Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Banco de Dados
 MNDH Brasil
 ONGs Direitos Humanos
 ABC Militantes DH
 Rede Mercosul
 Rede Brasil DH
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Mundo Comissões
 Brasil Nunca Mais
 Brasil Comissões
 Estados Comissões
 Comitês Verdade BR
 Comitê Verdade RN
 Rede Lusófona
 Rede Cabo Verde
 Rede Guiné-Bissau
 Rede Moçambique

 


Direitos Humanos e Neo-Liberalismo

Samuel Pinheiro Guimarães*

Concentração de poder e violações

A concentração de poder está na raiz das violações dos direitos humanos. Este enfoque é fundamental para compreender as causas das violações e para definir estratégias eficientes de promoção e defesa desses direitos.

Esta visão das violações se aplica tanto aos direitos políticos e individuais quanto aos econômicos, sociais e culturais e aos de terceira geração, de caráter mais geral, como o direito ao desenvolvimento, ao meio ambiente etc.

Altos índices de concentração de poder somente podem perdurar pelo exercício de atos de violação de direitos humanos. As violações podem ser sistemáticas e intencionais, promovidas pelo Estado (como é o caso da pena de morte nos países que a adotam) ou por organizações civis (como a Klu Klux Klan nos Estados Unidos ou os grupos neo-nazistas na Alemanha). As violações podem ser, por outro lado, pontuais: praticadas por agentes do Estado abusando de suas prerrogativas (como o massacre de meninos por policiais na Candelária); por indivíduos sem função pública (como o assassinato pelo fogo, em Brasília, por jovens de classe média, do índio Galdino) e as manifestações cotidianas e generalizadas de racismo.

As situações se apresentam tanto mais graves quanto mais elevados os índices de concentração de poder e quanto mais articulados e militantes os movimentos sociais ou o comportamento dos indivíduos, alvos das violações, para promover a desconcentração de poder.

As violações que se verificam no presente podem decorrer da concentração de poder no passado, já superada de fato ou legalmente, mas que gerou estereótipos e preconceitos em um processo de concentração de poder “simbólico” que “justificam” os atentados, no presente, a grupos e indivíduos.

As violações de direitos políticos tais como atentados contra a vida, a liberdade e a integridade física, contra a liberdade de expressão, contra os direitos civis de etnias, que ocorrem nos regimes ditatoriais ou autoritários, provêm justamente da concentração de poder político típica desses regimes e das tentativas de seus beneficiários de manter os privilégios de que desfrutam contra as organizações e indivíduos que procuram reverter esta situação.

As violações desses direitos em regimes democráticos são muitas vezes uma sobrevivência de práticas de regimes anteriores que permanecem e se refletem no comportamento da polícia e das autoridades e funcionários do Executivo que se “viciaram” naquelas práticas do autoritarismo e da ditadura.

A violência policial no Brasil contra a maioria da população - os pobres e os descendentes de escravos - é terrível e “visibilizada” e condenada pela mídia pontual e inadequadamente pelas organizações civis. Há, todavia, outras práticas tão prejudiciais quanto aquela violência do ponto de vista dos direitos políticos porém pouco analisadas desse ângulo.

Tais práticas, por serem menos individualizadas, não são menos condenáveis e terríveis, pois suas conseqüências são mais abrangentes e também vitimam aqueles grupos sociais majoritários, porém mais vulneráveis pela sua escassez de poder.

Estas práticas antidemocráticas, que violam direitos políticos de natureza geral, se verificam inclusive no campo das políticas públicas. Quando o Poder Executivo assume as funções do Legislativo, como é o caso da publicação abusiva de medidas provisórias para além do que permite a Constituição Federal brasileira ou quando pratica uma política penitenciária que degrada milhares de cidadãos que vivem em condições subumanas, em desrespeito à lei, estas são igualmente violações de direitos políticos.

A concentração de poder nos meios de comunicação deriva do sistema de concessões feitas pelo poder público, em uma versão moderna da prática colonial das sesmarias. Os meios modernos de produção e difusão da informação, como a Internet, permitem teoricamente a qualquer indivíduo produzir e distribuir suas idéias. Todavia, na prática são as grandes organizações empresariais privadas que dominam o mercado da informação, devido ao elevado capital necessário à sua instalação e operação, inclusive por causa da sofisticação técnica dos equipamentos, ao contrário do que ocorria nos primórdios da imprensa.

