
DIREITO
INTERNACIONAL E GLOBALIZAÇÃO
FACE ÀS QUESTÕES DE DIREITOS HUMANOS
|
Sumário:
A - Introdução: 1- Conceito de globalização.
2- Os efeitos da globalização sobre o Direito
Internacional Público. 3- O espaço público
internacional em formação; B – Os Direitos
Humanos e a "Globalização da Justiça":
1- Marcos históricos dos Direitos Humanos. 2- A
Convenção de Viena e a consagração dos princípios
da indivisibilidade, interdependência e
universalidade. 3- O quadro normativo existente
e a política brasileira de Direitos Humanos.;
C- Conclusões: o futuro do Direito
Internacional Público; D-Notas ; E.-
Bibliografia
A-
Introdução
A
globalização, se entendida como um fenômeno
tridimensional formado pela intensificação de
fluxos diversos(1) (econômicos, financeiros,
comunicacionais, religiosos); pela perda de
controle do Estado sobre esses fluxos e sobre
outros atores da cena internacional (Badie,
1999; Frangi e Schulz, 1995(2)) e pela diminuição
de distâncias espaciais e temporais (Laïdi,
1994; Badie, 1999), cria expectativas de inovações
político-jurídicas. Com efeito, esse fenômeno
conduz ao questionamento do princípio da
soberania, organizador das relações entre
Estados (Cançado Trindade, 1999a; Smouts,
1998), e, conseqüentemente, da manutenção da
ordem pública internacional. É nesse contexto
de mutações aceleradas que as questões de
direitos humanos estão sendo tratadas
atualmente. Neste artigo, serão analisadas as
conseqüências da globalização no âmbito da
proteção internacional dos Direitos Humanos.
A
. 1 - Conceito de "Globalização"
Considerando
o primeiro e o terceiro níveis acima
mencionados (intensificação de fluxos diversos
e diminuição das distâncias), a tão
propalada "globalização" constitui,
na verdade, processo antigo. Teve seu início
logo no período dos grandes descobrimentos, no
século XV. Com efeito, as expedições
lideradas pelo navegante genovês Cristóvão
Colombo e financiadas pelo Reino de Castilla y
Aragón romperam, em 1492, o isolamento entre o
"Velho" e o "Novo Mundo" e
implicaram crescente contato entre os países
então existentes.
Sabe-se
que, já no século XIX, a Revolução
Industrial, com as inovações técnicas e
tecnológicas nas indústrias e nos transportes,
permitiu maior integração do mundo – por
meio da intensificação das trocas mercantis e
do incremento de investimentos no estrangeiro.
Seguiu-se, sem surpresa, a expansão acelerada
das empresas multinacionais e conglomerados
financeiros(3).
O
fato é que, em geral, associa-se o fenômeno
"globalização" a aspectos econômicos
e financeiros atinentes ao passado recente.
Sucede, contudo, que não são esses os únicos
fatores a serem levados em consideração (Brunsvick
e Danzin, 1999). É bem verdade que as últimas
décadas têm testemunhado um aumento
vertiginoso dos fluxos comerciais e financeiros,
mas também se pode verificar um crescimento
substancial dos contatos nos âmbitos cultural,
social e até mesmo jurídico.
À
guisa de melhor sistemática, podem ser
destacados os seguintes aspectos daquele
primeiro nível de internacionalização: a)
comercial – homogeneização das estruturas de
demanda e oferta por empresas que estabelecem
contratos de terceirização com produtores
locais e comercializam os produtos sob suas próprias
marcas (ex: Nike, Nestlé, Benetton, Carrefour);
b) produtivo – fenômeno da produção
internacional de um bem para o qual concorrem
diversas economias com diferentes insumos; c)
financeiro – aumento do fluxo de capitais,
decorrente da automação bancária; d)
sociocultural – os mesmos instrumentos que
permitem o aumento do fluxo de capitais (redes
eletrônicas, televisão, satélites) constituem
o atual sistema de comunicação, o que
contribui para uma relativa homogeneização da
cultura e dos padrões de comportamento nas
sociedades; e) tecnológico – incremento
quantitativo e qualitativo das redes mundiais de
comunicação e informação (Internet).
De
um modo genérico, enfim, pode-se utilizar o
termo para designar a crescente e acelerada
transnacionalização das relações econômicas,
financeiras, comerciais, tecnológicas,
culturais e sociais que vem ocorrendo
especialmente nos últimos vinte anos.
Sucede
que também se pode conferir um caráter
crescentemente "global" ao campo do
Direito, haja vista o teor cada vez mais
candente das discussões teóricas, políticas e
jurídicas no que se refere à relatividade da
noção clássica de soberania, com o fito de se
redimensionar a questão da aplicação das
normas de Direito das Gentes.
De
fato, torna-se cada vez mais enfática e
cristalina a idéia segundo a qual a proteção
dos direitos humanos não é mais matéria de
competência exclusiva das soberanias nacionais,
nem pode ser esquivada sob o manto do
relativismo cultural(4). Se antes as questões
de direito internacional interessavam apenas aos
Estados soberanos, agora elas são criadoras de
uma imensa lacuna relativa às relações dos
Estados com outros atores, como diversas
organizações (notadamente as ONG's), empresas
multinacionais, indivíduos, minorias e grupos
de interesse.
Certo
é que tal intensificação de contato entre
diversos atores trouxe consigo novas demandas de
regulação das relações internacionais e a
opinião pública de vários países tende a se
unir - como porta-voz da Humanidade - para
exigir respostas multilaterais contra Estados
soberanos julgados culpados (Védrine, 2000)(5).
Tal foi o caso no Iraque, Ruanda, Haiti, Bósnia,
Kosovo, Timor Leste e Chechênia(6). Nota-se que
a pressão da opinião pública na União Européia
tem aumentado consideravelmente na década de
90, levando certos políticos à idéia de
diplomacia de intervenção (nas questões econômicas),
como mostraram exemplos franceses e nórdicos.
A
. 2 - Direito Internacional Público e Globalização
Herdou-se
o direito internacional do século XVIII, quando
os filósofos europeus começaram a afirmar seus
princípios, e os soberanos a colocar-lhes em prática
(Duflo, 1999). Kant, por exemplo, já acreditava
que a ordem internacional deveria ser construída
por relações jurídicas e não por relações
de poder ente os Estados soberanos - o que ele
bem explicou nas suas obras Doctrine du droit
e Projet de paix perpétuelle. Sua obra
foi construída a partir da preocupação de
garantir a propriedade individual (direito
privado), a fim de garantir a paz universal
(direito público) e chegar ao "direito
cosmopolita" (dever de cada Estado de
estabelecer relações jurídicas com os demais
para defender seus interesses legítimos). Ainda
que esse esquema seja discutível, é muito
importante assinalar o esboço do direito
internacional cujas esferas nacional,
internacional, pública e privada estão
interligadas.
