Samuel
Pinheiro Guimarães*
Concentração de poder e violações
A
concentração de poder está na raiz das violações dos direitos
humanos. Este enfoque é fundamental para compreender as causas das violações
e para definir estratégias eficientes de promoção e defesa desses
direitos.
Esta
visão das violações se aplica tanto aos direitos políticos e
individuais quanto aos econômicos, sociais e culturais e aos de terceira
geração, de caráter mais geral, como o direito ao desenvolvimento, ao
meio ambiente etc.
Altos
índices de concentração de poder somente podem perdurar pelo exercício
de atos de violação de direitos humanos. As violações podem ser sistemáticas
e intencionais, promovidas pelo Estado (como é o caso da pena de morte
nos países que a adotam) ou por organizações civis (como a Klu Klux
Klan nos Estados Unidos ou os grupos neo-nazistas na Alemanha). As violações
podem ser, por outro lado, pontuais: praticadas por agentes do Estado
abusando de suas prerrogativas (como o massacre de meninos por policiais
na Candelária); por indivíduos sem função pública (como o assassinato
pelo fogo, em Brasília, por jovens de classe média, do índio Galdino) e
as manifestações cotidianas e generalizadas de racismo.
As
situações se apresentam tanto mais graves quanto mais elevados os índices
de concentração de poder e quanto mais articulados e militantes os
movimentos sociais ou o comportamento dos indivíduos, alvos das violações,
para promover a desconcentração de poder.
As
violações que se verificam no presente podem decorrer da concentração
de poder no passado, já superada de fato ou legalmente, mas que gerou
estereótipos e preconceitos em um processo de concentração de poder
“simbólico” que “justificam” os atentados, no presente, a grupos
e indivíduos.
As
violações de direitos políticos tais como atentados contra a vida, a
liberdade e a integridade física, contra a liberdade de expressão,
contra os direitos civis de etnias, que ocorrem nos regimes ditatoriais ou
autoritários, provêm justamente da concentração de poder político típica
desses regimes e das tentativas de seus beneficiários de manter os privilégios
de que desfrutam contra as organizações e indivíduos que procuram
reverter esta situação.
As
violações desses direitos em regimes democráticos são muitas vezes uma
sobrevivência de práticas de regimes anteriores que permanecem e se
refletem no comportamento da polícia e das autoridades e funcionários do
Executivo que se “viciaram” naquelas práticas do autoritarismo e da
ditadura.
A
violência policial no Brasil contra a maioria da população - os pobres
e os descendentes de escravos - é terrível e “visibilizada” e
condenada pela mídia pontual e inadequadamente pelas organizações
civis. Há, todavia, outras práticas tão prejudiciais quanto aquela violência
do ponto de vista dos direitos políticos porém pouco analisadas desse ângulo.
Tais
práticas, por serem menos individualizadas, não são menos condenáveis
e terríveis, pois suas conseqüências são mais abrangentes e também
vitimam aqueles grupos sociais majoritários, porém mais vulneráveis
pela sua escassez de poder.
Estas
práticas antidemocráticas, que violam direitos políticos de natureza
geral, se verificam inclusive no campo das políticas públicas. Quando o
Poder Executivo assume as funções do Legislativo, como é o caso da
publicação abusiva de medidas provisórias para além do que permite a
Constituição Federal brasileira ou quando pratica uma política
penitenciária que degrada milhares de cidadãos que vivem em condições
subumanas, em desrespeito à lei, estas são igualmente violações de
direitos políticos.
A
concentração de poder nos meios de comunicação deriva do sistema de
concessões feitas pelo poder público, em uma versão moderna da prática
colonial das sesmarias. Os meios modernos de produção e difusão da
informação, como a Internet, permitem teoricamente a qualquer indivíduo
produzir e distribuir suas idéias. Todavia, na prática são as grandes
organizações empresariais privadas que dominam o mercado da informação,
devido ao elevado capital necessário à sua instalação e operação,
inclusive por causa da sofisticação técnica dos equipamentos, ao contrário
do que ocorria nos primórdios da imprensa.
Esta
concentração leva a graves violações de direitos políticos, através
da manipulação da opinião pública, da influência indevida sobre o
processo eleitoral e sobre o exercício do governo, e muitas vezes pela
difusão de preconceitos e pela defesa da concentração de poder econômico,
e de toda ordem.
