
SOBERANIAS,
NAÇÕES, IMPÉRIOS
Daniel
Bensaid
l.
A generalização relativamente recente do Estado-nação como forma histórica de organização política acompanha a
gênese e o triunfo do capitalismo em escala planetária. Seu
desenvolvimento é determinado por uma dialética, particular
segundo o país, entre a unificação dos mercados, a edificação
de instituições estatais e a formação de nações. A nação não
aparece portanto como uma substância original moldada pelo Estado
mas sob retudo como o resultado de uma empresa de unificação
territorial, administrativa e escolar (lingüística). Aconsciência
nacional traz assim ao Estado territorial « o substrato
cultural que assegura a solidariedade cidadã » (Habermas).
A emergência do sistema Estados-nações na Europa tem por
reverso (e condição) o processo de colonização e de dominação
imperial do mundo.
2.
O que se designa como ordem westfaliana, aparecida no meio do XVII
século,é uma ordem parcial e desigual. Certos Estados
permaneceram com efeito plurinacionais...Alguns, como a Alemanha,
conheceram um processo de unificação
tardio e
burocrático, com fraca legitimidade popular. Saídos das
partilhas coloniais, numerosos países da África ou do mundo árabe
representam esboços frágeis de Estados-nações modernos,
estropiados desde sua formação pela inserção dependente no
mercado mundial. Eles não tiveram assim
nem o tempo nem os meios de uma redistribuição social que
permita consolidar um espaço público e uma sociedade civil
ativa. A formação dos Estados-nações teria assim fracassado,
segundo Balibar, na maior parte do mundo.
3.O
direito internacional que se constituiu a partir do século XVII e
de hegemonia holandesa permaneceu fundamentalmente um direito
inter-estados baseado nos tratados. Esta forma permanece dominante
malgrado o atual processo de globalização. A ONU é uma assembléia
dos Estados e seu Conselho de Segurança
permanente é um clube fechado das potências vitoriosas da
últimaguerra mundial. As decisões de cúpulas como aquelas de
Kyoto sobre o meio ambiente e a de Roma (devendo conduzir à criação
de uma Corte penal in-
ternacional permanente) estão submetidas à ratificação dos
Estados. A própria União Européia representa um compromisso
institucional entre uma ordem inter-estatal enfraquecida e uma
ordem supranacional emergente. Nessa transição perigosa, o mundo
é portanto chamado a navegar duravelmente entre o
direito dos Estados e um direito cosmopolítico em formação.
Na ausência de
poderlegislativo internacional essa transição é favorável ao
direito doi mais forte se impondo com o aval da ONU qundo é possível,
sem ele se necessário ( como
o proclamou claramente madeleine Albright quando da guerra
dos Bálcãs).Quanto mais o invocamos, mais o direito
internacional aparece assim problemático e incerto.
4.
Os equívocos do « direito de ingerência »ilustram
essa contradição. Seus partidários hesitam entre a noção jurídica
de direito e aquela, moral, de dever. A proclamação desse
direito novo deve sancionar a obsolescência das soberanias
nacionaisdiante da universalidade cada vez mais reconhecida dos
« direitos do homem ». Na realidade, esse direito de
ingerência em senso único, passando alegremente do humanitário
ao militar, reduz-se na prática à intervenção dos poderosos
nos negócios dos fracos sem a menor reciprocidade. Ele torna-se
então o álibi ético das novas dominações imperiais.
5.
Os campeões da globalização liberal inventaram ( notadamente na
França) o termo pejorativo de « soberanismo » para
estigmatizar as resistências a essa globalização comerciante e
a suas consquências sociais. Estaremos de acordo para dizer que
as manifestações nacionalistas, chovinistas, xenófobas
constituem
uma resposta ilusória e reacionária às queixas legítimas que o
desencadeamento da selva liberal suscita. Mas não é somente o
nacionalismo enquanto ideologia conservadora da nação que está
aqui em causa. É também a outra face da soberania, aquela da
legitimidade popular e democrática do poder.A crise de soberania
afeta com efeito Estados
que não conseguiram se constituir nações soberanas, outros que
não o podem permanecer, outros enfim que aspiram a modificar a hierarquia mundial de dominação e de dependência.
O
«soberanismo» dos
poderosos porta-se de preferência bem : glorificação do
poderio da Europa, redefinição dos mantatos da Otan, intervenções
militares unilaterais sem limites sem legitimidade internacional.
6.