O
Direito Internacional, de uma maneira geral, e
os Direitos Humanos, em particular, localizam-se
no cenário descrito na medida em que se esboça
continuamente uma idéia de "globalização
da justiça". Com efeito, pode-se afirmar
que o tema da defesa internacional dos direitos
fundamentais do ser humano tem assumido uma
configuração cada vez mais "global",
eis que se exige dos Estados nacionais o
cumprimento dos instrumentos jurídicos
internacionais firmados que regulam a matéria.
Exemplos recentes são as cobranças feitas pela
União Européia à Turquia (que almeja integrar
o seleto grupo dos Quinze), ou de ONG's que
denunciam a repressão política em países como
a China. Cabe assinalar, ainda, as diversas
querelas entre Estados duvidosamente democráticos
e as ONG's, tais como "Amnesty
International"(7) e "Human Rights
Watch".
O
primeiro efeito da globalização, do ponto de
vista da relação entre Estados soberanos, é a
crescente demanda legítima por uma melhor
regulação internacional. Contudo, as fontes
dessa demanda causam também problema, porque não
são apenas os Estados, mas todos os atores
internacionais que conseguirem participar dos
mecanismos decisórios. Por exemplo, quando
ONG's se unem para exigir o fim do trabalho
escravo no mundo. Sucede que a necessidade dessa
construção jurídica é acelerada ao mesmo
tempo que a "fratura social"(8) entre
Estados ricos e pobres tem se agravado(9). A
ordem internacional tende a ser reformada pelos
Estados mais poderosos (ou politicamente
organizados), que defendem suas prioridades e
interesses, mas acabam comprometendo todos os
outros(10).
Porém,
o principal efeito da globalização é a
intensificação de conflitos entre normas e
sujeitos de direito internacional público,
levando ao questionamento sobre a
operacionalidade dos referenciais de regulação.
Em outros termos, o direito internacional
destinado unicamente aos Estados soberanos e às
organizações internacionais está sendo
submetido a uma leitura mais exigente da observância
das normas internacionais. Ademais, verifica-se
que mecanismos jurídicos de sanções, antes
impensáveis face à pretensa soberania
absoluta, aparecem lentamente nos debates
multilaterais. Enfim, os Estados começam a
prestar contas a outros atores e a opiniões públicas
cujas nacionalidades se somam e se misturam. Então,
o ponto interessante a sublinhar é a irrupção
desses atores na cena internacional e a sua atuação
como juízes da ação política do Estado
(soberano). Este é o início do debate sobre a
formação do "espaço público
internacional" que será desenvolvido
adiante.
Nesse
contexto de construção jurídica marcado pela
desigualdade internacional, outra fonte de
contendas é a fragilidade do princípio de
universalidade do direito e dos valores que ele
defende (Védrine, 2000)(11). Quando se fala em
direitos humanos, as questões mais abordadas na
União Européia são as minorias étnicas, as vítimas
de guerras (prisoneiros, refugiados, imigrantes)
e a proteção do cidadão contra o abuso de
poder público (ou seja, o acesso a tribunais
internacionais ou supranacionais). No Brasil,
por outro lado, os valores são os mesmos, mas
as questões pertinentes são a proteção da
infância, o estatuto dos índios e a vida
carcerária. Ora, o direito internacional
espelha as preocupações ocidentais de manter
uma ordem internacional estável e pacífica,
pois foi codificado principalmente por
Estados-nação dominantes da cena internacional
a partir da era das grandes navegações. Em razão
dessa fragilidade inerente a toda construção
multilateral, o direito internacional avança
lentamente e depende das concessões feitas
pelos Estados. Assim, Chartouni-Dubarry e al
Rachid (1999) asseveram que o princípio de
universalidade é uma grande falácia jurídica,
e por isso os textos internacionais são muitas
vezes simples declarações de compromisso sem
poder cogente.
Quanto
aos Estados, é de bom alvitre ressaltar que
cada um age em função de interesses próprios,
que são definidos como seus interesses
nacionais, mas nem sempre expressos de maneira
clara e transparente. Conseqüentemente, a
definição de termos jurídicos bem como sua
interpretação não são jamais neutras,
qualquer que seja a questão. Dessa divergência
legítima de interpretações, de percepções e
de interesses surge o conflito de legitimidades
(Badie e Smouts, 1999) e o conteúdo de direito
internacional torna-se a pedra de toque de
atores internacionais que consomem esse
direito(12). Com efeito, tal conflito é
resultado lógico da diversidade de atores, e,
portanto, não constitui, por si só, novidade.
No
entanto, para evitar o obstáculo da divergência
de interesses ou o desafio do reconhecimento da
heterogeneidade, acreditou-se que era possível
criar um modelo ideal, justo e adequado para
todos os atores internacionais, ou melhor,
aproveitar a oportunidade para impor
internacionalmente um modelo nacional. Nesse
sentido, a ação da OTAN no Kosovo demonstrou
que primeiramente alguns Estados decidiram agir,
para depois legalizarem as operações militares
pelo recurso aos instrumentos onusianos. Essa
ilustração pode ser tomada como prova da
vontade dos decisionmakers mais
poderosos(13) de manter a segurança mundial e o
respeito dos direitos humanos, enquanto os
outros não interferiram de maneira
significativa no processo decisório (Gounelle,
1998).
Porém,
em termos estritamente jurídicos, foi a
comunidade internacional que puniu um agressor
em nome do bem-estar da humanidade. Cabe aqui
observar que esse conceito de
"comunidade" distingue-se do conceito
de "sistema internacional" usado pela
corrente realista das relações internacionais
que privilegia o papel do Estado.
"Comunidade" traduz o interesse de
mostrar a diversidade de atores internacionais,
sem que estes cheguem a formar uma verdadeira
"sociedade civil internacional", como
supõe Wapner (1996). Além disso, como defendeu
Kant e seus sucessores, não há sociedade
internacional (no sentido forte do termo) sem
que haja um direito que regule as relações
dentro dela. Portanto, se o debate teórico
sobre a existência de uma sociedade ou
comunidade internacional parece interminável,
é inadmissível que os dois termos sejam
utilizados como sinônimos.