É
a concentração de poder econômico e político no gênero masculino e
adulto que se encontra na raiz das violações dos direitos civis e econômicos
das mulheres, das crianças e dos homossexuais. Estas violações decorrem
de atitudes culturais que têm muitas vezes sua origem em tradições
religiosas que colocavam a mulher, a criança e o homossexual em uma situação
de inferioridade moral, sexual e intelectual, por “determinação
divina”.
Estas
tradições religiosas foram legitimadas pelo direito público e privado e
incorporadas aos sistemas educacionais. A legislação consagrou até o século
XX a inferioridade política das mulheres ao negar-lhes o direito de
votarem e serem eleitas, enquanto, no campo econômico e social, o direito
de família muitas vezes excluía a mulher da herança e atribuía ao
homem, como cabeça do casal, a gestão econômica da unidade familiar. O
direito de família, durante longo período, permitiu aos pais e aos
maridos segregar as mulheres rebeldes ou “inconvenientes” em conventos
e hospícios, o que contribuía para a submissão feminina. Por outro
lado, o homossexualismo e a sodomia eram, até recentemente, considerados
crimes pela legislação de alguns países, como em certos Estados da
federação americana.
A
cristalização legal de mecanismos sociais discriminatórios colocou
artificialmente a mulher em situação social de inferioridade, reforçando
nela a convicção de sua inferioridade em relação ao homem e portanto
criando sua “conivência” com as violações de direitos, inclusive
violentas, de que era e continua a ser vítima.
A
legislação, as políticas públicas discriminatórias e a “conivência”
feminina, inclusive decorrente do medo da violência, contribuíram
fortemente para a desqualificação profissional, econômica e cultural
das mulheres.
As
dificuldades de acesso ao conhecimento e à independência econômica e a
inexistência de direitos políticos contribuíam para tornar “desnecessária”
a educação profissional feminina, para reforçar os estereótipos de
“inferioridade” de gênero e para perpetuar a concentração de poder
no sexo masculino.
Assim,
ficava demonstrada a “correção” dos preceitos e das tradições que
argüíam sua “inferioridade”, justificando a discriminação e até
os atos de violência e de violação de direitos contra elas praticados,
inclusive a pretexto de punir sua rebelião “injusta” contra uma situação
natural, consagrada pela religião, pela moral, pelos bons costumes e pela
legislação.
Os
sistemas de violação de direitos humanos mais graves historicamente
foram a escravidão e o colonialismo, há pouco superados pela humanidade,
ainda que permaneçam situações residuais.
A
escravidão e o colonialismo, fenômenos estreitamente ligados, geraram e
cristalizaram estereótipos, preconceitos e visões do mundo e da
sociedade que vêm-se transmitindo culturalmente aos que se julgam
descendentes dos ex-senhores e das antigas elites colonialistas nas
ex-metrópoles. São estes esterótipos, e naturalmente a defesa de
interesses concretos que até hoje existem derivados daquelas situações
passadas, que provocam comportamentos nas esferas coletivas e individuais
que violam direitos políticos, econômicos e sociais, de que são vítimas
os Estados que sucederam as colônias e os descendentes dos escravos e
nativos.
Há
apenas 50 anos ganhou maior vigor a luta moderna pela descolonização e
contra o racismo. De 1945 até a independência da Namíbia, última
grande colônia, ou se preferível até a posse de Mandela, na África do
Sul, este processo, através da luta armada ou de negociação e outorga,
tornou mais de cem estados livres do jugo colonialista, essencialmente
racista, cuja base ideológica fora a convicção de opressores e
oprimidos quanto à inferioridade racial, cultural, moral e política das
civilizações submetidas.
Tanto
o colonialismo tradicional nas Américas quanto a expansão imperialista
mais recente na África e na Ásia tiveram conseqüências semelhantes
para formar o substrato de violação de direitos humanos individuais, nas
mais distintas regiões do mundo, em especial no que diz respeito ao
racismo, e dos direitos políticos e econômicos dos Estados, vítimas das
pressões e das agressões do neo-imperialismo das estruturas hegemônicas.
Uma
longa série de intervenções armadas de Estados centrais, alguns ex-metrópoles,
em ex-colônias tem acarretado gravíssimas violações de direitos de
populações civis ex-coloniais, tais como os episódios dos ataques com
agente laranja e Napalm, as torturas empregadas na Argélia e o volume de
bombas lançadas sobre o Vietnã e sobre o Iraque.