Esta concentração leva a graves violações de direitos políticos, através da manipulação da opinião pública, da influência indevida sobre o processo eleitoral e sobre o exercício do governo, e muitas vezes pela difusão de preconceitos e pela defesa da concentração de poder econômico, e de toda ordem.

É a concentração de poder econômico e político no gênero masculino e adulto que se encontra na raiz das violações dos direitos civis e econômicos das mulheres, das crianças e dos homossexuais. Estas violações decorrem de atitudes culturais que têm muitas vezes sua origem em tradições religiosas que colocavam a mulher, a criança e o homossexual em uma situação de inferioridade moral, sexual e intelectual, por “determinação divina”.

Estas tradições religiosas foram legitimadas pelo direito público e privado e incorporadas aos sistemas educacionais. A legislação consagrou até o século XX a inferioridade política das mulheres ao negar-lhes o direito de votarem e serem eleitas, enquanto, no campo econômico e social, o direito de família muitas vezes excluía a mulher da herança e atribuía ao homem, como cabeça do casal, a gestão econômica da unidade familiar. O direito de família, durante longo período, permitiu aos pais e aos maridos segregar as mulheres rebeldes ou “inconvenientes” em conventos e hospícios, o que contribuía para a submissão feminina. Por outro lado, o homossexualismo e a sodomia eram, até recentemente, considerados crimes pela legislação de alguns países, como em certos Estados da federação americana.

A cristalização legal de mecanismos sociais discriminatórios colocou artificialmente a mulher em situação social de inferioridade, reforçando nela a convicção de sua inferioridade em relação ao homem e portanto criando sua “conivência” com as violações de direitos, inclusive violentas, de que era e continua a ser vítima.

A legislação, as políticas públicas discriminatórias e a “conivência” feminina, inclusive decorrente do medo da violência, contribuíram fortemente para a desqualificação profissional, econômica e cultural das mulheres.

As dificuldades de acesso ao conhecimento e à independência econômica e a inexistência de direitos políticos contribuíam para tornar “desnecessária” a educação profissional feminina, para reforçar os estereótipos de “inferioridade” de gênero e para perpetuar a concentração de poder no sexo masculino.

Assim, ficava demonstrada a “correção” dos preceitos e das tradições que argüíam sua “inferioridade”, justificando a discriminação e até os atos de violência e de violação de direitos contra elas praticados, inclusive a pretexto de punir sua rebelião “injusta” contra uma situação natural, consagrada pela religião, pela moral, pelos bons costumes e pela legislação.

Os sistemas de violação de direitos humanos mais graves historicamente foram a escravidão e o colonialismo, há pouco superados pela humanidade, ainda que permaneçam situações residuais.

A escravidão e o colonialismo, fenômenos estreitamente ligados, geraram e cristalizaram estereótipos, preconceitos e visões do mundo e da sociedade que vêm-se transmitindo culturalmente aos que se julgam descendentes dos ex-senhores e das antigas elites colonialistas nas ex-metrópoles. São estes esterótipos, e naturalmente a defesa de interesses concretos que até hoje existem derivados daquelas situações passadas, que provocam comportamentos nas esferas coletivas e individuais que violam direitos políticos, econômicos e sociais, de que são vítimas os Estados que sucederam as colônias e os descendentes dos escravos e nativos.

Há apenas 50 anos ganhou maior vigor a luta moderna pela descolonização e contra o racismo. De 1945 até a independência da Namíbia, última grande colônia, ou se preferível até a posse de Mandela, na África do Sul, este processo, através da luta armada ou de negociação e outorga, tornou mais de cem estados livres do jugo colonialista, essencialmente racista, cuja base ideológica fora a convicção de opressores e oprimidos quanto à inferioridade racial, cultural, moral e política das civilizações submetidas.

Tanto o colonialismo tradicional nas Américas quanto a expansão imperialista mais recente na África e na Ásia tiveram conseqüências semelhantes para formar o substrato de violação de direitos humanos individuais, nas mais distintas regiões do mundo, em especial no que diz respeito ao racismo, e dos direitos políticos e econômicos dos Estados, vítimas das pressões e das agressões do neo-imperialismo das estruturas hegemônicas.

Uma longa série de intervenções armadas de Estados centrais, alguns ex-metrópoles, em ex-colônias tem acarretado gravíssimas violações de direitos de populações civis ex-coloniais, tais como os episódios dos ataques com agente laranja e Napalm, as torturas empregadas na Argélia e o volume de bombas lançadas sobre o Vietnã e sobre o Iraque.