Depois
que a comunidade internacional condenou o
Iraque, em 1991, esse fenômeno tem crescido
porque ela se sente garantidora do bem-estar da
humanidade. Enfim, a construção jurídica para
estabelecer as "regras do jogo" e
assegurar certa previsibilidade do cenário
internacional é influenciada por lutas políticas.
Além disso, os contenciosos transfronteiriços
tendem a aumentar na mesma medida em que a
globalização tende a se espargir (Mercadante e
Magalhães, 1998).
Por
conseguinte, do ponto de vista das relações
entre Estados e diversos atores, o direito sofre
concorrência de uma ordem jurídica
internacional que aspira a uma nova ordem
normativa além da simples coordenação das
relações de poder entre Estados soberanos(14).
Este seria, com efeito, o terceiro grande
impacto do fenômeno da globalização no campo
jurídico. Em outros termos, existe uma
comunidade de atores internacionais - geralmente
denominada "comunidade internacional"
- que demanda reconhecimento jurídico para
poder agir legalmente, e por isso milita para
transformar o direito internacional dos
soberanos em direito internacional das relações
entre todos os atores legítimos. Dessarte,
parece incontestável o décalage entre a
ordem normativa que o direito internacional
oferece atualmente e as aspirações de outros
atores internacionais, como as empresas
multinacionais e as ONG's.
De
fato, o papel e a natureza do Estado são
contestados no cenário internacional por atores
que uma leitura estrita do direito internacional
não reconhece (Frangi e Schulz, 1995). O
exemplo das crescentes interações entre atores
públicos e privados é pertinente não só
porque reflete a complexidade do contexto, mas
também porque levanta a questão sobre que tipo
de regulação jurídica internacional seria
adequada à realidade atual. Outrossim, o
direito de agir dentro do cenário internacional
faz parte da agenda das ONG's e da opinião pública
e constitui o "paradigma da dignidade da
pessoa humana" (Nádia de Araújo) (15).
Nesse sentido, a grande questão atual é como
assegurar aos indivíduos o acesso aos tribunais
internacionais de direitos humanos. O exemplo da
Corte Européia dos Direitos Humanos é, por
enquanto, único no mundo.
Nesse
sentido, o questionamento da validade de
conceitos tradicionais seria o quarto efeito da
globalização sobre o direito internacional público.
Exemplos de conceitos colocados à prova da
realidade atual são: soberania nacional (Byers,
1991; Litfin, 1997, 1998; Badie, 1999; Krasner,
1999), ingerência (Zorgbibe, 1994;
Moreau-Defarges, 1997), comunidade internacional
(Frangi e Schulz, 1995; Lefebvre, 1997), opinião
pública internacional (Favre, 1994), humanidade
como destinatária do direito internacional (Ost
e Gutwirth, 1996) etc. Nesse contexto de incursão
de atores exteriores dentro do domínio
reservado dos Estados, surge a seguinte questão:
em que medida o espaço público internacional
em plena formação poderia atenuar esse duplo
desequilíbrio entre direito das relações
entre Estados e direito das relações entre
Estados e outros atores?
A
.3 - O espaço público internacional em formação
A
crescente participação de atores
internacionais diversos nas questões
internacionais é fenômeno irrefragável em
questões relativas à proteção internacional
dos direitos humanos. O termo "espaço público
internacional" traduz, segundo o Professor
Bertrand Badie(16), essa abertura poltico-jurídica.
O conceito de espaço público utilizado é
habermasiano, definindo um espaço onde
diferentes componentes de uma sociedade se
exprimem e se estabelecem através da comunicação
entre eles.
A
grande magia da era da globalização é clara:
a informação circula no Planeta e niguém tem
o poder de "engavetar um processo" sem
prestar contas a uma opinião pública cada vez
mais militante. Comprova-se, certamente, o
paradigma de relações internacionais segundo o
qual os Estados não são - e talvez nunca
tenham sido - atores exclusivos das relações
internacionais, haja vista que a literatura mais
recente chega mesmo a questionar ou a
relativizar o significado do conceito de
soberania(17). O Estado parece estar, por isso,
intimado a redefinir seu papel (Badie e Smouts,
1999) para a satisfação da humanidade em
termos globais de justiça.
Contudo,
aborda-se a era da globalização pós-Guerra
Fria não como uma situação de crise de
governança global, mas como o ínicio de sua
formação. Essa governança, descrita por James
Rosenau e citada por Smouts(18), supõe a
"existência de regras, a qualquer nível
de atividade humana, da família até as
organizações internacionais, cujas
finalidades, que são controladas, têm incidências
internacionais". Essa abordagem objetiva
demonstrar como indivíduos e instituições
procuram resolver, por meio de processos
interativos de decisão, problemas comuns, tais
como os fenômenos transnacionais de migrações,
criminalidade, poluição e tráficos (de
entorpecentes, de mercadorias ou de dinheiro).
Nesse sentido, a institucionalização gradativa
das relações internacionais por meio de
instrumentos jurídicos é uma das condições
de possibilidade dessa governança global.
Em
conseqüência, o direito internacional pode ser
considerado um regime relativo (Lefebvre, 1997).
Em primeiro lugar, por questão de conteúdo,
pois os textos internacionais não são
universais nem hierarquizados, e seu poder de
coerção depende da vontade política de atores
interessados. Em segundo lugar, porque existem
diferentes percepções políticas e jurídicas
oriundas da multiplicidade de valores de cada
sociedade. Por exemplo, os Estados ocidentais
liberais e a América Latina valorizam os
direitos políticos e civis porque acreditam que
eles asseguram a pluralidade política e a
democracia liberal. Mas os socialistas,
inspirados no marxismo, distinguiam direitos
formais dos direitos reais, sendo apenas os últimos
garantidos pela sociedade socialista igualitária,
como o direito ao trabalho. E certos Estados da
África e da Ásia, para limitar o liberalismo
político, escolheram a inspiração marxista,
facilmente identificada em textos de 1981, tais
como a Carta Africana de Direitos Humanos e dos
Povos e a Declaração Islâmica Universal de
Direitos Humanos.
Em
terceiro lugar, por sua natureza, o direito
internacional também é relativo, pois entra em
conflito com o princípio de soberania e as únicas
soluções para a aplicação do texto jurídico
contra um Estado são as pressões diplomáticas
(e econômicas) e a mobilização da opinião pública
internacional. Em quarto lugar, a relatividade
também se explica pelo espaço territorial,
porque os dois textos mais avançados em matéria
de direitos humanos são a Carta da União Européia
e a Carta da OEA. As outras regiões do mundo
apresentam níveis muito díspares de controle
jurídico. Em termos de responsabilidade penal
internacional, aquelas Cartas representam casos
de exceção, porque os crimes de guerra são e
serão sancionados por soluções ad hoc (cláusula
124 dos acordos da Corte Penal de Justiça).
