
Globalização
e Direitos Humanos:
Identificando
desafios
Paulo César Carbonari
Professor
de Filosofia no Instituto de Filosofia Berthier (IFIBE),
Passo Fundo, RS; Mestre em Filosofia pela Universidade
Federal de Goiás (UFG-GO); Coordenador Nacional de
Cooperação e Parcerias do Movimento Nacional de
Direitos Humanos (MNDH); e Secretário Executivo da Seção
Brasileira da Plataforma Interamericana de Direitos
Humanos: Democracia e Desenvolvimento (PIDHDD-Brasil)
Introdução
O
assunto anunciado no título do presente artigo é
demasiadamente amplo e exigiria uma revisão profunda
da situação contemporânea, a fim de localizar os
elementos centrais que caracterizam o contexto atual e
de identificar, nele, os desafios para o avanço da
lura pelos direitos humanos. O tratamento da questão
implicaria passar em revista vários aspectos da
realidade. Entre as várias possibilidades, optamos
por fazê-la na ótica dos direitos humanos, com um
recorte tangencial nos direitos humanos econômicos,
sociais e culturais.
Defendemos
a tese de que a globalização levou a questão dos
direitos humanos a uma situação paradoxal: ao mesmo
tempo em que em nenhum outro momento histórico os
direitos humanos foram tão significativamente
invocados, também se encontram em num momento de
crise e de muita dificuldade de afirmação real. A saída
desse paradoxo exige que identifiquemos, no processo
de globalização em curso, dual é a idéia de
direitos humanos que vem sendo gestada e, ao mesmo
tempo, em que medida essa idéia pode não ser
completamente capturada por esse processo e ensejar
o fortalecimento tias alternativas a ele.
Para
realizar esse percurso faremos inicialmente uma breve
caracterização da globalização e suas implicações
em termos de direitos humanos, ocupando-nos da concepção
de direitos humanos que o modelo vigente de globalização
defende. Em seguida, analisaremos as condições e
possibilidades para que direitos humanos possam ser
recuperados corno componentes fundantes da luta pela
emancipação e libertação. Ao final, apresentaremos
algumas ponderações a título de conclusão.
Uma leitura do
contexto de globalização
Para
compreender o contexto da globalização na
perspectiva dos (liteiros humanos, é necessário
primeiro fazermos uma aclaração da noção de
globalização. Nesse sentido, uma primeira Leitura da
questão indicará que o conceito de globalização é
polissêmico. Vai desde o sentido de universalização
das regras liberalizantes do mercado, passando pela
idéia específica do expansionismo livre das
transnacionais e da integração subordinada dos países
pobres, até uma idéia mais aberta que a entende como
integração integral (perdão pela necessária redundância)
de povos e culturas. A par dos diversos sentidos possíveis
para a globalização aqui rapidamente mapeados, a idéia
hegemônica de globalização, no entanto, é aquela
patrocinada pelo que ficou conhecido como pensamento
único e que consiste, em rápidas palavras, na afirmação
da razão do mercado ou mais precisamente, na afirmação
do mercado total como espaço não somente de trocas
econômicas, mas como espaço de socialização e de
constituição da subjetividade.
Em
consequência, qualquer outra forma de entendimento do
processo fica prejudicada, pois passa a ser encarada
como uma distorção, que há que ser corrigida pela
própria lógica do mercado. O processo humano em
geral, mais do que o processo econômico propriamente
dito, passa a ser entendido, na lógica da
competitividade sistêmica, valor supremo de organização
da vida humana. Nesse contexto, os direi tos humanos,
mesmo e1ue sejam cada vez mais invocados
por diferentes setores sociais, inclusive pelos
agentes econômicos, passam a também estar
subordinados a lógica do mercado, o que, em termos
concretos, significa o mesmo que subordinar os seres
humanos reais a uma única lógica, à irracionalidade
da mão invisível do mercado total.
