Insurreição
Comunista de 1935
em
Natal e Rio Grande do Norte
Lauro Reginaldo
da Rocha - Bangu
Bangu,
Memória de um Militante
Brasília Carlos Ferreira
– Organizadora, 1992
Nosso
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de Produção
II
– Buscando caminhos
A
liga Operária – As primeiras escaramuças
Naquela
época o mundo passava por grandes transformações.
A crise provocada pela primeira guerra ocasionou
uma onda geral de greves e de lutas populares.
A revolução soviética, por
sua vez, surgiu como um estímulo e uma
esperança. As grandes massas trabalhadoras
de todos os países tinham agora um rumo
certo a seguir, organizavam-se sindicatos por
toda a parte, o anarquismo cedia lugar a criação
de poderosos partidos políticos da classe
operária: os Partidos Comunistas.
Na
nossa cidade esse movimento teve repercussão
imediata. Um punhado de idealistas, tendo à
frente Raimundo Reginaldo, Oscar Amaral, Lindolfo
Arruda e outros, lançou as bases da Liga
Operária que evoluiu rapidamente, construindo
sede própria, criando um grupo escolar
para filhos dos associados e organizando biblioteca.
Essa Liga transformou-se mais tarde numa sociedade
de simples beneficência, mas no início
ela desempenhou papel importante na formação
da consciência política dos trabalhadores.
Ali realizavam-se grandes manifestações
e nas comemorações de Primeiro de
Maio, hinos revolucionários, como “A
Internacional” de Eugene Pottier e Pierre
Degeyter, eram cantados como se fossem simples
canções populares. “O Trabalho”
jornal da Liga Operária, era um semanário
que disseminava idéias e apesar de sua
orientação confusa, foi um desbravador,
um pioneiro das lutas sociais.
Iniciou-se,
então, uma campanha por aumento de salários
para os trabalhadores da estrada de ferro, que
tinham nível de vida baixíssimo,
em regime de vales, em condições
desumanas de trabalho. Durante essa campanha,
meu irmão Rochinha (Alexandre Reginaldo
Rocha), junto com o padeiro Chico P. Macaco, organizou
uma crítica carnavalesca focalizando a
exploração. Um representava o papel
do diretor, outro fantasiou-se de capataz e os
demais componentes do grupo representavam uma
turma faminta de “cassacos” da estrada.
A crítica fez grande sucesso, mas o sargento
Antenor, chefe de destacamento policial, recebeu
instruções para acabar com ela.
E o fez à sua maneira violenta. De revólver
em punho atacou o bloco de foliões, dando-se
o choque inevitável do qual ele, o arbitrário
agente da lei, saiu levando desvantagem.
No
dia seguinte chegou à cidade uma numerosa
força da Polícia Militar, comandada
pelo tenente Laurentino. Essa força, armada
até os dentes, em formação
de combate, efetuou o assalto a uma imaginária
fortaleza – que nada mais era do que a humilde
residência de minha mãe, que nada
tinha a ver com as ocorrências. Com a aproximação
da tropa, minha mãe e minha irmã
fugiram pelos fundos, abrigando-se os soldados
arrobaram as portas à coices de fuzil,
quebraram móveis, potes e panelas, num
verdadeiro ato de vandalismo.
De
nada valeram nossos protestos. Eu, que aprendera
na escola que “o lar é um asilo inviolável”,
passei a ver até que ponto valem as leis,
comecei a ter as primeiras aulas práticas
– e muito mais verdadeiras que as recebidas
na escola – de que tanto as leis como as
autoridades estão sempre à serviço
das classes dominantes. O entrevero terminou com
a nossa prisão, onze membros da família
Reginaldo nas grades, eu no meio deles. E esse
foi o meu “batismo de fogo”, aos 15
anos de idade.
No meu fraco entendimento, eu achei que aqueles
vândalos cometeram um grave erro. Para mim
sempre foi claro, lógico e racional que
a fome não se mata com coices de fuzil,
e sim com alimentos. E o alimento continuou a
não chegar às mãos dos famintos.
Aqueles
que nasceram em berço de ouro, aqueles
que desconhecem a miséria, não poderão
nunca compreender o verdadeiro sentido desta palavra,
FOME. Eu não me refiro, é claro,
a uma fome ocasional mas, à fome do dia
a dia, imposta pela escassez freqüente, continuada
e pela ausência total, por longos períodos,
de alimentos indispensáveis à nutrição
e à sobrevivência. Eu a conheço
muito bem, ela viveu ao meu lado. Eu a vi estampada
nas faces de outros, como se eu estivesse diante
de um espelho. Aquele olhar parado, os olhos fixando
um ponto qualquer no espaço, sem nada ver,
aquele ar apalermado de faces encovadas, o pensamento
divagando à toa, ora fixando-se, angustiado,
em imaginárias iguarias, ora não
se fixando em nada, como se o cérebro tivesse
parado. E de repente vem aquela reação,
aquele desejo de investir, de quebrar tudo, esse
desespero que muitas vezes levou os flagelados
a atacar mercados, a avançar contra as
bancas dos “marchantes” e deixar,
num minuto, as suas pedras-mármores limpas,
sem qualquer vestígio de carne.
A fome
costuma completar, em poucas horas, o trabalho
que as lideranças revolucionárias
levaram longos anos lutando para conseguir, o
de levar as massas populares a se decidirem a
lutar e até mesmo a empreender o assalto
final pela tomada pelo poder.
A história
universal está cheia de exemplos. Foi a
fome quem levou o povo francês a enfrentar
os canhões e derrubar a bastilha. Foi a
fome que derrubou o poderoso império dos
czares, na Rússia. Foi a fome quem levou
o povo chinês a expulsar de seu solo os
exploradores estrangeiros, levando-os de roldão
para fora do continente, implantando mais um poderosíssimo
estado socialista no mundo. A fome desconhece
a razão, leva ao desespero e o desespero
não teme a força. Num certo sentido
a fome é um grande general.
Entretanto,
a teoria e a prática nos ensinavam que
esse general, por si só, era inconseqüente,
que ele jamais solucionaria de vez os problemas
do povo trabalhador, se ficássemos à
sua espera, na expectativa de soluções
espontâneas e milagrosas. As revoluções
mencionadas acima, tanto a revolução
burguesa, na França, como as revoluções
socialistas na Rússia e na China, não
teriam sido vitoriosas se não tivessem
sido dirigidas por organizações
poderosas e por grandes líderes, que lhes
deram uma orientação política
justa e adequada.
Nós
achamos que era necessário e urgente criar
organizações partidárias
e de massas (sindicatos e outras) capazes de preparar,
orientar e dirigir as nossas, lutas, desde as
pequenas e imediatas até as grandes e decisivas.
Assim pensando, criamos a primeira célula
da Juventude Comunista, sob a orientação
do professor Raimundo Reginaldo. Esta célula
foi constituída no seu início, por
Lauro, Saraiva, Mariano e Soares. Pelos meus cálculos,
isto ocorreu em fins de 1924 ou começo
de 1925, quando eu tinha de 15 para 16 anos de
idade. Este foi o ponto de partida para um longo
e paciente trabalho no terreno da organização.
Alguns
anos depois, enquanto eu participava da reorganização
do Partido em Fortaleza-CE (1929 a 1931), em Mossoró-RN
era criado o primeiro Comitê Regional do
P.C., por iniciativa de Antonio Reginaldo Sobrinho,
meu irmão.
A notícia
de nossa prisão e da depredação
da casa de minha mãe se espalhou até
as localidades vizinhas. A partir desses acontecimentos,
começamos a ser procurados por pessoas
que desejavam conversar e conhecer nossas idéias.
O mais procurado era Raimundinho, por ser o mais
velho e o mais capacitado a dar esclarecimentos.
Certo
dia meu irmão Luizinho (Moba) trouxe à
minha presença um senhor de Areia Branca,
cidade próxima a Mossoró, que desejava
conversar comigo. Todo o seu jeitão era
de um camponês. Mas aquele calo no ombro
e as rachaduras nos pés definiam, sem margem
de dúvidas, tratar-se de um salineiro.
Iniciando o “papo”, ele começou
dizendo que era católico e queria saber
se as nossas idéias eram contra a religião.
Eu
respondi com outra pergunta: - Como podemos ser
contra a religião, se nossa mãe
-Luiza da Rocha- é católica fervorosa
e, diariamente, antes de pegar a máquina
de costura, vai à missa, na Matriz da cidade,
como é do conhecimento geral? Na nossa
família há católicos, protestantes
e materialistas. Nós somos, pois, pela
liberdade de crenças e se algum dia alguém
quiser tolher a sua liberdade de ser católico,
venha nos procurar que lutaremos ao seu lado,
sem qualquer vacilação.
O visitante
riu, parecendo satisfeito com a resposta. E apresentou
outra dúvida: “- Dizem que vocês
são pela violência. Acontece que
a minha religião cristã prega a
paz e a harmonia entre os homens”. –
Então empatou, respondi, porque nós
também não temos prazer nenhum em
brigar. Somos todos trabalhadores, ordeiros, chefes
de família. Só brigamos quando somos
obrigados e encurralados, em nossa própria
defesa ou em defesa de uma causa justa. O nosso
sonho é que, num futuro próximo,
haja um mundo de paz e felicidade para todos.
Nós achamos que não haverá
paz na terra enquanto houver o sistema capitalista
e por isto lutamos contra ele. Acho justo que
devemos lutar pela paz, porque a paz é
harmonia, é tranqüilidade para pensar,
para trabalhar, para produzir, para amar, para
bem usufruir todas as coisas belas da vida. Mas,
nem sempre este bem precioso que é a paz
pode ser mantido sustentado. Vivemos num mundo
de agressões e chega o momento em que a
paciência enche e enche tanto, que temos
de tomar uma atitude antes que o saco estoure.
A violência
é a característica básica
do capitalismo, este regime que nos é imposto
pela força. Uma paz alicerçada na
desigualdade e na injustiça, uma paz imposta
pela tirania, uma paz humilhante e desumana, uma
paz de cemitério, esse tipo de paz é
difícil fazer com que o povo acate e suporte.
Essa acusação de que somos desordeiros
é antiga, mas, vem sempre com o endereço
errado. Vamos analisar as coisas direitinho, para
vermos que são os desordeiros.