Enquanto os crimes contra os direitos humanos são
de competência dos Estados, esperando que a CPJ
funcione sistematicamente.
B
- Direitos Humanos e a "Globalização da
Justiça"
Antes
de tudo, convém analisar a evolução do
direito internacional antes e após a IIª
Grande Guerra. Antes de 1945, o direito
internacional passou em silêncio pelas questões
de direitos humanos, tratando apenas de questões
restritas à escravidão e ao trabalho forçado.
As questões humanitárias entravam na agenda
internacional quando ocorria uma guerra, mas
logo mencionava-se o problema da ingerência
contra um Estado soberano e a discussão morria
lentamente. Temas como o respeito às minorias
dentro de territórios nacionais e direitos de
expressão política não eram abordados para não
ferirem o então inconstestável e absoluto
princípio de soberania (Lefebvre, 1997:115-7).
Após
a Segunda Guerra, o tema "Direitos
Humanos" passou a ser tratado como
verdadeira revolução, na medida em que teria
colocado o ser humano individualmente
considerado no primeiro plano do Direito
Internacional Público em um domínio outrora
reservado aos Estados nacionais. Paradoxalmente,
o direito internacional feito por Estados e para
os Estados começou a tratar da proteção
internacional dos direitos humanos contra o
Estado, único responsável reconhecido
juridicamente. Esse novo elemento significaria
uma mudança qualitativa para a comunidade
internacional, pois não se cingiria mais a
interesse nacional particular(19). O cidadão,
antes vinculado a sua nação, torna-se lenta e
progressivamente "cidadão do
mundo"(20).
A
multiplicação dos instrumentos internacionais
após o final dessa guerra, como a Declaração
Universal de 1948 e os dois Pactos de 1966,
levaram a uma nova evolução da proteção
internacional dos direitos humanos. Por essa razão,
o que se verifica na atualidade é uma espécie
de busca por uma "justiça
globalizada", a qual poderia ser
institucionalizada por meio de um tribunal
verdadeiramente supra-nacional, permanente e
livremente constituído pela comunidade
internacional.
A
propósito, alguns estudiosos aventam a urgência
de se "constitucionalizar" as relações
internacionais(21) para – sob a égide do
paradigma grociano – enfatizar a sociabilidade
existente para tornar possível elaborar regras
que garantam uma convivência internacional
harmoniosa. Essa "constitucionalização"
exigiria o estabelecimento de um verdadeiro e único
tribunal internacional e evitaria o que se
verifica na atualidade: a proliferação fácil
de tribunais ad hoc - o que constitui
fator altamente pernicioso para a construção
de um sistema jurídico internacional
equilibrado, eficiente e justo.
É
bem verdade que essa idéia não se coaduna com
a realidade (em sentido hobbesiano) das relações
internacionais, sempre assimétricas e marcadas
pelo diferencial de poder entre os atores. Seria
ingênuo supor, por exemplo, que uma grande potência
fosse acatar sentenças e decisões contrárias
a seus interesses. De qualquer sorte, entende-se
que o sistema multilateral ainda é o melhor
mecanismo para resolver questões jurídicas
apresentadas constantemente no cenário
internacional. É preciso estimular o diálogo
baseado no respeito ao Direito Internacional, à
resolução pacífica de controvérsias e aos
princípios reconhecidos como básicos no âmbito
do Direitos Humanos.
A
relativização da soberania é a questão
central da temática referente à aplicação
atual de mecanismos de proteção dos Direitos
Humanos. É sobejamente sabido que o primeiro
grande precedente que rompeu com a idéia de um
domínio reservado dos Estados em Direitos
Humanos foi o "Grupo de Trabalho Especial
sobre a Situação dos Direitos Humanos no
Chile", do regime de Pinochet. Sucede,
contudo, que o "Tribunal" ad
hoc criado refletiu a força política
momentânea em detrimento do fortalecimento dos
mecanismos do Direito Internacional Público.
Trata-se de evidente mecanismo que contribui
mais para resolver questões específicas, ao
sabor das circunstâncias políticas e da força
da opinião pública, do que para instaurar
mecanismos permanentes e firmes de controle do
Direito.
B.1
- Marcos históricos dos Direitos Humanos
Na
própria Bíblia, está estatuído, no Gênesis,
que "Deus criou o homem à sua
imagem", como querendo ensinar que o homem
assinala o ponto culminante da criação. Nesse
sentido, observa Hannah Arendt que "... a
própria vida é sagrada, mais sagrada que tudo
mais no mundo; e o homem é o ser supremo sobre
a terra"(22). Assim, entende-se que todo
homem é único e quem suprime sua existência
é como se destruísse o mundo por completo.
Analisando
as idéias apresentadas pelos grandes pensadores
da teoria política moderna, verifica-se que os
indivíduos, até mesmo para Hobbes, têm o
direito inalienável à vida(23). Esses e outros
direitos fundamentais correspondem ao que
Jean-Marie Dupuy qualificou de "noyau dur"
dos direitos humanos. Eles remetem-nos às
obrigações erga omnes da Corte
Internacional de Justiça e referem-se ao princípio
de jus cogens evocado na convenção de
Viena sobre Tratados Internacionais (Lefebvre,
1997: 123).
Ademais,
pode-se dizer que há certa relação entre a
teoria de Locke - para quem o Estado e o Direito
são uma espécie de meio-termo entre a
liberdade vigente no "estado de
natureza" (onde tudo é permitido) e as
exigências da vida em sociedade – e os princípios
que inspiraram a proteção dos direitos
fundamentais do ser humano. De fato, é
importante aqui ressaltar que a passagem do
Estado absolutista para o Estado de Direito (Rule
of Law) transita pela preocupação do
individualismo em estabelecer limites ao abuso
de poder do todo em relação ao indivíduo.
Esses
limites encontrariam guarida na idéia de divisão
dos poderes, que, preconizada por Montesquieu,
quedou estatuída no art. 16 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão: "Toute
société dans laquelle la garantie des droits
n’est pas assurée, ni la séparation des
pouvoirs déterminée, n’a point de
Constitution".
