos Fernandes não. Também o povo. Um dia desses uma velha quase me come com os olhos de caninana. E não teve medo de chamar nós todos de bandidos: "Olha o magote de bandido!" Eu disse: "Dona, dobre a língua, a gente não é bandido não. Procure de Macau a Mossoró um trabalhador a quem a gente, fez mal e me mostre. Agora, a fazendeiros exploradores já fizemos. Repare que quem é bandido não escolhe vítima".

MIGUEL:
O povo, Manuel, pobre e humilhado, para pensar se vale da cabeça do rico. É por isso que dá essas.

FELICIANO (ajeitando um rifle):
Bandido nem tanto, comandante, o povo chama mais a gente é de cangaceiro.

MIGUEL:
E qual a diferença, Feliciano, entre uma coisa e outra?

FELICIANO:
Tem e não tem. Cangaceiro é bandido.

MIGUEL:
E bandido é bandido. Ponto final. A bandido a única caridade permitida é a presença de um padre na hora da morte, pra lhe tomar a confissão e recolher o arrependimento por ter sujado sociedade tão santa. É assim que os grandes pensam, é assim que os pequenos falam.

FELICIANO:
O povo acha Manuel Torquato um cangaceiro diferente.

MANUEL:
Diferente como? Que toma dos ricos e dá aos pobres, como Robin Hood? Nem isso. O povo não nos entende, esta é que é a verdade. Lutamos por ele e ele nos dá as costas.

MIGUEL:
Não seja injusto, Manuel! Este bando é o primeiro grupo guerrilheiro da América do Sul formado unicamente por camponeses e operários. E já contou com mais de 60 homens. Isto é muita coisa no meio de tanta miséria, medo e sujeição aos coronéis. E mais guerrilheiros não tivemos porque não há como armar a todos.

MANUEL (Tempo. Pausadamente):
Sessenta homens. No meio dos 60, muitos oportunistas, alguns covardes, um ou outro frustrado, que abraçou a luta porque não tinha outra coisa para abraçar, nem corpo de mulher - e não deixa de haver também algum traidor.

FELICIANO (cortando, ríspido):
E muitos idealistas.

MIGUEL:
E muitos idealistas. Uma revolução se faz com justos, certamente, mas não com santos. O mundo é imperfeito demais pra que queiramos homens perfeitos brotados dessa podridão.

MANUEL:
Com tudo isso, ainda me dá raiva. Eu pensei que matando um fazendeiro ruim e mais outro e mais outro, e nenhum trabalhador, o povo tiraria daí as suas conclusões. E diria se somos bandidos ou revolucionários. Mas nosso povo é tão besta que chora com um desespero de fim de mundo a dor de qualquer um desses fazendeiros da região, como se fosse a sua própria dor. Nem percebe que suas dores não se confundem. É a vítima morrendo torturada e chorando pela saúde fraca do carrasco.

(Tempo.)

MIGUEL:
Um outro talvez temesse você, Manuel, no estado de espírito em que se encontra. Eu não. Prefiro-o assim, humano, arrastado pela maré da dúvida e sem a pose divina dos heróis, se bem que a luta, a certos momentos, requer pulso forte e ausência de vacilações. Você duvida. E isso o põe fora do lado do fanatismo. O fanatismo é a ausência de dúvidas. Quero meus heróis assim, com a broca da dúvida no centro de suas certezas. Todos, até Jesus Cristo, (Tempo, ri.) Como você vê, assim nasce o marxismo na caatinga, com o nome de "novo evangelho" e com um marxista que coloca Jesus Cristo na galeria de seus heróis, lado a lado com Marx e Lênin, talvez no mesmo altar.

MANUEL:
Acostume-se a isso, Miguel Moreira. Este país é diferente. E também nós não escapamos à diferença. Os comunistas aqui têm oratório em casa, rezam o terço e guardam O Capital na mesma estante em que guardam a Bíblia.

MIGUEL (Tempo):
Vamos dormir. Amanhã é outro dia. Um novo dia. O novo é sempre uma esperança.

MANUEL:
Vão vocês. Eu fico mais um pedaço.

MIGUEL (preocupado):
Por que?

MANUEL:
Não estou querendo dormir sem sono, apenas isto. Ontem acordei sobressaldo. Um pesadelo. E um mau presságio.

MIGUEL:
Você acredita nisso?

