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Desafios que o Tema Direitos Humanos Coloca para o Século XXI
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Maria Belela Herrera*

O advento de um novo século obriga, hoje mais do que nunca, que se examine o tema direitos humanos no contexto das vertiginosas mudanças ocorridas no século em curso, e dos progressos não consolidados, os quais constituem os grandes desafios do próximos tempos.

Entretanto, o esforço de se “pensar em termos de futuro” não dispensa uma valoração do passado, porque a responsabilidade política e ética impõe que não incorramos em erros já cometidos anteriormente.

Este é um imperativo histórico para a geração atual, que abriu os olhos para a vida, em meio aos horrores do nazismo, que carregou nos ombros os efeitos da década perdida, da guerra fria, e que hoje tem a responsabilidade histórica de dar novo direcionamento aos métodos utilizados, aos equívocos, e também- porque não? - aos sonhos a realizar.

Como dizem as velhas lendas americanas, estamos diante do desafio de queimar nossos navios e olhar o horizonte, a partir daqui e de agora, no entendimento de que se não resolvermos nossos problemas, estaremos legando graves riscos àqueles que nos sucederão.

A partir daí, o primeiro passo da análise deveria concentrar-se numa reavaliação da dívida pendente, dos problemas que não fomos capazes de resolver e que, querendo ou não, transmitiremos como legado às novas gerações.

Em seguida, a partir de uma autocrítica, poderemos redimensionar o tema, elaborar programas, estabelecer diretrizes, assim como os objetivos políticos e sociais destinados a consolidar o respeito aos direitos básicos, para o limiar do novo século.

A dívida pendente

Precisamente no ano em que se comemora o cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos cabe a pergunta:

O que estaria tão próximo de cumprir o ideal comum de todos os povos e nações, e obter o respeito inalienável de todos os membros da família humana?

Que panorama nos oferece a situação dos direitos humanos no mundo contemporâneo?

O ressurgimento da guerra, em conseqüência do ódio étnico, nos tira da letargia quando acreditávamos que a intolerância estava superada. O cientista político norte-americano Samuel Huntington assinala que, durante a Guerra Fria, as pessoas eram perseguidas por causa de suas idéias, porém, agora, as pessoas podem ser mortas apenas por serem moradoras de um determinado lado da rua.

Definitivamente, o racismo tem demonstrado ser, através da história, o exemplo mais eloqüente da incapacidade humana de se entender, aceitar ou, ao menos, tolerar as diferenças.

Este é um dos desafios que nos apresenta o século XXI: fortalecer, a partir de estruturas educativas, políticas e sociais, a aceitação das diferenças. Reconstruir o conceito de igualdade dentro da concepção humanista e assegurar que seja alcançado o paradigma de teóricos como Umberto Eco, que defende que “os racistas devem ser uma raça em extinção”.

A xenofobia, a discriminação e o racismo passeiam juntos com as propostas de partidos direitistas, de novo cunho e velha linhagem, que capitalizam o poder na Europa. Essas políticas são acompanhadas pelo renascimento de pesquisas pseudo-científicas sobre “racismo genético” e inteligência hereditária.

O furor racial espalha sua pólvora, atiçando hispânicos e negros nos EUA, não-russos na ex-União Soviética, árabes na França, turcos na Alemanha, hutus e tutsis em Ruanda, e fazendo com que paquistaneses e hindus recorram a bombas atômicas para resolverem suas velhas controvérsias. Acrescente-se a isso, o caso da Iugoslávia, dividida e destroçada, mostrando os despojos da barbárie.

De sua parte, neste lado do mundo, na América Latina, as principais formas de discriminação atingem os povos indígenas, as mulheres, os imigrantes, as crianças e os pobres.

Diferentemente do que ocorreu durante o século XX, quando os imigrantes eram recebidos de forma calorosa e de braços abertos, hoje em dia, na maioria das vezes, essas pessoas são duplamente vitimadas. Em primeiro lugar, a sociedade que eles abandonaram, em busca de proteção e melhores condições de vida, os expulsa; e, quando chegam ao destino, são estigmatizados pelo corpo social que os recebe.