Ainda
que se observe que os principais marcos históricos
da temática estão na Revolução Parlamentar
Inglesa, na Independência dos EUA e na Revolução
Francesa, com suas respectivas Declarações, a
inclusão da observância dos Direitos Humanos
entre os princípios da Carta da ONU (1945) e a
proclamação da Declaração Universal dos
Direitos Humanos (1948) representaram mudança
qualitativa das relações internacionais.
Com
efeito, a Carta de São Francisco, consoante
Pierre Dupuy, fez dos Direitos Humanos um dos
axiomas da organização, conferindo-lhes uma
estatura constitucional no Direito das
Gentes.(24)
Certo
é que o tema "Direitos Humanos"
constitui um dos itens mais importantes da
agenda internacional contemporânea. Para analisá-lo
de maneira mais sistemática, convém agora
abordar três pontos: a Convenção de Viena; o
quadro normativo existente no plano
internacional; e a política brasileira na matéria.
B.2
- A Conferência de Viena e a consagração dos
princípios da indivisibilidade, da interdependência
e da universalidade.
Após
um quarto de século da realização da Iª
Conferência Mundial de Direitos Humanos,
realizada em Teerã, a IIª. Conferência
(Viena, 1993) consagrou os Direitos Humanos como
tema global(25).
A
Conferência de Viena conferiu abrangência inédita
aos Direitos Humanos ("DH"), ao
reafirmar sua universalidade, indivisibilidade e
interdependência. Ademais, afastou a objeção
de que o tema estaria no âmbito da competência
exclusiva da soberania dos Estados.
Quanto
à universalidade, foi uma das conquistas mais
difíceis da Declaração de Viena. De fato, só
ao final se conseguiu consenso sobre o caráter
universal dos DH e se compreendeu que a
diversidade cultural não pode ser invocada para
justificar sua violação. Assim, ainda que as
diversas particularidades históricas,
culturais, étnicas e religiosas devam ser
levadas em conta, é dever dos Estados promover
e proteger os DH, independentemente dos
respectivos sistemas. A observância dos DH não
pode ser questionada com base no relativismo
cultural. Entendeu-se que a universalidade é,
na verdade, enriquecida pela diversidade
cultural, que não pode ser invocada para
justificar a violação dos direitos humanos.
Cuida-se,
aqui, de um processo de amadurecimento das idéias
relacionadas à dignidade humana mínima e à
universalidade do ser humano individualmente
considerado, acima de quaisquer particularismos.
Os Direitos Humanos passam, então, a ser
encarados como sinal de progresso moral(26).
O
que se superou foi a resistência derivada do
suposto "conflito de civilizações",
aceitando-se a unidade do gênero humano no
pluralismo mesmo das particularidades das nações
e de seus antecedentes culturais, religiosos e
históricos.
Tanto
sob o ponto de vista da diplomacia, como sob o
ponto de vista do Direito, o avanço foi
extraordinário. Contudo, não se pode afirmar
que, no campo operativo, o universalismo tenha
realmente suplantado o relativismo(27). Com
efeito, os instrumentos jurídicos sobre a matéria
têm mais caráter declaratório do que
impositivo.
De
qualquer sorte, a Declaração de Viena também
estatuiu que a proteção dos DH não pode ser
questionada com base na soberania. Com efeito, o
reconhecimento da legitimidade da preocupação
internacional com a proteção dos DH foi outra
conquista conceitual da Declaração.
Confirmou-se a idéia de que os DH extrapolam o
domínio reservado dos Estados, invalidando o
recurso abusivo ao conceito de soberania para
encobrir violações. Os DH não são mais matéria
de competência exclusiva das jurisdições
nacionais. Não se levanta mais a exceção do
"domínio reservado dos Estados", em
benefício último do ser humano.
É
importante sublinhar que a própria Carta da ONU
consagra, em seu texto(28), o princípio da não-ingerência
em assuntos de competência interna dos Estados,
o que deu ensejo a diversas interpretações no
que tange à legitimidade de uma ação da ONU
nesse campo. Sucede que o chamado "direito
de ingerência" é um dos conceitos
abusivos que mais têm prejudicado o trabalho da
ONU em favor dos Direitos Humanos. No contexto
do direito humanitário, "sua origem
remonta ao final dos anos 80, quando os "Médecins
sans Frontières" encontraram obstáculos
governamentais para fornecer auxílio médico e
alimentar a populações africanas e asiáticas
em áreas conflagradas"(29).
A
idéia de "competência nacional
exclusiva" encontra-se, agora, superada
pela atuação dos órgãos de supervisão
internacionais na proteção dos direitos
humanos. De fato, não há noção mais alheia
à proteção internacional dos Direitos Humanos
que a da soberania"(30). Por isso mesmo
acredita-se que esse princípio deva ser
redefinido em função das aspirações dos
componentes do espaço público internacional em
plena fase de consolidação.
Ao
firmar um Tratado qualquer, os Estados abdicam
de uma parcela de sua soberania e se obrigam a
reconhecer como legítimo o direito da
comunidade internacional de observar sua ação
interna sobre o assunto de que cuida o
instrumento jurídico negociado e livremente
aceito. Ademais, o Professor Cançado Trindade
(1999) atribui à proteção internacional dos
direitos humanos um caráter especial, haja
vista que estes prescrevem obrigações visando
a garantir o interesse geral, independementement
dos interesses individuais das partes
contratantes. Sendo assim, os direitos humanos
consagrados em instrumentos internacionais não
devem ser limitados, salvo esteja explícito em
texto jurídico.
No
que tange à indivisibilidade, está superada a
dicotomia entre "categorias de
direitos"(civis e políticos, de um lado;
econômicos, sociais e culturais, de outro).
Verificou-se que a teoria das "gerações
de direitos" é historicamente incorreta e
juridicamente infundada, porque não há
hierarquia quanto a esses direitos e porque os
argumentos em favor dessa divisão são
ultrapassados. Com efeito, os direitos humanos
devem ser considerados de maneira eqüitativa,
em pé de igualdade e com a mesma ênfase.
Dado
novo, desde o início defendido pelo Brasil, é
a interdependência entre democracia,
desenvolvimento e DH. O reconhecimento do
direito ao desenvolvimento como direito humano
universal foi o maior êxito para os países em
desenvolvimento. A Declaração de Viena propõe
medidas concretas para a realização do direito
ao desenvolvimento, por meio da cooperação
internacional, tais como: alívio da dívida
externa e luta para acabar com a pobreza
absoluta.
Em
resumo, certo é que o sistema internacional de
proteção do DH saiu fortalecido da Conferência
de Viena, eis que quedaram estatuídos princípios
fundamentais no caminho da "globalização"
dos mecanismos concretos de proteção dos
Direitos Humanos.
|
B.3 - O
quadro normativo existente e a política brasileira de
Direitos Humanos.