Há
110 anos foi abolida no Brasil a legislação que, ao considerar o escravo
um objeto, permitia a escravidão, punia os que tentavam abolí-la ou dela
escapar e assim concentrava o poder político, econômico e social nas mãos
dos senhores brancos.
Como
a abolição não correspondeu à desconcentração de poder econômico
nem conferiu aos homens e às mulheres negras capacidade de exercer
direitos políticos, a concentração de poder nas mãos dos ex-senhores
permitiu que prosseguisse contra os ex-escravos todo tipo de violação,
agora individual, de direitos.
A
situação de inferioridade econômica, desarticulação social e familiar
e a subordinação cultural e política da população de ex-escravos
contribuiu para manter os estereótipos e preconceitos de uma suposta
inferioridade racial inata, que “justificava” aos olhos da população
branca a escravidão e posteriormente as próprias violações de direitos
e a discriminação racial difusa.
A
conquista colonial, a eventual escravização ou servidão dos indígenas
ou nativos, seu extermínio e a apropriação violenta de suas terras
provocaram enorme concentração de poder em mãos dos europeus brancos
colonizadores, naquele tempo e espaço em que a terra era o principal
estoque e fonte de poder econômico e político.
No
plano jurídico, a concentração de poder pela violência foi tornada
legal, assim como se tornaram legais as violações de direitos humanos
contra os indígenas ou nativos quando estes se rebelavam e buscavam a
desconcentração de poder.
A
legislação e a situação discriminatória econômica, política e
cultural contribuiu para criar os estereótipos que, por sua vez,
alimentam a discriminação, mantendo os grupos indígenas em sua posição
de inferioridade e tornando impunes, na prática, as violações de
direitos humanos contra eles cometidas.
O
anti-semitismo atual tem sua origem na concentração de poder econômico,
político e social em prejuízo das comunidades judaicas no Ocidente. A
segregação e as estratégias de sobrevivência cultural das comunidades
judaicas, com fundamento nos preceitos bíblicos, a convicção de povo
eleito, seu dinamismo econômico, em especial no comércio do dinheiro,
proibido pelo Novo Testamento, os tornavam alvo e vítima de governantes e
indivíduos poderosos enquanto o suposto papel dos judeus na condenação
de Cristo as faziam desprezíveis e odiadas no imaginário da massa
inculta cristã. Esta concentração de poder foi “legitimada” pela
legislação anti-semita em todo o período da Inquisição e sobreviveu
até recentemente em diversos países. Assim, na Europa cristã e nos impérios
coloniais das metrópoles católicas e retrógradas, os judeus não tinham
capacidade política, não podiam exercer plenamente os direitos civis nem
praticar sua religião publicamente. A título de exemplo, os judeus não
podiam se estabelecer no Brasil colonial e a prática de sua religião,
quando descoberta, era punida com rigor. Apenas em 1963, no concílio
Vaticano II, a Igreja reconheceu oficialmente que os judeus não tinham
“culpa” pela morte de Cristo.
O
clímax do anti-semitismo ocorreu com o nazismo na Alemanha e com os
movimentos fascistas em outros países que planejaram e executaram políticas
de extermínio total do povo judeu, através de sua identificação,
segregação e extermínio físico. Este episódio hediondo, que veio a se
denominar de Holocausto, em que morreram mais de 6 milhões de judeus teve
seu centro em uma das sociedades mais desenvolvidas cultural e
economicamente do Ocidente, a Alemanha.
Apesar
dos avanços na luta contra o anti-semitismo, os estereótipos que haviam
sido consagrados pela legislação fizeram com que sobrevivessem até hoje
os preconceitos contra os judeus em todo Ocidente.
A
concentração de poder econômico e a urbanização, em especial a partir
da Revolução Industrial, deu origem às lutas sindicais, políticas e
civis pela sua desconcentração. A reação dos beneficiários dessa
concentração contra aqueles movimentos levou a notáveis violações de
direitos humanos através de opressão econômica e política dos
trabalhadores. Todavia, essa luta resultou na criação de uma ampla
legislação social e econômica de regulamentação do trabalho e de sua
remuneração que permitiu superar as condições mais deploráveis
decorrentes da concentração de poder, tais como o trabalho braçal
feminino, inclusive durante a gravidez, o trabalho infantil, as condições
insalubres e letais de trabalho, a jornada de trabalho sem limites etc.
