
Ricardo Balestreri
QUALIFICAR
O PROCESSO QUALIFICANDO A PESSOA
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES À REFLEXÃO
SOBRE
CAPACITAÇÃO DE OPERADORES POLICIAIS
Tu me dizes, eu esqueço,
Tu me ensinas, eu lembro,
Tu me envolves, eu aprendo."
Benjamin Franklin
I - INTRODUÇÃO
Sempre que
tratamos da questão do “serviço público", especialmente quando
esse serviço tem uma dimensão protetiva e educacional, incomoda-nos
a constatação das evidentes dificuldades no atingimento de um patamar
mínimo de qualidade, passando sempre, a reflexão, pelas carências
de competência profissional dos agentes dele encarregados.
Daí tentarmos
a solução, muitas vezes, via proliferação de “treinamentos" e
“capacitações" formais que, geralmente, resultam em quase nada,
levando-nos, na seqüência, ao desânimo, ao ceticismo e a acomodação
contrariada ao que parece ser uma “inerência" do serviço público
brasileiro na forma como está estruturado. Essa, no entanto, é a perspectiva
da vitimização, da impotência, da não auto-responsabilização,
da não autoria. Melhor seria, como em Publilus Syrus, assumir que
“tolo é aquele que naufragou seus navios duas vezes e continua culpando
o mar".
Precisamos
perguntar-nos se, apesar de todas as dificuldades estruturais e conjunturais
apresentadas, uma mudança em nossa estratégia formativa dos operadores
não poderia trazer melhores a até surpreendentes resultados.
É por esse
caminho, da busca de paradigmas novos no campo da formação do agente,
que gostaria de fazer um primeiro bloco de afirmações: na qualificação
da prestação de qualquer tipo de serviço, a qualificação do servidor
tem primazia, antecedendo e transcendendo até mesmo as condições objetivas
que se lhe oferecem para trabalhar. Não raro as disposições subjetivas
do operador vencem toda sorte de obstáculos, sobrepondo-se a eles
e permitindo competência, mesmo quando, avaliando-se o campo objetivo,
todas as condições do entorno apontavam na direção contrária.
De igual forma,
operadores não “vocacionados", desmotivados, mal instrumentados,
podem solapar os Projetos mais sofisticados e respaldados pelas mais
adequadas estruturas.
Evidentemente,
não se trata, aqui, de dicotomizar: precisamos, para alcançar a eficácia
e a eficiência desejadas, da
intervenção pessoal mais qualificada do operador, assentado sobre
infra-estruturas apropriadas.
No entanto,
diante das crônicas carências estruturais que precisam ser tomadas
(ativamente, é verdade) como dados da realidade, reveste-se de especial
importância pensar criticamente a formação dos operadores, uma vez
que é esta a ferramenta de transformação mais imediata de que se dispõe.
Nessa mesma direção, não é aceitável submeter o beneficiário
( cidadão) à espera de maior vontade política e de melhor aparelhamento
material por parte do Estado. Ainda que esta deva ser uma meta inegociável
da sociedade, alcançável a médio ou longo prazos, é preciso
intensificar a urgência de nossa atenção sobre os recursos
mais disponíveis e imediatamente definidores, em termos globais, da
qualidade do atendimento dos cidadãos em questão: os recursos humanos,
os operadores Trata-se de um realismo estratégico que deve acompanhar
não somente a intervenção das ONGs parceiras mas também a ação dos
segmentos de vanguarda do próprio Estado, desejosos de fazer acontecer
qualquer mudança significativa sem depender da vontade e do beneplácito
do “grande aparelho".
Como a história
avança de forma parcializada e contraditória, mas sempre inter-causal,
creio que essa intervenção melhor qualificada, “no campo", deva
forçar uma maior conscientização e aprovação, por parte da sociedade,
das conseqüentes novas práticas, gerando, de forma reflexiva, uma
também renovada disposição do estado no sentido de melhor as condições
objetivas de trabalho de seus agentes. Em outras palavras: é possível
apostar que a melhor formação do operador gere maior competência
(mesmo no quadro das condições
existentes) e que esta competência anteceda e force, como movimento,
as prioridades políticas e orçamentárias do estado.
O presente
texto não tem qualquer outra pretensão que não esta, singela, de motivar a importância histórica da capacitação/formação dos operadores,
elencando algumas idéias bem sucedidas, em especial extraídas da experiência
do Centro de Assessoramento a Programas de Educação para a Cidadania
(CAPEC) e da Seção Brasileira da Anistia Internacional (SBAI), há
13 anos, na capacitação de operadores sociais em geral e, mais especificamente,
de operadores policiais.