Através
de uma longa e penosa experiência temos
observado o seguinte: quando a pobreza tem fome
e pede pão, acaba levando pau. Não
é isto o que acontece? Quando o operário
faz greve, vem a polícia e baixa o cacete,
prende e espanca. Os cárceres estão
sempre cheios. Os sindicatos são invadidos,
os comícios são dissolvidos a bomba
de gás e a bala, operários, camponeses,
estudantes e populares são presos, torturados
e assassinados.
Quem
pratica tanta violência, tantos crimes?
Somos nós? É esta a paz que devemos
aceitar? “ – Mas vocês não
pretendem tomar o poder?” Tornou a perguntar
o nosso interlocutor. – Nós achamos
que o regime que aí está é
um regime injusto e cruel, que já caducou,
e que deve ser substituído por um governo
popular capaz de realizar reformas radicais destinadas
a acabar com a pobreza e o atraso de nosso povo.
Se os homens que estão de cima não
gostam de desordem e de violência, é
muito simples, entreguem o governo ao povo e está
tudo resolvido, na paz, no amor e na concórdia.
“- E vocês acham que eles vão
entregar tudo de mão beijada?” –
Há muita gente que acredita nessa hipótese.
Para lhe ser sincero, eu, pessoalmente, não
acredito. Que me desculpem, mas acho essa hipótese
uma besteira. Olhemos para o mundo e vejamos o
que aconteceu ou está acontecendo em toda
face da terra. O sistema capitalista sabe mais
que ninguém que os seus dias estão
contados. Mas, luta encarniçadamente, ferozmente,
desesperadamente, para se manter no poder. Não
é isso o que acontece? Podemos ainda ter
ilusão?
Depois
de uma longa conversa nos despedimos – eu
e o católico – em boa paz e harmonia.
As
idéias marxista-leninistas atingiram em
cheio a família Reginaldo. Como uma semente
plantada em solo fértil, elas nasceram,
cresceram e se expandiram com uma força
extraordinária. Raimundinho foi o primeiro
a recebê-las e propagá-las. E eu
o irmão mais moço, ainda criança
fui o segundo a aceitá-las, com um entusiasmo
e uma alegria de que descobre um novo mundo. Logo
a seguir aderiram, o Toínho, depois Jonas,
o Glicério, os outros irmãos e vários
descendentes. Apenas um se manteve contrário,
foi Joãozinho (João Reginaldo da
Rocha, “João da Mata”). Mas,
foi uma resistência peculiar, como veremos
nos fatos que vou relatar.
Em
1924-25 os outros irmãos já estavam
casados, somente eu e ele ainda estávamos
solteiros, morando com nossa mãe. Joãozinho,
vez por outra, puxava conversa comigo sobre política,
ora fazendo perguntas, ora contestando. Eu procurava
sempre esclarecer as questões por ele formuladas,
de acordo com o meu entendimento. E as nossas
relações continuavam sem quebra
da cordialidade.
Mas,
num certo dia, ele “me chamou às
falas” sobre a estante de livros que eu
mantinha na sala. Nessa estante estavam meus livros
de estudo (escolares), os livros marxistas e os
de literatura em geral. Joãozinho achava
que havia na estante livros perigosos (obviamente
os marxistas), e que deviam ser retirados dali
sem perda de tempo, levados para outro local ou
mesmo destruídos, antes que a polícia
viesse confiscá-los.
Senti
imediatamente que estávamos, eu e ele,
sendo vítimas do chamado terror cultural,
e eu não estava com disposição
de me curvar gratuitamente a esse tipo de pressão.
Calmamente eu procurei explicar que todos os livros
que ali estavam tinham sido comprados legalmente
nas livrarias, com muito sacrifício financeiro.
Que eu desconhecia qualquer edital expedido pelas
autoridades policiais classificando os livros
em perigosos ou não perigosos. Que as mesmas
autoridades constituídas permitiram que
se editassem os livros e os vendessem livremente.
Se depois de tudo isso a polícia sem qualquer
esclarecimento e sem nenhum aviso, viesse à
nossa casa para confiscá-los, isto seria
uma violência inqualificável e, como
tal, devia ter o nosso repúdio.
Argumentei
ainda, que se os livros eram perigosos em nossa
casa, também seriam em qualquer local onde
fossem levados. E que não seria justo transferir
um risco desta ordem para as costas de um parente
ou amigo. Quanto a eu mesmo destruir os meus livros,
isto eu não faria “nunca”!
O assunto ficou nesse pé. Mas, Joãozinho
não se conformou. Dias depois ele veio
a mim e disse que se os livros não fossem
retirados da casa, ele os queimaria.
Nesta
altura lembrei-me de tudo o que eu tinha lido
sobre história da inquisição,
suas fogueiras e suas crueldades, e respondi com
firmeza: - Está muito bem. Vamos então
fazer um acordo, quando eu não estiver
em casa, você pode queimar meus livros.
Depois, quando você não estiver em
casa, eu pego os seus móveis (ele estava
se preparando para casar), levo seus móveis
para o quintal e faço uma fogueira. Ficaremos
quites, elas por elas.
Depois
dessa discussão eu procurei meus irmãos
mais velhos – Jonas e Toínho –
e narrei todos os fatos. Eles me disseram que
iam falar com Joãozinho, para eu ficar
tranqüilo. Ele não queimaria nenhum
livro e os livros continuariam onde estavam. Não
sei o que eles disseram a Joãozinho. Sei
que apenas ele nunca mais tocou no assunto. E
nossa amizade continuou como se nada tivesse acontecido.
Este
episódio, contado assim destacado do conjunto
de toda nossa história, daria uma idéia
falsa da personalidade desse Reginaldo. Ele jamais
foi uma reacionário, um desleal, um desfibrado.
Muito ao contrário. Nunca exigimos dele
qualquer participação em nossa atividade
política, mas nas horas difíceis
quando vinha o acocho, ele estava sempre ao nosso
lado, compartilhando conosco de tudo que desse
e viesse. Era nessas ocasiões que ele mostrava
a sua calma e a sua coragem, a sua solidariedade
e a sua altivez. Nunca nos abandonou nas horas
difíceis. Sempre que íamos presos,
lá estava ele também no xadrez,
do nosso lado, calmo e tranqüilo, preso somente
por nos defender.
Tempos
depois cheguei a conclusão de que toda
aquela confusão sobre os meus livros não
passou de um blefe, Joãozinho nunca teve
a intenção de concretizar suas ameaças.
Ele estava apenas querendo nos proteger, de forma
errada, mas sincera, da feroz repressão
que se desencadearia mais tarde sobre nós.
O fato
que passo a relatar veio fortalecer esta minha
conclusão. Em fins da década de
30 eu e Joãozinho – ambos casados
– estávamos morando em Fortaleza.
Certo dia, estávamos trabalhando numa oficina
no centro da cidade, de portas fechadas, por ser
domingo. Alguém bateu e Joãozinho
foi atender. Era a polícia política
que me procurava, com ordem de prisão.
Sem
abrir a porta, Joãozinho mandou que os
“tiras” aguardassem, foi até
onde eu estava e disse: “- é a polícia,
fuja, rápido”. E como eu me recusasse
a fugir, ele foi me empurrando para uma porta
dos fundos que dava para outra rua, dizendo que
era a mim que procuravam e não a ele, que
ele não estava implicando em política,
enquanto eu estava, que os “tiras”
não tinham visto a mim e portanto não
tinham certeza da minha presença, que eu
era mais útil aqui fora do que atrás
das grades. E com essa conversa foi me levando
até a porta dos fundos.
Depois
de me empurrar para a rua, trancou o portão
por dentro e foi calmamente se apresentar aos
policiais que esperavam na porta da frente. E
como a estória que contou aos “dito-cujos”
sobre meu paradeiro, não convenceu, acabou
sendo preso no meu lugar. Por aí se pode
tirar uma conclusão sobre o caráter
do meu irmão Joãozinho, o João
da Mata, aquele que outrora ameaçou tocar
fogo nos meus livros.
Nessa
época, um líder começava
a despontar no cenário político
norte-riograndense: o advogado João Café
Filho. O seu prestígio, todavia, ainda
estava restrito aos meios operários de
Natal e a gente miúda das cidades mais
desenvolvidas do Estado. Ele se apresentava como
elemento da oposição à velha
oligarquia perrepista, representativa dos privilegiados
grandes fazendeiros do café, da qual o
povo brasileiro já estava mais do que farto.
O sr.
Café filho ligou-se a massa operária,
através dos sindicatos, tomando posição
em defesa de seus anseios e reivindicações.
Com sua palavra fácil e seus discursos
inflamados, não foi difícil que
seu prestígio se expandisse e se firmasse
no meio da classe trabalhadora e de outros setores
da população. Por todos estes motivos,
seria demasiado sectarismo de nossa parte se não
procurássemos fazer frente-única
com o novo líder ou se simplesmente ignorássemos
a sua existência.
Certo
dia tivemos a notícia de sua vinda a Mossoró.
Essa notícia chegou com uma antecedência
de apenas algumas horas, era nosso desejo preparar
uma recepção condigna, mas o tempo
era curto, pouco se podia fazer em cima da hora.
Procuramos apressadamente reunir os componentes
da banda de música local, convidamos o
maior número de companheiros e amigos e
fomos esperá-lo na praça da Matriz.
Recebemos
o líder com abraços e vivas, enquanto
foguetes espoucavam no ar. Formou-se em cortejo
que o acompanhou até a residência
de meu irmão Raimundo Reginaldo, no bairro
Doze Anos, onde o visitante ficou hospedado por
algumas horas. Ali estava, em nossa casa humilde,
o homem que haveria de ser o Presidente da República,
sem que nós pudéssemos imaginar
que tal coisa um dia viesse acontecer.
Acreditamos
que os tradicionais chefões da política
oficial também nem sequer sonharam com
esta eventualidade. Caso contrário, ninguém
lhes tiraria a primazia nem o prazer de serem
os hospedeiros do ilustre visitante. E em vez
da indiferença e mesmo da hostilidade com
que assistiram a passagem do líder populista
pela cidade, os maiorais da política teriam
feito a ele a mais rica e calorosa recepção,
com flores, tapetes, e rapapés e tudo o
mais de que são hábeis e experientes.
Quanto
a nós, não permitiriam sequer que
nos aproximássemos. Aliás, esta
proibição seria perfeitamente desnecessária,
porque nós, neste caso, de foram alguma
chegaríamos perto. Mais adiante, noutros
capítulos destas memórias, veremos
as guinadas que este mundo dá, e de que
maneira fomos recompensados pelas ações
de cortesia que praticamos.