No
caso específico do setor agrícola, a concentração de poder econômico
em certos grupos sociais, como os grandes latifundiários, depende, para
ser mantida, da violação permanente dos direitos dos trabalhadores
rurais, não-proprietários, com eventuais casos mais graves pelas suas
dimensões como recentemente tem ocorrido em diversas regiões do Brasil,
na medida em que as vítimas iniciam uma luta mais organizada e eficaz
pela desconcentração.
A
partir dos governos Reagan nos Estados Unidos e Thatcher na Inglaterra,
expandiu-se e se tornou quase hegemônica a idéia de que o aumento da
competitividade e da eficiência das empresas e, ironicamente, a redução
do desemprego dependeriam da modernização do mercado de trabalho. Essa
modernização se faria pela revisão da legislação trabalhista, para
torná-la mais flexível, o que na prática corresponde à revogação dos
direitos sociais conquistados graças aquela longa e muitas vezes
sangrenta luta. Nos países em que se verificou a revogação mais ou
menos completa da legislação de proteção ao trabalhador tem ocorrido
diminuição da massa salarial na renda nacional, e portanto aumentado a
concentração de renda e de riqueza em favor dos detentores do capital.
Esta revogação ou “flexibilização” dos direitos sociais
corresponde a uma violação de direitos humanos econômicos e sociais.
As
situações exemplares acima descritas, apesar de abordadas de forma muito
sucinta, permitem perceber o mecanismo comum de perpetuação das violações
de direitos humanos.
A
concentração de poder de toda ordem, às vezes simultânea, em várias
esferas e interdependente, consagrada pela legislação, contra certos
grupos da população reforçaram historicamente sua situação de
inferioridade e despossessão e portanto as diferenças entre indivíduos
e grupos sociais. Criaram assim os estereótipos que contribuem para
“justificar” e perpetuar a discriminação e a concentração de
poder, inclusive no imaginário dos próprios oprimidos, e a
“sancionar” as violações dos direitos desses grupos e a impunidade
dos violadores.
A
violação dos direitos humanos não é, portanto, apenas uma questão de
educação ou de cultura das populações, como o caso da Alemanha nazista
comprova, mas sim resulta de tentativas de criar, aumentar ou manter situações
de privilégio que a concentração de poder permite a seus beneficiários
usufruir.
No
passado e ainda no presente a legislação consagrou situações
discriminatórias pela simples razão de que a própria concentração de
poder político fazia com que os legisladores fossem, em sua maioria,
representantes dos grupos que concentravam o poder econômico, social etc.
Os
beneficiários da concentração de poder “traduzem” nas normas e nas
instituições que constituem o Estado, essas situações de tal forma que
a lei e o Estado passam a contribuir para a concentração de poder, a
qual, dada a situação inicial de extraordinárias disparidades, tende a
se acentuar em prejuízo dos grupos oprimidos e vitimados - ainda que
indivíduos possam ascender socialmente e “escapar” daquela situação.
Por
outro lado, os que estiveram “encarregados” de implementar tal legislação
foram e continuam a ser igualmente “escolhidos” pelo processo político
em que os beneficiários da concentração de poder têm grande ou
prevalecente influência através de vários mecanismos desse mesmo
processo.
Sempre
que parte da concepção, ainda que implícita, de que os fundamentos, os
parâmetros, da organização política, econômica e social da sociedade
moderna são corretos a ação das ONGs tem uma natureza idealista,
individualista e assistencialista. Nessa visão de sociedade, os abusos e
as violações decorreriam de ações de indivíduos ou do Estado, que
deveriam ser corrigidas e prevenidas em especial pela ação pedagógica,
de efeitos a longuíssimo prazo, da educação para modificar as
mentalidades dos indivíduos e pela pressão política e social em favor
das populações e vítimas individuais de atentados.
A
ação altamente louvável das ONGs em defesa de casos individuais tem
natureza micro-política e não atinge o cerne do problema, onde as violações
se geram de forma mais rápida do que as soluções. Por outro lado, ao não
enfrentar os mecanismos de concentração de poder, sua ação corre o
risco de disfarçar a existência desses mecanismos e de desviar esforços
que poderiam estar sendo empenhados em sua reversão.
A
contraposição entre o Estado - mau, autor e fonte das violações - e a
sociedade civil - boa, generosa e inocente - ignora que, se a lei e o
Estado refletem a concentração de poder e a reforçam, a concentração
de poder e as violações que necessariamente provoca se originam na própria
sociedade civil.