Pela brevidade
que se nos exige, nossa intervenção
limitar-se-á a provocação de algumas reflexões nas áreas da estratégia,
da metodologia e dos conteúdos que, cremos, deveriam estar presentes
como pré-condições para alcançar a excelência.
II - IDENTIFICAÇÃO
DO PERFIL E PROBLEMAS
A Realidade
Dadas as condições
de trabalho ofertadas , acima referidas, se estabelece a resposta
em termos de procura e o conseqüente perfil do operador.
De maneira
geral, o salário oferecido é
injusto, os prédios, mobiliário, veículos, armas e equipamentos,
insuficientes, antigos e/ou em situação de quase abandono pelo(s)
governo(s).
Soma-se a isso
uma depreciação social da atividade policial, agravada pelo equívoco
de setores de vanguarda que não conseguem perceber que suas críticas
à atividade em questão deveriam enfocar mais o aspecto conjuntural
do que o estrutural, uma vez que a polícia é segmento imprescindível
e nobre de sustentação de direitos e deveres democráticos.
Os Dois “Tipos"
de Operadores
Nessa conjuntura,
basicamente, dois tipos de público afluem para os quadros institucionais,
como agentes operadores: os “vocacionados", com significativo
grau de altruísmo, disposição para o serviço, projetos de vida identificados
com causas sociais e
capacidade de suportar frustrações sem desqualificar o trabalho junto
aos beneficiários; e os “não vocacionados”, ingressantes por falta
de melhores oportunidades (ao menos nos níveis mais básicos, não dirigentes),
com projetos de vida meramente voltados à sobrevivência ou
à gratificação egoica (no aguardo de melhores oportunidades), com
primário nível de consciência ética e desenvolvimento moral.
Desse último
grupo origina-se, concretamente, a violência e a corrupção com que,
em muitos bolsões institucionais, se responde à agressividade social.
Não há credibilidade institucional que possa subsistir incólume ao
exercício de tais moralidades heterônomas e hedônicas por parte dos
operadores.
É preciso pois, a longo prazo, melhorar as condições da oferta
e, subseqüentemente, da seleção e, a curto prazo, desafiar a elevação
do padrão moral dos profissionais
a estágios mais avançados, o que somente pode ser alcançado através
de processos permanentes de desafio educacional.
Sabemos, realisticamente,
que isso não é fácil e que não resulta positivamente com a
totalidade dos desafiados. Haverá, sempre, um contingente refratário,
até em função de nossas próprias carências em saber encontrar para
cada um a linguagem e as provocações mais significativas. Nenhum processo
educacional pode ser onipotente. No entanto, há segmentos expressivos
que podem ser “resgatados" da alienação existencial em que submergiram,
através de processos pedagógicos competentes na busca do inerente
desejo de qualificação e plenificação da vida. Para ilustrar metaforicamente
uma reflexão semelhante é que Ralph Emerson perguntava-nos: “O que
é, então, uma erva daninha, senão uma planta cujas virtudes não foram
descobertas?"
Para que não
fiquemos, contudo, na licença poética e não pareçamos líricos no encontro do humano
que subjaz mesmo no aparentemente desumanizado, precisamos buscar
referência na teoria científico-pedagógica, em especial no grande
mestre do estudo sobre o desenvolvimento da consciência moral, o psicólogo
americano Lawrence Kohlberg.
Segundo conclusões
de extensa pesquisa por ele desenvolvida, na Universidade de Harvard,
há uma tendência natural, que acompanha os seres humanos, desde que
corretamente provocados, à elevação do próprio patamar moral. A partir
dessa premissa e da experiência acumulada em anos de trabalho educacional
é que cremos que vale a pena investir mais e melhor na formação dos
operadores, mesmo daqueles que parecem resistentes. Parte significativa
deles pode ser recuperada por uma estratégia educacional competente,
diferente daquela que, genericamente, até aqui, tem sido adotada pelo
Estado.