MANUEL:
Somente quando há motivos para acreditar. E hoje eu os tenho. Sonhei com um copo de sangue quente. Eu bebia. Dentro pulsava um coração. É morte de gente muito chegada. Talvez a minha mesmo que se aproxima.

MIGUEL:
Não seja trágico. Um sonho é um sonho.

MANUEL:
O cerco se fecha. Nessas condições não é difícil predizer o futuro.

Cena III

Um Velho. Luz sobre ele.

VELHO:
Em três Vinténs foi o primeiro combate da guerrilha. Três Vinténs fica pras bandas do Canto do Junco, em Mossoró. Lá moravam Feliciano e Marcolino. Prenderam a família deles: mulher e filhos. A polícia. Eles vinha fazer uma visita à família. O bando ficou assim mais embaixo, no meio dum mato alto, o choro dos meninos e o clamor das mulheres, na volta da polícia. Aí juntaram na carreira, pra trás, em procura do restante da turma. Quarenta e três homens. A polícia, quando viu a carreira deles, juntou atrás. Mas aí encontrou foi muito cabra macho, mosquetão e fuzil. O couro comeu e a polícia escafedeu-se. (Tempo) Três Vinténs. O primeiro combate. Teve outro no Alto do Louvor. Contra uma ronda de dez praças, famosa em açoitar salineiro que fosse visto nos paredões depois do toque de recolher.

Cena IV

Duas mulheres batendo roupa no riacho. Soldados.

MULHER:
Aí eu ouvi foi o converseiro na estrada e marquei que só podia ser eles. Foi quando Manoel Torquato bateu na porta chamando o pai. Eu me levantei e fui olhar. Eles não entraram não. Pelo claro da lua vi o Alemão. Tão bonito. Assim mesmo como o povo diz. Parece um anjo, desses querubins. (Tempo.) Eles só queiram farinha e rapadura. Pai deu, eles foram embora, pras bandas de Açu. (Tempo.) E deixaram meu coração, em sobrosso, se mexendo numa poça de saudades e lembranças atiçadas. (Levanta-se, caminha sonhadora.) Não vou dizer que vi muito - a lua não ajudou. Mas o que vi bastou pra botar em desordem meu coração, varrer de meus olhos o sono e me desassossegar pelo resto da noite e, quem sabe, pelo resto dos meus dias. Quando cuidei, os galos cantavam pra desatar o claro do dia, e eu ainda estava com os olhos tesos, o corpo mole, sem atinar pro tempo, afogada naquela lembrança de cometa: os olhos do Alemão e sua cabeleira encaracolada como a de um anjo do mês de maio. (muda a vista, bate o pé com raiva.) Ai, meu Severino do Ramo, ninguém pode mais nem conversar descansada que esse oco do mundo agora foi descoberto. É um reboliço dos inferno; não sossega um instante. Lá vem a polícia.

SOLDADO (entrando):
Estamos aqui em busca do rastro do bando de Manuel Torquato. A mocinha sabe dizer se eles passaram por aqui?

MULHER:
Se passaram não é do meu conhecimento não, seu praça.

SOLDADO:
E esses rastros de animais, na estrada?

MULHER:
Foi um bando de cigano, ontem de tardezinha.

SOLDADO (com uma faca, em cima da moça):
A mocinha não está mentindo não, não é?

MULHER:
Eu mentindo? Pela hóstia consagrada. (Beija os dedos, indicadores, em cruz.) Eu quero cegar, se não for verdade.

SOLDADO:
A mocinha sabe o que é que acontece com quem mente pra polícia, não sabe?

MULHER:
Sei não, que nunca escapou ninguém prá contar!...

(Black-out)

Cena V

Em roda, um a um, girando, colocam-se sob foco para recitar os textos que se seguem.
Miguel, Manuel, Mariano e Feliciano.

MIGUEL:
A infância. Um rio corria entre os dedos, penetrava na alma e eu me enchia de claridades matinais. Havia campos intermináveis bordados de perfumes. Eu era criança e isso explicava tudo: o mundo era grande e a vida, uma montanha de açúcar que se derretia em minha boca. Até que me revelaram esse segredo avassalador: "Você é um homem". O que quer dizer muita coisa. (Canta - Brasil Caboclo.)

Na minha bonita infância
um rio enchia meu peito
a minha alma era um leito
o estuário era a ânsia;
nunca a água da ganância
formou remanso ou porão
cresci e o ribeirão
acabou com toda a água
e passou pra mim a mágoa
DE MÃE PRETA E PAI JOÃO.

