Polícia e Direitos Humanos:
do Antagonismo ao Protagonismo
Guia para membros de ONGs que
desejam criar programas
INTRODUÇÃO:
No ano de 1984, quando, a convite da Anistia Internacional,
estive na Holanda, visando conhecer um de nossos melhores trabalhos de
Educação para Direitos Humanos em todo o mundo - especialmente aquele
voltado para policiais -
o Brasil mal se havia libertado de duas décadas de ditadura militar. No
final desse período, a minha experiência pessoal com polícias havia sido
f ortemente negativa. Em 1977 e 1978, durante os conflitos de rua que ressurgiram
entre estudantes e polícia militar, após longos anos de temor e trevas,
presidia um dos diretórios acadêmicos mais combativos do Estado
onde vivo. Por várias ocasiões, tinha-me encontrado cara a cara com os
pelotões de choque e sua parafernália de escudos, cavalos, bombas de gás,
e cassetetes. Em uma delas, a violência valeu-me ingresso rápido no Hospital
de Pronto Socorro. No curso do ano de 78, a Polícia Federal resolveu enquadrar
a um estimado amigo e a mim em alguns artigos da famigerada Lei de Segurança
Nacional, por considerar-nos "mentores" de execráveis "crimes"
de "subversão". Entre eles - um dos piores - estava o de haver transcrito,
em jornal estudantil, "perigosos" extratos epistolares de Apóstolos
de Jesus. Somente em 1979, por ocasião da Lei de Anistia, pude-me ver
livre da paranóia engendrada pela pressão dos obscuros e extenuantes interrogatórios
na sede da Rua Paraná. Não era, portanto, uma vivência que evocasse qualquer
forma de simpatia, identificação e muito menos confiança naqueles que
haviam sido instituídos pela sociedade para fornecer-lhe apoio e proteção.
Por essa razão, algumas das realidades que tive
a oportunidade de vivenciar na citada viagem, me pareciam no mínimo curiosas,
exóticas talvez, pelo menos inexeqüíveis em um contexto de Terceiro Mundo.
Refiro-me, em particular, à linha de parceria que a Seção Holandesa da
Anistia Internacional havia estabelecido com comandos e academias policiais
e militares, no sentido de educar seus efetivos para o respeito e a promoção
dos direitos humanos. Quanto à existência, então, de um grupo de policiais
e militares membros da Anistia Internacional,
nem se fale! Parecia algo surrealista para quem vinha tratando, nos últimos
anos, de fugir da polícia.
Como, contudo, por questão de valores, sempre acreditei
que a vida se deve pautar pela abertura ao novo, pela tolerância, pelo
não preconceito, havia naquelas experiências algo que atraía, encantava,
dava esperanças em um mundo onde o convívio entre todas as partes pudesse
normalmente ser estabelelecido sobre um patamar de respeito e cooperação.
Uma polícia muito cidadã, em uma sociedade de cidadãos!
Acordos muito transparentes entre uma das mais combativas ONGs de defesa
dos direitos humanos com ... nada menos que policiais e militares! A verdade
é que a coisa soava muito estranha! Eu, como meus companheiros de militância,
havíamo-nos acostumado a tal ponto a ver a polícia como sinônimo de violação
da cidadania, que este caráter já lhe parecia haver aderido ou, quem sabe
mesmo, habitá-la de origem. Testemunhar uma outra realidade impôs-se como
necessidade de mudança de paradigmas.
Éramos, até aquele momento, pessoas interiormente
machucadas por uma traumática história recente: a do desvio perverso da
razão original de ser dos que detinham o poder de aplicar as leis. Pudera!
Vivíamos em um continente sem leis ou com leis ocultas, subjacentes à
palavra escrita. Ainda não havia completado seis anos, quando um golpe
de Estado ceifou-nos quase todas as possibilidades de expressão de dignidade.