Na
realidade, somente a intervenção coletiva da comunidade, através da
legislação e do poder de coerção do Estado, pode desencadear
mecanismos de desconcentração de poder. Somente desmontando os
mecanismos de concentração de poder e substituindo-os por mecanismos de
desconcentração se poderia atuar com eficácia para modificar o
substrato geral de onde brotam as violações.
Esta
tarefa requer a modificação da legislação e da estrutura do Estado,
que tem de ser, paradoxalmente, reforçada para esta finalidade.
Assim,
a luta atual pelos direitos humanos deve abarcar o aspecto micro e
corajoso de combate às violações, de reivindicação de reparações às
vítimas e de punição de autores e, paralelamente, a luta por políticas
públicas de desconcentração de poder nas diversas esferas.
Neo-liberalismo e violações
As
doutrinas liberais inglesas de Bentham, Locke e Adam Smith foram
formuladas em uma sociedade e uma época com características muito
diversas das modernas sociedades industriais, urbanas e altamente tecnológicas.
Certamente, naquela época e sociedade aquelas doutrinas e políticas
significavam um avanço importantíssimo, tanto na esfera econômica, como
na política. O neoliberalismo, de certa forma, tenta reviver, em especial
no campo econômico, a visão, a doutrina e a prática liberal, daquilo
que ficou conhecido como a teoria econômica clássica, esquecendo as lições
da Grande Depressão. Daí sua denominação: neoliberalismo, onde o neo
na realidade nada tem de novo mas, significa antigo. É a ressurreição
de doutrinas mortas, antigas e inadequadas aos tempos modernos, do ponto
de vista econômico mas também em especial quando se verificam seus
efeitos sobre os direitos humanos.
As
políticas neo-liberais tendem a agravar as violações de direitos
humanos, de todo tipo e assim as três gerações de direitos humanos tem
sido igualmente afetadas pelos efeitos perversos dessas políticas.
A
premissa implícita do neo-liberalismo é que os mercados de bens, de
serviços, de capital e de trabalho são caracterizados pela livre concorrência,
isto é, que as unidades que deles participam são numerosas, de
capacidade semelhante, com acesso livre ao conhecimento, em resumo, que
nenhuma unidade pode influir sobre os preços em seu próprio benefício.
Assim,
o neoliberalismo considera que o livre jogo das forças de mercado é a
melhor forma para alcançar a melhor alocação de recursos, a maior
produtividade, a maior produção, a melhor distribuição de renda, o
mais alto nível de bem estar e o progresso tecnológico mais acelerado.
Em
conseqüência, o neoliberalismo propugna, com energia, que o Estado seja
reduzido ao mínimo, que a atividade econômica seja o mais possível
desregulamentada, que o Estado interfira o mínimo via atividade econômica,
e em especial que não desenvolva diretamente nenhuma atividade econômica.
As
políticas neo-liberais econômicas, com sua ênfase na desregulamentação,
na revisão de direitos trabalhistas, em “reformas” fiscal e outras
com fortíssimo viés pró-empresa, libera forças de mercado, que, em
situações iniciais de grande disparidade entre indivíduos e grupos
sociais, tendem a agravar rapidamente a concentração de renda e de poder
existente nas sociedades que vêm a adotar tais políticas.
No
campo propriamente político, o neoliberalismo considera que a democracia
liberal é a melhor forma de governo, pois nela os cidadãos, a exemplo do
que ocorre com os agentes na esfera econômica, têm poder político igual
ou semelhante, grau de informação semelhante sobre as questões em
disputa, sem capacidade de influir significativamente sobre o processo e
que, como no mercado, o livre jogo político produz as melhores e mais
justas políticas que promovem, portanto, o bem geral.
O
neoliberalismo, em sua forma política, ao enfraquecer o Estado e ao não
reconhecer a influência do poder econômico e dos meios de comunicação
no processo político dificulta a substituição dos mecanismos
“legais” de concentração de poder por instrumentos de desconcentração,
e ao contrário, torna ainda mais violento o processo de concentração
que por sua vez gera as violações de direitos.