MANUEL:
Este chão seco e batido, encharcado de salitre, que expulsou de suas entranhas até o pirrixiu, só dá mesmo duas coisas: raiva e desengano. Quem esfola esses tabuleiros em busca de produção só encontra tragédia no caminho de sua fome: o fuzil latifundiário, a mão paga do jagunço e a bala roçadeira que colhe a vida pelo tronco, ainda da vez. Aqui as escolas são poucas e fracas, e quem aprende a escrever é somente para fazer chegar mais longe a notícia de sua desgraça. Fora polir enxada no gume das pedras, resta o serviço nas salinas. Aí o sal racha os pés, seca a pele, acaba com a vista. E o ombro cresce com o calo destampado pelo balaio nas costas. Pele de salineiro se conhece de longe - é couro curtido no fogo lento da maresia.

MARIANO (canta):
Pouca é a terra plantada
pouca a força de quem planta
a terra do rico é tanta
pro pobre não sobra nada.
E da safrinha minguada
meia ou terça é do patrão;
quem cuida da criação
tem a sorte pra pagar.
Estamos no mesmo azar
DE MÃE PRETA E PAI JOÃO.

Às vezes eu mesmo me pergunto por que estou aqui. Por que defendo com a rapidez quente da bala o direito estraçalhado dos fudidos.

FELICIANO (canta):
Hoje o medo é quem me guia.
Não o medo de morrer
mas o medo de viver
escravo da burguesia;
é medo da tirania
medo da escravidão
da miséria, da prisão,
da tortura, do degredo.
É aquele mesmo medo
DE MÃE PRETA E PAI JOÃO.

Por medo. Estou aqui por medo. Foi sempre o que me guiou. De morrer não. De viver, talvez. O pavor do medo cravado na alma com dentes de cachorro doido na força da lua. Medo do medo. Medo só. (Alto, com raiva.) E não perguntem mais que eu não sei dizer.


Cena VI

Estúdio de tv - o mesmo da cena I, sem a movimentação do início.
Apenas o escritor.

EDGARD:
No dia 2 de janeiro de 1936, um encontro do bando de Manuel Torquato com o fazendeiro Artur Felipe e forças policiais, no sítio Canto Comprido, em Açu. A luta foi relampejante e furiosa. Cessado o fogo, o campo apresentava um aspecto taciturno e comovente. (Exageradamente dramático.) As juremeiras decepadas a meio, um corpo lavando a terra com o sangue totejante, e mais adiante... mais adiante um cadáver estrangulado, com o peito aberto a golpes de sabre. (Pausa) Artur Felipe Montenegro era a vítima.

DIRETOR (de dentro):
Corta!

Cena VII

Cego pedindo esmola.

CEGO (balançando uma moeda na lata):
Uma esmolinha, cristãozinho de Deus. Mais tem Deus pra nos dar. (Canta, tentando improvisar.) "Que mais tem Deus pra nos dar"... (Balança a lata, solfeja arranhando uma outra música, como se procurando um tom melhor para cantar. Pára.) Estão falando de Manuel Torquato cristãozinho? Falam da morte de Artur Felipe, não é?
Conheço essa história, do pé à ponta. Contam o que não houve. Não contam o massacre da família de Manuel. Incendiaram a casa, uma casinha de taipa, não queriam deixar semente dos Torquato sobre a face da terra. Sebastião Silvestre, pai de Manuel, um velho de 80 anos, e dona Bembem, a mãe, com 78 anos, foram assassinados dentro de casa. Da raiva dos Montenegros, escondida embaixo dum fogão de lenha, escapou somente uma mocinha que era companhia dos velhos. Mataram até as galinhas e as criações que estavam pelo terreiro.

Cena VIII

Na caatinga.
Manuel e Miguel.

MANUEL:
São dois mortos dentro de mim. Gravidez de ódio. Sangue que não descansa, agitado por marés de revolta. E descansará, quando for vingado, gota por gota.

MIGUEL:
Você não pode se confundir com um Lampião qualquer, Manuel. Você é um guerrilheiro, um revolucionário comunista. Não pode se deixar guiar pelo ódio e pela vingança...

