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O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e seu Aperfeiçoamento no Limiar do Século XXI

Marco Antônio Diniz Brandão* & Benoni Belli**

Introdução

O objetivo principal deste artigo é apresentar, em suas linhas gerais, o funcionamento dos mecanismos de proteção dos direitos humanos erigidos sob a égide da Organização dos Estados Americanos (OEA) e suas perspectivas nos próximos anos. O ponto de partida será a descrição da evolução do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, buscando evidenciar a dinâmica que tem produzido o incremento da supervisão das obrigações contraídas pelos Estados membros da OEA. Em um segundo momento, passar-se-á à análise do funcionamento dos órgãos de supervisão do sistema, com ênfase na tramitação, no âmbito Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), de comunicações e petições individuais sobre casos de violações aos direitos consagrados nos instrumentos interamericanos. Finalmente, na conclusão, serão sumariadas as mudanças mais relevantes que estão sendo cogitadas com vistas ao aperfeiçoamento do sistema. A questão do diálogo do Brasil com os mecanismos de proteção perpassará todo o texto.

Antes de tratar da evolução do sistema interamericano, vale a pena recordar que a legitimidade da proteção internacional dos direitos humanos nem sempre foi ponto pacífico. Progressivamente foi-se consolidando a idéia de que os direitos humanos devem ser encarados como um ramo especial do direito internacional. Segundo o Professor, e Juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Antônio Augusto Cançado Trindade, o "Direito Internacional dos Direitos Humanos" constitui um “direito de proteção”, marcado por uma lógica própria, pois busca salvaguardar os direitos dos seres humanos e não dos Estados. O Direito Internacional dos Direitos Humanos não procura “(...) obter um equilíbrio abstrato entre as partes, mas remediar os efeitos do desequilíbrio e das disparidades na medida em que afetam os direitos humanos. Não se nutre das barganhas da reciprocidade, mas se inspira nas considerações de ordre public em defesa de interesses comuns superiores, da realização da justiça”[1]. É, nesse sentido, um instrumento para a proteção dos mais fracos em toda e qualquer circunstância. O Direito Internacional dos Direitos Humanos se insurge contra a visão estática tradicional, reconhecendo que o ser humano é sujeito tanto de direito interno quanto de direito internacional, dotado em ambos, como sublinha Cançado Trindade, de personalidade e capacidade jurídicas próprias.

Ainda hoje, malgrado os avanços alcançados, os mecanismos de proteção internacional dos direitos humanos são mal compreendidos em muitos círculos – jurídicos ou não –, onde se insiste em encarar a idéia mesma de direitos humanos internacionalmente protegidos e de capacidade processual internacional dos indivíduos como ameaças ou como fontes de intromissões indevidas nos assuntos internos dos Estados. Mas o que se deve recordar é que a própria ação estatal perde legitimidade se os direitos básicos da pessoa humana não servirem de baliza para as decisões tomadas em nome da coletividade. Mais do que argumentos lógicos e acadêmicos, o que está por trás da luta pela afirmação do Direito Internacional dos Direitos Humanos é a elevação do ser humano ao patamar de fonte última do exercício do poder estatal. Em vez de aderir a máximas tão amplamente aceitas do tipo “fins que justificam os meios”, que ainda povoam o universo conceptual dos estudiosos das relações internacionais e da ciência política, os direitos humanos enveredam por caminhos claramente distintos. A luta pelos direitos humanos permite conferir à busca da transformação social um sentido profundamente democrático, posto que o ser humano torna-se sujeito e beneficiário da mudança, enquanto ao Estado é negada a possibilidade de agir como se possuísse uma racionalidade própria e independente capaz de justificar o exercício desimpedido do poder.

A evolução do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos tem-se traduzido tanto na consolidação de uma base jurídica quanto no fortalecimento dos mecanismos criados para supervisionar o cumprimento das obrigações assumidas pelos Estados nesse contexto. Pode-se dizer que a evolução do sistema, apesar de não ter seguido um processo linear, refletiu a necessidade de conferir aos direitos humanos a especificidade acima referida, trazendo a pessoa humana para o centro das preocupações internacionais. No entanto, como não poderia deixar de ser, a aceitação do incremento das prerrogativas dos mecanismos de supervisão ocorreu lentamente, como resultado de um processo árduo de negociações. Também tiveram influência nesse processo as mudanças na conjuntura política mundial, especialmente o andamento do conflito Leste/Oeste, e as situações nacionais nos Estados membros da OEA.

Evolução legal e institucional do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos

A 9ª Conferência Interamericana, celebrada em Bogotá, de 30 de março a 2 de maio de 1948, além de ter levado à adoção da Carta da OEA, aprovou a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. Enquanto a Carta da OEA proclama, de modo genérico, que um dos deveres dos Estados membros é o de respeitar os direitos da pessoa humana, a Declaração Americana especifica quais são os direitos humanos fundamentais que devem ser observados e garantidos. Entre os direitos protegidos pela Declaração Americana, que antecedeu em 7 meses a adoção da Declaração Universal, destacam-se os seguintes: direito à vida, à liberdade, à segurança e à integridade da pessoa; direito de igualdade perante a lei; direito à liberdade religiosa e à liberdade de expressão e opinião; direito de sufrágio e de participação no Governo; direito de associação e de reunião; direito à proteção contra prisão arbitrária; direito à justiça.

A adoção da Declaração foi um passo importante da edificação do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, pois definiu um conjunto de direitos inalienáveis. A Declaração reconhece, logo no preâmbulo, que “os direitos essenciais do homem não derivam do fato de ser ele cidadão de determinado Estado, mas sim do fato dos direitos terem como base os atributos da pessoa humana”. No entanto, as declarações adotadas em foros multilaterais têm caráter de recomendação[2] e, apesar de constituírem importante esteio moral para a ação dos Estados, não vinculam juridicamente. Logo teve início um movimento para a elaboração de um tratado internacional que tivesse condições de conferir aos direitos enunciados na Declaração Americana uma base legal de que ainda careciam, de modo a criar, pela ratificação e adesão dos Estados, obrigações mais concretas e exigíveis no plano jurídico. Vários anos se sucederiam para que esse projeto se tornasse realidade.

A 5ª Reunião de Consultas dos Ministros de Relações Exteriores, realizada em Santiago do Chile de 12 a 18 de agosto de 1959 – ou seja, cerca de onze anos após a adoção da Declaração Americana – encarregou o Conselho Interamericano de Juristas de elaborar um projeto de Convenção sobre Direitos Humanos. A mesma reunião resolveu criar uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), inicialmente prevista para funcionar provisoriamente até a adoção da Convenção encomendada, e com a função de promover o respeito aos direitos humanos nos Estados membros da OEA. Como assinala Héctor Faúndez Ledesma, a Comissão teve, nos seus primeiros anos de existência, uma condição jurídica bastante frágil. De acordo com o estatuto aprovado pelo conselho da OEA em 1960, a CIDH foi concebida como entidade autônoma daquela organização, de caráter não convencional, cujo mandato se limitava estritamente a promover[3] o respeito aos direitos humanos consagrados na Declaração Americana, mas destituída de competências para assegurar sua proteção[4].