Há 110 anos foi abolida no Brasil a legislação que, ao considerar o escravo um objeto, permitia a escravidão, punia os que tentavam abolí-la ou dela escapar e assim concentrava o poder político, econômico e social nas mãos dos senhores brancos.

Como a abolição não correspondeu à desconcentração de poder econômico nem conferiu aos homens e às mulheres negras capacidade de exercer direitos políticos, a concentração de poder nas mãos dos ex-senhores permitiu que prosseguisse contra os ex-escravos todo tipo de violação, agora individual, de direitos.

A situação de inferioridade econômica, desarticulação social e familiar e a subordinação cultural e política da população de ex-escravos contribuiu para manter os estereótipos e preconceitos de uma suposta inferioridade racial inata, que “justificava” aos olhos da população branca a escravidão e posteriormente as próprias violações de direitos e a discriminação racial difusa.

A conquista colonial, a eventual escravização ou servidão dos indígenas ou nativos, seu extermínio e a apropriação violenta de suas terras provocaram enorme concentração de poder em mãos dos europeus brancos colonizadores, naquele tempo e espaço em que a terra era o principal estoque e fonte de poder econômico e político.

No plano jurídico, a concentração de poder pela violência foi tornada legal, assim como se tornaram legais as violações de direitos humanos contra os indígenas ou nativos quando estes se rebelavam e buscavam a desconcentração de poder.

A legislação e a situação discriminatória econômica, política e cultural contribuiu para criar os estereótipos que, por sua vez, alimentam a discriminação, mantendo os grupos indígenas em sua posição de inferioridade e tornando impunes, na prática, as violações de direitos humanos contra eles cometidas.

O anti-semitismo atual tem sua origem na concentração de poder econômico, político e social em prejuízo das comunidades judaicas no Ocidente. A segregação e as estratégias de sobrevivência cultural das comunidades judaicas, com fundamento nos preceitos bíblicos, a convicção de povo eleito, seu dinamismo econômico, em especial no comércio do dinheiro, proibido pelo Novo Testamento, os tornavam alvo e vítima de governantes e indivíduos poderosos enquanto o suposto papel dos judeus na condenação de Cristo as faziam desprezíveis e odiadas no imaginário da massa inculta cristã. Esta concentração de poder foi “legitimada” pela legislação anti-semita em todo o período da Inquisição e sobreviveu até recentemente em diversos países. Assim, na Europa cristã e nos impérios coloniais das metrópoles católicas e retrógradas, os judeus não tinham capacidade política, não podiam exercer plenamente os direitos civis nem praticar sua religião publicamente. A título de exemplo, os judeus não podiam se estabelecer no Brasil colonial e a prática de sua religião, quando descoberta, era punida com rigor. Apenas em 1963, no concílio Vaticano II, a Igreja reconheceu oficialmente que os judeus não tinham “culpa” pela morte de Cristo.

O clímax do anti-semitismo ocorreu com o nazismo na Alemanha e com os movimentos fascistas em outros países que planejaram e executaram políticas de extermínio total do povo judeu, através de sua identificação, segregação e extermínio físico. Este episódio hediondo, que veio a se denominar de Holocausto, em que morreram mais de 6 milhões de judeus teve seu centro em uma das sociedades mais desenvolvidas cultural e economicamente do Ocidente, a Alemanha.

Apesar dos avanços na luta contra o anti-semitismo, os estereótipos que haviam sido consagrados pela legislação fizeram com que sobrevivessem até hoje os preconceitos contra os judeus em todo Ocidente.

A concentração de poder econômico e a urbanização, em especial a partir da Revolução Industrial, deu origem às lutas sindicais, políticas e civis pela sua desconcentração. A reação dos beneficiários dessa concentração contra aqueles movimentos levou a notáveis violações de direitos humanos através de opressão econômica e política dos trabalhadores. Todavia, essa luta resultou na criação de uma ampla legislação social e econômica de regulamentação do trabalho e de sua remuneração que permitiu superar as condições mais deploráveis decorrentes da concentração de poder, tais como o trabalho braçal feminino, inclusive durante a gravidez, o trabalho infantil, as condições insalubres e letais de trabalho, a jornada de trabalho sem limites etc.

No caso específico do setor agrícola, a concentração de poder econômico em certos grupos sociais, como os grandes latifundiários, depende, para ser mantida, da violação permanente dos direitos dos trabalhadores rurais, não-proprietários, com eventuais casos mais graves pelas suas dimensões como recentemente tem ocorrido em diversas regiões do Brasil, na medida em que as vítimas iniciam uma luta mais organizada e eficaz pela desconcentração.