Sob o choque da globalização capitalista, as categorias da política
moderna herdadas da Luzes estão todas estremecidas: nações,
povos, territórios, fronteiras, representação. É o que
Habermas chama « a dissolução progressiva da modernidade
organizada »da qual não haveria lugar para se contentar na
medida em que ela tende a colocar em causa a possibilidade mesma
da política. O fundo da crise de soberania é o
desaparecimento do povo e da dialética entre poder constituinte e
poder instituído (Balibar). A noção de povo preencheu uma dupla
função como comunidade imaginária de aderência
e como sujeito coletivo da representação democrática.
Nele se amarrava a tensão entre uma aspiração à universidade
democrática e o fechamento de uma aderência nacional particular.
Com a dissolução do povo, entra em crise a construção simbólica
que transformou o Estado moderno em Estado-nação. Esvaziada de
substância e de alicerces pela privatização do mundo a esfera pública
torna-se um fantasma. A este enfraquecimento do espaço público e
do bem comum o « soberanismo » tenta responder
defendendo que só existe vontade geral possível ao nível
nacional. Nós estaríamos portanto , segundo Balibar, num « entre-dois
insustentável », após a soberania nacional clássica
e antes do surgimento de soberanias pós-nacionais que restam a
definir.
7.
Na dolorosa incerteza desse « já mais » e « ainda
não » desenham-se respostas inquietantes. Aquela, de uma
parte, da regressão da nação política para a nação zoológica
(ou étnica) da legitimação democrática rumo às legitimidades
genealógicas, da comunidade política rumo às identidades gregárias
e o direito do sangue. A “etnicização”
da política e os fantasmas purificadores se inscrevem nessa dinâmica
regressiva. A busca de novos espaços geopolíticos ampliados constitui uma outra saída possível. Em certas
regiões como o mundo árabe a comunidade dos crentes pode então
aparecer como uma alternativa possível
à falência
dos Estados e dos populismos nacionais fragilizados. Essa
“confessionalização” da política não é própria do fundamentalismo islâmico.
Ela está igualmente presente na provocação de Sharon sobre a
esplanada das mesquitas e, mais geralmente, no dilema mortal de
Israel esquartejado entre a manutenção de um “Estado judeu”
e a pretensão a um Estado democrático no qual os judeus
aceitariam se
reencontrar um dia minoritários.
8.
A defesa da nação política (cívica e republicana) representa
para alguns a única terceira via entre um retorno sobre a nação
étnica e uma dissolução da política no cosmopolitismo
negociante, entre “comunotarismo” de combate e cosmopolitismo
humanitário. Esta via, à prova de questões concretas como a
imigração, o direito dos estrangeiros, o benefício da cidadania
`a nacionalidade, revela-se mais que estreita: improvável.
Reciprocamente, a resposta de Habermas chamando
de seus votos uma “cidadania multiculturtal”
“identidades cosmopolitas”, e um “patriotismo
constitucional”, aparece como uma utopia comunicacional mantida
em prejuízo pelo processo liberal de desintegração e de
desafiliação social. A formação histórica dos Estados-nações
passou por choques de
acontecimentos importantes (guerras e revoluções).A aposta da
emergência puramente delibetativa e processual de uma forma nova
de democracia cosmopolita cujos direitos dos homem constituiriam o
quadro normativo, aparece em compensação como a profissão de fé
de um racionalismo e de um universalismo abstrato ( ver Habermas
eAlliès).
9.
”É graças a suas constituições políticas que nascem os
povos”: se ela se reveste de um valor pragmático essa proclamação
de Habermas repele a dimensão histórica dessas legitimidades populares.
Não é surpreendente desde logo
que ele considere como “um absurdo” o “pretendido direito à
autodeterminação”, reduzido segundo ele a reações etnocêntricas
e a rupturas de solidariedade. A contradição torna-se com efeito
explosiva entre o exercício de direitos coletivos legítimos (em
matéria de escolaridade, de língua, de controle do território)
e o esmigalhamento “fractal” do mundo que constitui
o reverso da universalização negociante.
l0.