Em
1925, aos 17 anos, integrando a 2º Turma
que se formara, terminei o curso da Escola Normal
e recebi o grau de professor.
Muito
embora fosse grande meu contentamento pelo sucesso
alcançado, eu me sentia fraco de conhecimentos,
era como se apenas tivesse transposto um obstáculo,
restando muito a caminhar. Mas, a realidade era
que aquele diploma na mão, significava
que eu nada mais tinha a fazer do que sair por
aí a fora a espalhar instrução,
baseado naqueles precários conhecimentos
adquiridos.
No
ano seguinte parti para esse destino, por ter
sido nomeado professor de uma Escola Isolada na
cidade de São Miguel, lá nos limites
do Rio Grande do Norte com os Estados do Ceará
e Paraíba. Naquele tempo os meios de transportes
eram precários, tive que viajar em lombo
de burro, com um grupo de “comboeiros”,
numa viagem longa e fatigante.
A cidadezinha
de São Miguel, situada em cima de uma serra,
tinha o aspecto clamo e simpático das cidades
do interior. Ao penetrar nas primeiras casas,
encontrei vestígios deixados pela Coluna
Prestes que por ali passara havia pouco tempo.
Dentre estes vestígios, recordo-me de uma
frase zombeteira escrita na parede da sede dos
Correios por um sargento da Coluna, que dizia:
“Os negalistas, digo, legalistas fugiram
vergonhosamente” E seguia-se a assinatura
do sargento, cujo nome o tempo me apagou da memória.
Lamentei
profundamente que na passagem da Coluna Prestes
por São Miguel eu não estivesse
presente. Tive a sensação de ter
chegado atrasado a um almejado encontro. Caso
eu estivesse presente a Coluna, provavelmente,
teria conquistado mais um soldado.
Nessa
época já pertencia à Juventude
Comunista. Certamente iria expor minhas idéias
a Prestes e a outros líderes da Coluna.
Mas, esse meu encontro com Prestes viria se realizar
muitos anos depois, conforme será relatado
mais adiante.
No
meu curto período de professorado uma coisa
me desagradou seriamente: não receber os
meus vencimentos em dia. O pagamento ao funcionalismo
estava com um atraso de 3 meses. Não é
que me faltasse nada – o crédito
vigorou perfeitamente e sem restrições
– mas isto me tirou uma certa independência
de atitude que sempre procurei manter. Certa vez,
a pessoa que me hospedara em sua casa e me franqueara
tudo o que viesse a precisar, pediu-me para que
assinasse um telegrama dirigido a certo político
da capital. Não era nada de grande importância,
tratava-se apenas de felicitações
por aniversário e eu por amizade e gratidão
assinei. Mas, não gostei. Quando eu felicitar
alguém por alguma coisa, mesmo que seja
um aniversário natalício, quero
ter minhas razões para isto. E, sobretudo,
deve ser por livre e espontânea vontade.
É uma questão de temperamento e
princípios.
Logo
no início das aulas esbarrei com uma grande
dificuldade: a falta de alunos. À escola
só comparecia um pequeno número
de crianças, filhos de negociantes e artífices
do centro da cidade. Só havia no lugar
uma escola particular, por sinal de freqüência
também não muito grande. Onde estariam,
então, os outros meninos? Resolvi percorrer
os arredores da cidade à cata de alunos
e pude verificar a causa daquela ausência
– POBREZA. Os filhos dos lavradores pobres,
uns não podiam comparecer às aulas
por falta de roupa e calçados, outros por
terem que ajudar os pais no trabalho e assim melhorar
ou garantir o sustento.
Contra
o regulamento escolar, resolvi permitir que os
meninos comparecessem com a roupa que tivessem,
de chinelos ou descalços. Isto trouxe uns
poucos alunos mas, não resolveu a situação.
Uns, provavelmente não compareciam por
constrangimento, o mais certo porém, e
que os pais não podiam abrir mão
da indispensável ajuda de seus filhos na
luta pelo pão. Diante desse estado de coisas
passei a compreender que a luta contra o analfabetismo
era um problema muito mais sério do que
a princípio me parecera. Não era
possível resolvê-lo sem que se elevasse
o padrão de vida do povo, o mal era de
conteúdo essencialmente econômico-social.
E aí começava outro problema muito
mais profundo e complexo.
Percebi
que a pobreza e o analfabetismo andavam sempre
de mão dadas, que onde havia maior pobreza
era justamente onde havia maior atraso, mais analfabetismo.
Ambos os males, produtos de uma sociedade sub-desenvolvida,
jamais seriam resolvidos sem que houvessem as
transformações revolucionárias,
cuja plataforma estava sendo lançada na
ordem-do-dia, nos grandes centros urbanos do país.
Por
outro lado, eu mantinha a minha vontade de continuar
os meus estudos, e estava convencido de que isto
não seria possível se eu continuasse
naquela vidinha sacrificada e de resultados escassos
que eu seguia.
A decisão
foi tomada. Abandonei o ensino, voltei para Mossoró
e passeia a trabalhar com meu irmão João
Reginaldo, na pintura da propaganda. Matriculei-me
no Colégio Diocesano, visando fazer os
preparatórios para ingressar numa faculdade.
Os
nossos rendimentos deveriam dar para alimentação,
roupa, outras despesas indispensáveis e
para pagar as mensalidades, livros, etc, do curso
programado.
Quanto
ao trabalho profissional em si, não havia
dificuldades. A sua natureza se enquadrava perfeitamente
à nossa vocação artesanal.
De modo que inicialmente tudo corria bem, os compromissos
iam sendo pagos em dia, sem problemas.
Depois
vieram os períodos de crise de trabalho,
complicando tudo. E dos meios de que lancei mão,
numa luta inglória para manter de pé
meus ilusórios planos, não escapou
sequer o cabo da enxada. Logo das primeiras chuvas,
lá estava eu, no roçado de Chico
Freire, jogando ao solo sementes de milho e de
feijão, na esperança de uma boa
safra.
As
minhas ilusões de desvaneceram. A Faculdade
que eu sonhava fechou suas portas para mim, porque
não tive dinheiro para pagar meus estudos.
Mas eu descobri que havia outra Faculdade também
muito útil e importante, gratuita, sem
barreiras, sem restrições, sem móveis,
sem paredes, sem professores catedráticos
e sem diplomas. Suas salas de aula eram a praça
pública, as ruas, os campos. Sua sede,
nosso imenso Brasil, o mundo, o espaço
infinito. Seus professores, o povo, a humanidade,
a vida! Eu já estava matriculado nessa
Faculdade e não me apercebera. Muito aprendi
nela. E continuo aprendendo.
No
cenário turbulento do nordeste, uma narrativa
como a que estamos fazendo não seria completa
nem verdadeira se não fosse entrecortada
de lances de tragédia. Isso fez parte de
nossa vida e de nossa história. Vejamos
o que aconteceu no ano de 1927.
Nós
vínhamos do roçado com uma carroça
cheia de milho verde, feijão e melancia,
quando encontramos, vindos da cidade, um grupo
de comboieiros que nos transmitiu a notícia
alarmante de que Lampião, com seu grupo
de cangaceiros, estava há duas léguas
de Mossoró, vindo em direção
do bairro Alto da Conceição. Enviara
um emissário ao Prefeito com um ultimato
exigindo dinheiro. E como não foi atendido,
esperava-se a qualquer momento o ataque à
cidade e dizia-se, caso vencesse “seria
difícil prever as conseqüências”.
Tivemos
que tocar os bois com mais pressa, para evitar
que fôssemos atingidos pelo tiroteio. Nós
morávamos, nessa época no bairro
Doze Anos, próximo da linha férrea.
Os subúrbios não estavam defendidos
do ataque. Somente os pontos centrais da cidade
estavam entrincheirados (casa do Prefeito, banco,
comércio, etc.). De sorte que os cangaceiros,
vindos pelo Alto da Conceição, teriam
que passar em frente ou próximo à
nossa rua para atingir seu objetivo, o centro
urbano.
Entramos
na cidade deserta, a quase totalidade da população
havia se retirado. Descarregamos a carroça,
fomos jantar e ainda estávamos à
mesa quando começou o tiroteio. Eu e meu
irmão Joãozinho saímos para
a calçada para ver a briga. Recolhemos
várias pessoas da família Eufrásio,
com mulheres e crianças, que vieram se
abrigar em nossa casa. Tanto a nossa casa como
a deles ficava próximo à linha férrea,
por onde passariam os cangaceiros, sendo que a
deles era de paredes de taipa, vulnerável
às balas de fuzil.
O tiroteio
foi se aproximando, as balas começaram
a zoar nos nossos ouvidos, até que uma
encravou-se na parede, muito perto de nossas cabeças.
Foi quando resolvemos entrar e fechar as portas.
Alguns minutos depois os cangaceiros passaram
em frente ao leito da estrada, atirando e cantando
“mulher rendeira”.
A fuzilaria
durou toda a noite. As mulheres e crianças
acomodaram-se num quarto e os homens na sala.
E assim passamos toda noite, acordados, ouvindo
o pipocar intermitente. Pela manhã, cessado
o fogo, saímos para ver o resultado e encontramos
grupos de defensores da cidade armados de fuzis.
Ficamos sabendo o resultado da refrega. O ataque
tinha sido rechaçado, Lampião se
retirara para os lados do Ceará, deixando
morto o “cabra” Colchete que foi arrastado
até o patamar da Matriz. Logo depois foi
encontrado ferido com dois balaços, o famoso
Jararaca, que foi preso e trazido para a cadeia.
Dias depois foi retirado da prisão, alta
noite, e levado para o cemitério, algemado
e ali apunhalado e jogado, ainda com vida numa
vala previamente cavada.
Foi
voz corrente que não esperaram o seu último
suspiro, este foi abafado pela terra jogada às
pressas sobre o corpo agonizante. Os autores do
trucidamento alegaram que o mesmo lhe aconteceria,
caso os cangaceiros viessem a triunfar. A vingança
estava assim, consumada por antecipação.
E com esta justificativa, “os defensores
da ordem e da lei”, por suas próprias
palavras, se nivelaram aos que eles mesmos chamavam
de bandidos.