Gutiérrez
localiza em quatro fatos a leitura da globalização
na perspectiva dos direitos humanos: primeiro, o
agravamento das tendências destrutivas da vida social
e natural; segundo a constituição de gigantescas
burocracias privadas transnacionais que funcionam
como espécies de “estados privados mundiais” e
estão dispostas a submeter os estados nacionais;
terceiro, a conformação de cima única potência
hegemônica mundial que se arvora o direito de impor
sua própria compreensão e prática política, econômica,
social e cultural a todo o mundo; quarto, o
surgimento de um fenômeno cultural que legitima a lógica
do sistema, na perspectiva da afirmação do pensamento
único, o “pensamento cínico do sistema.
Os
fatos referidos por Gutiérrez levam-nos a entender
que a compreensão de direitos humanos, vigente como
hegemônica, esforça-se em romper o lugar da
subjetividade centrado na pessoa e o joga para o espaço
das corporações econômicas transnacionais. Em decorrência,
rompe-se com a idéia de cidadania como elemento
constitutivo dos direitos humanos e convertem-se cidadãos
em clientes. Ora, cidadania, historicamente, implica
reconhecimento de sujeitos de direitos demandantes e
institucionalidades públicas responsáveis por sua
satisfação, notadamente circunscritas e dependentes
de tradições culturais e de arranjos políticos
centrados nos estados nacionais c em organismos
internacionais por estes patrocinados. Clientes, no
entanto, não implicam sujeitos, implicam consumidores
que buscam bens para a satisfação de necessidades
— via de regra, criadas pelos próprios agentes econômicos
como sobreposição ilusória das necessidades humanas
básicas — atendidas por agentes privados em relações
de troca mediadas pelo valor monetário. Cidadania
implica universalidade, consumo implica poder de
compra. A lógica do mercado rompe com o princípio
fundante da cidadania e os direitos humanos deixam
de ser direitos de cidadania. Chega-se a confundi-los
com o direito à livre iniciativa dos agentes econômicos.
Centralmente,
na lógica do mercado, direitos humanos são os
direitos dos proprietários, daqueles que têm condições
de ser potencialmente consumidores, clientes do
sistema. Em tese, as melhores posições liberais
diriam que todos os seres humanos teriam lugar nessa lógica.
No entanto, a história e os fatos insistem em demonstrar
o contrário, conforme aponta Gutiérrez.
O
domínio de burocracias privadas, reforçadas pelas
burocracias públicas, leva à diluição dos espaços
de vigência dos direitos humanos e à sua relegação
a elementos de ação compensatória ou até de
legitimação do próprio poderio econômico das
grandes potências hegemônicas.
O
processo de globalização, compreendendo, dessa
forma, os direitos humanos, leva a uma “crise dos
direitos humanos”. Segundo Gutiérrez, essa crise
pode ser entendida de várias maneiras:
“Primeiro,
de ausência de derechos para la mayoría de la
población mundial; segundo, de los movimientos de
derechos humanos que se enfrentam hoy en dia, en su
lucha por el derecho a la vida, a un poder de exclusión
total, invisibilizado (ley del valor) y protegido
por la legislación; crisis de la institución llamada
derechos humanos por eso mísmo, por haberse convertido
en institución, y ser vaciada de contenido por el uso
deI poder mundial que legitima políticas imperiales
de muerte e intervención en su nombre; y finalmente
crisis de la institución líamada derechos humanos
por la emergencia del pensamiento cínico para cl cual
cl derecho a la vida no es universal y por ende ningún
otro derecho humano”.
O
primeiro aspecto da crise apontada por Gutiérrez é o
da ausência de direitos para a maioria da população
mundial. Alguns dados, de todos conhecidos, demonstram
melhor a questão. Por exemplo, a partir do processo
de aplicação dos chamados ajustes estruturais no
mundo, mais precisamente entre 1985 e 1995, o Produto
Interno Bruto (PIB) per capita dos dez países mais
ricos do mundo dobrou, enquanto o mesmo índice no
caso dos dez países mais pobres caiu 30%, resultando
no aumento de 70 para 430 vezes a distância do PIB
per capita entre o pais mais rico e o pais mais pobre
do planeta. Esta questão levou o próprio Conselho
Econômico e Social (ECOSOC) das Nações Unidas a
reconhecer que:
“EI
ajuste estructural va más allá de la imposición
sencilla de un conjunto de políticas macroeconómicas
a nivel interno (...), es una estratégia consciente
de transformación social en ei plano mundial, em
primer lugar, para hacer el mundo más seguro para las
empresas transnacionales”.