MANUEL:
... mas pelo amor e pela justiça. Sei disso, Miguel. E você é testemunha de como transformei isto na verdade da minha vida. Se matei e se ainda me encontro disposto a matar é para provar amor pelos que morreram e morrem roubados de qualquer gesto de defesa. O amor, pra ser provado, carece às vezes de violência. A tudo isso agora eu junto o grito de dois mortos muito próximos: meu pai e minha mãe. Trucidados, mortos a coronhadas de rifle e lapadas de facão. A casa incendiada. A vingança terrível dos Montenegros pela morte de Artur Felipe. A luta de classes até agora estava no meu terreiro. Com essas duas mortes pulou pra dentro de casa.

MIGUEL:
Entendo sua dor. Mas insisto em que ela não deve nublar sua vista.


Cena IX

O Cego da cena VII

CEGO (Canta.):

Artur Felipe morreu
acusam Manuel Torquato
mas eu vou contar o fato
do jeito que aconteceu:
um açude por detrás
na frente dos policiais,
Artur feito um coronel;
deu bala, não teve jeito,
matara de peito a peito
o fazendeiro cruel.

Artur atrás de imbuança
gritava até pelo mato
que invadia o sindicato
degolava a liderança.
Ele pensou que era fácil,
não viu que a luta de classe
é fuzil contra fuzil;
com seu instinto de bicho
desapareceu no lixo
da história do Brasil.


Cena X
Volta a cena VIII.
Mais Feliciano.

MIGUEL:
Espalharam que Artur Felipe foi torturado antes de morrer.

MANUEL:
E o povo acreditou.

MIGUEL:
O povo acredita em muita coisa. Acredita que você se invulta.

MANUEL:
É, o povo acredita em muita coisa.

FELICIANO (entra):
Comandante, vem vindo uma volante lá embaixo. Coisa pra mais de trinta soldados.

MANUEL:
Eu não quero enfrentamentos com a polícia. Por enquanto. É a recomendação do Partido. Não podemos espantar a caça. (Grita.) Vamos arribar, minha gente, tem raposa rondando o galinheiro. (Para Feliciano.) Me chame o Alemão, Feliciano, quero ele perto de mim.


Cena XI
Redação de O MOSSOROENSE.

LAURO:
Redação de O Mossoroense, jornalista Lauro da Escóssia. 28 de novembro de 1935. Durante 4 dias os comunistas dominaram a cidade de Natal. O movimento somente hoje foi contido, graças ao apoio das forças restauradoras enviadas pelos governos da Paraíba e Pernambuco. Instalados na capital, os revoltosos ensaiaram um governo popular, uma república vermelha, com hino, bandeira e jornal oficiais. Sapateiros, alfaiates, barbeiros e soldados estiveram à frente do novo governo, ocupando ministérios e outros poderes. O governador do Estado, Dr. Rafael Fernandes, nos primeiros momentos do levante, encontrava-se no Teatro Carlos Gomes presidindo a colação de grau de mais uma turma da Escola Doméstica. Saiu da solenidade às pressas, em busca de refúgio. O movimento armado, em Natal, contou com o apoio do 12°. Batalhão de Caçadores. O plano dos revoltosos era promover a insurreição em todas as capitais do país, contando para isso com o apoio de alguns comandos militares. O intento não foi conseguido por causa de uma pequena confusão ocorrida na transmissão da senha.


Cena XII

Na caatinga.
Manuel, Chico, Miguel e Feliciano.

MANUEL:
É isso mesmo, Chico Guilherme? O poder em nossas mãos durou apenas 4 dias?

CHICO:
É verdade. Triste resultado, mas é a verdade. Perdemos uma batalha.

FELICIANO:
Uma batalha não. Perdemos a guerra, pode dizer.

MANUE (ignorando Feliciano):
E depois?

CHICO:
Você pode imaginar, né, Manuel? Em Natal não ficou nenhum dos nossos, uma debandada geral, cada qual procurando meios de escapar. A repressão, violenta. E não havia razões para sacrifícios inúteis e martírios sem conseqüência. O nosso plano, tanto tempo tecido, falhou. Um pequeníssimo erro de interpretação. Uma data entendida erradamente. Companheiros estão pagando com a vida o preço do terrível engano.

MANUEL:
A repressão deve estar de boca cheia. Nessas horas, cada homem é um suspeito. Eles agora encontram desculpas pra sua sede de sangue.

CHICO:
Vasculham cada rua, penetram em cada casa, chafurdam todos os quartos. Foi difícil sair de Mossoró e chegar até aqui.