Para
expor o arcabouço jurídico existente, convém ressaltar,
de início, que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), proclamada pela Assembléia Geral da ONU,
definiu, pela primeira vez, como "padrão comum de
realização para todos os povos e nações" os DH e
liberdades fundamentais.
Previu-se,
em seguida, a adoção de dois Pactos para a implementação
da Declaração. Sucede que, devido a controvérsias
Leste-Oeste e Norte-Sul, a elaboração levou 20 anos e
outros 10 foram necessários para a entrada em vigor. Por
fim, foram adotados, em 1976, o Pacto de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais; e o Pacto de Direitos Civis e Políticos.(31)
Desde
a Declaração Universal de 48 até hoje, a ONU adotou
mais de 60 Declarações e Convenções sobre DH. Convém
ressaltar que as Convenções constituem hoje importante
arcabouço jurídico das Nações Unidas. Formam o que se
denomina "the United Nations Human Rights System",
cujo poder de influência na matéria tem sido crescente.
O Brasil é parte de todas as mais significativas:
a)
"Convenção Internacional para a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação Racial", adotada
em 1965, em vigor desde 1969 e ratificada pelo Brasil em
1968;
b)
"Convenção para a Eliminação de Discriminação
contra a Mulher", adotada em 1979, vigente em 1981 e
ratificada pelo Brasil em 1984. Reuniu o maior número de
reservas. O Brasil também expressou reservas devido ao Código
Civil. Mas, com a Constituição de 1988, foram elas
revistas pelo Governo brasileiro, por não mais se
coadunarem ao tetxo constitucional;
c)
"Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos e
Punições Cruéis, Desumanos e Degradantes", adotada
em 1984, vigente em 1987 e ratificada pelo Brasil em 1989.
Embora a Constituição de 1988 tenha qualificado a
tortura como crime inafiançável e insuscetível de graça
ou anistia, o crime ainda não foi tipificado;
d)
"Convenção sobre os Direitos da Criança",
adotada em 1989, vigente em 1990 e ratificada pelo Brasil
em 1990. Tendo sido ratificada por 191 dos 193 países-membros(32),
é tida por "virtualmente universal".
Ressalte-se que o "Estatuto da Criança e do
Adolescente" do Brasil reflete suas disposições, as
quais foram adaptadas ao caso brasileiro.
Quanto
ao quadro normativo interamericano, o Brasil ratificou, em
1989, a "Convenção Interamericana para Prevenir e
Punir Tortura" e, em 1992, a "Convenção
Interamericana sobre Direitos Humanos" (Pacto de San
José).
No
que tange à política brasileira de DH, o Brasil conheceu
quatro momentos de evolução de sua atuação na Comissão
de Direitos Humanos da ONU. O primeiro vai de 1964 a 1977.
Esse período, caracterizado pelo auge do regime
ditatorial, pautava-se pela ausência de diálogo da parte
do Brasil sobre a temática. As manifestações oficiais
eram esporádicas e sempre marcadas por elevado grau de
confidencialidade.
O
segundo de 1977 (quando o Chanceler Azeredo da Silveira
abordou o tema, pela primeira vez, de maneira abrangente e
cautelosa) até 1984. Foi um período de posições
conservadoras e defensivas. De qualquer forma, o Brasil
decidiu abri o diálogo com a apresentação de
candidatura oficial à Comissão de Direitos Humanos.
O
terceiro vai de 1985, com o começo da redemocratização
(quando o Presidente Sarney anuncia nossa adesão aos
Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais), até 1990. Foi um período de
reconhecimento relativamente tímido da legitimidade das
iniciativas multilaterais de controle das violações de
DH. Registre-se que, em 1988, a Constituição Federal
estabeleceu, no art. 4º, que a prevalência dos DH é um
dos princípios que regem as relações internacionais do
Brasil.
O
quarto vai de 1991 até hoje, em que os mecanismos
internacionais não configuram atentado ao princípio de não-intervenção.
Há reconhecimento pleno da legitimidade dos mecanismos
internacionais de proteção. A política brasileira de DH
mudou, de fato, com a consolidação das instituições
democráticas.
Atualmente,
a política brasileira de DH se caracteriza pelos
seguintes fatores: a) atuação pautada pela transparência
e disposição para o diálogo com órgãos
internacionais, autoridades estrangeiras e ONG’s(33); b)
adesão a todos os Pactos e Convenções relevantes na matéria;
c) valorização dos foros e mecanismos multilaterais; d)
valorização da cooperação internacional; e) exigência
de atuação internacional para as causas estruturais da
violência social.
O
Brasil admite a existência de problemas e manifesta o
desejo de resolvê-los. Mas, ao expor à comunidade
internacional a própria situação interna, procura
ressaltar a dimensão socioeconômica da questão. Não
esconde seus problemas (haja vista a cobrança de ONG’s
quanto aos episódios de Candelária, Vigário Geral,
Carandiru, índios ianomâmi etc), mas procura mostrar a
vinculação com a questão do desenvolvimento. Em outras
palavras, procura mostrar a relação entre pobreza,
criminalidade, violência e violação dos DH, o que
significa que há causas estruturais a serem consideradas
e que as violações de DH não ocorrem com a conivência
do Estado.
O
Brasil de hoje não se caracteriza mais pela
arbitrariedade de um regime autoritário mas pelas
dificuldades de um país democrático em assegurar a proteção
dos DH, dentro do quadro constitucional e em consonância
com seu nível de desenvolvimento.
Deve
ser enfatizado que a política do Brasil de avaliar e
expor a própria situação não é para solicitar a
indulgência internacional, mas para chamar atenção para
a difícil situação socioeconômica de uma país em
busca de efetivo respeito dos DH e de reconhecimento de
seus esforços.
C
- Conclusões
Poder-se-ia
elencar três novas características do direito
internacional em construção (Weiss, apud.
Aubertin e Vivien, 1998:2-15). A primeira, decorrente das
lacunas entre as relações de Estados e de outros atores,
é a intersecção das esferas do direito público e do
privado, tanto no âmbito nacional como no internacional.
Segundo exemplo da Professora Nádia Araújo(34), tudo o
que for codificado no âmbito da Organização Mundial do
Comércio (OMC) terá conseqüências importantes para
contratos privados.