A partir dos governos Reagan nos Estados Unidos e Thatcher na Inglaterra, expandiu-se e se tornou quase hegemônica a idéia de que o aumento da competitividade e da eficiência das empresas e, ironicamente, a redução do desemprego dependeriam da modernização do mercado de trabalho. Essa modernização se faria pela revisão da legislação trabalhista, para torná-la mais flexível, o que na prática corresponde à revogação dos direitos sociais conquistados graças aquela longa e muitas vezes sangrenta luta. Nos países em que se verificou a revogação mais ou menos completa da legislação de proteção ao trabalhador tem ocorrido diminuição da massa salarial na renda nacional, e portanto aumentado a concentração de renda e de riqueza em favor dos detentores do capital. Esta revogação ou “flexibilização” dos direitos sociais corresponde a uma violação de direitos humanos econômicos e sociais.

As situações exemplares acima descritas, apesar de abordadas de forma muito sucinta, permitem perceber o mecanismo comum de perpetuação das violações de direitos humanos.

A concentração de poder de toda ordem, às vezes simultânea, em várias esferas e interdependente, consagrada pela legislação, contra certos grupos da população reforçaram historicamente sua situação de inferioridade e despossessão e portanto as diferenças entre indivíduos e grupos sociais. Criaram assim os estereótipos que contribuem para “justificar” e perpetuar a discriminação e a concentração de poder, inclusive no imaginário dos próprios oprimidos, e a “sancionar” as violações dos direitos desses grupos e a impunidade dos violadores.

A violação dos direitos humanos não é, portanto, apenas uma questão de educação ou de cultura das populações, como o caso da Alemanha nazista comprova, mas sim resulta de tentativas de criar, aumentar ou manter situações de privilégio que a concentração de poder permite a seus beneficiários usufruir.

No passado e ainda no presente a legislação consagrou situações discriminatórias pela simples razão de que a própria concentração de poder político fazia com que os legisladores fossem, em sua maioria, representantes dos grupos que concentravam o poder econômico, social etc.

Os beneficiários da concentração de poder “traduzem” nas normas e nas instituições que constituem o Estado, essas situações de tal forma que a lei e o Estado passam a contribuir para a concentração de poder, a qual, dada a situação inicial de extraordinárias disparidades, tende a se acentuar em prejuízo dos grupos oprimidos e vitimados - ainda que indivíduos possam ascender socialmente e “escapar” daquela situação.

Por outro lado, os que estiveram “encarregados” de implementar tal legislação foram e continuam a ser igualmente “escolhidos” pelo processo político em que os beneficiários da concentração de poder têm grande ou prevalecente influência através de vários mecanismos desse mesmo processo.

Sempre que parte da concepção, ainda que implícita, de que os fundamentos, os parâmetros, da organização política, econômica e social da sociedade moderna são corretos a ação das ONGs tem uma natureza idealista, individualista e assistencialista. Nessa visão de sociedade, os abusos e as violações decorreriam de ações de indivíduos ou do Estado, que deveriam ser corrigidas e prevenidas em especial pela ação pedagógica, de efeitos a longuíssimo prazo, da educação para modificar as mentalidades dos indivíduos e pela pressão política e social em favor das populações e vítimas individuais de atentados.

A ação altamente louvável das ONGs em defesa de casos individuais tem natureza micro-política e não atinge o cerne do problema, onde as violações se geram de forma mais rápida do que as soluções. Por outro lado, ao não enfrentar os mecanismos de concentração de poder, sua ação corre o risco de disfarçar a existência desses mecanismos e de desviar esforços que poderiam estar sendo empenhados em sua reversão.

A contraposição entre o Estado - mau, autor e fonte das violações - e a sociedade civil - boa, generosa e inocente - ignora que, se a lei e o Estado refletem a concentração de poder e a reforçam, a concentração de poder e as violações que necessariamente provoca se originam na própria sociedade civil.

Na realidade, somente a intervenção coletiva da comunidade, através da legislação e do poder de coerção do Estado, pode desencadear mecanismos de desconcentração de poder. Somente desmontando os mecanismos de concentração de poder e substituindo-os por mecanismos de desconcentração se poderia atuar com eficácia para modificar o substrato geral de onde brotam as violações.

Esta tarefa requer a modificação da legislação e da estrutura do Estado, que tem de ser, paradoxalmente, reforçada para esta finalidade.