No
nível internacional, as políticas neoliberais, tais como o livre
cambismo, o livre movimento de capitais, a desregulamentação e a
abertura comercial associam os grupos que concentram o poder nos Estados
da periferia aos que o concentram nos Estados que estão no centro do
sistema internacional, aceleram o processo de concentração de poder nos
níveis nacional e mundial e aumentam o ambiente favorável à violação
de direitos humanos de toda ordem na periferia.
As
articulações entre grupos internos e externos na execução de políticas
neoliberais provocam crescente transferência de recursos da periferia
para o centro do sistema e agravam as estruturas oligopólicas na economia
e na política. Assim dificultam o desenvolvimento econômico e a
desconcentração de renda, ao gerar desemprego, exclusão, marginalidade
e violência nos Estados centrais, mas especialmente e em grau muito maior
nas megalópoles periféricas que se expandem desordenada e
miseravelmente. Na periferia, milhões de seres humanos têm sido
subitamente afetados pelos resultados daquelas políticas, não em razão
de qualquer “incompreensão” de seus governos, já que estes se esforçam
ao máximo na aplicação dessas políticas ou de “males inatos” às
sociedades nativas que, se culpadas foram, foi de acreditar ingenuamente
nos novos mitos “centrais”: a globalização e a paz. As políticas
neoliberais tem sido a causa das mais graves violações de direitos econômicos
e sociais, e em seguida, políticos, ao criar as condições para a
eventual reedição do autoritarismo sempre latente na periferia.
Violações de direitos e políticas públicas
As
estratégias de promoção e defesa dos direitos humanos que priorizam a
educação e a “mudança das mentalidades” e a defesa de vítimas
individuais não atingem o cerne da questão que é a desigualdade e a
disparidade de poder consagradas pela legislação e pelo imaginário da
população.
À
medida em que se tem êxito maior ou menor na punição das infrações
aos direitos humanos, o que é louvável e importantíssimo, é necessário
paralelamente atuar sobre os mecanismos que concentram poder e que se
encontram corporificados em políticas públicas e em seus instrumentos de
elaboração, execução e sanção judiciária.
As
políticas públicas se realizam essencialmente através da elaboração,
execução e sanção de normas jurídicas, e se configuram como determinações
da comunidade, através do Estado, para o conjunto da sociedade sobre os
comportamentos que são legítimos e corretos.
Cada
política pública pode em si mesma concentrar ou desconcentrar poder em
relação aos grupos beneficiários e às vítimas dessa concentração.
A
título de exemplo, um código de trânsito pode concentrar poder (e
privilégios) dos proprietários de automóveis ou desconcentrá-lo,
beneficiando os segmentos da população não-proprietários de veículos,
os pedestres, em geral as principais vítimas dos acidentes.
Seria
ocioso mencionar, porém a mesma situação se repete em todas as áreas,
desde a legislação bancária até a educacional, onde os dispositivos
legais podem contribuir e muitas vezes contribuem para reforçar estereótipos
e preconceitos.
Desta
forma, é no exame e debate exaustivo de políticas públicas, de sua
elaboração e execução, que se encontram as oportunidades para promover
a desconcentração de poder. É, portanto, na arena política mais ampla
e coletiva que a luta mais eficaz pelos direitos humanos pode vir a
triunfar de fato, isto é pode eliminar as causas mais profundas das violações.
Assim,
da mesma forma que em decorrência da luta pela preservação do meio
ambiente em seus múltiplos aspectos vieram a ser criados mecanismos
legais de avaliação de projetos para verificar, antes de serem
implementados, o seu impacto ambiental, seria perfeitamente possível
estabelecer que as políticas públicas devessem ser submetidas à avaliação
de seus impactos sobre os direitos humanos ao serem formuladas e antes de
serem implementadas.
Certamente
os direitos humanos, políticos, econômicos, culturais e sociais têm de
ter na escala ética um valor mais elevado do que os direitos à preservação
da fauna e da flora eventualmente ameaçadas por projetos humanos.
Por
esta razão deveria se tornar obrigatório para o Executivo apresentar
relatórios de avaliação de impacto sobre os direitos humanos, em seus
diversos aspectos, das distintas políticas públicas que propõe, cabendo
ao Congresso e à sociedade debaterem tais avaliações.
Somente
a análise criteriosa de cada política pública pela sociedade e por seus
representantes legitimamente eleitos para tal pode vir a favorecer a adoção
de políticas públicas que desconcentrem poder de toda a ordem e que
assim contribuam efetivamente para a promoção e defesa dos direitos
humanos.
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