A disputa por bens básicos, emprego, saúde e educação coloca os imigrantes em situação de confronto com os que já estavam nesse novo destino. Diante disso, a ponte para a xenofobia é curta e ampla. Em agosto de 1993, o Sindicato de Trabalhadores na Construção argentino cobriu a cidade com os seguintes dizeres: “Que não se apoderem do pão nosso de cada dia com importação de mão de obra clandestina”. Tal procedimento é uma clara referência às contratações, por parte de empresas argentinas, de mão-de-obra paraguaia e boliviana.

Enquanto isso, na Alemanha, França e outras nações ocidentais, esses argumentos são manipulados contra os imigrantes africanos e latino-americanos; e os latino-americanos, por sua vez, discriminam-se entre si.

O Professor Rodolfo Stavenhagen escreveu, recentemente: “A internacionalização dos conflitos étnicos e a definição das relações internacionais com base em critérios étnicos, apenas começaram. À medida que se extinguem as disputas ideológicas, que caracterizaram quase todo o século XX, aumenta a virulência dos confrontos, que têm origem nos problemas de identidade e valores”.

Esse é um tema que deve ser encarado dentro do marco dos processos de integração regionais, que deverão gerar ampla mobilização de pessoas. Dentro desse ponto de vista, observa-se uma preocupação exacerbada sobre o impacto do Mercosul, no âmbito político, econômico e comercial. Nesse sentido, acreditamos que esteja havendo um descaso com relação à dimensão humana do fenômeno, a qual não poderá ficar fora da agenda política.

De acordo com nossa opinião, esse aspecto deve ser encarado urgentemente e os Estados e governos do próximo século deverão assegurar condições para que o desenvolvimento se dê de forma harmônica entre os povos. Sem prejuízo de seus objetivos, o marco de integração não poderá significar o retrocesso de nenhuma conquista social obtida dentro dos respectivos países. Temos que fazer um exercício de sinceridade e avaliar quantos resquícios de intolerância perduram dentro das nossas realidades cotidianas.

A discriminação prima por ter rostos ocultos. Por exemplo, no Uruguai, as estatísticas oficiais dos Instituto Nacional de Estatísticas relativas a 1998[1], revelam que a comunidade negra atravessa condições de miséria, falta de educação e desemprego, em claro desequilíbrio com a comunidade branca. As mulheres do Uruguai ganham menos que os homens, pelo mesmo trabalho; quarenta por cento de cinqüenta e cinco mil crianças nascem em localidades com carências básicas.

Apesar disso tudo, a discriminação e intolerância que nos circundam não são fenômenos mágicos, de instalação espontânea, mas, exatamente o contrário.

Os atuais modelos de civilização globalizada e planetária, a lei econômica do livre mercado, idolatrada como Deus Supremo, a massificação social e a bíblia dos indicadores macroeconômicos têm contribuído para detonar esses ódios, sem oferecer qualquer solução aos problemas “simplesmente humanos”.

Globalização e pobreza

A globalização tem aumentado a distância entre ricos e pobres, e ameaça generalizar a indiferença perante a crise social. A persistência do crescimento das cifras de desemprego e pobreza em grande escala constituem tanto um desperdício intolerável de recursos humanos como uma ameaça perigosa para a coesão social e para as relações internacionais, em condições de paz.

Em seu “Relatório sobre a Saúde Mundial, de 1995”, a Organização Mundial de Saúde apresenta indícios preocupantes sobre a amplitude e gravidade dos extremos de pobreza no mundo.

Na sua “Classificação Internacional de Doenças”, está identificado como o carrasco mais impiedoso e a principal causa de sofrimento dos povos da Terra, o Código Z 59.5, ou seja, a extrema pobreza. A pobreza é o principal motivo por que não são vacinadas as crianças em fase de amamentação, nem se disponha de água própria para consumo humano, de saneamento adequado e de medicamentos para que as mães não morram de parto. É a principal causa da baixa expectativa de vida, das mutilações e doenças causadas pela fome. É uma das grandes responsáveis pelas doenças mentais, do estresse, da desintegração familiar e da toxicomania. A pobreza, enfim, exerce uma influência nefasta em todas as etapas da vida humana, desde a concepção até o túmulo.