Ora,
sendo isso verdade — e não há motivos para que não
seja — fica confirmado o argumento de que o que
interessa aos agentes da globalização é a criação
das melhores condições para a reprodução dos
mecanismos de mercado e, de nenhuma forma, o
desenvolvimento de condições para garantir a vigência
dos direitos humanos para milhões de seres humanos
cada vez mais excluídos do acesso a eles e sem
qualquer esperança de encontrar, no mercado, condições
para sua satisfação.
O
segundo aspecto da crise, apontado por Gutiérrez,
redunda na contradição cada vez mais presente que
se traduz no fato de que os mesmos Estados que assinam
pactos e protocolos, visando a garantir a vigência
dos direitos humanos, assinam acordos comerciais que põem
em tela de violação os direitos humanos. Nesse
contexto, é estranho que os mesmos 171 Estados que
assinaram a Declaração e o Programa de Ação de
Viena, em 1993, sejam aqueles que, mesmo
comprometendo-se a serem os primeiros a respeitá-la,
acabem sendo os primeiros a não cumpri-la e a
permitir que os agentes econômicos privados os levem
a deixar de fazê-lo.
Ante
tamanha volatilidade, já que os estados se
desobrigam, na prática, em favor das burocracias
privadas não responsabilizáveis, a luta pelos
direitos humanos fica no vazio, sem um alvo concreto a
quem responsabilizar efetivamente. Porque, mesmo
quando os Estados entendem fundamental promover políticas
de direitos humanos, acabam desenvolvendo ações
compensatórias das distorções do mercado. Esse
mecanismo é utilizado, inclusive, para que as populações
incidam, de maneira menos significativa, como elemento
de distorção do mercado, fazendo com que ele possa
seguir intacto seu percurso.
O
terceiro aspecto da crise consiste exatamente no fato
de os direitos humanos, ao terem se tornado
componentes do discurso oficial e institucional,
tanto de estados quanto de agentes econômicos, acabam
esvaziados em seu conteúdo de componente
fundamentador de ações emancipatórias. O mais grave
desse processo está no que Hinkelammerr aponta como
processo de institucionalização dos direitos
humanos, que se traduz, exatamente, em entender não
mais os direitos humanos como direitos das pessoas
humanas concretas, e sim, como direitos de corporações
e instituições.
Contraditoriamente,
mecanismos internacionais de proteção como o Alto
Comissariado para os Direitos Humanos da ONU, organismo
que insite em manter uma idéia de direitos humanos
que não sucumbe ao mercado, em um documento conhecido
como Viena+5, declara que:
“Aun
reconociendo que la democracia, el desarroilo y el
respeto de los derechos humanos y de las libertades
fundamentales son conceptos interdependientes que se
refuerzan mutuamente (Parte 1, párr. 8), la Conferencia
reafirmó también el derecho aí desarroilo, según
se proclama en la Declaración sobre el Derecho aí
Desarrolio, como derecho universal e inalienable y
como parte integrante de los derechos humanos
fundamentales, y que ia persona humana es ei sujeto
central dei desarroilo (Parte 1, párr. 10). Aí hacer
esta deciaración, la Conferencia Mundial estabieció
ei fundamento de un planteamiento integrado v global
de los derechos humanos, no sólo para ei mecanismo de
derechos humanos sino también para todo eI sistema de
ias Naciones Unidas. A fin de aplicar las
recomendaciones de la Conferencia a este respecto, eI
Alto Comisionado ha hecho dei derecho aí desarrolio
uno de los principios básicos de sus actividades y
está elaborando una estrategia que deberia fomentar
su aplicación (E/CN.4/1998/122).
Nesse
sentido, no contexto da crise apontada por Gutiérrez,
a afirmação do Alto Comissariado soa como um
programa de difícil viabilidade, já que a maioria
dos Estados insiste em ignorar essa questão e em
entender o desenvolvimento muito mais como resultante
das variáveis do mercado do que como investimento público.