A II Conferência Interamericana Extraordinária, realizada no Rio de Janeiro em 1965, resolveu modificar o Estatuto da Comissão e ampliar suas funções e faculdades. A decisão emanada dessa reunião transformou a CIDH em verdadeiro órgão de controle, com autorização para receber e examinar petições individuais sobre alegadas violações de direitos humanos, dirigir-se aos Estados para solicitar informações e formular recomendações que se fizessem necessárias com vistas a garantir uma observância mais efetiva dos direitos humanos fundamentais. Em outras palavras, a função de proteção aos direitos humanos foi agregada à tradicional tarefa de promoção. No entanto, a CIDH contava ainda com base jurídica relativamente frágil, pois havia sido criada por resolução adotada em Reunião de Ministros. Alguns países começavam a questionar a obrigação real de dialogar, fornecer informações ou mesmo levar em conta as recomendações de uma Comissão cujo instrumento de criação não era dotado da força de obrigação jurídica.

Essa dificuldade foi superada em 1967, com o chamado “Protocolo de Buenos Aires”, que incorporou a CIDH à própria Carta da OEA. A Carta reformada entrou em vigor em 1970 e, em seu artigo 112, a principal função da CIDH é definida como a de “promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consultivo da Organização na matéria”. Além disso, expressa que “uma convenção interamericana sobre direitos humanos” deveria determinar “a estrutura, a competência e as normas de funcionamento da referida Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria”. Mas o mais importante está contido no novo artigo 51 introduzido pelo Protocolo de Buenos Aires, que conferiu à CIDH o status de órgão principal da OEA, transformando-a em parte da estrutura permanente da organização. A partir dessa mudança, qualquer tentativa de dissolução da CIDH teria de passar pela modificação da Carta da OEA. Outra conseqüência prática da nova condição da Comissão é o fato de que a colaboração com esse órgão deixou de ter o sentido de mera recomendação.

A CIDH continuou com a composição que possui até hoje: 7 membros, que devem ser pessoas de alta autoridade moral e de reconhecido saber em matéria de direitos humanos, eleitos a título pessoal para um mandato de 4 anos com a possibilidade de uma reeleição. Apesar de indicados pelos seus Estados de origem e eleitos em escrutínio secreto durante a Assembléia Geral da OEA, os membros da CIDH são peritos independentes. Suas decisões devem, em tese, basear-se no livre convencimento e obedecer aos imperativos da proteção dos direitos humanos. As funções da CIDH foram melhor definidas com a adoção, em 1969, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica). O Pacto de São José, porém, só entrou em vigor no ano de 1978, depois que o número mínimo de 11 ratificações foi atingido. A Convenção, ademais de dotar a CIDH de competências específicas, estabeleceu a Corte Interamericana de Direitos Humanos como um segundo órgão de controle.

A Convenção proporcionou a melhor definição dos direitos enunciados da Declaração Americana e vinculou juridicamente os Estados partes. A ênfase da Convenção é dada aos direitos civis e políticos (Capítulo II, artigos 3 a 25), enquanto os direitos econômicos, sociais e culturais foram objeto de um único artigo, que se limita a comprometer os Estados a adotar providências a fim de alcançar progressivamente tais direitos (artigo 26). A partir da entrada em vigor da Convenção, a CIDH passou a ter, segundo Ledesma, dualidade de funções: a) atribuições essencialmente políticas e diplomáticas para os Estados membros da OEA que não são partes da Convenção; b) para os Estados que são partes da Convenção, além das atribuições políticas e diplomáticas, a CIDH teria importantes funções de caráter “quase judicial”[5]. Na prática, porém, a CIDH tem dado tratamento análogo às comunicações individuais recebidas sobre Estados partes e não partes da Convenção, com a diferença de que o procedimento aplicado aos Estados partes abre a possibilidade de remissão de casos à Corte e prevê um mecanismo de conciliação, conhecido pelo nome de solução amistosa[6].

De acordo com a Convenção, o reconhecimento pelos Estados partes da competência da CIDH para consideração de queixas individuais é obrigatório. No que tange à Corte Interamericana de Direitos Humanos, foram previstas as competências consultiva e contenciosa. Todos Estados membros da OEA e órgãos da organização podem solicitar pareceres da Corte, as chamadas “opiniões consultivas”, sobre interpretação da Convenção Americana e outros tratados de direitos humanos. A competência contenciosa, por sua vez, somente é aplicável aos Estados partes da Convenção que fizeram a declaração facultativa prevista no artigo 62. O parágrafo 1º deste artigo reza o seguinte: “Todo Estado Parte pode, no momento do depósito de seu instrumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial, a competência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção”. A Corte é composta de 7 juízes eleitos para um período de 6 anos com a possibilidade de uma reeleição[7].

O Brasil aderiu ao Pacto de São José em setembro de 1992. A Mensagem Presidencial que submeteu o texto do Pacto à aprovação do Congresso (Mensagem nº 621, de 28/11/85) referia-se nos seguintes termos às cláusulas facultativas: “No tocante às cláusulas facultativas contempladas no parágrafo 1º do Artigo 45 – referente à competência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) para examinar queixas apresentadas por outros Estados sobre o não cumprimento das obrigações – e no parágrafo 1º do Artigo 62 – relativo à jurisdição obrigatória da Corte – não é recomendável, na presente etapa, a adesão do Brasil”. A jurisdição obrigatória da Corte é reconhecida atualmente por Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela. Cumpre assinalar que Canadá e EUA sequer são partes da Convenção, enquanto apenas sete Estados partes não reconhecem a competência contenciosa da Corte (Barbados, Brasil, Grenada, Haiti, Jamaica, México e República Dominicana)[8], sendo que o México anunciou que deverá reconhecê-la ainda em 1998.

É importante ter presente que a Convenção Americana representou o coroamento de um processo de codificação dos direitos humanos iniciado com a Declaração de 1948, mas foi além da simples definição dos direitos substantivos. Estabeleceu também dispositivos voltados para o controle das obrigações assumidas, as quais passaram a vincular juridicamente os Estados partes. Outros instrumentos posteriores foram adotados para complementar o arcabouço jurídico do sistema interamericano de direitos humanos. A exemplo do ocorrido no sistema da ONU[9], sentiu-se a necessidade de proteger setores mais vulneráveis da sociedade, conferir tratamento específico a determinadas violações particularmente graves e de maior incidência, e preencher a lacuna em relação aos direitos econômicos, sociais e culturais. Em 1988, a Assembléia Geral da OEA adotou o “Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (Protocolo de São Salvador), ratificado pelo Brasil em 1996[10].

O sistema interamericano de direitos humanos compõe-se ainda dos seguintes instrumentos: a) Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, adotada em 1985 e ratificada pelo Brasil em 1989; b) Protocolo Adicional à Convenção Americana de Direitos Humanos relativo à Abolição da Pena de Morte, adotado em 1990 e ratificado pelo Brasil em 1996; c) Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), adotada em 1994 e ratificada pelo Brasil em 1995; d) Convenção Interamericana sobre Desaparecimento Forçado de Pessoas, adotada em 1994 e atualmente sob exame no Congresso Nacional. Dos instrumentos adotados no âmbito do sistema interamericano, apenas o Protocolo de São Salvador ainda não se encontra em vigor, em razão de não ter atingido o número mínimo de 11 ratificações e/ou adesões. Apesar de 17 países terem assinado, até o presente momento apenas nove depositaram os respectivos instrumentos de ratificação e adesão[11].

