
O ESTADO DA
GLOBALIZAÇÃO
Marcos Del Roio**
A forma política da dominação do
capital tem passado por mudanças significativas a partir das últimas
duas décadas, precisamente nesse período que vem sendo chamado
de globalização. O atual estágio do debate não
conseguiu dissipar ainda a densa névoa de distorções ideológicas
que tem conduzido a conclusões parciais bastante arriscadas e
mesmo perigosas para as forças socioculturais identificadas com o
mundo do trabalho e com a idéia da emancipação humana. Tais
distorções foram impostas precisamente pelas forças sociais
dominantes e que vem conduzindo o processo de globalização e
cujo conjunto de idéias e de práticas sociais são chamadas de
neo-liberalismo
A armadilha ao encontro da qual
podem ir intelectuais postados à esquerda é a de ver na crise do
Estado-nação um elemento positivo da globalização neo-liberal,
perdendo-se em meio à fumaça ideológica. É preciso retomar a
perspectiva histórica sobre a questão do Estado para que se
possa tentar entender a forma do Estado da época da globalização.
O Estado nacional (ou pluri-nacional) surge como tal como um
aspecto da revolução burguesa. Seu objetivo é circunscrever um
território para a acumulação do capital, gerando instituições
e formas culturais apropriadas, surgidas com apoio popular e em
oposição à hierarquia feudal.
De imediato esses Estados
liberal-burgueses originais – Inglaterra, EUA, França -- tem o
propósito de criar impérios, sempre com o fito de manter
um espaço de reserva com recursos para a acumulação. Os Estados
nacionais que se formaram de maneira tardia tiveram dificuldades
em criar instituições liberais – devido ao limitado respaldo
popular e à necessidade de composição da burguesia com as
nobrezas feudais – e também em obter espaços imperiais. Foram
os casos de Alemanha, Itália e – em menor medida – Japão.
As revoluções burguesas e os
Estados nacionais que se conformaram depois, ocorreram em pleno século
imperialista (1875-1975) e puderam seguir apenas dois caminhos: o
primeiro, na trilha inaugurada pela revolução russa, foi o de
uma revolução burguesa que se radicalizou respaldada por uma
aliança operário-camponesa, conformando Estados
nacional-populares em confronto com o imperialismo e as próprias
burguesias (China, Vietnã, Cuba); o segundo caminho formou
Estados nacionais constituídos num processo de revolução
burguesa pela via passiva (numa ampliação da categoria analítica
desenvolvida por Gramsci), nos quais houve uma renegociação no
interior do sistema imperialista (Índia, Brasil, México, Índia,
África do Sul). O fato é que grande parte dos povos do mundo
jamais conseguiu compor um moderno Estado nacional.
A pressão das classes subalternas
e os conflitos no interior das classes dominantes e entre as
burguesias pela partilha de espaços imperiais, possibilitaram a
construção de limites temporários à dinâmica do capital, que
redundaram em direitos econômico-sociais, na ereção de um
patrimônio público/estatal e no alargamento da democracia política.
Após o fim da guerra civil do Ocidente (1914-1945) configurou-se
um mundo bipolar, confrontando uma área hegemonizada pelo EUA e
outra pela URSS, havendo um vasto e diversificado território
(chamado de "terceiro mundo") sob crescente controle dos
EUA ao qual se contrapunha movimentos de libertação nacional,
potencialmente aliados a URSS.
A base produtiva mais avançada, e
que caracterizou esse período, era o fordismo e as políticas
econômicas se definiam em torno de idéias variadas de
planejamento. Durante a fase expansiva do capital a classe operária
conseguiu algumas vantagens relativas a emprego, renda e assistência,
assim como o acesso ao governo de diversos Estados (principalmente
da Europa ocidental), estabelecendo pactos governo/sindicatos,
sempre com a condição de não contestar a dinâmica da acumulação
e o Estado do capital.
No entanto, a crise de valorização
do capital, visível a partir de meados dos anos 70, indicaram os
limites do reformismo e abriram uma nova fase de aberto conflito
de classe. Desencadeou-se, então, uma ofensiva político-cultural
do capital contra o mundo do trabalho, cujo ponto forte esta
localizado precisamente no Estado. Governos como os de Thatcher na
Grã-Bretanha, Reagan nos EUA, Khol na Alemanha e Nakasone no Japão
foram decisivos na definição de políticas que visavam
confrontar a crise de valorização do capital às expensas das
condições de vida e trabalho das massas populares, assim com de
sua capacidade de intervenção política.
A desintegração do socialismo de
Estado – e a fragmentação dos Estados pluri-nacionais –
tiveram um componente político decisivo e acabou unificando o
mercado mundial num patamar superior àquele existente antes de
1917 e consolidando o processo de globalização. A ofensiva do
capital assumiu formas e dimensões diversas, mas a ação estatal
apareceu em todos os momentos como o elemento coesivo fundamental
contra as inúmeras tendências entrópicas desencadeadas pela
globalização.
Um aspecto da maior importância da
ofensiva do capital é a revolução técnico-científica e
gerencial. É preciso ter em mente que o desencadeamento de mudanças
de vulto no processo produtivo e de gestão do trabalho exige uma
tomada de uma decisão política que visa uma retomada das taxas
de acumulação. A revolução técnico-científica e gerencial
tem dois objetivos indissociáveis no atual estágio da luta de
classes: o primeiro é o de aumentar a produtividade do trabalho e
o segundo é mudar o perfil e a composição do mundo do trabalho
de modo a provocar a derrocada de suas principais instituições
(sindicato e partido) cujo desdobramento é uma séria regressão
da democracia política..