A faceta mais perversa da questão, no entanto, está
exatamente no fato de as potências hegemônicas não
raras vezes utilizarem os direitos humanos como
componente de manutenção de seu status e de condenação
à subordinação dos países pobres, sem que eles próprios
assumam internamente a vigência dos mesmos mecanismos
de proteção internacional dos direitos humanos.
O
quarto aspecto da crise é caracterizado por Gutiérrez
como a crise da própria idéia de direitos humanos
ante a hegemonia do pensamento único cínico. De
alguma forma, já tocamos essa questão quando
dissemos que, para os agentes da globalização, os
direitos humanos são direitos de instituições, de
corporações proprietárias, O que está em questão
aqui é exatamente a concepção de direitos humanos
que é carregada pelo processo de globalização. As
palavras de Hinkelammerr ilustram a questão:
“La
transformación de la economia en guerra económica y
la seguiente transformación de la competitividad en
valor único y superior está destruyendo y eliminando
todos los derechos humanos en nombre de los derechos
dei mercado, que son derechos vigentes en ei mercado y
solamenre en él”.
O
pensamento único é cínico porque, mesmo não
ignorando as graves consequências que produz, insiste
em encará-las como alheias ao que implementa. Além
disso, defende que os direitos humanos, quando
entendidos como direitos de pessoas concretas, não
passam de distorções do mercado, ignorando portanto
os seres humanos reais. Recorremos novamente a
Hinkeiammert para aclarar a questão:
“No
todas las distorsiones dei mercado son producro dei
reconocimienro de los derechos humanos, pero
tendencialmente toda defensa de ios derechos humanos
como derechos de los seres humanos corporales aparece
como distorsión dei mercado. Por eso, ia eliminación
indiscriminada de las distorsiones dei mercado
desemboca con una lógica implicita en la distorción
de los própios derechos humanos. Eso vaie en ei grado
en ei cuai ia eliminación de estas distorsiones, se
lieva a caho en nombre de um princípio general,
como es ei caso dei proceso de giobalización. Sin
emhargo, la politica de ia eliminación de las
distorsiones se presenra como simple aplicación de
una técnica
Entendemos
que os elementos que aportamos, seguindo de perto o
raciocínio de Gutiérrez e completando com outros
aspectos, são aclaradores da questão da globalização,
lida na perspectiva dos direitos humanos e mesmo da
concepção de direitos humanos que é propugnada
pelos agentes desse processo. A partir desses
elementos, daremos o passo seguinte, que consiste em
procurar, a partir de uma outra idéia de direitos
humanos que brevemente apresentaremos, indicar os
desafios fundamentais para pensar e agir
alternativamente Desafios à luta pelos direitos
humanos
A
identificação de desafios no contexto da leitura de
realidade que fizemos implica que, inicialmente,
esclareçamos nossa compreensão de direitos
humanos, que deu ensejo tanto àquela leitura quanto
à que indicará os desafios.
A
noção de direitos humanos possui uma unidade
normativa interna que se funda na dignidade igual de
cada ser humano como sujeito moral, como sujeito jurídico,
como sujeito político e como sujeito social, O
reconhecimento desta unidade normativa encontra eco
reflexivamente, porque a construção de qualquer
ordenamento, seja ele jurídico, político ou social
haveria que ter por base sempre a garantia de condições
para que o ser humano tenha lugar central e intransponível.
Esta unidade normativa cria condições tanto para
orientar a construção dos arranjos históricos de
sua efetivação quanto, reversamente, para a crítica
daqueles arranjos que não caminham concretamente na
perspectiva de sua efetivação.