A evolução legal e institucional do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos não foi apenas decorrência lógica do objetivo geral proclamado na Carta da OEA em relação à observância dos direitos humanos fundamentais. Outros fatores foram tão ou mais determinantes na adoção dos instrumentos jurídicos e no processo que levou à ampliação do mandato da CIDH. Seria impensável que durante os anos 70, no momento em que a região era caracterizada pela existência de regimes autoritários de diversos matizes, fosse adotada uma convenção sobre desaparecimento forçado de pessoas. Do mesmo modo, a relativamente lenta ampliação do mandato da CIDH pode ser atribuída à oposição de regimes autoritários à idéia de ter a situação interna examinada por órgão independente de peritos[12]. A conjuntura internacional da Guerra Fria, por seu turno, ajudou a minimizar a importância da proteção dos direitos humanos diante do objetivo estratégico da contenção do comunismo. O fim da Guerra fria e a democratização dos países latino-americanos prepararam o terreno para avanços importantes no campo dos direitos humanos, não apenas porque foram estabelecidas novas obrigações internacionais, mas sobretudo em função da cooperação e do diálogo que passou a caracterizar o relacionamento dos Governos com os órgãos de supervisão do sistema.

Tanto a adesão do Brasil aos principais tratados de direitos humanos quanto a disposição política para dialogar com os mecanismos de supervisão das obrigações convencionais foram resultado do processo de democratização do país. A resistência ao regime autoritário galvanizou uma opinião pública e um importante leque de forças políticas para a causa dos direitos humanos. Nesse sentido, a Constituição de 1988, após proclamar que o Brasil se rege em suas relações internacionais pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (art. 4º, inciso II), constituindo-se em Estado Democrático de Direito e tendo como fundamento, inter alia, a dignidade da pessoa humana (art. 1°, inciso III), estabelece que os direitos e garantias nela expressos não excluem outros decorrentes dos regimes e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que o Brasil seja parte (art. 5º, inciso II). E acrescenta que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata (art. 5º, inciso I).

Este processo iniciado nos anos 80 e consolidado nos 90 tem contribuído para que se torne muitas vezes difícil distinguir entre as dimensões interna e externa dos compromissos assumidos em matéria de direitos humanos. Com efeito, as posições defendidas pelo Brasil nos foros multilaterais e as obrigações que assumimos com a adesão a tratados apenas refletem a realidade nacional, constituindo espelho das obrigações e compromissos assumidos internamente. São, na realidade, expressão de uma comunidade nacional que quer ver consagrados na prática os direitos fundamentais da pessoa humana e utiliza os instrumentos internacionais como importante complemento dos esforços que são primordialmente nacionais, do Estado e da sociedade brasileira.

Funcionamento dos órgãos de supervisão do sistema

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)

Conforme ensina Cançado Trindade, os órgãos de supervisão dos tratados de direitos humanos têm seguido três métodos ou sistemas de implementação: mecanismos de petições, de relatórios e de determinação de fatos ou investigações[13]. No caso da CIDH, os três métodos são utilizados. Muitas vezes os relatórios são resultado de visitas ou observações in loco efetuadas pela Comissão. Até 1977 a Comissão atuou sem regras definidas para visitas in loco, mas naquele ano foi elaborado regulamento como parte da preparação para visita ao Panamá. No essencial, o regulamento permitia que os membros da Comissão visitassem qualquer lugar no país da forma que considerassem mais adequada, coletassem material e provas, e tivessem a liberdade para manter os contatos que escolhessem livremente.

O regulamento atualmente em vigor praticamente reproduz as regras estabelecidas em 1977. A título de exemplo, vale recordar que, em dezembro de 1995, a CIDH realizou, a convite do Governo federal, visita ao Brasil com vistas a observar a situação dos direitos humanos no país. Na oportunidade, a Comissão recebeu apoio do Governo para efetuar sua missão, que incluiu contatos com entidades da sociedade civil, personalidades do mundo acadêmico, político e religioso, além de autoridades em todos os níveis da administração pública. Com base nas informações colhidas durante a visita e nos esclarecimentos prestados pelo Governo brasileiro, a CIDH elaborou relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil – publicado em outubro de 1997 –, que identifica obstáculos à realização dos direitos consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José), reconhece o empenho do Governo para superá-los e formula recomendações.

A realização da visita, a primeira realizada pela Comissão ao país, e a publicação do relatório são evidências do aprofundamento da cooperação do Brasil com o sistema interamericano de proteção e promoção dos direitos humanos. O relatório dedica amplo espaço às políticas de direitos humanos do Governo federal, reconhecendo “a sincera vontade política do Governo do Brasil de incorporar em sua agenda política o tema dos direitos humanos, dando-lhe prioridade”. A CIDH recorda que a implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH) começa a mostrar resultados e melhorias em alguns indicadores. Reconhece também que suas recomendações coincidem com as metas do PNDH. Entretanto, o relatório não se furta – como é de praxe em informes desse tipo – a descrever vários exemplos de violações graves dos direitos humanos e chamar atenção para a necessidade de medidas eficazes e urgentes[14]. As visitas in loco podem ser solicitadas por diversos motivos, inclusive para averiguar situações específicas relacionadas à tramitação de uma petição individual. Esse não foi o caso da visita realizada ao Brasil, que teve um objetivo mais geral de elaboração de uma espécie de retrato da situação brasileira em matéria de direitos humanos. Os casos específicos citados nos relatórios gerais servem apenas para ilustrar a incidência deste ou daquele problema em determinadas regiões ou no seio de determinados setores da população.

A CIDH tem adotado a prática de incluir em seu relatório anual à Assembléia Geral da OEA um outro tipo de relatório sobre determinados países cuja situação interna é considerada particularmente grave. Os critérios estabelecidos pela CIDH para que um país seja objeto desse tipo de relatório são os seguintes: 1) Estados em que os Governos não tenham chegado ao poder mediante eleições populares, pelo voto secreto, genuíno, periódico e livre, segundo as normas e princípios internacionalmente aceitos; 2) Estados onde o livre exercício dos direitos consignados na Declaração Americana ou na Convenção Americana tenham sido suspensos de fato em virtude de medidas de exceção, tais como estado de sítio ou de emergência; 3) Estado que comete violações sistemáticas e graves dos direitos humanos garantidos na Convenção Americana, na Declaração Americana e nos demais instrumentos de direitos humanos aplicáveis; 4) Estados que se encontrem em processo de transição em relação às situações anteriores; 5) Estados que enfrentam situações conjunturais ou estruturais que afetam gravemente o exercício de direitos fundamentais consagrados na Convenção e na Declaração Americana.