Também eu era fruto de uma geração amarga em relação ao papel representado
pelas Instituições. Agora, vivendo o processo de redemocratização, ao
lado de alguns senhores - às vezes fardados - tão educados, tão civilizados,
muitos tão verdadeiramente preocupados com a qualidade de sua inserção
social, já não tinha mais tantas certezas maniqueístas e começava a questionar-me
sobre as possibilidades de construirmos um outro tipo de polícia e, quem
sabe, até mesmo de Forças Armadas! Mais que isso, questionáva-me, com
duro realismo, a respeito da eficácia de meu trabalho pelos direitos humanos
em uma sociedade onde já não era mais tão simples entrincheirar os atores
sociais. Assim, se um dos principais vetores de violações relacionava-se
a maus policiais com práticas rançosas, gente " à moda antiga "
que continuava agindo e influindo, e se não havia a menor perspectiva
concreta de uma romântica " sociedade sem polícia ", como fechar
os olhos para a necessidade de colaborar na redefinição do perfil dos
membros dessa instituição?
Apenas denunciar, sem geminar esta ação com uma
perspectiva construtiva e educacional, começava a configurar-se como um
bem intencionado vício, possivelmente comodista, irresponsável e ineficaz.
Foi com todas estas inquietudes que retornei ao
Brasil.
Ao relatar a meus companheiros o que havia visto,
freqüentemente arrancáva deles expressões de surpresa, ou de incredulidade,
ou mesmo risos. Aos poucos, no entanto, um significativo grupo começou
a perguntar-se: e por que não também nós?
Não tardamos muito a partir para a ação. Inicialmente,
em âmbito periférico à polícia. Ainda tínhamos medo. O primeiro passo
foi cercar-nos da presença
de especialistas em educação e de seus aconselhamentos. Resolvemos, a
seguir, expor a idéia ao então Presidente da Comissão Pluripartidária de Direitos
Humanos, Defesa do Consumidor e Segurança Social, do Poder Legislativo
Estadual. Houve abertura e acolhimento. Arregaçamos as mangas, Anistia
e Comissão Legislativa, a fim de redigir uma lei que instituísse a obrigatoriedade
de uma disciplina, com carga horária e critérios filosóficos bem definidos,
para o ensino de Direitos Humanos a policiais civis e militares e a agentes
penitenciários. Elaborado o texto, um eficiente " lobby " ético
conquistou junto ao Parlamento Estadual, a aprovação por unanimidade,
em dezembro de 1988.
Logo sancionada pelo Governador do Estado, a lei
vigora até hoje.
Estávamos, àquela altura dos acontecimentos, algo
entusiasmados e algo surpresos com nossa vitória. Não tínhamos conhecimento,
até então, de qualquer outro processo semelhante, nem de legislação tão
clara e avançada, nesse campo, em nenhuma parte do mundo, em especial
do Terceiro Mundo. Em tese, a partir dali, quase 40 mil homens encarregados
da segurança pública, no Estado, poderiam ser direta ou indiretamente
beneficiados. Isso sem falar nas inúmeras possibilidades de multiplicação
de legislações similares por outras unidades da federação brasileira ou
mesmo por outras nações que se quisessem inspirar
no exemplo.
No entanto, em um país pródigo em leis não cumpridas,
restava-nos o principal desafio: como fazer acontecer com qualidade o
que a legislação dispunha com boa vontade?
Como prova de que a história pode avançar por complexos
caminhos, à hora certa convergentes, dois elementos foram essenciais à
concretização de nossos objetivos. O primeiro foi o fato de as Secretarias
Estaduais de Segurança Pública e Justiça, naquele momento, estarem sendo
ocupadas por autoridades disponíveis ao exercício da mudança e, mesmo,
eventualmente, entusiasmadas por ela. Conte-se aí, em especial, com um
Chefe de Polícia Civil moderno e convencido da importância de agentes
da lei imbuídos da perspectiva cidadã.
O segundo elemento aponta para a descoberta de que
já havia, na E scola de Polícia Civil, uma professora identificada com
a temática dos Direitos Humanos, introduzindo alguns de seus conteúdos,
através da cadeira de
" Relações Humanas ".