O Grupo “Vocacionado"
Não esqueçamos,
no entanto, o primeiro grupo, aquele que denominamos “vocacionado"
ao social. Ele, igualmente, não está imune às graves mazelas oferecidas
pela realidade com a qual necessita trabalhar. Ao longo dos anos,
diante da incúria de Estados que se sucedem e da não resolução dos
problemas, tende a desanimar, a “perder fôlego", a deixar-se
abater pela desesperança e pela decadência da auto-estima. Ademais,
sofre os ataques dos contingentes “não vocacionados", uma vez
que, ao propor e realizar uma prestação de serviços significativa,
deflagra a elevação do padrão de expectativas e exigências sociais
em relação à função pública, com toda a demanda de trabalho e responsabilidade
inerente a tal processo. São vistos, pois, pelos colegas “não vocacionados”,
como “traidores" dos interesses de classe, uma vez que procuram
(inexplicavelmente, para quem se encontra em estágio anterior de desenvolvimento
moral) prestar bons serviços, apesar dos salários muitas vezes insuficientes
ou até aviltantes (conforme o nível hierárquico) e das precaríssimas
condições de trabalho e de vida.
Assoberbados
com seu próprio labor e com as conseqüências da ausência e atividades
imobilizantes ou destrutivas do grupo “não vocacionado", acabam
“consumindo-se" pelo cotidiano, sem tempo e energia para a reflexão
individual e coletiva, para o estudo, para o encontro de alternativas
pessoais e institucionais fundadas em novos paradigmas.
Os momentos
de catarse nas atividades formativas que proporcionamos têm, invariavelmente,
evidenciado essas realidades, esse conflito e essa sensação de abandono e dor por parte daqueles
que desejam posicionar-se existencialmente e pedagogicamente de forma
significativa junto aos cidadãos que têm por responsabilidade proteger.
Também esse
grupo, que aqui chamamos de “vocacionado", diante das inevitáveis
carências oriundas dos projetos políticos estatais, necessita um intenso
investimento formativo suplementar, que possa ajuda-lo a suprir pelo menos
as demandas mais básicas no campo das vivências simbólicas,
abstratas, motivacionais e existenciais. Em termos estratégicos, esse
é o aporte mais conseqüente que podemos oferecer e a ele devem voltar-se
nossos esforços altamente prioritários.
Para os dois
perfis de operadores, portanto, a educação (formação significativa,
útil, com sentido e desafiadora da elevação dos padrões de moralidade
e satisfação interior advindas das relações interpessoais),
é a melhor possibilidade que podemos ofertar no contexto limitado
e limitante do sistema. É também a única forma imediata de humanizar
o trabalho junto à clientela e agregar-lhe competência.
III - ESTRATÉGIAS
Vínculos Empáticos
É preciso que
os operadores-educandos (no caso, agentes policiais) estabeleçam relações
de pertinência, vínculos afetivos, com as possibilidades formativas
que lhes são oportunizadas.
Há estados
que oferecem grande quantidade de cursos a seus operadores sem, contudo, preocuparem-se em
estabelecer um mínimo de empatia entre o que neles se propõe e os
supostos beneficiários. Isso ocorre porque, via de regra, a visão
tecnocrática do Estado contamina mesmo os processos educacionais.
As “capacitações", assim, assumem um caráter de tecnicismo (ainda
que “pedagógico") enfadonho e desvinculado dos dramas e possibilidades reais e cotidianas
das pessoas e instituições.
O tecnocratismo
e o tecnicismo, como proposições esquizóides, alo-referenciadas, não
envolvem o sujeito (aqui objeto) receptor. Não é a toa que
os operadores apresentam fortes queixas em relação à maioria
das “capacitações" que lhes são oferecidas. Não há foco no pessoal
e por isso a elevação dos padrões de qualidade humana é praticamente
nula.
Um Novo Paradigma
Formativo
Um paradigma
novo de “capacitação" precisa trabalhar com conteúdos e dinâmicas
auto-referenciadas, voltadas para as demandas imediatas e mediatas do sujeito
nominal (e não do “operador" como profissional, em primeiro plano).
Em outras palavras:
a qualificação do exercício profissional passa, necessariamente, pela qualificação
existencial do sujeito.
Treinamentos
de eficiência operatória, que não sejam antecedidos pela reflexão
do psicológico, do inter-pessoal familiar e do campo profissional,
pelo axiológico, pelo espiritual
(em sentido amplo) estão fadados ao fracasso por seu artificialismo
e desvinculação das demandas mais profundas do beneficiário.