Grande parte do trabalho da CIDH consiste na tramitação de petições sobre denúncias de violações dos direitos consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos ou na Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. A tramitação segue um modelo quase judicial, contemplando réplicas, tréplicas e audiências. Caso não seja possível alcançar uma solução amigável, e terminada a tramitação regulamentar, o caso é encerrado e inicia-se a fase de elaboração do relatório, que poderá declarar o Estado responsável por violações de direitos humanos no que tange ao caso específico examinado. De acordo com a Convenção Americana e o regulamento da CIDH, o peticionário pode ser qualquer pessoa, grupo de pessoas ou entidade não-governamental reconhecida em um dos Estados membros da OEA, não havendo a necessidade de obter o assentimento da vítima ou de seus familiares. A vítima, porém, deve ter estado sujeita à jurisdição do Estado contra o qual se apresenta a denúncia no momento da alegada violação. Os direitos protegidos são os definidos na Declaração Americana, no caso dos Estados que não são partes da Convenção, e os direitos estabelecidos tanto na Declaração quanto na Convenção, no caso dos Estados partes do Pacto de São José.

São as ações e omissões dos agentes do Estado que podem gerar a responsabilidade internacional e justificar o pronunciamento de um órgão de supervisão. Como ressalta Mónica Pinto: “(...) todo menoscabo a los derechos humanos que pueda ser atribuido, según las reglas del derecho internacional, a la acción u omisión de cualquier autoridad pública, constituye un hecho imputable al estado que compromete su responsabilidad internacional en los términos del derecho internacional de los derechos humanos”[15]. A responsabilidade do Estado pode ainda ser invocada no caso de atos de grupos aparentemente civis quando há evidências de vínculos com as autoridades ou de tolerância do Estado.

Nesse sentido, a jurisprudência interamericana tem dado a seguinte interpretação ao artigo 2 da Convenção (“Dever de adotar disposições do direito interno”): “La segunda obligación de los Estados Partes es de ‘garantizar’ el libre y pleno ejercicio de los derechos reconocidos en la Convención a toda persona sujeta a su jurisdicción. Esta obligación implica el deber de los Estados Partes de organizar todo el aparato gubernamental y, en general, todas las estructuras a través de las cuales se manifesta el ejercicio de los derechos humanos. Como consecuencia de esta obligación los Estados deben prevenir, investigar y sancionar toda violación de los derechos reconocidos por la Convención y procurar, además, el restablecimiento (...) del derecho conculcado y (...) la reparación de los daños producidos (...)”[16].

A petição possui requisitos formais e outros que requerem uma análise mais detida por parte da CIDH. Os requisitos meramente formais são os seguintes: deve, em geral, ser apresentada por escrito; deve conter um relato dos fatos e, se possível, o nome das vítimas assim como de qualquer autoridade pública que tenha tomado conhecimento da situação; deve indicar o Estado que o peticionário considera responsável pela violação. Os requisitos, ou condições de admissibilidade, que exigem análise mais cuidadosa são: esgotamento dos recursos de jurisdição interna; petição deve ser apresentada no prazo de seis meses a partir da notificação da decisão definitiva de jurisdição interna; a matéria da petição não deve estar pendente de outro procedimento internacional. A razão de ser do requisito do prévio esgotamento dos recursos internos, segundo a Corte Interamericana, é de dispensar o Estado de responder ante um órgão internacional por atos a ele imputados sem que tenha tido oportunidade de remediá-los pelos próprios meios. No entanto, para aplicação desse requisito, é necessária não só a existência formal de recursos internos, mas também que eles sejam adequados e eficazes. A regra do esgotamento é desconsiderada quando ocorre uma das três exceções previstas no artigo 46. 2 da Convenção e no artigo 37. 2 do regulamento da CIDH: a) inexistência do devido processo legal para a proteção dos direitos que se alegue tenham sido violados; b) quando o prejudicado foi impedido de ter acesso aos recursos da jurisdição interna ou foi impedido de esgotá-los; c) quando há demora injustificada na prestação jurisdicional.

A Comissão deverá declarar a inadmissibilidade da petição na falta dos requisitos prévios citados ou quando: a) o peticionário não expuser fatos que caracterizem violação dos direitos garantidos na Convenção Americana ou na Declaração Americana; b) a petição for manifestamente infundada ou improcedente, segundo se verifique da exposição do próprio peticionário ou do Estado. Esses dois requisitos deveriam evitar o que se poderia chamar de “banalização” do mecanismo de queixas, ou seja, a utilização do sistema de modo espúrio, seja para alcançar vantagens pessoais, seja para tentar “rever” decisões internas que, apesar de observarem as leis vigentes e as garantias do devido processo, levam a um resultado desfavorável para o peticionário.

A Comissão já estabeleceu uma jurisprudência para evitar sua utilização como uma espécie de “quarta instância” de apelação das decisões tomadas por tribunais nacionais: “A Comissão é competente para declarar admissível uma petição e dispor sobre seu funcionamento quando esta se refere a uma sentença judicial nacional que foi proferida à margem do devido processo, ou que aparentemente viola outro direito garantido pela Convenção. Se, em contrapartida, se limita a afirmar que a decisão foi equivocada ou injusta em si mesma, a petição deve ser rechaçada conforme a fórmula acima exposta. A função da Comissão consiste em garantir a observância das obrigações assumidas pelos Estados partes da Convenção, mas que não pode fazer-se de tribunal de alçada para examinar supostos erros de direito ou de fato que possam ter cometido os tribunais nacionais que tenham atuado dentro dos limites de sua competência”[17].

Quanto à tramitação propriamente dita, o objetivo é favorecer o “contraditório” entre as partes. Depois de recebida uma comunicação sobre alegada violação dos direitos humanos, o Estado denunciado recebe, por intermédio da CIDH, cópia da petição inicial e dos documentos apresentados com a solicitação de que preste informações sobre o caso no prazo de 90 dias. O Estado poderá pedir até três prorrogações de 30 dias depois de vencido o prazo inicialmente estabelecido. Em uma segunda etapa, as informações fornecidas pelo Estado são transmitidas ao peticionário, que recebe, por sua vez, um prazo de 30 dias para apresentar suas observações e provas em contrário. Essas observações, uma vez recebidas pela Comissão, são enviadas ao Estado para que apresente no prazo de 30 dias suas alegações finais. Caso não seja possível alcançar uma solução amistosa, e terminada a tramitação descrita, o caso é encerrado e inicia-se a fase de elaboração do relatório.

O relatório sobre um caso específico é baseado na documentação e nas alegações das partes, bem como em informações colhidas em eventuais visitas in loco e em audiências realizadas na sede da Comissão. O relatório contém, em geral, um resumo dos fatos, dos argumentos das partes e da tramitação da petição, uma parte relativa às conclusões da Comissão sobre violação ou não de dispositivos da Convenção Americana e da Declaração, e um capítulo dedicado às recomendações para remediar a situação e/ou compensar os danos causados. O relatório sempre é enviado ao Estado interessado, que possui um prazo de três meses para apresentar seus comentários e eventuais informações sobre o cumprimento das recomendações da Comissão. Se no prazo de três meses a Comissão julgar que o caso não foi solucionado, um segundo relatório é elaborado com vistas à apresentação das recomendações finais e o estabelecimento de um prazo para que o Governo tome as medidas necessárias. Transcorrido o prazo fixado nesta última etapa, a Comissão decide se o Estado tomou ou não as medidas adequadas e se publica ou não o relatório. A publicação do relatório[18] sobre o caso poderá ser feita mediante sua inclusão no relatório anual da CIDH à Assembléia Geral da OEA, como tem sido a prática, ou por qualquer outra forma que a Comissão julgar apropriada.