A verdadeira
história do Brasil ainda não foi
contada. Com exceção de fragmentos
contidos em livros esparsos, muitos deles difíceis
de serem encontrados nas livrarias, o que existe
de nossa história é aquela versão
oficial ou oficiosa, bonitinha, superficial, “cantiga
de ninar”, ensinada nas escolas. Nessa falsa
história, a independência do Brasil
foi obra de um gesto altruístico do imperador
Pedro I, a abolição da escravatura
foi um ato magnânimo da princesa Isabel,
a proclamação da República
foi uma dádiva que o marechal Deodoro da
Fonseca, bondosamente, espargiu sobre as cabeças
dos brasileiros.
O povo,
com suas lutas heróicas, com seu imenso
sacrifício, com suas vidas imoladas nos
milhares de quilombos, na cabanagem amazônica
e na cabanada do nordeste, na balaiada, na Confederação
do Equador, na revolução praieira,
na guerra dos Farrapos, em todas as revoluções
e levantes dos séculos passados e deste
século, o povo – o herói principal
desse grande drama – não entra em
cena, é esquecido.
Mas,
para que não se diga que ele foi totalmente
desprezado, lembraram-se de Tiradentes. E na praça
que tem o seu nome, no Rio, bem perto do local
onde ele foi enforcado, ergueram uma estátua...
De Tiradentes? Não. De D. Pedro Primeiro...
A nova
“Faculdade” na qual, voluntariamente,
ingressei e que passei a chamar de Faculdade Revolucionária
do Povo - FRP -, não me ensinava mentiras.
Suas aulas eram práticas, reais, verdadeiras.
Nada exigia de mim, a não ser uma dose
muito grande de esforço e sacrifício,
coisas que me acompanharam e que, por conseguinte,
eu não poderia estranhar. Exigia também,
que eu fosse essencialmente auto-didata ou seja:
eu devia ver, ouvir e sentir tudo o que se passasse
em volta de mim e procurar compreender e tirar
minhas conclusões. Eu devia usar a cabeça,
o raciocínio, não de forma parada,
como um mero espectador, mas de maneira atuante,
participante.
E o
que é que eu via em torno de mim? Milhões
de seres humanos vivendo em condições
de extrema penúria e atraso, sem o mínimo
conforto e assistência; as populações
rurais vegetando como animais, dizimadas pelas
endemias, a desnutrição devastando
de preferência a infância, enquanto
que, nas cidades, o operariado não tinha
lei que lhe protegesse a vida e o trabalho.
Via
também as lutas titânicas do povo
para melhorar suas condições de
vida, e a repressão brutal que conseqüentemente
se desencadeava. As invasões nos sindicatos,
as prisões, os espancamentos, os assassinatos,
as deportações para Ilha Grande,
para Fernando de Noronha e para a Clevelândia,
onde morriam de beri-beri, doença causada
pela deficiência alimentar. As masmorras
espalhadas por esse Brasil a fora sempre lotadas
e sempre prontas a recolher e devorar novas vítimas.
A FRP
me ensinava - e no mundo inteiro os fatos confirmavam
– que só com a organização
e com a luta esse estado de coisas poderia mudar.
Passei a escrever em jornais da capital debatendo
os problemas que nos afligiam. Procurei criar
organizações sindicais e partidárias.
Os primeiros resultados começaram a surgir.
Grupos de operários salineiros, da construção
civil e outros me procuravam para discutir as
bases de sua organização.
Elementos
das classes dominantes passaram à contra
ofensiva.
Não
tardaram as ameaças, coisas que não
me assustavam. Mas foi se tornavam mais difícil
arranjar trabalho e esse tipo de represália
tornou minha vida mais difícil.
Houve
uma reunião de família. Nessa reunião
foi decidido que iria me transferir para a capital
do vizinho Estado do Ceará, onde iria ocupar
novo posto, em terreno mais amplo, na luta libertadora.
Enquanto isso, o núcleo já existente
continuaria o trabalho já iniciado. Em
cumprimento da decisão tomada, eu e minha
companheira partimos de imediato.
O primeiro
emprego que arranjei em Fortaleza, foi nas oficinas
gráficas do “Correio do Ceará”.
Depois trabalhei em outras oficinas como tipógrafo,
e esta profissão tornou-se mais tarde de
grande utilidade para o Partido, quando passei
a exercer este ofício e a formar novas
quadros profissionais, sem nenhum egoísmo.
Quanto à moradia, como não podia
deixar de ser, foi uma bairro pobre que me acolheu,
uma favela que existia por trás da rua
Benfica.
O rumo
do sindicato estava traçado, não
havia outro caminho a seguir. Era necessário
e urgente despertar na consciência daqueles
companheiros a noção do seu valor,
de sua força e de seus direitos, congregá-los
em organizações de classe onde suas
reivindicações fossem debatidas
e defendidas.
O sindicato
da Construção Civil foi o ponto
de partida para essa campanha de organização.
Fomos às portas das fábricas e aos
bairros operários, a palavra sindicato
caiu como uma voz de comando há muito esperada.
Dentro de pouco tempo conseguimos agrupar núcleos
fortes do operariado têxtil, dos transportes
urbanos, dos gráficos, alfaiates, padeiros,
empregadas domésticas e outros.
Os
comícios nos bairros e na praça
de Pelotas tornaram-se célebres, à
voz dos líderes operários juntavam-se
a palavras vibrante das tecelões, cada
discurso era um depoimento surpreende sobre as
condições de vida do povo trabalhador,
era um libelo candente contra uma sociedade que
relegava à condição de simples
párias aqueles que construíram toda
a sua riqueza e o seu patrimônio.
As
primeiras assembléias foram realizadas
na sede do Sindicato da Construção
Civil, na praça Coração Jesus.
Depois foi preciso alugar convento de freiras,
e lá passaram a funcionar todos os sindicatos
novos e o Bloco Operários Camponês,
organização de âmbito nacional
cuja direção central estava na capital
da República.
Nessa
ocasião passamos a editar um semanário
“Voz Proletária” do qual eu
era diretor, acumulado as funções
de tipógrafo, impressor, revisor e xilógrafo.
Muitas falhas devem ter saído nesse despretensioso
jornal. Mas, ele expressava bem os sentimentos
e os anseios da época e desempenhou bravamente
a sua função de procurar unificar
a classe operária em torno de um ideal
comum, que era o desejo de uma vida digna e melhor
para os que trabalham.
A experiência
adquirida com esse jornal foi de grande proveito,
pois tive mais tarde que repetir essa proeza em
outros lugares, em Natal, no Rio, em São
Paulo e na Bahia, quando o famigerado Estado Novo
nos forçou a confeccionar jornais clandestinos,
tendo que fazer títulos e cabeçalhos
gravados em madeiras, à canivete, para
suprir a falta de tipos para os mesmos e em condições
mais difíceis que se possa imaginar.
Como
sempre acontece, o nosso trabalho não demorou
a inquietar os poderosos e a reação
começou com uma campanha difamatória
contra as organizações nascentes.
Dentre muitas coisas absurdas que eles diziam
nessa campanha, uma provocou muitos risos nos
meios operários, a de que estávamos
a serviço do “ouro de Moscou”.
Que excelente imaginação a desses
senhores! – diziam uns. É preciso
ter muito “crânio” para idealizar
uma coisa dessa. O Gomes, um operário que
estava sempre a pilheriar, saiu-se com esta: “-
Quem sabe se esse ouro de Moscou não está
vindo mesmo e “Eles” estão
roubando no caminho?” e acrescentava irônico:
“-Quem disto cuida, disto usa”.
Neste
clima de entusiasmo e otimismo o nosso trabalho
de arregimentação continuou a progredir,
as decisões eram freqüentes, o nosso
prestígio crescia nas fábricas e
nos bairros, confirmando todas as nossas previsões.
Mas,
a minha preocupação fundamental
era a organização do Partido Comunista.
Eu estava consciente de que a existência
de um partido marxista-lenista era condição
indispensável para o desenvolvimento das
lutas da classe operária e do povo laborioso
em geral. Em conversas particulares, procurei
sondar o ambiente e fiquei sabendo que já
havia sido criado um Comitê Regional do
PC, por iniciativa do operário (pedreiro)
José Joaquim de Lima. Mas deixara de funcionar.
Partindo
desses dados, não foi difícil o
meu trabalho. Dentro de pouco tempo estava funcionando
o novo CR e as primeiras células foram
estruturadas entre os têxteis, gráficos,
construção civil, transportes urbanos
etc. A partir daí, passei a ter mais confiança
e firmeza em nossa organização,
em nossas forças.
Um
dos redutos onde a exploração e
a ganância se faziam sentir com mais desfaçatez
era a Light, a famosa companhia de capitais estrangeiros.
Muitas
fábricas e empresas nacionais, especialmente
as de pequeno porte, compreenderam a justeza de
nosso movimento, passaram a tratar com mais respeito
seus servidores e a atender em alguns casos, seus
justos reclamos. Criava-se então nessas
pequenas indústrias, um ambiente de entendimento
e cooperação entre empregados e
patrões. Mas a Light, senhora absoluta
e poderosa, fez ouvido de mercador às reivindicações
operárias, manteve-se intransigente a todo
e qualquer apelo de melhoria de salário,
os memoriais aprovados em assembléias sindicais
e enviados a Companhia não eram tomados
sequer em consideração. Esgotados
todos os recursos persuasórios, resolveram
os operários, em assembléia geral,
apelar para o último recurso, a greve.
Esta foi declarada, os bondes paralisaram, afetando
a vida a cidade. Um Comitê de Greve passou
a funcionar na sede dos sindicatos. A solidariedade
do povo surgiu generosa e eficiente.
Diariamente
saíam “bandos precatórios”
dos grevistas, conduzindo pelas ruas da cidade,
as bandeiras nacional e do sindicato solicitando
ajuda. E nas bandeiras “choviam” donativos
em dinheiro a mercadorias. Na sede dos sindicatos
caminhões paravam à porta e descarregavam
sacos de feijão e farinha que os comerciantes
enviaram para os grevistas. Açougueiros
mandavam bandas de boi, das padarias vinham balaios
cheios de pão, toda a manhã.
A sede
do Sindicato era um torvelinho contínuo.
Era impressionante a solidariedade da população
com o movimento paredista e não me recordo
de outro movimento em que essa manifestação
de apoio tenha sido superada.