A miséria é o novo “apartheid” dos nossos tempos, conforme afirma, com absoluta convicção, o especialista argentino Leandro Despouy. A única diferença - sustenta o especialista - é que o “apartheid” foi condenado e repudiado, enquanto a miséria passeia impunemente perante a indiferença geral.

Na América Latina, ainda temos muitas tarefas pendentes. Há uma necessidade urgente de se lançar um ataque de larga escala contra a pobreza. É responsabilidade de cada país reconhecer as desigualdades que existem dentro de suas fronteiras e adotar medidas para corrigi-las.

A Comissão para a América Latina calculou que, no princípio dos anos 90, 196 milhões de pessoas viviam em condições de pobreza, ou seja, 60 milhões a mais que na década de 80.[2]

No Uruguai, a situação de indigência, ou seja, aquelas pessoas cujas rendas não conseguem cobrir uma cesta básica de alimentos, representa 2% do total da população urbana, ou cerca de 60 mil pessoas.

Desenvolvimento, um direito que não foi consolidado

Nós, povos da América Latina e África, ainda não pudemos tornar realidade o que foi proclamado na “Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento das Nações Unidas, em 1986, ou seja, “reconhecer que o desenvolvimento é um processo global econômico, social, cultural e político que visa o aprimoramento constante do bem estar de toda a população e de todos os indivíduos, baseado na participação ativa, livre e significativa, nesse desenvolvimento, e na distribuição justa dos benefícios que dele se originam.”[3]

Os programas econômicos não poderão ser considerados bons se não forem capazes de melhorar as condições humanas, o nível de vida, a qualidade de vida, a educação, a saúde e o emprego dos grupos mais estigmatizados e excluídos da população.

Os esforços internacionais consolidados na Declaração Final da Conferência Mundial de Direitos Humanos, de 1993, e da Cúpula sobre Desenvolvimento Social de Copenhague, de 1995, a chamada Cúpula da Esperança, tornaram-se marcos no caminho do reconhecimento de que a pobreza extrema e a exclusão constituem violações visíveis dos direitos humanos.

Com sua brilhante maneira de escrever e sentir, meu compatriota, o escritor Eduardo Galeano[4], descreve os tempos que correm:

“A América Latina vive um período histórico cruel. As contradições da sociedade de classes são, aqui, mais ferozes que nos países ricos. A miséria maciça é o preço que os países pobres pagam para que seis por cento da população mundial possa consumir, impunemente, a metade da riqueza que o mundo inteiro gera. É muito maior a distância, o abismo que, na América Latina, se abre entre o bem estar de uns poucos e a desgraça de muitos, como também são mais selvagens os métodos para salvaguardar essa distância”.

Consequentemente, um dos principais desafios que nos acena o futuro é a capacidade de podermos eliminar essas desigualdades e trabalharmos juntos, por uma distribuição mais justa da renda.

Queremos os benefícios de um mundo interconectado, porém é necessário que se elaborem políticas visando a erradicação da pobreza e que se promova a participação popular na solução do tema social. Um requisito importante para a aplicação efetiva dos direitos econômicos, sociais e culturais nos países menos desenvolvidos consiste de uma transformação pacífica e rápida, a fim de permitir que todos os recursos humanos e materiais da nação participem plenamente do processo desenvolvimento.

Democracia e desenvolvimento

Sem desenvolvimento político, o desenvolvimento econômico e social não poderá ocorrer. É necessário estimular a criação de uma estrutura política que se transforme na alavanca das mudanças, e que sua força e dedicação sejam transmitidas para o corpo social.

O descompasso entre a democracia e as demandas legítimas da população acarreta riscos perigosos que colocam em julgamento a própria legitimidade do sistema. Não se pode aceitar que os Ministros da Economia falem do bom desempenho dos índices macroeconômicos, enquanto as pessoas estão desempregadas e sofrendo privações básicas.