Como já foi mencionado, o sistema prevê a possibilidade de solução amistosa, capaz de encerrar o caso sem que para isso seja necessária a publicação de um relatório. A qualquer momento da tramitação de um caso a CIDH poderá colocar-se à disposição das partes para alcançar uma solução em comum acordo. Os acordos de solução amistosa envolvem pagamento, pelo Estado, de indenizações às vítimas e familiares, assim como outros compromissos relacionados a medidas administrativas, legais ou de outra natureza. Com a solução amistosa, evita-se que a CIDH declare a responsabilidade internacional do Estado por violação de direitos humanos. Em contrapartida, o Estado aceita motu proprio sua responsabilidade e garante reparação mais rápida dos danos causados. A solução amistosa enseja a elaboração de um relatório curto em que são apresentados sumariamente os fatos e o acordo alcançado pelas partes. Em muitos casos o acordo envolve a criação de algum tipo de mecanismo de seguimento, encarregado de velar pelo fiel cumprimento dos compromissos assumidos.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos

Para os Estados que reconhecem a competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o caso pode ser elevado à consideração daquele tribunal sediado em São José da Costa Rica. Somente em 1986 os primeiros casos – relativos a desaparecimentos forçados em Honduras – foram submetidos à Corte. A Corte assinalou, em opinião consultiva de 13 de junho de 1993, que a decisão de submeter um caso à sua consideração deve apoiar-se na alternativa que seja mais favorável para a tutela dos direitos estabelecidos na Convenção (princípio pro homine). Outro requisito para remissão de casos à Corte é o esgotamento da tramitação na Comissão, ou seja, a CIDH deve ter tido a oportunidade de redigir o relatório previsto no artigo 50 da Convenção Americana. Vale observar que, diferentemente do que ocorre na CIDH – onde há acesso direto dos indivíduos, apenas os Estados e a própria Comissão podem elevar um caso ao conhecimento da Corte. A Corte Interamericana de Direitos Humanos reproduz o processo de produção de provas e realização de audiências que também ocorre na CIDH, com a diferença de que as partes do processo passam a ser, de um lado, o Estado e, de outro, a CIDH. Os peticionários passaram recentemente a ter uma pequena participação, limitada à fase de liquidação de sentenças para determinação do montante das indenizações.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, tal como a européia, que lhe serviu de inspiração e modelo, não é um tribunal penal e não substitui as ações penais relativas às violações cometidas nos Estados. A Corte apenas julga se o Estado é ou não responsável por violações à Convenção Americana de Direitos Humanos. Quando o Estado é considerado responsável, a conseqüência é a obrigação de fazer cessar a violação e indenizar a vítima ou seus herdeiros legais. As sentenças da Corte traduzem-se, portanto, em obrigação do Estado de pagar indenizações pecuniárias às vítimas ou seus familiares, enquanto as petições que tramitam no âmbito da CIDH podem resultar, no máximo, na publicação de um relatório em que se declara a responsabilidade internacional do Estado. A solução amistosa tem um resultado análogo às sentenças da Corte: o pagamento de indenizações e outras medidas, conforme explicado acima. No entanto, diferentemente do resultado de uma solução amistosa, as sentenças não são produto de uma negociação entre Estado e peticionários, mas simplesmente produto do livre convencimento dos juízes que prolatam a decisão. Ainda que o relatório da CIDH contenha uma série de recomendações dirigidas ao Estado, apenas as sentenças da Corte são obrigatórias.

Alguns estudiosos acreditam que as decisões da Corte têm força de título executivo no direito interno. Essa é a posição da Drª Flávia Piovesan: “A decisão da Corte tem força jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento. Se a Corte fixar uma compensação à vítima, a decisão valerá como título executivo, em conformidade com os procedimentos internos relativos à execução de sentença desfavorável ao Estado”[19]. Não há no sistema, porém, um mecanismo especial encarregado de verificar a execução das sentenças da Corte análogo ao Conselho de Ministros do sistema europeu. No sistema interamericano, o próprio Tribunal de São José tem acompanhado a execução de suas sentenças e, até o presente momento, não há notícias de que os Estados tenham desconsiderado as decisões da Corte, as quais se obrigaram a cumprir a partir do momento em que reconheceram a competência contenciosa daquele Tribunal.

O Brasil, embora até o momento em que foi redigido este trabalho não tenha feito a declaração facultativa de reconhecimento da competência contenciosa da Corte, tem aprofundado nos últimos anos sua inserção no sistema interamericano de direitos humanos. A adesão à Convenção Americana em 1992, na esteira do processo de democratização, constituiu passo importante em termos de obrigações substantivas para o Estado brasileiro. Além disso, houve um incremento significativo de casos relativos ao Brasil que passaram a ser tratados pela CIDH, muito provavelmente em função da ampliação da liberdade e da superação do autoritarismo, que criaram um ambiente interno propício à atuação das organizações de defesa dos direitos humanos. Com efeito, ONGs como o Centro Santos Dias de Direitos Humanos, a “Human Rights Watch/Americas” e o CEJIL ("Center for Justice and International Law”) passaram a apresentar número crescente de petições sobre alegadas violações dos direitos humanos em território nacional. Em contraste com o período autoritário, em que as solicitações de órgãos internacionais de direitos humanos recebiam respostas lacônicas, o Governo brasileiro tem procurado obter informações pormenorizadas e dialogar como a CIDH, tendo em vista o reconhecimento do princípio da legitimidade da preocupação internacional com os direitos humanos em qualquer país e as obrigações jurídicas decorrentes da Convenção Americana.

A questão do reconhecimento pelo Brasil da jurisdição obrigatória da Corte deve ser vista, portanto, de uma perspectiva dinâmica, já que o próprio Programa Nacional de Direitos Humanos, lançado pelo Governo federal em maio de 1996, prevê como uma de suas metas o estreitamento da cooperação com a CIDH, com a Corte e com o Instituto Interamericano de Direitos Humanos. Além disso, entidades e importantes personalidades do mundo jurídico, político, acadêmico e religioso vêm fazendo campanha para que o Brasil aceite a jurisdição da Corte. O principal argumento para que o Brasil reconheça a competência contenciosa da Corte segue a seguinte linha de raciocínio: não faz sentido aceitar as obrigações substantivas e evitar a plena inserção nos mecanismos capazes de monitorar o cumprimento de tais obrigações. Além disso, poder-se-ia agregar outros argumentos, como o de que a Corte é um mecanismo mais avançado para a proteção dos direitos humanos, baseando suas decisões em um arrazoado calcado no Direito, o que garante um grau mais elevado de isenção e segurança jurídica às partes. Do ponto de vista da política externa, a aceitação da jurisdição obrigatória da Corte seria condizente com a linha de atuação do Brasil nos foros multilaterais e com o interesse brasileiro em assumir responsabilidades crescentes no cenário internacional. Não parece temerário afirmar que tal gesto provavelmente já se inscreve em um horizonte de curto prazo.



* Diplomata, Diretor Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores.