Fui
incumbido da publicação de um “Boletim
de Greve” que saía diariamente, dado
conta do movimento, estimulando e exortando os
operários a prosseguirem na greve até
a vitória final. Parte da imprensa colaborou
com os grevistas, destacando-se “O Ceará”,
diário de Matos Ibiapina, e essa ajuda
muito influiu no resultado da parede, que terminou
com a vitória das justas reivindicações
operárias.
Mas
uma surpresa estava reservada aos trabalhadores.
Terminada a greve, quando o trabalho retomava
seu ritmo normal, começaram as represálias
por parte da companhia imperialista, que passou
a despedir aos poucos os funcionários que
mais se destacaram no movimento. Como não
havia nessa época leis de estabilidade
no trabalho, velhos servidores que passaram toda
a vida a enriquecer o truste do transporte urbano
e da energia elétrica, viram-se de repente
postos na rua sem nenhuma indenização.
Com
essa dura experiência, o operariado aprendeu
a necessidade de cerrar fileiras em torno de seus
líderes, diante da falta de escrúpulos
por parte dos explorados estrangeiros. A união
e firmeza constituem sempre uma força poderosa
de que dispõe a classe operária
para fazer valer os seus direitos. E tudo o que
de útil se conseguiu até hoje nessa
longa trajetória, deve-se a essas duas
palavras mágicas, sempre que elas foram
postas em práticas.
Certa
manhã, quando me dirigia ao trabalho, fui
abordado por policiais. Um deles disse-me que
o delegado “fulano” desejava falar
comigo convidando-me a acompanhá-los até
a delegacia. Compreendendo que tal convite era
uma variante mais educada do célebre “teje
preso!”, não tive dúvidas
em seguir tão má companhia.
Ao
chegar no Distrito que também era sede
da Guarda Civil, ao fui apresentado a nenhum delegado
mas simplesmente trancado num xadrez, sem explicações.
Não havia no cubículo nenhum móvel,
nem água, nem instalações
sanitárias. Procurei acomodar-me no chão
cimentado e aguardar os acontecimentos.
As
horas foram se escoando, a noite já se
aproximava e nenhuma refeição me
foi servida – eu estava com o café
da manhã – o estômago começou
a reclamar falta de alimentos. Havia ao lado um
cubículo com vários presos comuns,
eu perguntei a um deles se “naquela casa”
não se costumava comer. Ele respondeu que
nos dois primeiros dias não era costume
“a casa” fornecer comido aos presos.
Ele não sabia explicar se era por medida
de economia ou se era um meio hábil de
provocar a voracidade dos detentos a fim de que
pudessem engolir, sem vômitos, a horrível
bóia que teriam de enfrentar mais tarde.
Procurei
botar em prática a filosofia fatalista
contida no velho provérbio que ouvi de
meus avós: “aquilo que não
tem remédio, remediado está por
natureza”. Deite-me no chão e esperei
que o sono me apaziguasse o estômago e o
espírito.
Quem
já esteve preso sabe que o pior de uma
prisão são as primeiras horas de
seu começo e as últimas de seu fim.
No primeiro caso, a emoção é
causada pelo impacto e pela frustração
de quem acaba de perder a liberdade. No segundo,
é pela ansiedade de quem está prestes
a recuperá-la. Nessas horas é que
o sono foge e a imaginação trabalha
desordenadamente.
Eu
procurava dormir mas não conseguia. Coisas
que numa situação normal seriam
para mim claras e corriqueiras, apresentavam-se
no meu pensamento como absurdas, incompreensíveis.
O fato de que pudesse haver indivíduos
que na defesa de seus privilégios de classe,
fossem capazes de praticar as maiores vilanias,
me parecia naquela hora uma incoerência,
um absurdo. Procurava fazer um paralelo entre
a abnegação, o desprendimento e
o heroísmo dos revolucionários que
lutam por um mundo melhor, e o egoísmo,
a mesquinhez e a crueldade dos que defendem um
regime injusto e caduco e a disparidade crescia
de tal forma na minha imaginação,
que eu chegava a crer que estava exagerando. O
esforço mental que eu fazia levou-me ao
cansaço e este ao sono.
O segundo
dia de prisão transcorria sem alteração,
a fome aumentava, um prolongado silêncio
se apoderou do cubículo ao lado, todos
pareciam dormir um sono hibernal. Ouviam-se apenas
os passos dos guardas no corredor e suas vozes
de quando em quando.
À
tarde, dentre os guardas que passavam em frente
ao cubículo, vi um a quem conhecia do Rio
Grande do Norte. Chamei-o pelo nome, ele mostrou-me
surpreso ao ver-me naquele estado, saiu à
rua voltou e fez passar um pão pelas grades.
Também prontificou-se a levar ao conhecimento
de minha família a minha situação
e o meu paradeiro, o que realmente fez. E em boa
hora, pois eu estava como desaparecido, uma comissão
de líderes sindicais andava a minha procura
pelos distritos, inclusive naquele onde eu realmente
estava, e todos negavam a minha detenção.
Descoberto
o meu paradeiro, a trama policial caiu por terra.
Era quase noite quando fui levado à presença
do tal delegado. Sentado no seu “bureau”,
tinha na mão um folheto que eu reconheci
seu um que eu publicava há poucos dias,
com minha assinatura. Nesse folheto eu falava
da situação dos trabalhadores e
concitava-se a ingressarem nos seus sindicatos,
único caminho seguro para a solução
de seus problemas.
Mostrando-me
o folheto, o delegado – que parecia bem
humorado – iniciou o que seria, talvez,
a tal conversa para a qual eu fora convidado:
“- Senhor Reginaldo, eu gostei do seu livrinho.
O senhor escreve com alma e tudo o que o senhor
diz aqui é a pura verdade. “Mas”,
(nesse “mas” estava o xis do problema...)
o senhor há de compreender, nem toda verdade
deve ser dita. O mundo sempre foi errado e continuará
sendo errado e não seremos nós que
haveremos de endireitá-lo. O que o senhor
diz, embora esteja certo, não convém
que o diga. O senhor é bem intencionado,
mas está com isto fazendo perigosa agitação,
está lutando por um ideal impossível”.
Eu
estava surpreso com aquelas palavras. O delegado
parecia disposto a puxar conversa mas eu ou por
uma natural desconfiança ou pelo mau-humor
que me provocara os dois dias de fome no xadrez,
fiquei mudo diante daquela loquacidade. Por fim,
diante do meu mutismo, parou, olhou-me por algum
tempo com certa curiosidade, e disse que eu estava
livre e que podia ir embora. Como naquele momento
era este o meu único desejo, não
esperei que ele repetisse a ordem, fui dando o
fora daquele recinto, antes que ele se arrependesse.
E quando cheguei na rua respirei fundo o ar puro
da liberdade.
Na
sede dos sindicatos fui recebido por inúmeros
companheiros e fiquei sabendo o que ocorrera.
Uma comissão de representantes sindicais
saíra a minha procura, providenciara um
“habeas-corpus”, percorrera as redações
dos jornais e iniciara uma campanha em minha defesa.
E antes que o movimento tomasse maior vulto, resolveram
libertar-me.
É
evidente que a “filosofia panglossiana”
do delegado não podia me convencer. O meu
raciocínio deve ser demasiadamente simplista,
pois eu não podia alcançar a “razão
suficiente” pela qual tudo que estava acontecendo
tinha que ser assim mesmo, não podia compreender
precisamente por que as coisas não podiam
se de outra maneira. De acordo com aquelas esdrúxulas
teorias conformistas e conservadoras, “o
presunto foi feito para que afortunados barões
o saboreiem e se fartem a vida toda”. E
a fome... bem, a fome existe para que milhões
de seres sintam as suas convulsões.
Isto
é muito bom para quem vive nas torres do
castelo apreciando o desfilar interminável
dos párias. Mas, para os párias
propriamente ditos, não há argumento
por mais engenhoso e eloqüente que seja,
capaz de convencer de que vivemos no melhor dos
mundos e que é perigoso pretender transformar
o regime injusto e desumano em que vivemos. É
a lei da sobrevivência, do instituto, que
fala mais alto. A própria espécie
humana teria deixado de existir não fora
a luta constante que desde os seus primórdios
vem sustentando contra tudo que possa constituir
um obstáculo à sua existência,
a marcha inexorável de seu progresso.
Eu
estava com os párias, era um deles, sofria
com eles, nos queríamos “viver”,
precisávamos “viver”. A vida,
na verdadeira acepção da palavra,
não podia ser privilégio de uns,
ainda mais tomando-se em conta que os párias
eram justamente a classe produtora, que tudo constrói.
A compreensão de seus direitos e de seu
valor começava a despontar na consciência
do povo, já começavam a chegar adesões
do interior, a nossa responsabilidade aumentava,
era preciso atender aos pedidos de orientação
e ajuda que nos faziam das cidades mais próximas.
O PC,
com sua linha política marxista-leninista,
já tinha sido reorganizado e passou a assumir
o seu posto de vanguarda. Na zona noroeste, tendo
por base Sobral e Camocim, esboçava-se
um movimento unificador, de lá veio um
pedido para que enviássemos uma pessoa
para orientar na criação de sindicatos
e comitês. O assunto foi debatido em reunião
e eu fui designado para ir a essas cidades prestar
assistência. Dentro de algumas horas eu
deveria estar pronto para partir, no desempenho
de minha tarefa. E isso aconteceu.
Acomodei-me
num ônibus que fazia a linha Fortaleza-Sobral
e aguardei a partida. Em breve o velho carro estava
avançando pela estrada poeirenta. De um
lado e do outro a paisagem ia vagarosamente surgindo
e vagarosamente ficando para trás, sempre
se renovando nos detalhes mas mantendo o mesmo
aspecto de terra devastada, esse já tão
conhecido aspecto de pobreza estampado em tudo,
no homem esquelético e andrajoso, nas crianças
barrigudas, nos magros animais, nos mocambos cobertos
de palha, no que fora outrora um roçado,
na vegetação garranchenta e queimada
pelo sol, nas ossadas de animais, nas cruzes que
surgiam aqui e acolá na beira da estrada.
Era
como se estivéssemos assistindo o desfilar
interminável de enfermos – a natureza,
homens e animais morrendo aos poucos, sem assistência
e sem amparo. Enquanto o coletivo avançava
na estrada eu refletia: - e dizer que sob os nossos
pés está uma das mais ricas terras
do mundo! Por quanto tempo ainda teremos que ver
e sentir essa calamidade? Entra governo e sai
governo, todos prometem tomar providências
e solucionar o mal e o que vê é a
situação se perpetuar e se agravar.