O foco primário,
assim, da formação do agente policial, não é o cidadão que está nas
ruas (e, menos ainda, o delinquente), mas o próprio agente, nominalmente
tomado. É sua forma de relacionar-se consigo , com os outros, com
o Universo, são seus valores pessoais, são seus desejos e projetos
pessoais (e não de seu cliente/cidadão, em um primeiro momento) que
deverão estar em questão.
Alcançado esse
patamar auto-reflexivo e auto-proponente, aí sim, então, o operador
estará disponível ao aprofundamento (de forma não segmentada, não
desvinculada dessa base pessoalmente significativa), dos projetos
amplos (ou de sua ausência), das utopias (ou da conformidade), das
posturas solidárias ou sociopáticas da sociedade beneficiária.
Não pareça,
no entanto, que sejam essas etapas cronologicamente apartadas. Apenas
para clarificação didática é que seguem, aqui, em parágrafos distintos.
Na verdade, o ideal é que, como desenvolvimento, se estruturem
juntas, favorecendo a “leitura dialética": ao pensar-se,
pensar o outro; ao pensar o outro, pensar-se.
Uma Proposta
Concreta
Uma das formas
que se têm revelado competente para dar corpo, viabilizar esta proposta,
é o oferecimento de “momentos fortes" de reflexão, intercalados
de leituras, práticas, avaliações e reencontros, como atividades recomendadas.
É a chamada estrutura de “Movimento de Módulos Formativos". Os
módulos são os tais “momentos fortes", para os quais se recomenda
a maior “imersão” possível, a fim de livrar os participantes
da ditadura dispersiva do cotidiano (uma vez que o objetivo é a contemplação
cognitiva e moral de si e de suas circunstâncias).
O termo “movimento"
emblematiza o caráter desejado de continuidade, aprofundamento e permanência
formativa. Os módulos desafiam, concentradamente, a avaliação prospectiva
e perspectiva e os intervalos entre os mesmos são acompanhados pelo
grupo, seus monitores, consultores, coordenadores, como tempos de
experienciação formativa.
Esse modelo,
largamente utilizado durante os anos da repressão pelos segmentos
originados na “Ação Católica"
e, após, incorporado por inúmeras organizações laicas de resistência
democrática, revelou-se de extrema competência naquilo que se convencionou
chamar “formação de quadros", multiplicadores de práxis politicamente
(no sentido amplo do termo) relevantes e institucionalmente transformadoras.
Nos dias atuais, como ferramenta universal, volta a ser utilizado
com sucesso por ONGs referenciais no campo da educação para a cidadania
e ajusta-se perfeitamente às metas educacionais voltadas a servidores
públicos, sempre que o Estado saiba estabelecer parcerias com essas
mesmas ONGs, objetivando usufruir de seu know
how e evitar a “petrificação"
técnica e o esvaziamento do processo. Em termos estratégicos, aliás,
a parceria é fundamental. As ONGs, via Estado, podem trabalhar em
extensão, evitando a circunscrição de sua atuação à “minorias eleitas".
O Estado, por sua vez, pode embeber-se de “vida civil"
e superar, pelo menos parcialmente, sua vocação ao formal e ao tecnocrático.
A Estratégia
“Top Down"
Finalmente,
ainda em termos estratégicos, é necessário definir os estamentos prioritários
da clientela em relação à cronologia do trabalho: começar
pelas Direções , corpos de especialistas e técnicos, professores
das academias, oficiais, delegados, é fundamental para que, ao chegar-se
aos operadores diretos, estes possuam o lastro político e o aporte
teorico-especializado necessário à consecução das ações desejadas.
Em alguns casos,
de forma intensiva, quando os recursos humanos e materiais o permitam,
é possível trabalhar concomitantemente direções, setores intermediários
e bases operadoras.
Não havendo
essa possibilidade, recomenda-se o processo “top down", ou seja,
o atingimento eficaz do conjunto dos operadores à partir da opção
estratégica de começar pelo topo da estrutura de responsabilidade, desdobrando
ações até chegar à sua base executiva.
IV - METODOLOGIA
Como parte
da metodologia proposta faz intersecção com a estratégia e naquele
item já foi abordada, resta-nos definir melhor as características
dos módulos formativos e a performance desejada dos consultores e
cursistas.
“Trabalho de
Massa" X “Formação de Multiplicadores"
Inicialmente,
sugere-se evitar a tentação ao “trabalho de massa", tão caro
a muitos governos, ávidos de números para alimentar a opinião pública.