MANUEL:
Você se arriscou muito.

CHICO:
Não mais do que se estivesse em casa. Arrisquei também a vocês. Não há mais segurança em lugar nenhum. Aos membros do Partido restam dois caminhos: a prisão ou a clandestinidade.

MIGUEL:
Você já é um clandestino, então?

CHICO:
Ainda não. Não há nenhuma prova contra mim. Apesar das torturas, os companheiros presos não denunciaram ninguém. Não há acusação formal contra mim. Até agora. E a polícia não tem nenhum documento nas mãos para provar nossa militância no Partido. O fichário, a mulher de Joel Paulista enterrou no quintal, quando soube do desastre que foi o levante. A polícia revirou a casa de Joel, palmo por palmo, e não encontrou documentação nenhuma.

MANUEL:
E em sua casa?

CHICO:
Nada, também. Foram, mas não encontraram nada.

MIGUEL:
Você também enterrou?

CHICO:
Salvei-me sem enterrar.


Cena XIII

Casa de Chico Guilherme.
Chico, Clara, Tenente, Filho, Soldados.

TENENTE (gritando de fora):
Chico Guilherme, é a polícia. Tenente Alcebíades. A casa está cercada. Abra a porta que eu vou revistar.

CHICO (pula da cama. Baixo):
Meu Deus! A polícia (Para a mulher, deitada na cama.) E agora, Clara?
(Alto) Tenente, eu não abro não. É uma hora da madrugada. A constituição garante a inviolabilidade do lar. Espere o dia amanhecer que eu abro.

TENENTE:
A estas alturas, com a anarquia querendo se apossar do país, não há mais constituição nem lei nenhuma. Quantos homens tem em casa?

CHICO:
Só um, tenente: eu. (Olhando para o filho.) Tem outro, mas não está nem com um mês. É meu filho. E tem também minha mulher, que está de resguardo. (Baixo) Levanta, Clara. Eu vou botar as bombas debaixo da cama. As granadas, rifles, tudo. (Vai pondo todo esse material embaixo da cama, que fica com a grade um pouco mais alta.) É preciso ganhar tempo, Clara. Fale aí com ele, enquanto eu termino.

CLARA (em pé com a criança nos braços):
Tenente, aqui só tem uma mulher de resguardo, uma criança de peito e um homem sem defesa nenhuma. Respeite a lei. O senhor outras vezes já deu mostras de ser um homem. Não manche seu nome.

TENENTE (um pouco embaraçado):
O momento agora é outro, dona Clara. O governo está sob ameaça. (Tempo)
Se não abrirem, eu vou arrombar a porta. Vou contar até 3. Um... (Conta espaçadamente, coincidindo "3" com o final da fala seguinte, de Chico.)

CHICO (ainda escondendo as armas):
É um risco, Clara, mas se eles encontram este arsenal aqui, a prisão e a morte são uma certeza. Vale trocar a certeza pelo risco. (Alto) Arrombe, tenente, quem está atrás de um fuzil pode aprovar e desaprovar qualquer lei com muita facilidade.

(A polícia arromba a porta. Vasculha o quarto, a casa. Não olha embaixo da cama, onde está deitada dona Clara amamentando a criança.)

TENENTE:
Nada, Chico, pra sua felicidade, porque disseram que a casa estava cheia de armas. (Sai com os soldados. Black-out.)


Cena XIV

Caatinga. Volta à cena XII.

MIGUEL:
Você poderia ter explodido a casa inteira. Com seu filho e você próprio, inclusive.

CHICO:
Deus é comunista, tenho certeza. Valeu o risco.

MANUEL:
Muito risco. O mesmo que deu conta de Sebastião Cadeira. Inventou de carregar a cintura cheia de bombas grandes. A merda de um tiro achou de acertar mesmo no pino de uma. Tem coisa que não dá pra entender. Logo ele!?... (Tempo) Minha gente, e agora?

MIGUEL:
É a pergunta de todos nós, Manuel. Você a faz porque cabe a você, como chefe, fazê-la. Mas desde o momento que Chico Guilherme chegou aqui com essa notícia escura, essa pergunta nos mói por dentro.

MANUEL:
O grupo não tem mais munição, quase.