Uma nova grande divisão do mundo está em curso. Essa desordem
das zonas de influência, dos territórios e das fronteiras não
se faz nunca amigavelmente sobre o tapete verde. A guerra pode vir
do céu mas ela não sai do nada. Globalizando-se, ela se
transforma. A doutrina da guerra assimétrica americana a zero
morte repousa sobre o monopólio do terror da alta tecnologia cuja
bomba de Hiroshima, apagando a distinção entre combatentes e não-combatentes, constitui a prefiguração e o símbolo.As
guerras nacionais se transformam em guerra civil total.As vítimas
civis tornam-se perdas colaterais. Uma guerra ética, levada em
nome do Bem universal e da Humanidade maiúscula, não conhece nem
inimigo nem direito da guerra. Ela torna-se uma cruzada secular
onde o adversário é excluído da espécie, bestializado,
prometido ao cerco e à linchamento. É uma guerra ilimitada, cuja
política é a perseguição por outros meios, na qual a proporção
entre o fim e os meios não tem mais sentido.
ll.
A nova fase da globalização capitalista e sua dimensão
guerreira chamam novas formas políticas. A concentração da
riqueza, do capital do saber, do poderio armado nunca foi tão
forte. O imperialismo não desaparece, ele se transforma sob o
efeito de uma circulação alargada dos capitais, das mercadorias,
das informações, da violência. Em compensação, a segmentação
do mercado de trabalho, a fragmentação dos territórios, a lei
do desenvolvimento desigual e combinado subsistem. A
desterritorilização das nações chamam novas territorializações
continentais, regionais ou tribais. As fronteiras se deslocam,
elas se internalizam da borda para o centro (o Sul penetra no
Norte) mas não se apagam.As novas fronteiras como aquelas do espaço
de Schengen rodeiam campos de retenção.Que se chame imperialismo
ou império, é sempre um sistema de dominação ao mesmo tempo
econômico, militar, cultural, mas também ecológico com a
privatização acrescida de bens comuns.
12.
A mudança de escala conduzida
pela globalização não significa
o simples aumento do Estado-nação `a dimensão
de continentes. Os espaços econômicos, jurídicos,
militares, ecológicos estão desarmonizados.Daí não resulta um
espaço mundial homogêneo ou
plano no qual as diferentes regiões
se construiriam igualmente.
A desigualdade subsiste, não somente entre a União Européia
e a Alena e o
Mercosul, mas também no interior de cada zona, como o ilustra a
Europa a várias
velocidades e à
geometria variável. A construção européia
é um bom exemplo das contradições às quais se choca a
emergência de novas soberanias democráticas. A Europa permanece
“um problema político não-resolvido” (Balibar) que pode
encontrar uma solução inquietante na invenção de uma nova
“etnicidade fictícia” ou bem na invenção de uma nova figura
de povo. Contra a dupla utopia do fechamento regressivo e da
abertura progressista, Habermas sustenta um poder constituinte
desembarassado dos pressupostos ligados à noção de povo
desembocando sobre um espaço público europeu. Este federalismo
temperado prefiguraria segundo ele a democracia pós-nacional. Ele
malogra entretanto na prática na medida em que a destruição
liberal das solidariedades sociais, longe de dar corpo a uma
coletividade política nova, aviva os pânicos “identitários”
e cava o afastamento
entre o euro-federalismo das elites e o eurocepticismo dos povos.
13.
Uma das pistas abertas pela crise das soberanias nacionais reside
na dissociação das noções de cidadania e de nacionalidade, ver
na privatização das dependências nacionais (como houve
privatização das dependências religiosas) nos espaços políticos
multinacionais. A grande equação moderna nacionalidade =
cidadania começa com efeito a funcionar
“ ao contrário de
seu significado democrático” (Balibar). Um réplica desejável
a essa regressão residiria numa radicalização do direito do
solo e no advento de uma “cidadania de residência”
onde a cidadania social prevaleceria sobre a cidadania
nacional. Será preciso, com efeito, escreve Balibar, “seja
desmantelar completamente o Estado social e a cidadania social,
seja desligar a cidadania de sua definição social”. É colocar
o problema de uma cidadania secularizada e profana, de uma
cidadania sem “comunidade”. Essa cidadania como organização
do pluralismo das dependências desenha uma saída à alternativa
entre universalismo abstrato e comunitarismo
vingativo.
14.
Um problema permanece, e não o menor: qual força social é hoje
susceptível de levar um tal projeto de cidadania social para
transpor um novo passo no sentido
da universalização política da espécie humana? É levantar a
vasta questão da ligação entre ligações de classe e de sexo
(ambos portadores de universalidade em potencial), as dependências
comunitárias e as formas políticas (enfim encontradas) da
emancipação social.
Tradução
voluntária : Beatriz Forjaz
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