Um dos principais problemas que afetam o Uruguai são as cifras de desemprego. Após a ditadura, essas cifras apresentaram uma queda, mas rapidamente voltaram ao nível de dois dígitos no começo dos anos 90, fixando-se, atualmente, em cerca de 12,8%, em Montevidéu, e 12,4% no interior urbano. Isso implica em que, de acordo com os dados do Instituto Nacional de Estatística, 328.000 pessoas vivem com alguma necessidade básica insatisfeita, o que representa 11,4 % da população urbana do país, dos quais 41,8% são crianças menores de 14 anos.

O milênio que se aproxima deverá forjar uma democracia que avance, não em função de um Estado “invisível, alheio ao cenário nacional e reduzido a um moderno e gerencial administrador de recursos senão de um Estado que compense as desigualdades, que assegure a participação plena e igualitária da mulher na vida econômica, que nivele as rendas urbana e rural, que estabeleça políticas voltadas para eliminar efetivamente a discriminação, que descentralize as decisões e que leve adiante um plano de desenvolvimento nacional e unificado. Uma reforma educativa que enseje não somente aumento da capacidade de alfabetização, como também mudanças na qualidade e conteúdo do ensino. No Uruguai, desde 1996, se processa uma reforma educativa que pretende ser ampla. Uma das medidas adotadas implica na eliminação das escolas rurais que apresentam escassez de alunos. Nós discordamos dessa posição, defendendo que a educação pode atuar sobre a realidade a fim de modificá-la. Se a migração do campo para a cidade é um dos males dos nossos tempos, decisões dessa natureza só poderão agravar o fenômeno, ao invés de atenuá-lo ou revertê-lo.

Acreditamos na força da educação como geradora de desenvolvimento, em homens e mulheres dotadas de crítica e preparadas para se lançar em direção ao futuro, que sejam protagonistas das mudanças, e não objetos do desenvolvimento.

Devemos redimir aqueles contidos em si mesmos, e lutar para que tenham um papel mais participativo no cenário social.

Não somos partidários do divórcio entre crescimento econômico e justiça social. Ainda que expondo-nos ao risco de sermos tachados de antiquados, não abandonamos o sonho de uma democracia “substantiva”.

Para se forjar as mudanças, devem-se multiplicar as formas institucionais que permitam a participação direta do povo, na eleição de seus representantes, e na tomada de decisões.

Democracia não é unicamente a liberdade de protestar e de ser pobre. Nesse sentido, participar seria criar as condições econômicas e culturais que garantam o completo exercício dos direitos civis e políticos, assim como dos direitos econômicos, sociais e culturais.

A participação popular, o fortalecimento de uma estrutura jurídica sólida- incluindo-se um sistema jurídico que conte com recursos suficientes, com juízes e funcionários devidamente remunerados, a criação de instituições de mediação entre o indivíduo e o Estado, como os Defensores do Povo, ou “Ombudsman”, são ferramentas que assegurarão o respeito pelos direitos humanos, no século que se aproxima. Nesse sentido, devemos trabalhar em conjunto com as instituições governamentais e as sociedades civis, por meio das comunidades, das organizações não-governamentais, cooperativas, sindicatos, etc.

Segurança e direitos humanos

Os cientistas sociais definem segurança como a confiança, a tranqüilidade de espírito resultante da crença de que não existem perigos ameaçando o indivíduo.

No sentido contrário, a insegurança gera um forte sentimento de desconfiança e incerteza. Esse estado de ânimo provoca, na maioria das vezes, uma leitura equivocada em relação aos direitos humanos, cujo corolário abrange uma situação de confronto entre determinados tipos de direitos e outros.

A pobreza é geralmente identificada como o caldo cultural da delinqüência. Dentro dessa dinâmica, o sentimento de insegurança condiciona o corpo social a demandar maior repressão para os delitos, os meios de comunicação de massa atacam a benevolência da justiça e a falta de severidade das penas, fazendo ressurgir, como por encanto, as teorias que penalizam infratores cada vez mais jovens e reacendem o debate sobre as vantagens dos castigos extremos, como a pena de morte.