A
segunda característica é a crescente utilização de
instrumentos legais não-cogentes ou voluntários, sob a
forma de declarações de intenções ou de atos
unilaterais. Como se a comunidade internacional pudesse de
facto julgar a ação política dos Estados que se
comportam mal. Na Cúpula da Francofonia de 1999 no Canadá,
por exemplo, este país propôs sanções aos Chefes de
governo que violassem os direitos humanos, mas essa
"comunidade internacional" restrita se contentou
em adotar a proposta do Presidente francês Jacques Chirac
de criar um "Observatório dos Direitos
Humanos", sem nenhum efeito cogente.
Cabe
ressaltar que a sociedade internacional ainda é
descentralizada – e assim será muito provavelmente por
longo tempo. Ademais, não há, no sistema internacional,
nem autoridade superior, supranacional, nem mesmo milícia
permanente, que possa tornar obrigatório, sob via de força,
o cumprimento das normas. Decorre, portanto, que os
Estados sofrem pressões difusas e confusas, mas ainda são
os principais responsáveis pela construção do direito
internacional e dos direitos humanos, em particular.
Sucede,
contudo, que o direito internacional nunca foi tão
solicitado no mundo e tão ampliado a questões diversas (Lefebvre,
1997). Nesse sentindo, os primeiros passos do Tribunal
Internacional Penal confirmam a retomada do ideal de justiça
internacional: para Cançado Trindade (1999), o
monitoramento mundial do respeito aos direitos humanos e a
inclusão dessa dimensão nos programas das Nações
Unidas são etapas importantes para a realização desse
ideal.
A
terceira é a integração do direito nacional e do
direito internacional à medida que os textos
internacionais exigem uma harmonização de outras legislações
domésticas. Considerando que os instrumentos
internacionais ratificados pelos governos de cada
Estado-parte prevalecem sobre as legislações nacionais (ou,
ao menos, a ela se equivalem, em igualdade hierárquica),
essa evolução parece óbvia. Contudo, a questão do
status normativo das fontes internacionais frente às
nacionais não será desenvolvida.
Constata-se,
em suma, que o processo cunhado de "globalização"
tem surtido efeitos impressionantes na esfera jurídica,
haja vista a necessidade de regulação internacional mais
consentânea com as demandas atuais da comunidade
internacional. Apesar da natural diversidade de interesses
dos Estados, a idéia de "constitucionalização"
das regras de conduta dessa comunidade no que se refere à
proteção dos direitos humanos é cada vez mais premente,
o que implica reforçar a relatividade do conceito de
soberania.
D
-NOTAS
1.
Para uma definição detalhada de "globalização
multidimensional", ver Viola (1996).
2.
O Estado tem direito soberano de controlar mensagens que
entram no seu território, segundo a Resolução 37-92 da
ONU datada de 10.12.1982.
3.
O número de transnacionais em 1970 situava-se em torno de
7.000; já em 1992, estimava-se em 37.000.
4.
Para uma versão onusiana do tema, ver a entrevista de K.
Annan, The Economist, 18.09.1999.
5.
Debate realizado entre o Ministro francês das Relações
Exteriores, Hubert Védrine, e 80 estudantes no Quai d'Orsay,
Paris, junho de 2000. Foi um exemplo chocante de como a
juventude francesa exigiu de seu ministro políticas
severas contra todos que violam os direitos humanos
(denunciados pela imprensa), principalmente Beijing e
Moscou.
6.
Cada caso é merecedor de atenção especial. Na Chechênia,
por exemplo, a guerra ainda não acabou, e a comunidade
internacional fez pressão diplomática, sem influenciar a
política de "extermínio de terroristas" de
Vladimir Poutine.
7.
Esta ONG denunciou, em relatório publicado dia 29 de março
de 2000, não só as violações aos direitos humanos no
Reino da Arábia Saudita, como sendo o "pior sistema
judiciário do mundo", mas também a indiferença da
comunidade internacional. Jornal Libération,
30.03.2000, p.14.
8.
Termo utilizado pelo Presidente J. Chirac para descrever
esse fenômeno de disparidades múltiplas dentro da
sociedade francesa.
9.
Segundo dados comparativos dos relatórios do PNUD dos últimos
30 anos.
10.
Sobre a desigualdade de poder no cenário internacional,
ver Hurrel, A. e Woods, N. Inequality, Globalization
and World Politics, 1999.
11.
Ver nota 5.
12.
Chartouni-Dubarry e al Rachid, "Droit et
mondialisation", 1999.
13.
O conceito de poder é objeto de querelas intermináveis
na teoria de relações internacionais. Ele traduz aqui a
capacidade de agir na cena internacional (Gounelle, 1998;
Lefebvre, 1997), de atores coletivos como G-8 e OTAN, UE
ou individuais, como os EUA.
14.
Chartouni-Dubarry e al Rachid, op. cit.
15.
Entrevista realizada dia 23 de maio de 2000. Ver Boucault
e Araujo (1999).
16.
Professor de Relações Internacionais no Instituto de
Estudos Políticos de Paris. Entrevista realizada dia
09.03.2000, em Paris.
17.
Ver Krasner, S. Sovereignity: Organized Hipocrisy,
1999. Ver também Badie, B. La fin des souverainetés, 1999.
18.
Smouts, M.-C. "Du bon usage de la gouvernance en
relations internationales", Revue Internationale
des Sciences Sociales, n° 155, mars 1998, p. 85-94.
19.
Cf. Drinan, R. Cry of the oppressed: the human rights
revolution. São Francisco: Row Pub,1987.
20.
Nota-se a aproximação do ideal de jurisdição planetária
com a criação de tribunais internacionais, como o
Tribunal Penal Internacional.
21.
Cf. Lafer, Comércio, Desarmamento e Direitos Humanos.
Paz e Terra, 1999, p.141.
22.
Arendt, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. São
Paulo, Perspectiva, 1972, p.83.
23.
Hobbes, T. Leviathan. Harmondsworth, Penguin Books,
1979, pp.189-201.
24.
Dupuy, P. La protection internationale des droits de
l’homme, p.404, 1980.
25.
Ressalte-se que ao Brasil coube, por indicação, presidir
o Comitê de Redação.
26.
Bobbio, L ‘età dei diritti, Torino: Einaudi,
1990, pp.143-155
27.
Cf. exemplos in: Lindgren Alves, J. Os Direitos Humanos
Como Tema Global, 1994, p.140.
28.
Art. 2º, # 7.
29.
Lindgren Alves, J . op. cit., p. 38.
30.
Trindade (Cf. apresentação ao livro de Lindgren Alves,
J. Os Direitos Humanos como Tema Global, 1994)
31.
Desde 1992, o Brasil é parte dos dois intrumentos.