No campo educacional,
a competência passa pela formação dos chamados “multiplicadores"
e, ainda que em momentos bem específicos (por exemplo, Seminários
com agentes já em processo, para assistência a Conferências e troca
de experiências) admitam-se as grandes platéias, no ordenamento normal
o trabalho de massa é dispensável por sua inconsistência e incompatibilidade
com o aprofundamento desejado em nível dos sujeitos - operadores.
Sugere-se,
assim, turmas de, no máximo, 60 pessoas, mesmo que isso exija a reprodução
do número de módulos oferecidos e mesmo que o processo demande maior
tempo (porém, com maior segurança em termos de resultados).
Metodologia
Participativa
Nessa
mesma direção, propõe-se uma metodologia participativa, onde se mesclem
os conteúdos apresentados por “exposições dialogadas" com as
dinâmicas/vivências em grupo. Dessa forma, o perfil desejado dos consultores
exclui a figura do “expositor" academicista, desvinculado de
qualquer relação empática com os beneficiários e descompromissado
com a ativa escuta da problemática que os aflige a da esperança que
os alimenta.
O enfoque introdutório
dos trabalhos deve envolver os participantes a partir da valorização
da missão social que desenvolvem, elevando a auto-estima do grupo
e provocando-o qualificar-se mais para melhor fruir da riqueza existencial
real e/ou virtual que sua situação oportuniza. De igual forma, motivados
pela consciência da responsabilidade social de que estão investidos,
volver-se-ão mais predispostos a interação de caráter formativo.
O Encadeamento
dos Conteúdos e Etapas
Seqüencialmente,
os conteúdos psicológicos e de relações interpessoais devem ser introduzidos
para, após, apresentaram-se as temáticas de perfil mais filosófico
e sociológico, num crescendo, natural, do próximo ao distal. Certamente,
essas diversas dimensões devem perpassar, interdisciplinarmente, como
“pano de fundo", todos os conteúdos.
Seria recomendável,
como uma das formas que podemos sugerir, estruturar o trabalho em
no mínimo três módulos, intercalados por 3 a 6 meses de “laboratório",
destinado ao monitoramento das práticas, leituras e reencontros avaliativos.
Assim, o ingresso ao módulo posterior dar-se-á em um patamar cognitivo
e vivencial mais elevado.
Eleição do
Significativ
De maneira
geral, as temáticas e a forma de sua abordagem devem privilegiar o
significativo, ou seja, devem dizer respeito ao sujeito participante,
mesmo quando tratando-se de temas voltados ao cidadão em geral (por
exemplo, conteúdos psicopedagógicos que podem colaborar na aprendizagem
pessoal do operador em relação à sua própria história de vida, como
filho, pai ou mãe ou diretamente responsivos aos desafios concretos
que enfrenta em seu dia a dia de trabalho).
Por fim, recomenda-se
a oportunização de momentos favorecedores do aprofundamento das relações
interpessoais entre os participantes das formações (dinâmicas de mútua
descoberta, refeições comunitárias, eventos festivos), reforçadores
dos laços de solidariedade grupal e facilitadores, no campo das relações,
da intervenção harmônica da equipe quando “a campo".
Formação de
Vínculos Solidários
De forma geral,
as relações entre operadores estão mediatizadas apenas pelo objeto
de trabalho, sendo, por isso, formais e obrigatórias, quando o correto
seria mediatizá-las pelo humano e pelas utopias pessoais e sociais
partilhadas, a ponto de significarem, para além do meramente profissional,
uma opção fundada na vontade.
Oportunizar
o lúdico e o conhecimento que dele se origina é fundamental para o
adensamento dos vínculos de compromisso, fidelidade e inter-ajuda,
sem os quais não pode haver satisfação e competência em qualquer ação
que dependa de intervenção
grupal.
Naturalmente,
isso poderá parecer pouco ortodoxo no contexto do formalismo estatal,
mas nem por isso deixa de ser uma das chaves metodológicas de maior
relevância para a cognição intelectual e moral: o estabelecimento
de vínculos afetivos, sem os quais não há aprendizagem. Aqui, importa
lembrar o princípio construtivista segundo o qual a _descentração",
a superação do totalitarismo egóico, em relação ao objeto mas também
em relação ao outro, é fundamental para a aprendizagem. Fomentar,
pois, relações fraternas, é contribuir diretamente para a competência
no campo profissional. No caso em questão, mais relevante é, uma vez
que não podemos promover respeito e solidariedade social sem que testemunhemos,
pelo tipo de vinculação que temos com nosso grupo, essa mesma solidariedade.