O direito à segurança leva ao confronto do devido processo, da independência jurídica, tornando o papel social da justiça penal o de penalizar eternamente o ladrão de galinhas.

Em outras áreas, a insegurança gerada pela crise econômica debilita as condições dignas de emprego, que se traduzem pela aceitação de salários depreciados, pela perda da capacidade negociadora do conjunto sindical, assim como pela própria desarticulação das organizações representativas dos trabalhadores.

Na prática, em situações de instabilidade econômica, o direito ao emprego parece confrontar-se com o direito de livre associação, tornando-se esse um obstáculo para a permanência no próprio emprego.

A segurança também é abalada quando a opinião pública toma conhecimento dos obscuros negócios secretos feitos com recursos públicos, das contas não declaradas por funcionários corruptos e outros desvios de poder. Nesses casos, o direito à privacidade e à honra acabam saindo feridos. Como reação imediata, começa-se a atacar os jornalistas, a ética dos meios de comunicação e todas as demais fontes de consulta, colocando-se em confronto o direito à honra com o direito à livre expressão e comunicação do pensamento.

A insegurança afeta o ser humano individualmente, as organizações sociais e o Estado.

Neste momento, assistimos, impávidos, o confronto armado entre países irmãos de nossa América, e nos comove pensar que, outra vez, esse desgastado argumento da segurança territorial e soberania possa fazer ressurgir um conflito com outras causas e com outros propósitos.

Por isso, um dos principais desafios para o século que se aproxima será assegurar a segurança e a liberdade das pessoas, em qualquer parte do mundo; segurança não só contra os conflitos armados, mas contra a violência estrutural geradora de pobreza.

A noção de “segurança” deve ser desenvolvida com maior profundidade e estudada a partir de outras perspectivas, como também deve ter a participação de todos os setores para a busca de uma solução para o problema.

A própria sobrevivência e o desenvolvimento humano futuro, também deverá estar relacionado ao tema da “segurança ambiental”.

Não se trata de mera coincidência que a maioria dos pobres vivam em áreas mais vulneráveis do ponto de vista ecológico.

Oitenta por cento dos pobres na América Latina, sessenta por cento na Ásia, e cinqüenta por cento na África vivem em terras marginais, caracterizadas por uma alta susceptibilidade à degradação ambiental.[5]

Estamos convencidos da indivisibilidade e complementaridade de todos os direitos humanos. Dentro do universo de proteção, existe espaço para cada um dos direitos, sem sacrificar nenhum.

Democracia e direitos humanos

O modelo democrático a que aspiramos passa pela atribuição de um papel preponderante ao tema direitos humanos, e pela transformação desse reconhecimento em reformas concretas.

No Uruguai, apesar de haver uma longa e profusa tradição constitucional de reconhecimento e proteção dos direitos civis, políticos e sociais, não há um dispositivo que assegure uma hierarquia normativa “supranacional”, ou, pelo menos, “quase constitucional”, aos tratados relativos a direitos humanos.

Há pouco tempo atrás, efetivou-se uma reforma constitucional, propiciada pelos dois partidos políticos em exercício, visando a um pacto de co-gestão governamental.[6]

Apesar dos esforços e cobranças de amplos setores da opinião pública, no sentido de se incluir o dispositivo mencionado, nada disso foi contemplado.

A ausência desse dispositivo coloca ao arbítrio das leis internas, que são produtos de conjunturas específicas, todo o regime de garantias elaborado a partir do sistema internacional de proteção. Nesse sentido, o Uruguai se encontra na retaguarda, e em clara desvantagem em relação ao restante do universo constitucional americano. Infelizmente sabe-se que não se trata de um ingênuo equívoco, mas, sim, de uma decisão pensada, e tomada de forma consciente.

Compromissos internacionais impõem a obrigação de implementá-los de ”boa fé”, ou seja, os Estados devem ajustar suas condutas às pautas internacionais, às quais, livremente, deram consentimento. Isso, exige, entre outras coisas, a adequação da legislação interna às obrigações que emergem dos tratados e Convenções ratificadas.