Eu
ia com a missão de fazer chegar a esses
compatriotas uma mensagem de fé e de esperança,
fazer com que eles compreendessem que nem tudo
estava perdido, que o nosso destino estava em
nossas próprias mãos. Era uma tarefa
dificílima, não dispúnhamos
de meios nem de recursos para difundir a nossa
palavra, tínhamos que agir como modernos
apóstolos, num trabalho persistente, individual,
de persuasão.
Não
me recordo quanto tempo durou esse penoso desfilar
de imagens doentias, sei que finalmente surgiram
as primeiras casas da cidade de Sobral de aspecto
bem diferente: limpa, com resistência confortáveis,
com um centro comercial movimentado, como se ali
morasse uma elite vivendo à parte, em completo
contraste com o ambiente desolador que a circundava.
Procurei
me ligar aos companheiros ali residentes e fiquei
sabendo, por meio deles, que a cidade estava cheia
de boatos de um levante em Camocim, que tinha
seguido para lá um contingente da Polícia
Militar, apurando-se mais tarde, que tudo fora
mentira, não passara de um pretexto para
prisões e perseguições ao
movimento de organização que se
iniciava.
Tratei
de seguir para a região falsamente conflagrada.
Eu deveria tomar um trem pela manhã para
Camocim. Quando já estava na plataforma
da estação, vieram a mim quase correndo
esbaforidos, um civil e dois soldados e me deram
voz de prisão.
O policiamento
da cidade estava sob a chefia de um sub-delegado
atrabiliário que fez grande estardalhaço
com a minha detenção, como se tivesse
posto a mão no indivíduo mais perigoso
do mundo. Fui recolhido a um xadrez da Casa de
Detenção, e ali fui informado pelos
presos comuns de que o verdadeiro delegado major
Firmo, estava ausente e que ao contrário
de seu substituto, era homem ponderado, segundo
a opinião dos mesmos informantes. Uns dois
dias depois ele chegou, assumiu o posto e mandou
pôr-me em liberdade.
A vida
continuava nesse ritmo agitado, quando recebi
uma carta do Rio Grande do Norte comunicado a
minha convocação para o serviço
militar. Isto significava que eu tinha que deixar
Fortaleza onde já residia há cerca
de dois anos, onde já me ambientara e formara
meu currículo de companheiros e de amigos.
Além disto eu gostava dos nossos vizinhos
cearenses, do seu espírito comunicativo,
franco e solidário. Mas não tinha
outro jeito. Dirige-me à minha cidade natal,
lá me apresentei às autoridades
responsáveis e aguardei as passagens para
seguir, com outros recrutas, para a capital do
Estado, onde estava sediado o 29 B.C.
Já
estava pronto para seguir quando rebentou a chamada
“revolução de 30”. As
aspas em “revolução”
significam que o conceito que tenho desse vocábulo
é bem diferente do que foi aquele movimento.
Revolução, para mim, é todo
movimento armado que visa a tomada do poder de
uma classe que já desempenhou sua missão
histórica e a sua substituição
por outra de conteúdo revolucionário
e progressista. Ou ainda, os movimentos que visam
a libertação de um povo oprimido
e subjugado por potências estrangeiras,
as chamadas “revoluções libertadoras”.
No
movimento de 30 o que houve foi uma simples troca
de homem no poder, um grupo de fazendeiros cedeu
lugar a outro grupo de fazendeiros, a hegemonia
dos latifúndios manteve-se em toda a linha,
não me consta que tenha havido sequer uma
simples reforma agrária, ou que tenham
tomado alguma medida visando a libertação
de nosso país do jugo imperialista. Ao
contrário, novos compromissos e novos onerosos
empréstimos foram contraídos, o
domínio dos trustes internacionais continuou.
O que houve em 1930, foi a maior farsa de que
se tem conhecimento em nossa história,
o início da hegemonia dos trustes norte-americanos,
em detrimento da hegemonia do capitalismo inglês,
que até então dominara, absoluto,
o país.
Mas
deixemos de parte as divagações
e voltemos à narrativa. A cidade amanheceu
repleta de boatos. O movimento irrompera em todo
o país, tropas gaúchas, conforme
diziam, faziam misérias por onde passavam,
“os perrepistas” estavam sendo passados
pelas armas e os comunistas passavam por maus
lençóis.
Um
juiz de direito, conhecido inimigo da Aliança
Liberal, para se por em boa situação
com a “revolução” vitoriosa,
perdeu a dignidade, juntou-se a um grupo de desclassificados
e saíram todos, armados de paus, dando
caça aos “extremistas”. Cenas
degradantes, indignas de um representante da justiça,
que deveria se colocar em posição
bem mais elevada, acima das paixões políticas
e fora das arruaças.
Vieram
me avisar que “determinada pessoa”
havia espalhado o boato e denunciara que me vira
à frente de um grupo armado, avançado
não sei em que direção nem
contra quem. Não dei importância
ao boato idiota e sai à rua ver o que se
passava. Quando cheguei ao centro da cidade fui
“cercado” por um grupo de capangas
armados de rifles, extravasando bravura por todos
os poros. Esses valentões de triste figura
não se envergonharam em exibir um arsenal
para prender um homem sozinho e desarmado, que
nunca passara sequer por uma escola de luta livre.
Compreendi
logo que se tratava do mesmo truque do juiz, isto
é, “perrepistas” que “viraram
a casaca” em cima da hora e procuravam se
por à salvo de possíveis represálias
por parte dos liberais e garantir suas posições
de mando. Fui levado até a sede dos Correios
e ai fiquei detido até a chegada das forças
da “Aliança”. Havia uma confusão
de autoridades, não se sabia bem quem era
governo, se os “carcomidos” ligados
ao regime deposto ou se a gente que acabava de
vencer.
Com
a chegada das tropas (uns duzentos homens, em
vez dos cinco mil propalados) a situação
se esclareceu. José Otávio, Amâncio
Leite e outros, os legítimos liberais,
se manifestaram contra aquela farsa grotesca,
e eu fui posto em liberdade.
No
dia seguinte parti para Natal, a fim de servir
nas fileiras do Exército. No quartel do
29 BC, onde me apresentei, notei que havia uma
movimentação interna fora do comum,
um entra e sai contínuo, que interpretei
como conseqüências das mudanças
do governo decorrentes da “revolução”.
Com isso, o engajamento dos recrutas convocados
ia sendo protelado. Enquanto esperávamos,
íamos participando do “rancho”
e do exército que um cabo ia dirigindo,
para “desenferrujar as juntas”. Um
belo dia fomos informados de que os recrutas casados
estavam dispensados do serviço militar.
Eu estava enquadrado nessa dispensa. Arrumei a
trouxa e voltei para a minha “vidinha”
de civil, já que como soldado fui julgado
desnecessário.
O partido
achou necessária a minha atuação
no Rio Grande Do Norte e em decorrência
de uma resolução nesse sentido,
passei a residir em Natal, nas Rocas, o bairro
dos operários e pescadores.
Numa
Conferência realizada pelo Partido em Natal
fui eleito membro do novo Comitê Regional
– assim eram chamados, naquele tempo, o
que hoje designamos por Comitês Estaduais
– com a função no Secretariado,
de agitação e propaganda (agit-prop).
Essa função agit-prop me agradava.
Eu já a exercera no Ceará e passou
a se repetir na minha atividade partidária
pelo fato de eu ser tipógrafo, o que facilitava
o desempenho do cargo, no que se refere à
sua parte prática. Conforme o Partido Comunista
havia denunciado previamente, o novo governo instituído
pela chamada “revolução”
de 30 continuava indiferente à sorte do
povo trabalhador, a sua política era continuação
da defesa dos latifundiários e fazendeiros
do café, era a continuação
dos empréstimos e da penhora de país
aos trustes estrangeiros, particularmente ao imperialismo
ianque. O povo? O povo que se arranje.
Nessa
época fomos encontrar o senhor Café
Filho no posto de chefe de Polícia do Estado.
Já não tínhamos discursos,
os “desmandos” do governo e com quem,
alguns anos atrás, tentamos fazer frente
única na defesa da classe trabalhadora.
Agora ele fazia parte do próprio aparelho
estatal, na sua função mais clara
e mais chocante, incumbido que era da manutenção
a qualquer preço, da ordem e das instituições
do regime implantado com a referida “revolução”
de 30, e que iria descambar na cruenta e odiosa
ditadura neo-fascista do Estado Novo. De nossa
parte, o compromisso que tínhamos era com
a nossa classe, com a nossa consciência,
com o povo laborioso. E pusemos mãos à
obra, ao trabalho de conscientização
e organização sindical. Eu, José
Praxedes, Epifânio Guilhermino, Agostinho,
Aristides Galvão, Acrísio e vários
outros operários, lançamos as bases
da União Geral dos Trabalhadores, começando
pelo setor ferroviário e pela Força
e Luz Nordeste do Brasil, cujos sindicatos estavam
em fase de organização. A União
Geral funcionava no Alecrim e um jornalzinho “O
Proletário”, passou a circular semanalmente.
O que
estava acontecendo no Rio Grande do Norte não
era um caso isolado. No país inteiro, uma
grande parcela da massa popular começava
a se dar conta de que caíra no “conto
do vigário”, com aquela farsa da
“revolução” de 30. De
sorte que os nossos apelos para a organização
não tardaram a ser atendidos e à
sede dos sindicatos afluíam trabalhadores
em número crescente. Isto amedrontou os
governantes e a repressão não tardou
a entrar em ação.
Como
dissemos, o senhor Café Filho era o chefe
da Polícia e não era por acaso.
O seu reduto era o Sindicato dos Estivadores.
Noutros setores o seu prestígio fora abalado
desde que mandava prender um líder operário
por divergir de sua política. Isto, porém,
foi uma pequena amostra do que iria acontecer
mais tarde. Sentimos desde então que os
nossos passos estavam sendo vigiados, tipos suspeitos
surgiam por toda a parte, destacando-se o “tira”
João Nunes dos Reis, conhecido pelo alcunha
de Maria Gorda.