Discordando
das teses liberais ou liberalizantes, afirmamos que os
direitos humanos econômicos, sociais e culturais não
estão hierarquicamente em posição inferior aos
direitos humanos civis e políticos. Eles estão em
posição de equivalência. Estamos cansados de ter
que suportar situações onde sucessivos governos
justificam ditaduras dizendo que em sociedades
profundamente assimétricas é justificável a redução
das liberdades fundamentais em nome da garantia do
progresso sócio-econômico. Ou então, que, mesmo
pobres, é melhor vivermos em um tempo de garantia da
liberdades básicas, o que nos dá a chance de entrar
no campo competitivo do liberalismo e, quiçá, galgar
postos de satisfação mais aprimorada das demandas
humanas, sempre individualmente. Isso significa dizer
que tratar de direitos humanos é tratar de todos os
direitos humanos, dos direitos humanos civis, políticos,
econômicos, sociais e culturais.
Essa
posição implica reconhecer que não há liberdade
que possa ser exercida sem um espaço social de
solidariedade. Como confirma Fraling: “Seres humanos
são seres materiais e necessitam de bens materiais
para sobreviver. Sem a satisfação de necessidades
econômicas básicas não se torna possível a existência
da pessoa em liberdade, moldando a sua existência.”.
Ou seja, a garantia de satisfação dos direitos
humanos implica seu tratamento integral, o que também
está em jogo quando falamos de seu reconhecimento
como universais. Ou seja, todos os direitos humanos
têm a pretensão de ser universais. Evidentemente
que o modo de realização histórica de uns e outros
direitos ganha contornos diversos. No entanto,
privilegiar uns ou outros significaria abrir mão do
princípio básico da dignidade humana.
A
Conferência de Viena parece ter chegado,
contraditoriamente, a uma formulação bastante
satisfatória sobre o assunto. Segundo ela:
“Todos
os direitos humanos são universais, indivisíveis e
interdependentes e estão relacionados entre si. A
comunidade internacional deve tratar os direitos humanos
de forma global e de maneira justa e equitativa, em
pé de igualdade, dando a todos o mesmo peso. Deve-se
ter em conta a importância das particularidades
nacionais e regionais, assim como aquelas dos diversos
patrimônios históricos, culturais e religiosos, porém,
os Estados têm o dever, sejam quais forem seus
sistemas políticos, econômicos e culturais, de
promover e proteger todos os direitos humanos e as
liberdades fundamentais.”
Avançando
na nossa análise, passaremos, agora, a nos ocupar dos
desafios fundamentais à vigência dos direitos
humanos em um mundo globalizado, sempre na perspectiva
de tê-los como suporte de um pensamento e ação
alternativos ao processo em curso.
O
jurista brasileiro, Presidente da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, Dr. Antônio Augusto Cançado
Trindade, em sua palestra na IV Conferência Nacional
de Direitos Humanos, realizada em 1999, em Brasília,
dizia, nesse contexto, que o grande desafio encontra-se
em “situar a pessoa humana no centro de todo o
processo de desenvolvimento, o que requer um espírito
de maior solidariedade em cada sociedade nacional e a
consciência de que a sorte de cada um está
inexoravelmente ligada a sorte de todos”. Em outras
palavras, consiste em articular a idéia de cidadania
em sentido amplo e que leve em conta a diversidade das
dimensões da vida humana, tendo como pano de fundo, a
dignidade humana. Trata-se, portanto, da recuperação
do sujeito humano, pessoa real, como sujeito de
direitos.
Seguindo
essa lógica, entendemos que os direitos humanos
exigem, além dessa base fundacional, centrada na
dignidade humana, uma base histórica para sua realização,
em processo, em espaços sociais e políticos. Nesse
sentido, entram dois aspectos fundamentais: o primeiro,
a idéia de um novo ordenamento econômico mundial,
centrado na idéia de desenvolvimento como direito
humano e baseado nos direitos humanos; o segundo, a
necessidade de conformar arranjos jurídico-políticos
que façam frente às burocracias privadas, e ampliem
o espaço público de ação e de controle social.