Lamentavelmente, ainda existe, em muitas partes do mundo bem como no Uruguai, uma dualidade de atitudes e discursos nesse sentido.

Ratificamos a Convenção sobre Tortura, porém, não se consegue os votos dos partidos de centro-direita para se votar uma lei que defina o delito de tortura; somos parte da Convenção para a Eliminação da Discriminação Racial, porém não existem internamente mecanismos eficazes específicos para se denunciar a discriminação; a Convenção Americana de Direitos Humanos é lei interna, porém, não há o reconhecimento de sua incompatibilidade com a lei da caducidade da pretensão punitiva do Estado, que privou de recursos efetivos os familiares das vítimas do desaparecimento forçado. Da mesma forma, somos parte do sistema interamericano e respeitamos as opiniões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, salvo quando, estabelece que a lei de perdão aos torturadores deveria ser modificada.

No plano nacional, essa é uma tarefa a ser encarada em sua totalidade pelo Estado do próximo século. Conciliar o discurso com a prática, democratizar a democracia, tornar transparente o nebuloso e atribuir à proteção dos direitos humanos o papel decisivo que lhe condiz, como coluna vertebral do sistema democrático.

Uma dívida dolorosa

Dentro de outra perspectiva, uma herança dolorosa que carrega a América Latina nestes últimos anos do século XX é a impunidade.

A impunidade que se revelou como uma seqüela dolorosa deixada pela transição para a democracia.

As leis de ponto final, de obediência devida, e de caducidade da pretensão punitiva do Estado são todas máscaras lingüísticas de um instrumento perverso, de amnésia obrigatória, de um perdão às cegas, que ignora o que se deve perdoar.

E foi a lei, o instrumento de aplicação da justiça adotado pelos parlamentos democráticos, que serviu para institucionalizar a morte do passado, a ocultação do presente e a negativa histórica do porvir.

O analista Timothy Garton Ash[7] assinalou corretamente que muito além do regime político de que se trate, em um processo de avaliação que abranja desde a Espanha pós-Franquista de 1975, até os países da Europa Oriental, passando pelas ditaduras centro e sul-americanas, todos os novos governantes têm delineado uma linha de fogo entre si próprios e o passado.

Isso trouxe como resultado que a única via para o futuro é que se diga a verdade. Necessitamos de saber a verdade sobre o que se passou, como e por que se passou. Necessitamos dessa verdade para transmitirmos às próximas gerações, a fim de que elas não cresçam com a idéia de que nós não tenhamos feito qualquer esforço para sermos honestos.

As leis aprovadas no final dos anos 80 tinham a pretensão de modificar pautas culturais de conteúdo ancestral. Tentaram explicar que seria correto poder cercear o direito à dor; no caso, esse direito cristão de dar o último adeus ao corpo de um ser humano.

A impunidade e suas seqüelas colocaram em conflito o direito e a ética, o passado e o presente, a razão e a loucura, a verdade histórica e a verdade legal.

As soluções políticas a que se chegaram, na pretensa resolução de nosso passado recente, geraram, necessariamente, um enfraquecimento de fato de direitos humanos vertebrais.

O respeito à vida, diante das execuções extrajudiciais, os desaparecimentos forçados, a privação da liberdade por motivos políticos, e a tortura, direitos agredidos e agressores perdoados projetam no corpo social uma imagem debilitada e alquebrada do critério de justiça.

As anistias constituíram uma expressão de desproteção, com relação ao direito à vida das vítimas, quando ampliaram, “sine tempore”, a impunidade àqueles que cometeram delitos contra os direitos humanos de inocentes, sob o pretexto da repressão ao terrorismo.

O pesquisador Peter Haberle[8], a propósito desse tema, comenta o seguinte: “a justiça que transmite uma lei deve estar em compasso com os procedimentos específicos da democracia, aqui entendida como o conjunto de conflitos que ocorrem dentro de uma sociedade, em um determinado momento, e essa lei deve procurar centrar-se nos pontos de consenso a que se pode chegar”. Em outras palavras, o autor nos diz que a lei justa é, em termos definitivos, aquela que traduz pontos em acordo, aceitando a diversidade de opiniões de indivíduos e grupos, sem estigmatizá-los, nem excluí-los da resolução desse tema.