Realizados os contatos políticos com generosidade
de espírito e habilidade, estava amarrada uma parceria destinada a dar
muitos frutos. Aqui é importante ressaltar que a simples existência de
uma lei nada significaria, se não houvéssemos exercitado a capacidade
democrática de estabelecer um pacto fundado na vontade política. A polícia
poderia simplesmente ter ignorado a lei (o que é possível, neste país!),
ou instituído a disciplina sabotando a sua importância ou subvertendo
os seus objetivos. Ao contrário, através do entendimento, chegamos à aplicação
permanente, séria e significativa, do que a lei dispõe, pelo menos em
termos de Polícia Civil (há que explicar-se aqui, aos leitores de outras
nacionalidades, que o Brasil é uma estrutura federativa, onde cada Estado
conta com relativa autonomia legal interna e com dois corpos policiais:
uma Polícia Civil, de caráter judiciário, e uma Polícia Militar, fardada,
de caráter ostensivo. Neste último caso, não estamos falando das polícias
das Forças Armadas, que são efetivos militares da federação, com funções
de caráter mais intra-corporativo).
Após seis anos de intenso trabalho e de expressiva
presença da Anistia Internacional na formação de toda uma nova geração
d e policiais , alcançamos em torno de 50% do efetivo da Instituição. Ao
mesmo tempo, temos colaborado em experiências menos sistemáticas, mas
também significativas, junto ao corpo de oficiais da Polícia Militar (em
associação com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e junto ao
sistema penitenciário, educando algumas turmas de agentes carcerários.
É interessante notar - ainda que empiricamente -
no âmbito onde mais se aprofundou a experiência, ou seja, na Polícia Civil,
que há um visível decréscimo de casos denunciados de violações - como
tortura e maus tratos - quando comparados, por exemplo, com a década de
80 (já sob governos democráticos). Hoje, não é mais tabu falar
em " respeito aos direitos humanos ", para esses policiais.
No passado, a simples menção do termo desencadeava repúdios irados e atitudes
intempestivas. Há, agora, policiais que freqüentam, com inusitada desenvoltura,
a sede da Anistia, onde fazem pesquisas, produzem vídeos amadores, coletam
informações, entrevistam pessoas. Desses novos vínculos, originaram-se
três exposições fotográficas contra a tortura, organizadas pelos alunos
policiais nas dependências de sua Academia. Freqüentemente, quando vou
àquela Escola, sou cercado, nos corredores, por estudantes que vêm fazer-me
perguntas e trazer sugestões, querendo
contribuir, como cidadãos e policiais, para a causa dos direitos humanos.
Quando, há alguns meses, a Anistia Internacional lançou, através de "Ato
Público ", uma campanha nacional pela tipificaçào da tortura na legislação
ordinária brasileira, das 1.000 pessoas presentes,, 250 eram alunos policiais.
Foram longa e emocionadamente aplaudidos.
É preciso lembrar, também, que o estabelecimento
da cadeira de Direitos Humanos
fomentou um espírito de abertura em relação à questão curricular, fazendo
com que o bloco da área humanística fosse reforçado, inclusive com o ingresso
de novas e importantes disciplinas, como é, por exemplo, o caso de "Direitos
da Criança e do Adolescente".
Contudo, ainda que estejamos bastante animados por
haver chegado bem além do que seria previsível, tratamos de evitar o ufanismo.
Sabemos que há, ainda, muito por fazer. Sabemos que estamos em um país
onde as estruturas são mais políticas e menos profissionalizadas, o que
requer do Programa a capacidade de subsistir, mesmo após trocas de governos
e chefias, sem perder a qualidade. Há, no entanto, elementos de experiência
acumulada que nos levam a planejar de forma otimista. Estamos conscientes
de que alcançamos práticas bastante consolidadas que, cremos,
devem permanecer.
Em termos de país, como prevíamos, o exemplo multiplicou-se.
Um ano depois da primeira lei, o Estado da Bahia aprovava legislação semelhante.
Em São Paulo, iniciamos frentes de trabalho tanto na Polícia Civil quanto
na Polícia Militar . Tive pessoalmente a grata possibilidade de participar,
naquele Estado, de reuniões para definição dos conteúdos programáticos
para a Academia de Oficiais da Polícia Militar onde, em torno de uma mesma
mesa, com iguais direitos à voz e ao voto, reuniam-se o Coronel Comandante
e um expressivo grupo de representantes de Organizações Não Governamentais.