Assim, a luta atual pelos direitos humanos deve abarcar o aspecto micro e corajoso de combate às violações, de reivindicação de reparações às vítimas e de punição de autores e, paralelamente, a luta por políticas públicas de desconcentração de poder nas diversas esferas.

Neo-liberalismo e violações

As doutrinas liberais inglesas de Bentham, Locke e Adam Smith foram formuladas em uma sociedade e uma época com características muito diversas das modernas sociedades industriais, urbanas e altamente tecnológicas. Certamente, naquela época e sociedade aquelas doutrinas e políticas significavam um avanço importantíssimo, tanto na esfera econômica, como na política. O neoliberalismo, de certa forma, tenta reviver, em especial no campo econômico, a visão, a doutrina e a prática liberal, daquilo que ficou conhecido como a teoria econômica clássica, esquecendo as lições da Grande Depressão. Daí sua denominação: neoliberalismo, onde o neo na realidade nada tem de novo mas, significa antigo. É a ressurreição de doutrinas mortas, antigas e inadequadas aos tempos modernos, do ponto de vista econômico mas também em especial quando se verificam seus efeitos sobre os direitos humanos.

As políticas neo-liberais tendem a agravar as violações de direitos humanos, de todo tipo e assim as três gerações de direitos humanos tem sido igualmente afetadas pelos efeitos perversos dessas políticas.

A premissa implícita do neo-liberalismo é que os mercados de bens, de serviços, de capital e de trabalho são caracterizados pela livre concorrência, isto é, que as unidades que deles participam são numerosas, de capacidade semelhante, com acesso livre ao conhecimento, em resumo, que nenhuma unidade pode influir sobre os preços em seu próprio benefício.

Assim, o neoliberalismo considera que o livre jogo das forças de mercado é a melhor forma para alcançar a melhor alocação de recursos, a maior produtividade, a maior produção, a melhor distribuição de renda, o mais alto nível de bem estar e o progresso tecnológico mais acelerado.

Em conseqüência, o neoliberalismo propugna, com energia, que o Estado seja reduzido ao mínimo, que a atividade econômica seja o mais possível desregulamentada, que o Estado interfira o mínimo via atividade econômica, e em especial que não desenvolva diretamente nenhuma atividade econômica.

As políticas neo-liberais econômicas, com sua ênfase na desregulamentação, na revisão de direitos trabalhistas, em “reformas” fiscal e outras com fortíssimo viés pró-empresa, libera forças de mercado, que, em situações iniciais de grande disparidade entre indivíduos e grupos sociais, tendem a agravar rapidamente a concentração de renda e de poder existente nas sociedades que vêm a adotar tais políticas.

No campo propriamente político, o neoliberalismo considera que a democracia liberal é a melhor forma de governo, pois nela os cidadãos, a exemplo do que ocorre com os agentes na esfera econômica, têm poder político igual ou semelhante, grau de informação semelhante sobre as questões em disputa, sem capacidade de influir significativamente sobre o processo e que, como no mercado, o livre jogo político produz as melhores e mais justas políticas que promovem, portanto, o bem geral.

O neoliberalismo, em sua forma política, ao enfraquecer o Estado e ao não reconhecer a influência do poder econômico e dos meios de comunicação no processo político dificulta a substituição dos mecanismos “legais” de concentração de poder por instrumentos de desconcentração, e ao contrário, torna ainda mais violento o processo de concentração que por sua vez gera as violações de direitos.

No nível internacional, as políticas neoliberais, tais como o livre cambismo, o livre movimento de capitais, a desregulamentação e a abertura comercial associam os grupos que concentram o poder nos Estados da periferia aos que o concentram nos Estados que estão no centro do sistema internacional, aceleram o processo de concentração de poder nos níveis nacional e mundial e aumentam o ambiente favorável à violação de direitos humanos de toda ordem na periferia.

As articulações entre grupos internos e externos na execução de políticas neoliberais provocam crescente transferência de recursos da periferia para o centro do sistema e agravam as estruturas oligopólicas na economia e na política. Assim dificultam o desenvolvimento econômico e a desconcentração de renda, ao gerar desemprego, exclusão, marginalidade e violência nos Estados centrais, mas especialmente e em grau muito maior nas megalópoles periféricas que se expandem desordenada e miseravelmente. Na periferia, milhões de seres humanos têm sido subitamente afetados pelos resultados daquelas políticas, não em razão de qualquer “incompreensão” de seus governos, já que estes se esforçam ao máximo na aplicação dessas políticas ou de “males inatos” às sociedades nativas que, se culpadas foram, foi de acreditar ingenuamente nos novos mitos “centrais”: a globalização e a paz. As políticas neoliberais tem sido a causa das mais graves violações de direitos econômicos e sociais, e em seguida, políticos, ao criar as condições para a eventual reedição do autoritarismo sempre latente na periferia.