Por conseguinte, o compromisso que enfrentamos no século que se aproxima, será, precisamente, dirigido para que, nunca mais, os crimes de lesa humanidade sejam protegidos por leis internas.

Nesse sentido, deveríamos, a partir do hemisfério sul, lutar para que se consolide o esforço da comunidade internacional de se criar um tribunal penal internacional. Um tribunal penal que julgue condutas individuais, um órgão jurídico eficaz e forte, independente e imparcial, com capacidade para julgar e fazer justiça aos responsáveis por graves violações dos direitos humanos. Um tribunal que, ao redimir por direito, garanta reparação às vítimas e que, lutando contra a impunidade, isente o futuro da repetição das atrocidades do passado.

Em direção à cultura da solidariedade

O século que se aproxima deve nos encontrar com a sensibilidade aguçada para os valores básicos da paz social: a liberdade, a igualdade, a justiça, o pluralismo e a solidariedade. A partir desses princípios, será possível fomentar-se a cultura da diversidade, a qual implica no respeito ao direito de sermos diferenciados. A negação do próximo, índio, mestiço, negro, marginal urbano, preso, paciente de AIDS, incapacitado, imigrante ou mulher, conspira contra qualquer esforço democrático.

Há poucos dias atrás, durante a realização de um cabido aberto, convocado pela Intendência Municipal de Montevidéu, para celebrar o cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ouvi as palavras do presbítero Luis Pérez Aquirre, homem de incansável vocação pelos direitos humanos, cabendo por isso citá-las aqui, já que me parece que o próximo século também necessita ouvi-las, de preferência aos gritos:

“Olhando o futuro, a partir desta comemoração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, creio que teremos que continuar a ser um pouco insensatos para sermos eficazes na tarefa de estabelecer, dentro de nossas sociedades, o referencial ético dos direitos humanos. O que nos salva é que será sempre inútil apregoar-se e praticar-se o valor dos direitos humanos sendo desleais a eles: apregoar a tolerância, por exemplo, sendo intolerante...Será necessário envolver-se com a ação de tal maneira que signifique uma profunda mudança em nossos conceitos de realidade e de direitos humanos. Como isso implica uma boa dosagem de violência para se desalojar a velha axiologia, que se encontra profundamente enraizada no coração, o objetivo só será atingido por meio de um fenomenal ato de amor.

Lutar pela vigência da Declaração Universal será isso: tornar-se e converter a todos os demais em seres vulneráveis ao amor”.[9]



+ Traduzido por Paulo Fukuhara.

* Diretora de Cooperação e Relações Internacionais do Município de Montevidéu.

[1] “Encuesta Continua de Hogares. Modulo Raza. (Pesquisa Contínua de Localidades. Módulo Raça) 1998.

[2] “Magnitud de la Pobreza en America Latina. Proyecto RLA/86/004 (Magnitude da Pobreza na América Latina) - CEPAL/PNUD.”

[3] Parágrafo expositivo nº 3

[4] Eduardo Galeano. “El descubrimiento de América que todavia no fue y nuevos ensayos (O descobrimento da América que ainda não ocorreu, e novos ensaios) Pág. 10, Coleção Trópicos. Alfadil Ediciones, Caracas, 1991.

[5] Relatório 1992 - PNUD. Pág. 20 e 47.

[6] Partido Colorado no Governo e Partido Nacional, ou Branco.

[7] The New York Review, fevereiro de 1998

[8] Peter Haberle “El legislador en Derechos Humanos (O legislador em Direitos Humanos)”. Faculdade de Direito, Universidade Complutense. Madri, 1991, página 108.

[9] Presbítero Luis Pérez Aguirre. Pronunciamento sobre a Declaração Universal em seu 50º Aniversário. Cabido Aberto. Junta Departamental de Montevidéu. Intendência Municipal. 29 de julho de 1998.

 

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