Claro está
que esta solidariedade nada tem a ver com o corporativismo, que tantas
vezes macula a vida das instituições e que, ao contrário, está fundado
em relações de proteção mútua relacionada a interesses de ordem meramente
individualista.
Tal nível de
compromisso não se alcança nos marcos exclusivos dos contratos sociais,
nem sequer na vivência profissional cotidiana, mas, especialmente,
no lúdico, onde a entrega ao outro está favorecida por um relaxamento
dos mecanismos de defesa.
As instâncias
formativas, assim, não devem constituir-se apenas em momentos fortes
de aprofundamento temático mas, igualmente, em momentos fortes de
convivência.
V - TEMÁTICAS:
Os Conteúdos
Há, aqui, um
conjunto de temáticas básicas, que cremos, dever-se-iam fazer presentes
em trabalhos formativos de caráter continuado, como os que estamos propondo. Elas caracterizam-se
por uma dupla raiz: são auto-referentes e alo-referentes, ou seja,
centram-se, a um só tempo, nas necessidades e vivências do operador
e nas necessidades e vivências do cidadão beneficiário. Ao atender
as demandas de um, atendem também as de outro. Vejamos algumas:
Psicológicos
Inicialmente,
pensamos indispensável o refletir sobre o self contextualizado, ou seja,
a forma e a qualidade das relações que o “eu" estabelece. Pela
simplicidade e, ao mesmo tempo, profundidade com que se apresenta,
optamos pela Análise Transacional, como ferramenta auxiliar.
De fato, apesar
de havermos crescido e, possivelmente, amadurecido, mantém-se em nosso
interior “a criança", com suas idiossincrasias, suas carências,
suas necessidades, seus modelos internalizados. Se não conhecermos
melhor essas motivações primárias do inconsciente, como nos propõe
Eric Berne , podemos acabar dominados por formas nem sempre saudáveis
de reação à realidade e de relacionamento com os outros. Operadores
que têm a seu encargo o trabalho cotidiano com situações de conflito intra ou
interpessoal, precisam administrar com lucidez a própria forma de
reagir diante do desejo, da frustração, da autoridade, do medo.
A AT tem, pois,
suprido competentemente esse propósito de intensificação do auto-conhecimento,
iluminador de todo o processo formativo que realizamos junto à clientela
participante de nossos cursos e módulos.
Filosófico-Existenciais
Motivados,
então, pelo aprofundamento dessa cognição sobre as relações com o
próprio “eu”, com os outros e com o mundo, há terreno fértil para
introduzir duas temáticas do campo filosófico:
-O “serviço
público" como projeto de vida, com suas riquezas virtuais e/ou
reais do ponto de vista existencial (há, aqui, que contrapor as visões
de “poder público" e “serviço ao Estado", tantas vezes antagônicas
ou redutoras da grandeza e dignidade do real papel do servidor social)
- A “questão
dos paradigmas", envolvendo as dimensões pessoais e grupais,
na reflexão sobre “conceito de paradigma", “crise de paradigmas”,
“paralisia de paradigmas" e revisão dos paradigmas individuais
e institucionais. Especial iluminação, nesse campo, nos traz a obra
de Thomas Kuhn, que procuramos verter, de forma simples, para o dia-a-dia
dos agentes operadores (Kuhn,T.
A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo:Perspectiva,1987)
Psicanalíticos
Avançando ainda
mais na direção do beneficiário sem, contudo, descuidar da inclusão
do agente, é recomendável a introdução da “Psicologia do Inconsciente”,
agora em perspectiva mais psicanalítica. Conhecer os mecanismos de
articulação pessoal e social diante dos desafios da realidade, a partir de premissas
e pulsões inconscientes, é fundamental para um operador que deverá
trabalhar, quase todo tempo, com situações-limite. Incorporadas as
pesquisas, descobertas e revisões críticas da modernidade, não haverá
contradição com a temática anterior, da Análise Transacional, uma
vez que esta não contesta os fundamentos centrais erigidos pela psicanálise
mas apenas os transcende, a partir de enfoques
mais heterodoxos.
Por exemplo,
o estudo dos temas do inconsciente e de sua influência sobre as diversas
etapas da evolução da personalidade (psicologia do desenvolvimento),
quando abordados corretamente e de forma didática, pode ser envolvente
e encantador para o operador policial, descortinando-lhe a visão de
novos horizontes de auto-compreensão e de compreensão dos processos
das diversas faixas etárias com as quais deverá atuar.