Violações de direitos e políticas públicas

As estratégias de promoção e defesa dos direitos humanos que priorizam a educação e a “mudança das mentalidades” e a defesa de vítimas individuais não atingem o cerne da questão que é a desigualdade e a disparidade de poder consagradas pela legislação e pelo imaginário da população.

À medida em que se tem êxito maior ou menor na punição das infrações aos direitos humanos, o que é louvável e importantíssimo, é necessário paralelamente atuar sobre os mecanismos que concentram poder e que se encontram corporificados em políticas públicas e em seus instrumentos de elaboração, execução e sanção judiciária.

As políticas públicas se realizam essencialmente através da elaboração, execução e sanção de normas jurídicas, e se configuram como determinações da comunidade, através do Estado, para o conjunto da sociedade sobre os comportamentos que são legítimos e corretos.

Cada política pública pode em si mesma concentrar ou desconcentrar poder em relação aos grupos beneficiários e às vítimas dessa concentração.

A título de exemplo, um código de trânsito pode concentrar poder (e privilégios) dos proprietários de automóveis ou desconcentrá-lo, beneficiando os segmentos da população não-proprietários de veículos, os pedestres, em geral as principais vítimas dos acidentes.

Seria ocioso mencionar, porém a mesma situação se repete em todas as áreas, desde a legislação bancária até a educacional, onde os dispositivos legais podem contribuir e muitas vezes contribuem para reforçar estereótipos e preconceitos.

Desta forma, é no exame e debate exaustivo de políticas públicas, de sua elaboração e execução, que se encontram as oportunidades para promover a desconcentração de poder. É, portanto, na arena política mais ampla e coletiva que a luta mais eficaz pelos direitos humanos pode vir a triunfar de fato, isto é pode eliminar as causas mais profundas das violações.

Assim, da mesma forma que em decorrência da luta pela preservação do meio ambiente em seus múltiplos aspectos vieram a ser criados mecanismos legais de avaliação de projetos para verificar, antes de serem implementados, o seu impacto ambiental, seria perfeitamente possível estabelecer que as políticas públicas devessem ser submetidas à avaliação de seus impactos sobre os direitos humanos ao serem formuladas e antes de serem implementadas.

Certamente os direitos humanos, políticos, econômicos, culturais e sociais têm de ter na escala ética um valor mais elevado do que os direitos à preservação da fauna e da flora eventualmente ameaçadas por projetos humanos.

Por esta razão deveria se tornar obrigatório para o Executivo apresentar relatórios de avaliação de impacto sobre os direitos humanos, em seus diversos aspectos, das distintas políticas públicas que propõe, cabendo ao Congresso e à sociedade debaterem tais avaliações.

Somente a análise criteriosa de cada política pública pela sociedade e por seus representantes legitimamente eleitos para tal pode vir a favorecer a adoção de políticas públicas que desconcentrem poder de toda a ordem e que assim contribuam efetivamente para a promoção e defesa dos direitos humanos.



* Embaixador. Atualmente diretor do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais do Ministério das Relações Exteriores; ex-chefe do Departamento Econômico e ex-chefe da Divisão Econômica para a América Latina, Ministério da Relações Exteriores, Brasil. Serviu como Ministro Conselheiro da Embaixada brasileira, Paris; como Conselheiro da Missão brasileira junto às Nações Unidas, Nova Iorque. Ex vice-presidente da empresa brasileira de filmes – EMBRAFILME. Mestrado em Economia, Boston University, Massachusetts, EUA; Bacharel em Direito, Universidade do Brasil.

 

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055 84 3211.5428 e 9977.8702 WhatsApp
Skype:direitoshumanos Email: enviardados@gmail.com Facebook: DHnetDh
Busca DHnet Google
Notícias de Direitos Humanos
Loja DHnet
DHnet 18 anos - 1995-2013
Linha do Tempo
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Sistema Nacional de Direitos Humanos
Sistemas Estaduais de Direitos Humanos
Sistemas Municipais de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
MNDH
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Banco de Dados  Base de Dados Direitos Humanos
Tecido Cultural Ponto de Cultura Rio Grande do Norte
1935 Multimídia Memória Histórica Potiguar