** Diplomata, Assistente do Diretor Geral do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais do Ministério das Relações Exteriores.

[1] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos (Volume I). Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. Pág. 26.

[2] Essa observação é válida sobretudo para a época em questão (1948). Atualmente a jurisprudência de tribunais internacionais consagrou a interpretação de que alguns direitos garantidos na Declaração Universal, e também consagrados da Declaração Americana, passaram a integrar o direito consuetudinário e portanto são oponíveis erga omnes.

[3] Enquanto a proteção de direitos refere-se a mecanismos capazes de punir e coibir violações, geralmente pela via legal ou por meio de políticas adotadas para remediar determinadas situações, a chamada promoção atua na construção dos pressupostos que podem gerar um nível mais elevado de respeito e procura criar o ambiente necessário ao pleno exercício dos direitos humanos.

[4] Ver: LEDESMA, Héctor Faúndez. El Sistema Interamericano de Protección de los Derechos Humanos: Aspectos Institucionales y Procesales. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1996. Capítulo 1.

[5] Ver: LEDESMA, Héctor Faúndez. Op. cit. Capítulo I.

[6] Sobre solução amistosa, ver seção III deste artigo.

[7] Na Assembléia Geral da OEA realizada em junho de 1997 na cidade de Lima, o Deputado Federal Hélio Bicudo foi eleito membro da CIDH para o período compreendido entre 1º de janeiro de 1998 e 31 de dezembro de 2001. O Professor Antônio Augusto Cançado Trindade foi eleito juiz da Corte Interamericana na Assembléia Geral ocorrida na cidade de Belém do Pará, em 1994, para o mandato com início em 1º de janeiro de 1995 e término no dia 31 de dezembro de 2000.

[8] O funcionamento da Comissão e da Corte, assim como as implicações de um reconhecimento pelo Brasil da jurisdição obrigatória da Corte serão discutidos na próxima seção.

[9] Para uma comparação entre os sistema da ONU e os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, ver: LINDGREN ALVES, José Augusto. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo: Perspectiva, 1994. Capítulo 5 (“As naturezas distintas do sistema universal e dos sistemas regionais”).

[10] O artigo 19 do Protocolo prevê a obrigação dos Estados partes de apresentar relatórios periódicos sobre as medidas tomadas para assegurar o exercício dos direitos protegidos. Tais relatórios serão examinados pelo Conselho Interamericano Econômico e Social e pelo Conselho Interamericano de Educação, Ciência e Cultura. A CIDH poderá receber petições referentes a denúncias de violações da alínea “a” do artigo 8 (direito de organizar sindicatos) e artigo 13 (direito à educação).

[11] Ver relatório anual da CIDH à XXVIII Assembléia Geral da OEA (Documento OEA/Ser. G/CP/doc. 3036/98, de 13 de abril de 1998). P. 1107.

[12] De acordo com Tom Farer, o Governo militar argentino foi o responsável pela mudança ocorrida em 1980 no que tange ao tratamento dado pela Assembléia Geral da OEA a relatórios sobre países apresentados pela CIDH. A prática até então seguida era a adoção, para cada país alvo de relatório da Comissão, de resolução específica que solicitava aos respectivos Governos que colocassem em prática as recomendações da CIDH. A partir da Assembléia de 1980, uma única resolução genérica passou a ser adotada. A nova fórmula encontrada deixava de nomear os países que eram alvos dos relatórios, passando a solicitar que todos os países mencionados em relatórios específicos cooperassem com a Comissão. Ver: FARER, Tom. The Rise of the Inter-American Human Rights Regime: No Longer a Unicorn, Not Yet an Ox. Human Rights Quarterly, 19(3):510-46, August, 1997. P. 540.

[13] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Op. cit. Capítulo II (“O Direitos Internacional dos Direitos Humanos: Consolidação e Fase de Implementação”).

[14] O relatório sobre o Brasil está contido no documento “OEA/Ser. L/V/II. 97 Doc. 29 rev. 1”.

[15] PINTO, Mónica. La Denuncia ante la Comisión Interamericana de Derechos Humanos. Buenos Aires: Editores del Puerto, 1993. P. 39.

[16] Caso Godínez Cruz, sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 20 de janeiro de 1989. Parágrafo 175.

[17] Informe da CIDH nº 39/96, de 15 de outubro de 1996, relativo ao caso 11. 673 (Santiago Marzoni – Argentina). Apud: CEJIL. Manual sobre o uso do Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. P. 32.

[18] Cabe notar que a tramitação de um caso é confidencial em todas suas fases. Somente a publicação do relatório final, por decisão da CIDH, rompe com a confidencialidade e, para muitos, constitui em si mesma sanção moral contra os Estados.

[19] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. P. 237.

Antes de finalizar esta seção, é importante esclarecer um aspecto que gera muitas confusões. Quando se fala em responder internacionalmente pelas violações cometidas em território brasileiro, o que está em jogo não é apenas o julgamento da vontade política do Executivo federal, mas a responsabilidade jurídica internacional do Estado. O fato da União – como a pessoa jurídica de direito internacional público – representar o Estado brasileiro no cenário internacional não pode obscurecer a natureza da obrigação jurídica, que engaja todos os poderes do Estado e todos os níveis da administração pública (federal, estadual e municipal). O esforço de cumprimento das obrigações contraídas no âmbito internacional é, portanto, um esforço nacional, que envolve necessariamente parceria entre o poder público e a sociedade civil[1]. É forçoso reconhecer que a aplicação das normas de proteção dos direitos humanos não depende apenas de um raciocínio silogístico simples, capaz de subsumir um fato particular a uma lei geral. A aplicação das normas de direitos humanos possui uma dimensão que transcende as fronteiras da lógica jurídica, dependendo também – e, talvez, principalmente - de condições propícias no campo societário. Seria de pouca valia consagrar uma ampla carta de direitos nas legislações nacionais ou em tratados internacionais e, além disso, solicitar aos tribunais que apliquem as normas vigentes, se a organização social ou a cultura prevalecente impedissem a eficácia concreta dos direitos abstratamente assegurados. É preciso transformar estruturas longamente sedimentadas, o que requer a parceria constante de todos os atores sociais na realização de projetos capazes de conferir tangibilidade aos direitos enunciados nos instrumentos jurídicos.

Conclusão: aperfeiçoamento do sistema interamericano

O tema do aperfeiçoamento do sistema interamericano de direitos humanos tem ocupado lugar de destaque nas preocupações de estudiosos do assunto. Em artigo publicado em 1996, Fabián Omar Salvioli[2] faz um balanço e identifica os aspectos do sistema interamericano de direitos humanos que mereceriam ser mantidos e aqueles que necessitariam sofrer modificações. Segundo o autor, o primeiro aspecto a ser mantido é o próprio sistema, que correria riscos em função de seu bom funcionamento, ou seja, sempre haveria a possibilidade de que determinados Estados procurassem esvaziar o sistema para evitar condenações por violações de direitos humanos. Quanto aos outros aspectos a manter, o autor menciona os seguintes: as atuais faculdades da CIDH, o valor jurídico da Declaração Americana sobre Direitos e Deveres do Homem, o acesso ao sistema interamericano, a uniformidade dos órgãos e procedimentos de proteção, as opiniões consultivas da Corte Interamericana de Direitos Humanos, e as medidas cautelares.