A
construção de uma nova ordem econômica mundial
exatamente quer se opor ao caos da irracionalidade
do mercado. Construir uma ordem implica reconhecer os
parceiros do diálogo para sua construção como autônomos,
superando-se, portanto, posturas hegemonistas. Esse
conserto, no entanto, não pode ser apenas um ajuste
de interesses, como sói ocorrer nos acordos
comerciais atualmente. Exige muito mais, exige
reconhecer as diferenças e necessárias compensações
e reparações históricas. Não haverá meios de fazê-lo
sem que questões, entre muitas outras, como a divida
externa e a proteção do meio ambiente sejam pautas
fundamentais. Sem reconhecer que a dívida dos países
pobres é injusta e impagável, e que a preservação
do meio ambiente é condição fundamental para
encetar qualquer processo de desenvolvimento,
dificilmente se poderá caminhar no sentido de uma
ordem mundial que entenda o desenvolvimento como
direito humano e que, além disso, tenha, nos direitos
humanos, o parâmetro básico inarredável para sua
construção.
O
fortalecimento dos espaços públicos exige reconhecer
que a democracia não somente e um mecanismo de
legitimação, pelo voto, dos representantes
encarregados de compor a burocracia pública.
Implica entendê-la amplamente, como mediação histórica
de criação de condições para a efetivação da
dignidade humana. Implica portanto, recuperar o espaço
público como o melhor lugar para deliberação
sobre as questões humanas, recompondo o rol de
tarefas do estado e das organizações da sociedade
civil, sem perder de vista as responsabilidades específicas.
Ampliar as condições de controle público das
demandas de satisfação de direitos é o mecanismo
central para que as burocracias privadas sejam
enfrentadas e subordinadas aos interesses das pessoas
humanas concretas, como sujeitos de direitos
humanos. Seguindo o raciocínio de Bielefield,
democracia e direitos humanos andam abraçados da
seguinte forma:
“Com
a metáfora do recíproco abraço queremos estabelecer
a unidade normativa entre direitos humanos e
democracia, na qual, concomitantemente e sem
hierarquização, pode surgir uma diferenciação que
não se constitui em diferença de princípios, mas
que representa, isto sim, uma diferença de modo de
realização do mesmo e inalienável princípio da
mesma liberdade solidária. No momento em que se
dissolver essa unidade de princípio de direitos
humanos e democracia ou passar a haver relação de
subordinação de um em relação ao outro, ambos
perdem”.
Com
isso, queremos dizer que a unidade normativa dos direitos
humanos e da democracia alcançam fundamento ético na
dignidade humana, como construção histórica das
condições de sua efetivação no seio de uma
comunidade real, condicionada. Isso significa que o próprio
conteúdo específico dos direitos humanos é construção
histórica, fundada na dignidade humana, que também
tem uma dimensão histórica, o intransponível de
qualquer conteúdo possível que se possa agregar ao
que se quer entender como direitos humanos.
Por
fim, entendemos que todo este processo implica fazer
frente ao pensamento único, reafirmando a proposta do
Fórum Social Mundial de que “um outro mundo é
possível”, idéia que sintetiza a possibilidade de
alternativas ao modelo hegemônico vigente. Mas esse não
é um caminho fácil e passa, como bem lembra
Hinkelammert, pelo fato de que:
“Una
acción alternativa puede consistir solamente en una
acclon asociativa. De este modo se pueden disolver
estas fuerzas compulsivas, que resultan precisamente
de Ia supresión de cualquier acción associativa. Eso
implica, por supuesto, acción solidária. Sin embargo,
tal acción solidária hoy desemboca también en
dimensiones globales sin las cuales no puede ser
efectiva”.
A modo de conclusão
Procuramos
defender que o processo de globalização em curso põe
em situação paradoxal a questão dos direitos
humanos. Fizemos um esforço para demonstrar que a
globalização encerra uma idéia de direitos humanos
contraditória e que nega os direitos humanos como
sendo da pessoa humana. Em outro movimento, procuramos,
sustentados numa idéia diferente de direitos humanos,
identificar os desafios para o prosseguimento dessa
luta numa época de globalização.
Entendemos
que, com esses dois movimentos, mostramos a exigência
teórico-prática fundamental para todos aqueles e
aquelas que nos filiamos à idéia de que somente a
reconstrução de condições históricas que
ensejem espaço e tempo oportunos para a dignidade
humana permitirá o avanço real da garantia dos
direitos e, por consequêncla, uma globalização da
solidariedade e da cidadania.