É possível com a globalização a
extração da mais-valia relativa dos estratos superiores da
classe operária, vinculados ao trabalho científico e gerencial
mas possibilita também uma nova fase de "acumulação
primitiva" por sobre uma enorme massa de trabalhadores
precarizados. Ora, a ação do Estado é essencial nesse desenho
estratégico tanto no que se refere a investimentos diretos na
pesquisa cientifica ou na aquisição de resultados auferidos
pelos próprio conglomerados econômicos, quanto na atividade
legislativa que desorganiza as linhas de defesa do mundo do
trabalho, sem esquecer ainda a imprescindível atividade ideológica
das agências estatais de difusão de informação.
O elemento condutor e o maior
beneficiário do processo de globalização é a oligarquia
financeira. A globalização marca uma retomada exponencial da
financeirização da produção do capital, isto é, do predomínio
do capital "puro", do dinheiro que produz dinheiro.
Durante os três decênios de apogeu fordista-keynesiano, que se
seguiram ao final da guerra dos trinta anos (1914-1945), o "rentismo"
sofreu um relativo recuo, retomado com ímpeto no atual período
do capital em crise. É o capital financeiro que mais pressiona
para a abertura das fronteiras nacionais, pela privatização das
empresas estatais e pela "desregulamentação" das relações
de trabalho.
O capital financeiro exige o sacrifício
de aspectos decisivos da soberania da maioria dos Estados
nacionais até para que possa se realizar no tráfico
internacional de drogas, nas redes de prostituição, no trafico
de armas e de detritos. Ao se deslocar de um lugar para outro –
sempre em busca de maior valorização --, provoca crises
localizadas de acumulação que reduz Estados a pedintes do
mercado financeiro global. Mas para isso precisa da conivência ou
da proteção das classes dirigentes do próprio Estado.
O estágio atual do capital como
contradição em processo continua exigindo a existência do
Estado como elemento que age no sentido de bloquear tendência à
queda da taxa de acumulação. Mas hoje a atuação do Estado não
visa a defesa de mercado e de espaços de uma burguesia nacional
perante outras, fazendo uso de valores morais e patrióticos, mas
unicamente ser competitivo no mercado global. Para isso a intervenção
do Estado volta-se para abaixar os custos de produção e para a
garantia da estabilidade da moeda. O Estado se insere
horizontalmente num mercado global formado pela competição entre
unidades produtivas sempre maiores. E se aspectos de soberania do
Estado são comprometidos na globalização, também é verdade
que o Estado se difunde e se internacionaliza junto com a
desterritorialização do capital.
É certo que nem todos os Estados
se portam da mesma maneira no processo de globalização. A
maioria vê-se debilitada e tende a submergir diante dos ditames
da oligarquia financeira. Embora possa se dizer que o poder do
capital no atual estágio da globalização seja "triádico"--
com EUA, União Européia e Japão compartilhando conflituosamente
o domínio do mundo --, é também inegável a supremacia
americana nesse contexto. Uma supremacia não somente tecnológica
mas principalmente uma supremacia militar inconteste que lhe
permite ocupar o papel de guardião da ordem.. Essa é a principal
novidade da era da globalização: um fenômeno de dimensões
planetárias que ocorre sob a égide de uma única força militar
e uma única tendência econômica e ideológica.
O paradoxo aparente é que a
globalização do capital forjou um império universal, mas não
é capaz de forjar um Estado global e um governo planetário.
Mesmo uma regionalização solidária que desemboque numa federação
de Estados é bastante improvável que ao mesmo tempo se forme sob
um padrão neo-liberal e se insurja contra a supremacia americana.
É esse o caso da União Européia e mais claramente ainda o do
Mercosul. Mas pode ser o caso da China a partir do momento que
consiga uma hegemonia inconteste na Ásia oriental.
O Estado tem um papel importante a
cumprir na luta contra a globalização neo-liberal embora não se
trate de resgatar simplesmente o projeto de Estado-nação vigente
até o início dos anos 70. Aquilo que é possível e necessário
fazer hoje é promover uma integração regional de Estados que
complementem seus recursos e potencialidades e construam uma
federação democrática voltada para os interesses do mundo do
trabalho e dos povos em oposição à globalização neo-liberal e
a imperial oligarquia financeira.
A globalização neo-liberal está
muito próxima de conseguir a unificação mundial da circulação
de mercadorias e de fluxos financeiros, mas impede a unificação
da força de trabalho. Essa só poderá ser possível com a criação
de novos nexos entre as lutas sociais cotidianas e a conformação
de um proletariado global antagônico ao império universal do
Ocidente liberal. Mas, sem dúvida, a agregação de Estados
democráticos deverá cumprir um papel crucial no caminho da
emancipação das forças do trabalho e da humanidade, desde que
seja um movimento articulado a formas libertárias e socialistas
de organização política e cultural de caráter global.
**Prof. de Ciência
Política da FFC-Unesp (campus de Marília)
Diretor do Instituto
Astrojildo Pereira
e-mail para contato: delroio@mii.zaz.com.br
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