Quanto às faculdades da CIDH, o autor ressalta a importância de garantir suas atividades de proteção e seu status de órgão principal da OEA, mantendo prerrogativas como a elaboração de relatórios sobre países e a possibilidade de realizar visitas in loco para avaliar situações. O trabalho da CIDH, que compreende as violações ocorridas em todos os países membros da OEA, dependeria da manutenção da obrigatoriedade da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. Trata-se do único instrumento que vincula os Estados que não ratificaram nenhum tratado de direitos humanos no âmbito da OEA. Outra característica que o autor considera importante preservar é o grau de acesso ao sistema de proteção por intermédio de petições dirigidas à CIDH. Enquanto no sistema europeu o peticionário precisa ser a vítima ou seu representante, no marco da OEA qualquer pessoa, grupo de pessoas ou ONG legalmente reconhecida pode apresentar petições individuais sobre casos de violações. Além disso, diferentemente do que ocorre no sistema da ONU, a existência de órgãos centrais uniformizaria os procedimentos e impediria a duplicação de esforços, contribuindo para uma maior eficácia dos mecanismos de proteção. A jurisprudência formada pelas opiniões consultivas da Corte, por sua vez, teriam possibilitado uma interpretação segura dos instrumentos de direitos humanos da OEA, o que para Salvioli contribuiria para o fortalecimento da segurança jurídica do sistema. O último aspecto que o autor considera fundamental ser mantido, e se possível reforçado, são as chamadas medidas cautelares para proteger indivíduos que enfrentam perigo iminente de terem seus direitos violados.

Os aspectos que estariam a exigir mudanças urgentes também receberam a atenção de Salvioli. O primeiro deles é o problema de que importantes países da região ainda não ratificaram a Convenção Americana de Direitos Humanos, como é o caso dos Estados Unidos e do Canadá. Outro defeito do sistema, segundo o autor, é que a vítima de violações não tem acesso direto à Corte Interamericana, a qual só analisa casos trazidos à consideração pelos Estados e pela CIDH. O terceiro aspecto a melhorar diz respeito ao papel das ONGs, cuja participação tem lugar sem que haja uma atribuição de status consultivo[3]. Ainda de acordo com o autor, também mereceria ser modificado o papel da Assembléia Geral da OEA, que desde 1980 não condena países específicos, limitando-se a fazer referências gerais à existência de violações na região. Para Salvioli, uma maior visibilidade das questões de direitos humanos na Assembléia Geral deveria ser acompanhada de outra mudança fundamental no sentido de conferir à CIDH e à Corte os meios materiais, técnicos e econômicos para realizar a contento seu trabalho. A última recomendação do autor refere-se à necessidade de ampliar a proteção dos direitos econômicos, sociais e culturais, a partir da ratificação do Protocolo de São Salvador.

O debate sobre a eventual reforma do sistema não tem permanecido restrito às reflexões acadêmicas. A I Cúpula das Américas (1994) recomendou o fortalecimento do sistema interamericano de promoção e proteção dos direitos humanos, à luz das novas circunstâncias de democracia em que vive o continente. Como conseqüência dessa decisão, a 26ª Assembléia-Geral da OEA (1996) encarregou o Conselho Permanente da organização de fazer uma avaliação do funcionamento do sistema com vistas a iniciar um processo que permita seu aperfeiçoamento, incluindo a possibilidade de reforma dos instrumentos jurídicos correspondentes e dos métodos e procedimentos de trabalho da CIDH. Nesse contexto, foram dados os seguintes passos: a) realização de um seminário sobre "O Sistema Interamericano de Promoção e Proteção dos Direitos Humanos" (Washington, 2-4 dezembro 1996), sob os auspícios da CIDH; b) apresentação ao Conselho Permanente do documento de trabalho, de iniciativa do Secretário Geral da OEA, "Uma Nova Visão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos"; c) realização de uma Sessão Especial da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos (abril de 1997), convocada pelo Conselho Permanente, sobre a Avaliação e o Aperfeiçoamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos com a Participação de Peritos Governamentais.

A 27ª Assembléia-Geral da OEA tomou nota dos resultados do seminário, do documento elaborado pelo Secretário Geral da OEA e das conclusões da Sessão Especial de peritos, e encarregou o Conselho Permanente de, por intermédio da Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos, prosseguir na consideração do aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção e promoção dos direitos humanos, fazendo as recomendações apropriadas sobre "eventuais reformas dos instrumentos jurídicos aplicáveis". O Conselho Permanente deve submeter suas recomendações sobre a questão, "e qualquer outro assunto que possa representar uma contribuição ao aperfeiçoamento e fortalecimento do sistema interamericano de direitos humanos" à 28ª Assembléia-Geral (Caracas, junho de 1998). No entanto, seria recomendável examinar com cautela a proposta de fazer modificações nos instrumentos jurídicos interamericanos de proteção dos direitos humanos, evitando-se abrir espaço para as tentativas de tornar o sistema inoperante. As eventuais mudanças no arcabouço jurídico existente devem obedecer às necessidades de consolidação do sistema. Além disso, seria importante dar a devida atenção às propostas concretas elaboradas pelo Secretário Geral da OEA no documento mencionado[4], sobretudo aquelas voltadas para a reforma dos métodos de trabalho dos órgãos de supervisão do sistema.

Algumas das questões levantadas pelo Secretário Geral coincidem com propostas do artigo de Salvioli. Os principais aspectos do documento do Secretário Geral são os seguintes: a) aumento da periodicidade das sessões da Comissão e da Corte e mais recursos materiais e humanos para ambos órgãos; b) ampliação da participação das ONGs no sistema com a atribuição de status consultivo a tais organizações; c) transformação da CIDH em verdadeiro Ministério Público perante a Corte, o que requer o acesso direto dos peticionários àquele Tribunal; d) possível fusão da Comissão e da Corte em um único órgão, a exemplo do que ocorrerá no sistema europeu; e) estabelecimento de regras claras para a admissibilidade de petições; f) estabelecimento de critérios claros para o envio de casos à Corte; g) ratificação universal dos instrumentos interamericanos de direitos humanos; h) Conselho Permanente da OEA teria responsabilidade de ajudar na execução das sentenças da Corte. De todas as propostas, talvez as relacionadas nas letras “c”, “d” e “e” sejam as que têm provocado o número maior de reações. O interesse por essas propostas decorre dos problemas imediatos sentidos pelos Estados em seu relacionamento com a CIDH e da experiência do sistema europeu que, em certa medida, devido ao seu grau mais avançado de uniformização dos procedimentos, tem servido de modelo para o sistema interamericano.