A par disso,
o estudo da estruturação do ego, dos mecanismos de defesa e da correta
ou incorreta articulação do superego (diretamente relacionado aos
padrões de conduta moral), serão ferramentas de primeira utilidade
não apenas no contexto auto-analítico mas, igualmente, no fazer do
dia-a-dia policial.
Psico-linguísticos
Aproveitar
a abordagem anteriormente citada, do “inconsciente" para também
introduzir a questão das _linguagens não verbais", assim como
em Pierre Weill ( Weil, P. e Tompakow, R. O Corpo Fala. Petrópolis: Editora Vozes,1995), será, igualmente, palpitante e elucidatório
do significado da própria cinestesia e da transparência, honestidade,
pujança e espontaneidade e poder de revelação da comunicação que se expressa
por padrões não mediados pela racionalidade, conhecimento de caráter
ferramental importante no trato diário com a cidadania, seja na dimensão
pedagógico/preventiva, seja na investigativa.
Psico-Sociais
Os temas psicológicos
em questão são um bom mote para o alargamento do estudo da “questão
dos preconceitos": de gênero (onde também o masculino precisa ser
revisitado e ressignificado), de etnia, de ideologia, de credo, de
orientação sexual, de nacionalidade, etc.) Aqui, as vertentes explicativas,
naturalmente, precisam passar pelas bases sócios-políticas e psicológicas
e chegar ao “pensar a democracia" como um sistema onde
todos somos iguais (em direitos) mas felizmente diferentes
(no plano individual e mesmo grupal).
Axiológicos
Um debate puxa
outro e já temos elementos suficientes para introduzir a questão da
consciência moral. Mais ainda, porque o fenômeno da delinquência,
com o qual deverá trabalhar o operador também trabalha, exige um esforço
especial de compreensão e habilidade nos encaminhamentos. Certamente,
isso mexe com as próprias pulsões, com os conteúdos inconscientes
do operador, causando-lhe frustração e insegurança. O tema da formação
do juízo moral é, portanto, central, nos processos formativos de operadores.
Estudar como constituiu-se a própria moralidade, o estágio
no qual se encontra, bem como o processo em desenvolvimento ou bloqueio
na clientela junto a qual trabalha, é, com certeza, altamente clarificador
das situações-problema e provocador de alternativas.
Aqui, precisamos
superar a psicanálise, com sua visão parcial introjetiva, e apelar
aos mestres no tema : Jean Piaget e Lawrence Kohlberg. Os grandes
problemas sociais são problemas morais que começam na infância. Piaget,
em uma de suas mais profundas obras, “O Juízo Moral na Criança",
esmiuçou o tema com didatíssimos exemplos práticos
que, após tantos anos, permanecem plenamente contemporâneos (uma vez
que os estágios não se alteram pela simples complexificação cultural).
Aborda, de forma igualmente brilhante (e para muitos surpreendente),
o tema das “sanções” (que divide em “expiatórias" e “por reciprocidade",
especificando pelo menos seis tipos dessas últimas e articulando corajosamente
seu caráter educativo). Os próprios operadores, em geral frutos da
insegurança proveniente do câmbio rápido e antitético de paradigmas,
filhos de pais autoritários,
descontextualizados e confusos pela apologia da
anomia nos anos 80 e 90, podem obter aí um referencial equilibrado
e seguro (Piaget, J. O Juizo Moral na Criança. São Paulo: Summus, 1994).
Complementando
os estudos piagetianos, mais tarde, Kohlberg trabalhou a formação moral no
período da adolescência, em seus “seis estágios do desenvolvimento
moral" , avançando, igualmente, na análise do universo adulto.
Ele não deixou sintetizada sua obra, em grande parte espalhada em
magníficos artigos, mas seus discípulos trataram de fazê-lo (Cf. Duska, R. e Whelan, M. O Desenvolvimento
Moral na Idade Evolutiva. São Paulo: Edições Loyola, 1994).
São estudos
de profundidade filosófico-existencial, para além do caráter pedagógico,
mas absolutamente práticos, ferramentas que rompem o véu que se antepõe
à compreensão radical dos comportamentos éticos ou sociopáticos.