CHICO:
E a polícia tomando conta das estradas é impossível passar qualquer coisa pro grupo. Houve denúncia contra simpatizantes que contribuíram com armas, inclusive contra o deputado de Alto Santo. Presos ou não, é difícil que eles continuem a manter a ajuda.

MIGUEL:
Isto é um fato. Mais um. E é necessário. Chico, que você diga tudo. Sem receios. Precisamos tomar uma decisão, que precisa ser a melhor decisão. Não adianta, neste momento, desespero infantil. O pavor é inútil, não contamina o inimigo.

FELICIANO:
É terminar tudo, acabar com tudo, cada um ir pro seu canto e passar uma esponja nas lembranças que resistirem.

MANUEL:
Não é assim não, Feliciano. Você não ouviu o que Miguel disse? Nenhum de nós aqui é inocente. Há uma lei e nós a subvertemos. Há um preço pela transgressão. Aos vencidos os vencedores mandam a conta, e é terrível o preço cobrado. Se algum de nós é inocente e desconhece estas evidências, não conte com o perdão da História - se ela der conosco um dia. A História não tolera inocentes. (Tempo) A guerrilha se isola. Do Partido, inclusive, que, conforme o depoimento de Chico Guilherme, se esfacela. Compreendo que é impossível sobrevivermos isolados. Insistir é oferecer a cabeça para que um bando insano de policiais carniceiros passem de cabo a sargento, e de tenente a capitão. (Silêncio. Baixo, calmo.) Minha opinião é dividir o grupo de uma em uma parelha, espalhar-se, tentar furar o cerco da polícia, ganhar o Ceará, Piauí, onde a repressão se abranda, e cair na clandestinidade. Para sempre ou enquanto durar esse governo. (Espera que alguém se pronuncie. Tempo.) Eu vou com Feliciano. Quero passar em casa e ver a família antes de mergulhar no mundo. É possível chegar lá, Chico?

CHICO:
É possível. Com um bom disfarce.


(Luz cai em resistência. Despendem-se, saem. Ficam Manuel e Feliciano. Manuel ajeita o fuzil. Pega algumas coisas, levanta-se e sai. Some do palco. Feliciano faz a mira na direção em que Manuel saiu e atira três vezes. Grito de Manuel e baque. Feliciano fica rígido no meio do palco. Grito, histérico, de fora: "Feliciano matou matou Manuel Torquato!" Entram os soldados arrastando o corpo e o põem na posição de tirar foto. Idem cena do Prólogo.)

EPÍLOGO

Os atores cantam - coqueiro da Bahia.

Não houve final feliz
o drama virou tragédia
não deu pra tomar a rédea
do poder, de quem explora.
Hoje a pátria ainda chora
mas há de sorrir um dia
COQUEIRO DA BAHIA
QUERO VER MEU BEM AGORA
QUER IR MAIS EU, VAMO
QUER IR MAIS EU, VAMBORA

Sindicato do Garrancho
foi retalhado de bala
mas sua voz inda fala
na casa que a Luta mora
pois quem briga hoje se escora
na mesma filosofia
COQUEIRO DA BAHIA
QUERO VER MEU BEM AGORA
QUER IR MAIS EU, VAMO
QUER IR MAIS EU, VAMBORA

Manuel tá na Nicarágua
El Salvador, Cuba e China
em Angola e Palestina
porque aonde o pau tora
é prova de noves fora
da mesma "ideologia"
COQUEIRO DA BAHIA
QUERO VER MEU BEM AGORA
QUER IR MAIS EU, VAMO
QUER IR MAIS EU, VAMBORA

Vila Amazonas, 21 de março de 1985.

01 - CHICO GUILHERMO
Foi presidente do Sindicato dos Salineiros de Mossoró, de 46 a 50. Preso duas vezes: de 36 a 37, cumprindo pena na Ilha Grande, no Rio de Janeiro, e de 38 a 39. É motorista de taxi em Mossoró, onde mora com dona Francisca Clara, sua mulher. Está com 74 anos.

02 - CÂNDIDO BENEDITO
Mossoroense, foi o segundo presidente do Sindicato, iniciando o mandato em 1932. Mora em Fortaleza.

03 - JOEL PAULISTA (Joel Martins do Nascimento)
Tem 77 anos, vividos em Mossoró, onde nasceu. Foi duas vezes presidente do Sindicato: em 34/35 e em 55 (interinamente). Preso duas vezes: em dezembro de 35, condenado a dois anos de prisão, cumpridos na Ilha Grande, ao tempo de Graciliano Ramos; e em 64, cumprindo um ano.