Tornava-se
cada vez mais evidente a tendência de certos
setores responsáveis pelos destinos de
nosso país a reprimir pela brutal violência
as lutas populares, substituindo as leis que eles
mesmos elaboraram pelo regime da força,
do arbítrio. Isto sempre acontece em toda
a história do sistema capitalista, nos
momentos de crise, quando a situação
do povo se agrava, quando aumenta o desemprego,
quando as lutas populares começam a surgir,
as camarilhas dominantes sentem-se ameaçadas
e inseguras, passam a não confiar mais
nas formas de dominação até
então em vigor – as chamadas democracias
burguesas – e, através de um golpe
de estado implantam a ditadura. É o que
o povo chama, na sua pitoresca linguagem, de “apelar
para a ignorância”.
Acontece
ainda que nessa época o fascismo –
a forma mais bestial que se conhece da dominação
capitalista – começava a se expandir
pelo mundo, a partir da Itália e da Alemanha,
constituindo-se num estímulo para os apologistas
dos regimes de força dos países
subdesenvolvidos, como o Brasil.
O senhor
Café Filho, que iniciara sua carreira política
com apelos demagógicos aos trabalhadores,
enveredou pela trilha da repressão e as
prisões e deportações não
tardaram.
A gente
humilde do nordeste é de uma grande simplicidade
na exteriorização de seus sentimentos.
Um olhar ou um gesto singelo é suficiente
para revelar um mundo de paixões, tanto
nas horas de felicidade como nas de amargura.
É um povo que habituou-se a conter suas
emoções. As manifestações
espalhafatosas, tão comuns noutras paragens,
são gestos raros alí, onde uma palavra
oportuna e expressiva tem, muitas vezes o valor
de um discurso.
Apesar
dessa característica simplória,
oriunda do meio em que fomos criados, quem nos
visse naqueles dias de setembro de 1932, não
teria dificuldades em perceber a alegria que tomara
conta de nossas vidas, suplantando as preocupações
de uma existência árdua e incerta.
Isto porque em nosso lar nascera uma filha –
este fato por si só já diz tudo
– a presença de um recém nascido
parece nos trazer novo estímulo, a gente
sente reviver, tem a responsabilidade e a esperança
em dias melhores, a fantasia toma conta de nossa
imaginação.
Esse
estado de espírito nos assaltara, nós
vivíamos naqueles dias embalados por sonhos
e projetos e sonhar acordado é uma forma
de suavizar a vida.
Depois
de um dia de trabalho intenso, era com alegria
e ansiedade que eu me dirigia para casa, com o
pensamento voltado para aquele pequenino ser que
há dias transformara nossa lar num mundo
à parte. Uma noite, quando cheguei próximo
à minha residência, deparei-me com
João Reis e outros policias em atitude
de expectativa. Há dias que eles andavam
rondando nas imediações em franca
espionagem, mas a consciência de que nenhum
crime havia cometido me deixava tranqüilo,
não lhes dei importância.
De
nada valeu essa tranqüilidade. Ali mesmo
fui preso e levado para a delegacia. Minha casa
foi invadida. João Reis obrigou minha esposa
a se levantar da cama – onde ainda cumpria
resguardo de um parto difícil – e
isto para que ele farejasse o colchão a
procura de manifestos existentes. Essa ignomínia
era apenas uma parte de outras idênticas
que nessa mesma noite estavam sendo levadas a
efeito em outros lares – no de José
Praxedes, no de Agostinho e no de Acrísio
– seguidas de inúmeras prisões.
Há
poucos minutos eu caminhava para casa, feliz,
o pensamento voltado para minha família
e agora eu marchava em silêncio para a prisão,
amargurado e enojado. Aquele estado de espírito
confiante que há pouco me embalava, aquele
otimismo que me fazia ver subjetivamente o céu
mais azul, a natureza mais bela, transformara-se
não mais em revolta – o fato de ser
preso já ia se tornado coisa banal –
mas simplesmente em asco. Eu me sentia como se
me tivessem poluído as vestes com algo
fétido. E quando me fizeram entrar num
xadrez escuro da Delegacia das Rocas, não
pude deixar de murmurar: -Há qualquer coisa
de podre no reino da Dinamarca. A porta de ferro
do cubículo foi fechada atrás de
mim e o seu ruído característico
ecoou no silêncio da prisão.
Há
uma particularidade nos fatos ocorridos nessa
ocasião que vale a pena mencionar. As cenas
descritas anteriormente transcorreram no mais
absoluto silêncio. As poucas palavras a
mim dirigidas não passaram de ordens secas:
vamos! siga!,entre!. Nenhuma explicação
ou pergunta me foi formulada. O lógico
seria que me dissessem de que espécie de
delito eu era acusado e caso eu tivesse realmente
cometido tal delito, que eu respondesse por ele
na forma da lei.
Esperei
em vão pela hora em que fosse chamado a
prestar contas dos meus atos. a ouvir as acusações
que me seriam feitas. para que eu tivesse a oportunidade
de apresentar as minhas razões e a minha
defesa. Eu não podia entender os motivos
dessa esquiva. Cheguei a pensar que eles estivessem
com vergonha dos seus atos ou que estivessem com
medo de um confronto na qual eu passasse de acusado
a acusador, com possível repercussão
na opinião pública.
A primeira
hipótese – a da vergonha –
risquei imediatamente de minhas conjecturas, por
achá-la completamente absurda. Restava
a segunda, a do receio de um confronto pelos resultados
negativos que lhes pudesse causar perante a opinião
etc, etc. Achei esta suposição mais
plausível e nela me firmei. Mas, restava
ainda outro problema importante a resolver, “o
da nossa libertação”.
Com
o péssimo e atávico costume de raciocinar
que me acompanha desde criança, (isto parece
lógico mas há pessoas que embora
tenham essa preciosa faculdade parecem não
gostar muito de usá-la), botei a cabeça
a funcionar. Bem, visto não haver depoimentos
acusações nem formação
de culpa, só podemos esperar que a qualquer
momento nos mandem embora, tudo não passou
de um lamentável engano. E nesta convicção
também me fixei, muito embora a experiência
nos aconselhasse a não confiar muito nesse
tipo de gente que se arvora do direito de nos
tutelar, mesmo contra a nossa vontade.
Depois
de uns quatro longos dias de espera, chegou finalmente
a hora de sermos chamados. Pela manhã a
porta do cubículo se abriu e fui levado
a uma sala onde já estavam os companheiros
Agostinho e Acrísio, Mandaram-nos sentar
e esperarmos alguns minutos até que veio
um senhor, provavelmente um delegado. Sentou-se
no seu bureau, olhou-nos com atenção
e com um gesto mandou que nos levassem sem nada
nos dizer nem perguntar.
Fomos
colocados num carro, sempre com a presença
do policial João Reis a dirigir as operações
e o veículo começou a rodar pelas
ruas da cidade. Continuava aquele silêncio,
nenhuma explicação nos foi dada
ninguém ousava indagar.
No
princípio eu pensei que íamos ser
postos em liberdade, mas desde o momento em que
nos mandaram entrar no carro achei que seria demasiada
gentileza se eles nos mandassem para casa de automóvel.
Que significava aquele passeio pela cidade? Talvez
fôssemos a outra repartição
da polícia preencher alguma formalidade.
Depois disso, então sim, nos mandariam
embora.
Mas,
que significava aquilo? O carro agora estava rodando
em direção ao cais do porto. Foi
nessa ocasião que um pensamento me assaltou:
Será que estamos sendo deportados? Não.
Não é possível. Estamos com
a roupa do corpo, sem dinheiro, e eles seria tão
desumanos a ponto de não deixarem sequer
que nos despedíssemos de nossas famílias?!
Agora
já não tínhamos dúvidas.
O carro chegou ao cais fizeram-nos saltar e embarcar
numa canoa e esta acionada por remos, tomou a
direção de um navio ancorado na
barra.
A tensão
nervosa aumentou ao máximo, a ansiedade
e o rancor estavam estampados nos nossos semblantes.
Não era mais possível continuar
aquele silêncio. Indagamos o que significava
tudo aquilo e a resposta foi lacônica: “Vocês
vão ser deportados...”
Tudo
aconteceu como num relâmpago. Agostinho
desfechou um tremendo soco na cara de João
Reis, este desequilibrou-se, quase tombou n’água
mas aprumou-se, e o contragolpe veio numa coronhada
violenta que abriu uma brecha na cabeça
de nosso companheiro. Procuramos ir em seu auxílio
mas fomos segurados pelos policiais e no tumulto
a canoa ameaçou virar. Era um gesto de
mera solidariedade de nossa parte pois naquelas
circunstâncias, qualquer reação
seria inútil, e somente uma explosão
de nervos podia explicar aquela atitude.
Isso
aconteceu já próximo ao navio. Dai
a pouco a canoa atracou no seu costado, subimos
a escada e nos vimos diante de uma pequena multidão
constituída de tripulantes e passageiros
reunidos no tombadilho, donde assistia às
cenas lamentáveis. O nosso aspecto era
alarmante, roupas em desalinho, Agostinho todo
ensangüentado e João Reis com um olho
tapado pelo soco que levou.
O comandante
do navio leu o papel que lhe foi entregue pelos
policias, mas recusou-se a receber-nos naquele
estado. Falou em irregularidade, disse da sua
responsabilidade, resolvendo por fim ir à
terra para se entender com as autoridades e resolver
a situação.
Ficamos
à espera, sempre cercados pela assistência
que se formara, de passageiros e tripulantes do
navio. Os olhares de espanto foram se transformando
em gestos de simpatia, à medida que iam-se
inteirando da nossa condição de
presos políticos e da maneira brutal como
estávamos sendo deportados. No meio dos
presentes havia um rapaz com fisionomia de japonês
que nos olhava com insistência, não
dizia uma palavra mas não arredava o pé
dali.
Por
fim voltou o comandante. Ficamos sabendo que o
nosso destino eram as prisões do Rio de
Janeiro, de tenebrosa fama, e que um cabo e um
soldado nos escoltariam até lá.
Ao entardecer o navio levantou ferros e transpôs
a barra. O nosso adeus resumiu-se num olhar dirigido
ao casario da cidade de Natal, que foi se distanciando
lentamente até perder de vista.
À
noite descemos para o beliche de 3º classe
que nos deram por homenagem. Ali reunidos, Agostinho
foi dizendo, à guisa de desculpa: “Sei
que não devia ter feito aquilo. Mas não
pude me controlar. Aquele soco saiu sem me dar
tempo de refletir”. Não se preocupe
com isso, disse-lhe eu, realmente devemos ter
calma nessas ocasiões mas o que está
feito, está feito. Talvez o teu soco ainda
vá para a história e a história
seria muito monótona se não houvesse,
vez por outra, um murro para variar.