A reflexão
sobre a questão da drogadição, sempre significativa no contexto daqueles
que trabalham com a criminalidade, teria, inserida nesse quadro referencial,
uma sustentação de profundidade, da qual normalmente carece nas abordagens
meramente tecnicistas ou fundadas nas abordagens psicológicas
tradicionais.
Sociológicos
Paralelamente
a esses estudos de busca das raízes comportamentais e atitudinais,
no terreno do simbólico, do subjetivo, a reflexão de perfil mais político-sociológico
pode ajudar a “localizar" o operador em suas próprias circunstâncias,
bem como o beneficiário de sua ação, o cidadão.
À análise conjuntural
deve seguir-se a estrutural, de caráter mais profundo, identificando
a razão social e política de ser das instituições, em níveis micro
(família, grupo de convivência), meso (escola, comunidade eclesial,
delegacias de polícia, departamentos, batalhões, por exemplo) e macro
(estado, partidos, religiões, justiça, forças de segurança pública,
sistemas de ensino, etc.). Convém “colar" à diagnose da conjuntura
e da estrutura geradora, uma visão prognóstica que possa ir desafiando
ao encontro de alternativas de construção da sociedade do novo milênio,
na qual o agente operador está chamado a intervir.
Debate sobre o dia-a-dia policial
Há uma dimensão que nos é muito cara
e que deve estar presente durante
todo e qualquer trabalho temático: a reflexão crítico-criativa sobre
o dia-a-dia do agir policial, à luz dos princípios da promoção da
cidadania do próprio policial e da sociedade por ele beneficiada..
Os consultores devem estar abertos permanentemente para facilitar
o estabelecimento de “pontes” entre
o que está sendo debatido e a prática policial, coletando esses elementos
a partir do que expressa o grupo.
Saber ouvir,
deixar fluir a catarse, acolher as abordagens mesmo quando contraditórias,
é predisposição imprescindível para a significatividade (utilidade
e sentido) do que é discutido, além de cumprir
excelente função terapêutica.
A instituição
policial tem carecido muito de espaços de livre discussão democrática,
que possam ajudar a iluminar a existência e a inserção funcional de
seus agentes. Os módulos formativos que apresentamos (bem como sua
sequência monitorada) têm sido frequentemente avaliados pelos seus
beneficiários como espaços resgatadores da saúde pessoal e institucional,
advinda da transparência dos debates e da liberdade auto-analítica
e analítica que propiciam.
Projeto de
Vida e Projeto Institucional
Trabalhar,
pois na construção/reconstrução do “projeto de vida" do sujeito-operador,
diante da construção do projeto mais amplo (o social, com suas utopias)
tem sido uma opção inestimável em nossa experiência educacional com
os operadores policiais. A conseqüência institucional mais evidente
disso é o chamado “planejamento participativo" (também analisado
em sua dimensão teórica) que traz para o
operador e seu grupo o poder de autoria sobre a realização
das intervenções imediatas e mediatas que lhe são exigidas (ainda
que realisticamente limitadas à esfera/ espaço de decisão permitido
pelo Estado que, por isso, não deixam de ser passíveis
de alargamento, diante da iniciativa e mobilização dos agentes).
Assim, arrolamos
alguns conteúdos básicos que, parece-nos, deveriam estar presentes
em processos formativos que privilegiem a construção do equilíbrio
pessoal dos operadores e a decodificação enriquecedora do entorno,
sem, por isso, supor haver esgotado o tema ou mesmo fornecido explanação
que supere o meramente embrionário na articulação de programas educacionais.
VI. CONCLUSÃO
Longe de pretender
exaurir o tema ou propor qualquer forma de receita, o presente trabalho
aspira tão somente ser
provocação introdutória ao debate, à partir de elementos, como acima
dissemos, extraídos de uma experiência bem sucedida.
Ao abordar
de forma crítica a questão das estratégias, metodologias e temáticas,
quer sugerir inovações nos paradigmas metodológicos até aqui mui comumente
usados pelo estado no trabalho educacional de seus operadores em geral
e, em especial, dos especialistas em segurança pública.
Não tem ,contudo,
qualquer pretensão autoritária de domínio analítico sobre o conjunto
das realidades dos muitos “brasis" que temos e das muitas instituições
encarregadas da promoção da segurança pública.
Completemo-lo,
pois, a partir de uma leitura criativa, adensando os conteúdos com
a sabedoria advinda de nossas próprias experiências, fundadas na riqueza
de uma realidade multifacetada e plena de possibilidades.
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