04 - POLICÁRPIA
Presidente da Associação de Mulheres Trabalhadoras de Mossoró. Foi presa em 36, acusada de insuflação. Organizava paneladas e grandes festas, a fim de levantar dinheiro para o Partido. Morreu fora de Mossoró.

05 - ALEMÃO (José de Alencar)
Carioca, chegou em Mossoró em 35, com mais ou menos 24 anos. Era engenheiro, especialista em explosivos. Foi fuzilado no sítio Cigano, ao pé da Serra Mossoró, pelo sargento Francisco Felício (Chico Zaza), em 36, depois de dissolvido o grupo guerrilheiro.

06 - MIGUEL MOREIRA
Natural de Angicos/RN. Era rábula. Último resistente do Grupo. Foi preso em 36, cumprindo 5 anos de prisão em Natal.

07 - FELICIANO PEREIRA DE SOUZA
Entregou-se à polícia após matar Manuel Torquato, tendo antes passado na casa da família Fernandes. Cumpriu 5 anos de prisão, em Natal. Foi morto em Ceará-Mirim (RN) por um soldado.

08 - JOSÉ MARIANO (Luiz Manuel da Silva)
Sua militância no Partido foi quase toda na clandestinidade. Usou os nomes de Zé Mariano, Antônio Martins, além do nome de guerra assumido dentro do Partido: Pirajaba. Foi soldado do exército, tendo participado de uma rebelião. Em João Pessoa (PB), matou um policial integralista, durante um comício. Vendia pão-de-milho em Mossoró. Esteve envolvido na morte de Chico Bianor (14/10/34), feitor de uma salina em Areia Branca. Chico Bianor tinha ameaçado arrancar-lhe os dentes. Foi morto pela polícia em 36, em Limoeiro do Norte (CE).

09 - JONAS REGINALDO
Morreu em 74. Junto com os irmãos Raimundo, Lauro e Glicério compunha um núcleo de intelectuais ativos no meio operário mossoroense e ligados ao PCB. Era marchante.

10 - SEBASTIÃO CADEIRA
Guerrilheiro grossense. Morreu em 36, quando detonou um cinturão de explosivos que conduzia à cintura.

11 - MANUEL TORQUATO DE ARAÚJO
Chefe do grupo guerrilheiro. Antes de ser salineiro foi pequeno comerciante, ambulante. Foi preso pelo bando de Lampião. Fugiu e perdeu toda a mercadoria para o bando. Organizou um sindicato de trabalhadores rurais em Alagoinha e outro em Açu, quando despertou a raiva de fazendeiros locais. Morreu com 35 anos. Deixou 7 filhos, alguns ainda hoje morando em Mossoró.

12 - RAIMUNDO SACRISTÃO
Por mais de 50 anos foi sacristão da catedral de Santa Luzia. Morreu em 78, com 66 anos.

13 - RAFAEL FERNANDES GURJÃO
Médico e político, foi prefeito, deputado e governador. Diretor do jornal O MOSSOROENSE. Morreu no Rio de Janeiro em 1952, com 71 anos.

14 - LAURO DA ESCÓSSIA
Jornalista e historiador, foi diretor de O MOSSOROENSE, onde escreveu uma série de artigos sobre o período da guerrilha. Vive em Mossoró.

15 - EDGARD BARBOSA
Professor, jornalista e escritor de Ceará-Mirim (RN). Morreu em Natal, em 1976, com 67 anos.

16 - RAIMUNDO JUVINO
Comerciante e industrial, foi prefeito de Mossoró de novembro de 32 a setembro de 33. Chegou a ser preso por ser cafeísta. Morreu em Natal, em 1980, com 93 anos.

17 - SABOINHA (Vicente Carlos de Sabóia Filho)
Nasceu em 1889, no Ceará. Foi por muitos anos superintendente da estrada de ferro de Mossoró, adquirindo fama de terrível pelas arbitrariedades praticadas contra ferroviários e outras categorias. Morreu em 1965.

18 - CELINA VIANA
Natalense, nasceu em 1890. Esposa do Prof. Eliseu Viana. Entrou para a história de Mossoró por ter sido a primeira mulher no Brasil a votar (1928). Morreu em 1972, em Belo Horizonte.

19 - JOSÉ MARTINS DE VASCONCELOS

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