Evidentemente, o quadro em São Paulo é complexo. A Polícia Militar conta
com mais de 70.000 homens e, ainda que pelo menos parte da oficialidade
pareça-nos interessada na promoção dos direitos humanos, isso não poderia,
não conseguiria, significar uma incorporação imediata de práticas renovadas
em relação ao conjunto da corporação. A história é costurada por avanços
mais ou menos lentos e muitas vezes contraditórios que requerem de nós,
promotores da cidadania, um misto de inegociável vigilância e paciência.
No campo, ainda, da multiplicação de programas formativos,
uma nova frente se abriu com a inclusão, no Projeto, das escolas de guardas
municipais (forças de segurança pública administradas pelas cidades) em
diversos pontos do país. O processo, em pleno andamento, objetiva transformar
o guarda municipal, de mero zelador do patrimônio material da cidade,
em educador da população citadina e promotor de direitos humanos.
Esse conjunto de experiências trouxe-nos um "
know how " raro e até bem pouco tempo desconhecido em países do Terceiro
Mundo. Suscitou curiosidade e solicitação de informações e consultorias
em diversos Estados da federação brasileira, bem como em diversos países
das Américas, da Ásia, da África e mesmo da Europa. Fundações Nacionais
e Internacionais têm buscado, com freqüência, o aprofundamento de contatos.
Organizações Não Governamentais de inúmeros pontos do país e do mundo
animam-se com a possibilidade de trabalhar também com as suas polícias,
mas não sabem, muitas vezes, por onde começar. A par disso, nossa infra-estrutura
de recursos humanos e econômicos é insuficiente para que possamos atender
com a eficiência desejada tal demanda de informações e assessoria. Assim
mesmo, sentimo-nos no dever de socializar os conhecimentos, pois estamos
convictos de que o caminho da paz com justiça passa pela conscientização
das chamadas " forças de segurança pública ". Eficácia em direitos
humanos significa hoje, com certeza, entre outras ações, implementar programas
em parceria com policiais e militares, para a educação de seus efetivos,
em todos aqueles lugares onde a democracia o permita.
Foi daí, frente a essa ainda modesta, mas já significativa,
tecnologia acumulada na área, bem como diante da necessidade de dividí-la
a partir de poucos recursos infra-estruturais, que surgiu a idéia de escrever
o presente " Guia ".
A intenção, evidentemente, não é apresentar a "
receita do bolo ", idéias acabadas de aplicação mecânica. Não temos
qualquer pretensão do monopólio de conhecimentos ou metodologias. Estamos
caminhando, errando e acertando e, ao longo de alguns anos, constituímos
algum patrimônio em termos de experiência. Sabemos já de certas coisas
que nos parece m imprescindíveis se queremos trabalhar com policiais. Sabemos
de outras que devem ser evitadas. É o que queremos, de forma muito singela
e despretenciosa, mas também muito prática, dividir com o leitor.
Hoje, mais de dez anos passados daquele sonho inicial,
estou plenamente convencido da imprescindibilidade e da factibilidade
de uma polícia democrática em uma sociedade democrática. Tenho a viva
certeza de que a missão maior do policial é ser um pedagogo da cidadania,
através de seu exemplo. Vista desta perspectiva, é uma das mais dignas
e edificantes tarefas sociais. Estou igualmente seguro de que é inabdicável
dever nosso, membros de Organizações Não Governamentais promotoras dos
Direitos Humanos, ajudá-los a vivenciar, com cada vez maior plenitude,
a dignidade desse mandato educacional.
" Para servir e para proteger ", podemos
(e devemos) ser parceiros. A boa vontade é fundamental. No entanto, não
basta. É preciso canalizá-la de forma competente. Oxalá este " Guia
" possa ser uma das ferramentas de auxílio na consecução dessa nova,
desafiadora, e - por assim ser - encantadora jornada, rumo a sociedades
onde, de fato, todo o poder emane do povo e só em seu nome e benefício
seja exercido.
Ricardo
Brisolla Balestreri
Diretor Geral do Programa
Nacional de Educação para
a Cidadania (PRONEC)
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