A proposta de transformação da CIDH em verdadeiro Ministério Público é uma resposta ao mal-estar criado pela situação no mínimo esdrúxula da troca de papéis que a Comissão é obrigada a efetuar no atual sistema. Em um primeiro momento, enquanto o caso tramita no âmbito da própria CIDH, seus membros agem como uma espécie de corpo neutro, pairando sobre as partes em litígio. Em um segundo momento, porém, quando o caso é submetido à Corte, a Comissão transfigura-se em acusador, em parte contrária ao Estado. Essa situação cria óbvia tensão no sistema, minando as condições que possibilitam um diálogo fluido entre a CIDH e os Estados. A maneira de resolver esse impasse seria permitir o acesso direto dos peticionários à Corte, de modo que a CIDH passasse a agir como uma espécie de “fiscal da lei”. O exemplo mais citado a esse respeito é o Protocolo nº 9, de 1990, à Convenção Européia de Direitos Humanos, que concede um tipo de locus standi aos indivíduos ante a Corte Européia, em casos admissíveis que já foram objeto de relatório da Comissão Européia de Direitos Humanos.

Quanto à possibilidade de fusão da Comissão e da Corte em um único órgão, o debate tem como referência o Protocolo nº 11, de 1994, à Convenção Européia de Direitos Humanos. Previsto para entrar em vigor em novembro de 1998, o Protocolo nº 11, levará à substituição da atual estrutura de supervisão da Convenção – representada pela coexistência de uma Comissão e de uma Corte – pelo estabelecimento de uma Corte permanente que absorverá as funções dos antigos mecanismos. A Corte permanente terá a tarefa de analisar a admissibilidade da petição, ou seja, fazer a filtragem que hoje se encontra a cargo da Comissão Européia, e julgar no mérito todas as questões concernentes à interpretação e aplicação da Convenção. Os objetivos centrais da unificação operada no sistema europeu foram: a) aumentar a eficácia do sistema de monitoramento da Convenção; b) diminuir o tempo necessário ao exame das petições individuais; e c) eliminar a duplicação de esforços. Para que mudança idêntica possa ser introduzida no sistema interamericano e ao mesmo tempo cumprir seus objetivos, duas dificuldades iniciais teriam de ser superadas. Todos os Estados membros da OEA teriam de ser Partes da Convenção Americana e todos os Estados Partes teriam de aceitar a competência contenciosa da Corte Interamericana.

No que diz respeito aos critérios de admissibilidade, talvez o que esteja em questão são menos os critérios em si e mais o que é visto por muitos Estados como uma prática demasiado liberal de abertura de casos novos por parte da CIDH. Os critérios para admissibilidade são claros e estão definidos na Convenção Americana e no regulamento da Comissão. A dificuldade se encontra na prática da Comissão de abertura quase automática de casos uma vez recebida a petição inicial. De acordo com algumas interpretações, tal prática pode dar margem a um uso abusivo do sistema de recebimento de queixas, pois abriria espaço para que petições manifestamente infundadas seguissem um longo caminho até a rejeição, consumindo recursos escassos que deveriam ser aplicados com eficiência em benefício das verdadeiras vítimas de violações de direitos humanos. Naquelas situações em que o peticionário busca tão-somente vantagens pessoais ou procura “rever” decisões internas dos tribunais tomadas de acordo com o devido processo legal, muitos Estados têm defendido a aplicação estrita dos dispositivos que permitem à CIDH declarar a inadmissibilidade de petições infundadas.

A Convenção Americana e o regulamento da CIDH determinam que a Comissão deverá declarar inadmissível toda petição que, pela exposição do próprio peticionário ou do Estado, for infundada ou improcedente. O princípio segundo o qual, nos sistemas de proteção dos direitos humanos, o ônus da prova cabe aos Estados somente faz sentido em contexto de alegações verossímeis e fundamentadas. Do contrário, corre-se o risco de minar a transparência e a segurança jurídica do sistema, contribuindo para fortalecer, nos Estados, as correntes contrárias a uma maior cooperação com a CIDH e com o sistema como um todo. Cabe registrar que, mais do que uma questão puramente jurídica - de aplicação das regras existentes - trata-se de chamar a atenção sobre a necessidade de aguçar a sensibilidade política dos órgãos do sistema e, desse modo, evitar que a falta de transparência com relação a aspectos da tramitação de petições possa ser utilizada como pretexto para desacreditar em bloco o trabalho de proteção dos direitos humanos.

No momento em que a discussão acerca do aperfeiçoamento do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos ganha fôlego, certamente seria bem-vinda a iniciativa dos órgãos do sistema no sentido de melhorar seus métodos de trabalho. Há países que estão claramente propensos a fazer uma reforma sem que os órgãos de supervisão tenham participação ativa. O antídoto contra uma reforma "imposta" e que desconsidere a contribuição da Comissão e da Corte pode ser encontrado na própria postura a ser assumida por tais órgãos no curto prazo. A título de exemplo, é indubitável que uma iniciativa da CIDH de se adequar às regras existentes e afastar a possibilidade de "banalização" do sistema de queixas seria um sinal importante, capaz de credenciar a Comissão para participar do processo de reforma que, esperamos, deverá preparar o sistema interamericano para responder aos desafios deste final de século e início de novo milênio.

Para finalizar, cabe assinalar que, diante das dificuldades imensas que os países do continente enfrentam no campo dos direitos humanos, o sistema interamericano, a despeito de seus defeitos e insuficiências, segue sendo um importante instrumento de defesa das camadas mais vulneráveis da população. Se é verdade que os regimes autoritários deram lugar ao estabelecimento dos direitos políticos e às instituições da democracia representativa na maioria absoluta dos países da região, não deixa de ser igualmente correto notar que o grau de observância dos direitos civis, econômicos, sociais e culturais não tem correspondido às expectativas geradas pelos avanços institucionais. A ampla utilização do sistema interamericano com o objetivo de elevar o grau de respeito aos direitos humanos adquire importância renovada sob a democracia, visto que não se trata, como antigamente, de simplesmente afirmar os direitos do indivíduo contra o Estado, mas de realizar os direitos e garantias individuais e coletivos com o Estado. Vale dizer, o Estado não é o inimigo a ser derrotado e os sistemas internacionais de proteção não são armas numa suposta guerra. O Estado deve ser, ele também, instrumento de proteção, pois os direitos humanos não se realizam automaticamente pela abstenção estatal ou pela mera não intrusão pública no espaço privado. Os direitos humanos exigem do Estado obrigações positivas, obrigações de fazer, ao contrário do que certamente prefiriria a versão vulgarizada da teoria liberal clássica. Desta perspectiva, a potencialidade da conversão do Estado em aliado na luta pelos direitos humanos se encontra inscrita na democracia e a realização efetiva desta aliança é impulsionada, entre outros fatores, pela cooperação com os mecanismos internacionais de proteção.



[1] Como lembra Cançado Trindade: “(...) o descumprimento das normas convencionais engaja de imediato a responsabilidade internacional do Estado, por ato ou omissão, seja do Poder Executivo, seja do Legislativo, seja do Judiciário”. Ver: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Op. Cit. Pág. 442.

[2] Ver: SALVIOLI, Fabián Omar. Los desafíos del sistema interamericano de protección de los derechos humanos. In: PICADO, Sonia; CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; CUÉLLAR, Roberto (compiladores). Estudios Básicos de Derechos Humanos V. San José: Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1996. Pp. 229-65. Passim.

[3] No sistema das Nações Unidas, as ONGs com status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social têm participação ativa nos debates travados nas Comissões funcionais.

[4] GAVIRIA, Cesar. Uma Nova Visão do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Documento OEA/Ser. G CP/doc. 2828/96 (26/11/96).

 

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