32.
Com as exceções dos Estados Unidos da América e da Somália.
33.
Ressalte-se a crescente aproximação do Governo com as
organizações não-governamentais, como expressão legítima
de organização da sociedade civil.
34.
Entrevista realizada dia 23 de maio de 2000.
E
- Bibliografia
AKZIN,
B. States and Nations. New York: Anchor Books,
1966.
ALVES,
J. A.L. Os Direitos Humanos como Tema Global.
Brasilia: Funag, 1994.
ARENDT,
Hannah. Du mensonge à la violence: essais de politique
contemporaine. Paris: Calmann-Lévy, 1972.
AUBERTIN,
C. e VIVIEN, F.-D. Les enjeux de la biodiversité.
Paris : Economica, 1998.
BADIE,
B. La fin des souverainetés: l'État entre ruse et
responsabilité. Paris: Ed. Fayard, Collection
L'Espace du politique, 1999.
BADIE,
B. e SMOUTS, M.-C. Le retournement du monde :
sociologie de la scène internationale. 3 ed., Paris :
Presses de Sciences Po : Dalloz, 1999.
BOUCAULT,
C. e ARAUJO, N. (orgs.) Os Direitos Humanos e o Direito
Internacional, Rio de Janeiro : Renovar, 1999.
BRUNSVICK,
Y. e DANZIN, A. Birth of a Civilization. The Shock of
Globalization, Paris: UNESCO, 1999.
BYERS,
M. Custom, power and the power of rules : international
relations and customary international law Cambridge :
Cambridge University Press, 1999.
CANÇADO
TRINDADE, A. The Application of the Rules of Exhaustion
of Local Remedies in International Law. Cambridge
Univ. Press, 1983.
CANÇADO
TRINDADE, A. Tratado de Direito Internacional dos
Direitos Humanos, vol. II, Porto Alegre: Sergio
Fabris, 1999.
CHARPENTIER,
J. "L'humanité: un patrimoine mais pas de prsonnalité
juridique". In: PRIEUR, M. e LAMBRECHTS, C. L'Humanité
et l'environnement: quels droits pour le vingt-et-unième
siècle ? Etudes en hommage à Alexandre Kiss. Manking and
the environment: what rights for the twenty-first century
? Paris: Frison-Roche, 1998 , p. 17-21.
CHARTOUNI-DUBARRY,
F. e AL RACHID, L. "Droit et mondialisation".
In: Politique étrangère, 4/99, p. 941-946.
CONSTITUIÇÃO
do Brasil e Constituições Estrangeiras. Brasília,
Senado Federal, 1987.
DALLARI,
D. Elementos de Teoria Geral do Estado. São Paulo,
Saraiva, 1997.
DRINAN,
R. Cry of the Oppressed: the history and hope of the
human rights revolution. São Francisco: Harper &
Row Publishers, 1987.
DUFLO,
C. "Le nouvel ordre mondial selon Emannuel
Kant". In: La Pensée, n° 320, octobre-décembre,
1999, p. 27-35.
FAVRE,
J. " L’opinion publique et les relations
internationales". In: Défense Nationale,
1994, (12), décembre, pp. 63-70.
FERREIRA
FILHO, M. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo, Saraiva, 1991.
FLORY,
M. "Mondialisation et droit international du développement".
Dans: Revue Générale de Droit International Public,
1997, n° 3, Paris, pp. 609- 34.
FRANGI,
M. e SCHULZ, P. Droit des relations internationales.
Paris: Dalloz, Collection Lexique, 1995.
HURREL,
A. e WOODS, N. (orgs.). Inequality, globalization and
world politics. Oxford: Oxford University Press, 1999.
KRASNER,
S. Sovereignity: Organized Hipocrisy. Princeton:
Princeton University Press, 1999.
LAÏDI,
Z. Un monde privé de sens. Paris: Fayard, 1994.
LAFER,
C. A Reconstrução dos Direitos Humanos. Companhia
das Letras, 1991.
LEFEBVRE,
M. Le jeu du droit et de la puissance. Précis des
relations internationales. Paris: Presses
Universitaires de France, 1997.
LITFIN,
K. The greening of sovereignty in world politics. Cambridge,
Mass. : MIT Press, 1998.
GOUNELLE,
M. Relations internationales. Paris: Dalloz, 1998.
MACPHERSON,
C.B. Democratic Theory. Oxford, Clarendon Press,
1973.
MERCADANTE,
A. e MAGALHÃES, J. (coords.) Solução e Prevenção
de Litígios Internacionais, São Paulo: Núcleo de
Estudos de Controvérsias Internacionais (NECIN/CAPES),
1998.
MELLO,
C. Direito Internacional Público. Rio, Freitas
Bastos, 1982.
MOREAU-DEFARGES,
P. Un monde d'ingérences. Paris: Presses de
Science Politique, 1997.
O’CONNELL,
D. International Law. Londres, Stevens, 1970.
REZEK,
J. Direito dos Tratados. Rio: Forense, 1988.
___________________.
Direito Internacional Público, São Paulo:
Saraiva, 1995.
SMOUTS,
M.-C. Les nouvelles relations internationales :
pratiques et théories. Paris : Presses de Sciences
Po, 1998.
VIOLA,
E. e FERREIRA, L. (orgs.) Incertezas de
sustentabilidade na globalização. Campinas: Unicamp,
1996.
WAPNER,
P. Environmental activism and world civic politics
Albany, N.Y. : State University of New York Press, 1996.
WEISS,
E. Justice pour les générations futures : droit
international, patrimoine commun et équité intergénérations.
Paris : Sang de la terre, 1993; Tokyo : United Nations
University Press, 1993; Paris : Unesco, 1993.
ZORGBIBE,
C. Le droit d'ingérence, Collection Que-sais-je? ,
Paris, P.U.F., 1994.
ZORGBIBE,
C. Histoire des relations internationales 4 : Du
schisme Moscou-Pékin à l’après-guerre froide de 1962
à nos jours. Paris : Hachette-Pluriel, 1995.
Ancelmo
César Lins de Góis
bacharel
em Direito e em Relações Exteriores pela Universidade de
Brasília (UnB),
diplomata de carreira,
professor de Ciência Política na Faculdade de Direito do
UniCEUB
Ana Flávia
Barros-Platiau
consultora internacional e bolsista da CAPES,
bacharel em Relações Internacionais pela Universidade de
Brasília,
DEA em Relações Internacionais na Universidade Sorbonne
Panthéon (Paris 1),
doutoranda em Direito na mesma universidade
|