Nisto
entrou no beliche aquele rapaz, cara de japonês,
que nos olhava com insistência no tombadilho.
Trazia um embrulho debaixo do braço o qual
nos entregou com um sorriso amável. Continha
maços de cigarros e outros objetos de uso
pessoal. Vinha nos trazes palavras de estímulo.
Disse ser estudante do Pará, filho de japoneses
mas nascido no Brasil. Ganhara uma bolsa de estudo
e dirigia-se para o Rio. Iniciou conosco uma palestra
interessantíssima, mostrando-me atraído
pelas questões sociais. Citou as obras
de Karl Marx e de Lenine que tinha lido.
Esse
rapaz tornou-se um ótimo companheiro de
viagem, procurava sempre uma ocasião em
que os guardas se afastavam e vinha nos fazer
companhia. A sua conversa elevada e agradável
era um conforto para nós naqueles dias
de depressão. O seu nome, o seu paradeiro,
tudo o tempo apagou. Mas o seu gesto fraternal
ficou na nossa memória para sempre como
um símbolo.
A prisão
flutuante continuava o seu trajeto rumo ao sul,
a próxima escala seria Recife. Ali chegamos
numa manhã. O navio só sairia no
dia seguinte, acharam por bem nos entregar à
guarda da Polícia Política pernambucana,
não fossem os perigosos elementos fugir.
Um carro nos transportou até a Polícia
Central onde ficamos expostos durante horas diante
de uma turma de “tiras”, para que
ficassem nos conhecendo. À tarde fomos
transportados para um cubículo de uma delegacia,
onde tivemos que dormir sobre bancos de pedra.
No dia seguinte fomos recambiados ao navio-prisão.
A viagem
prosseguiu sem incidentes, em cada porto a vigilância
era redobrada, os agitadores vermelhos deviam
ser lavados para bem longe, para que as classes
dominantes pudessem dormir seu sono tranqüilo.
A solução de um problema social
resumia-se no entender das autoridades a um caso
de polícia. Bastava prender e deportar
alguns “cabeças” para que a
paz voltasse a reinar e se isso não bastasse,
medidas mais drásticas seriam adotadas,
contanto que nada viesse perturbar o sossego desses
afortunados senhores.
Soubemos
mais tarde que outro navio procedente de Natal
seguia a mesma rota do nosso, trazendo outros
deportados, mais dois, se não me falha
a memória. Parece ter havido um erro nos
cálculos das autoridades. A deportação
de três não lhes pareceu suficiente
para garantir a paz no Estado, e aumentaram o
número para cinco.
A muitos
poderá parecer ridículo que a chave
da uma questão social de tal envergadura
pudesse estar na simples prisão e de deportação
de cinco operários. Mas a triste realidade
residia no fato de que a desgraça se abatera
sobre cinco lares, deixando famílias inteiras
sem arrimo, crianças ao desamparo. Com
isto julgavam que estava salva a Pátria,
pelo menos no Rio Grande do Norte.
Três anos depois ou melhor, em 1935, com
a revolução que tomou o poder por
quatro dias naquele Estado, ficou demonstrado
que o problema não era tão simples
como supunham aqueles hábeis defensores
de tranqüilidade e da ordem.
Quando
o navio atracou em frente a um dos armazéns
do cais do porto do Rio de Janeiro, já
investigadores nos aguardavam junto à escada.
Os dois policiais que nos escoltavam entregaram
a estes um envelope, e dali fomos levados à
Polícia Marítima, na avenida Rodrigues
Alves. Lá encontramos os policiais numa
grande bebedeira, comemorando o término
da revolução paulista, que coincidiu
com o dia de nossa chegada.
Os
montes de garrafas vazias pelos cantos, a tremenda
algazarra e as expressões congestionadas
dos convivas tornavam o ambiente opressivo, de
franca irresponsabilidade. Sentados num banco,
nós aguardávamos o nosso destino.
Nisto um “tira”, completamente embriagado,
sacou de um revólver e, apontando o cano
no meu rosto bradou: “então vocês
são comunistas e andam reclamando liberdade?
Vocês querem mais liberdade do que nos dá
o nosso presidente Vargas? Seus f...p...”
e desandou numa série de palavrões,
agitando trêmulo a arma na nossa frente.
Se
a cena tivesse sido representada por pessoa normal
– se é que uma pessoal normal pode
ser capaz de tal desatino – não me
teria, talvez, causado apreensão. Mas aquele
indivíduo já cambaleava, parecia
possesso, não fosse aquele trabuco detonar
“casualmente”. Mas a atração
pelos copos era bem maior do que o desejo de brincar
com a vida dos outros e finalmente pudemos respirar
aliviados, quando o “sherlock” foi
arrastado pelos seus colegas para perto das garrafas,
onde prosseguiram a sua já avançada
bebedeira.
Horas
mais tarde fomos levados para a Polícia
Central. Dias depois fomos transferidos para a
Casa de Detenção. Esse velho presídio
compunha-se de três pavimentos. Cada pavimento
era formado por duas alas de cubículos
fronteiriços, com uma escada espiral ligando
as galerias. Num desses cubículos na segunda
galeria, fomos colocados os três deportados
políticos juntos com presos comuns da mais
heterogênea composição, assaltantes,
punguista, ventanistas, descuidistas e pederastas.
O ambiente não podia ser pior, parecia
ter sido escolhido à dedo. Nessa convivência
forçada com indivíduos cuja deformação
moral atingira o máximo da degradação,
assistimos às cenas mais horripilantes.
De um desses antros, situado em frente ao nosso,
vimos ser arrastado fora o cadáver de um
infeliz morto a estocada por outro infeliz por
questões sexuais. E cenas deste tipo eram
freqüentes.
A promiscuidade
no casarão da rua Frei Caneca era absoluta.
Ali viviam em comum homens que haviam cometido
ocasionalmente um delito, com outros já
completamente irrecuperáveis. Velhos calejados
no crime, com jovens iniciantes. Sentenciados
à longas penas com centenas de presos “à
ordem do chefe” – designação
que se dava aos que eram mantidos ali ilegalmente,
durante muitos meses e às vezes por anos,
à ordem do chefe de Polícia, sem
culpa formada, aguardando a liberdade ou a deportação
para Ilha Grande.
A Ilha
Grande era o terror dos presidiários. Os
que conseguiram voltar de lá contavam horrores:
fome, beri-beri, trabalhos forçados (arrastar
vigas na mata), castigos corporais, as surras
com o famoso “cipó-camarão”.
As partidas para a Ilha Grande eram sempre anunciadas
de surpresa, à meia-noite. E quando isto
acontecia, podia-se contar como coisa certa algumas
tentativas de suicídio, sendo os pulsos
cortados à gilete a mais comum. Aconteciam
às vezes nessas ocasiões, agressões
à faca entre desafetos, numa tentativa
desesperada de fugir ao embarque iminente e apavorante.
Nesse ambiente de insegurança e de incertezas,
nós vivíamos encolhidos num canto,
em constante expectativa contra possíveis
provocações. Dias amargos e tristes
passamos naquela masmorra, a pensar nas famílias
que ficaram entregues à solidariedade dos
parentes e amigos, na terra distante.
Quando
conseguimos reatar a correspondência com
nossas famílias, ficamos sabendo que tinha
sido iniciado uma campanha em nossa terra natal,
pela nossa liberdade. Soubemos também que
pessoas de nossa família pediram a nossa
liberdade diretamente ao senhor Café Filho,
e que este disse que nós tínhamos
sido postos em liberdade no momento em que desembarcamos
no cais do porto do Rio de Janeiro. Para desmascarar
o embuste Manoel Assis, meu sogro, enviou por
intermédio do doutor Amâncio Leite
(meu parente) uma carta por mim escrita da Casa
de Detenção, com carimbo da censura,
dirigida à minha esposa, para que fosse
mostrada ao senhor Café Filho.
O tempo
corria e nós continuávamos naquele
nefando cubículo da Casa de Detenção
da rua Frei Caneca, sem saber o que nos aguardava.
Certo dia porém notamos um movimento de
guardas fora do comum. Ficamos atentos e a seguir
um preso comum veio trazer a notícia, chegaram
vários “comunas” daqui do Rio.
Realmente, tratava-se de correligionários
nossos. Eles foram instalados num cubículo
amplo da segunda galeria e mais tarde como já
esperávamos, veio uma ordem da direção
do presídio para que fôssemos transferidos
para o mesmo alojamento onde estavam os presos
políticos recém-chegados.
Foi
grande a nossa alegria. Fomos recebidos pelos
novos companheiros com calorosos abraços.
Eles já tinham sido avisados da nossa presença,
através das ligações com
o Rio Grande do Norte. Ali estavam um jornalista,
um estudante, um marítimo, um alfaiate
e alguns outros operários. Tinham sido
presos em comícios relâmpagos realizados
em estações ferroviárias
e bairros da cidade.
Estava
restabelecida a nossa ligação com
as organizações da capital, cessara
o nosso isolamento. Através do Socorro
Vermelho (organização da ajuda aos
presos políticos, que foi extinta em 1945),
passamos a receber assistência jurídica.
Fomos informados de que os nossos advogados já
estavam tratando de nossa defesa e não
tardaria a nossa liberdade. Passamos a receber
também ajuda em alimentos, roupas, cigarros
e outras utilidades.
Dentre
os recém-chegados havia um rapaz muito
jovem, judeu, alfaiate, que trabalhava próximo
da antiga praça 11. Era um companheiro
muito simpático, boa palestra, sempre alegre,
apesar da sua situação ser a pior
de todos nós. Por ser polonês de
nascimento, aguardava sua deportação
para a Polônia, coisa que ele temia e dizia
o motivo, “vou ser entregue à polícia
do ditador José Pilsudski. Tenho informações
de atrocidades cometidas por essa polícia.
Gostaria de viver no Brasil. Gosto daqui mas sei
que não voltarei. Estou conformado, porque
sei que o futuro nos pertence, o povo sairá
vitorioso dessa luta”. E voltava a sorrir.
O seu sorriso permanente parecia ser um escudo,
uma auto-defesa contra qualquer depressão.
Dias depois, quando já estávamos
em liberdade, soubemos de sua deportação.
Nunca mais tivemos notícias dele.
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