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O Controle do Arbítrio do Estado e o 
Direito Internacional dos Direitos Humanos

Paulo Sérgio Pinheiro*

Para Celso Lafer.  

 

O monopólio da violência física legítima do Estado  

Os processos de consolidação democrática e a continuidade do arbítrio  

A aquiescência diante da violência ilegal  

O triângulo fatal das violações  

Rule of Law Policing

Quid custodiet custodies ?  

Os padrões internacionais de controle do arbítrio do Estado  

Fontes básicas  

Princípios, regras mínimas e declarações  

Fontes, sistemas e padrões na esfera regional  

Transparência e Monitoramento  

 

A luta pelos direitos do homem não pode jamais se efetuar senão contra o poder, pensava René Cassin, um dos pais-fundadores da Declaração Universal de Direitos Humanos, ao ver-se face a face com o general De Gaulle, a quem acompanhara no exílio de Londres, agora de volta ao governo em 1958[1]. Porque os direitos humanos estariam sempre em conflito com o Estado, com o governo, enfim com o poder?

Governo, Estado, significa poder. O poder é mais que a coerção, mas o poder do Estado tem uma característica única porque ele está acima de todos os outros “poderes” no interior da sociedade pelo direito que lhe é reconhecido de recorrer à força, mesmo de matar, quando seus representantes estimam que tal ação seja necessária (e a mais legítima, ali onde a legalidade é respeitada)[2].

O monopólio da violência física legítima do Estado

Para entendermos a natureza do Estado devemos ter em conta que ali se situa o lugar primordial da violência, o site, dessa grande invenção sócio- técnica, na expressão de Norbert Elias, o monopólio da violência física do Estado, que se desenvolveu através de várias gerações para propriamente chegar a sua forma atual, que não é, aliás, o seu último estágio.

A expressão “monopólio da violência legítima”, que não é própria à linguagem jurídica, pertence à metalinguagem da teoria do direito, teoria do Estado ou da sociologia jurídica.[3] Poucos autores, pelo que se saiba apenas dois, Max Weber e Hans Kelsen, utilizaram essa expressão e em termos quase idênticos. Para Weber, força não é o meio normal ou único do Estado, mas é o meio específico do Estado: a relação entre o Estado e a força é bastante íntima como fica claro na sua definição: “ Nós entendemos por Estado um ‘empreendimento político de caráter institucional’ desde que e conquanto sua direção administrativa reivindique com sucesso a aplicação do monopólio da coerção física legítima”[4]. O estado portanto será uma comunidade humana que detém, com sucesso, o monopólio do uso legítimo da força física sobre um território dado[5]. A violência da qual fala Weber não é cega nem ilegítima mas torna-se legítima precisamente porque ela é organizada (podendo ser chamada de coerção, como o fazKelsen).[6]

Se examinarmos a coerção exercida pelo Estado, devemos constatar que essa tem uma particularidade : como o Estado não é um ser real, não pode executar nenhum ato de coerção, seja física ou de outra espécie porque ele não pode ele mesmo agir de alguma maneira. A afirmação de que o Estado age pela coerção é somente uma forma de falar que corresponde na realidade a muitas situações diferentes. Primeiramente ela completa e prolonga a ficção pela qual alguns atos de coerção física cometidos por homens/ mulheres são considerados como desempenhados pelo Estado. É essa ficção que o direito chama de “imputação”.

O Estado exerce assim a coerção por intermédio de homens, que são considerados como órgãos do Estado. Mas há também atos de coerção cometidos por indivíduos que não tem a qualidade de órgãos do Estado. Esses atos, que não serão imputados ao Estado, mas aos próprios indivíduos, são entretanto autorizados ou mesmo prescritos pelo Estado. No caso da legítima defesa, os indivíduos estão autorizados a desempenhar atos de violência física, em certas situações, em certas condições e numa certa medida determinados pelo direito. Enfim, há numerosos atos do Estado que não são atos de coerção física, mas que prescrevem ou autorizam o emprego da força, por exemplo uma ordem dada à polícia. Monopólio significa não o exercício exclusivo da violência mas o direito exclusivo de prescrever e em conseqüência proibir ou permitir a violência (a função ideal do monopólio é a ausência de toda violência efetiva). Monopólio é portanto o direito exclusivo de definir e de distinguir por meio de prescrições e de autorizações a coerção legítima e a coerção ilegítima. A afirmativa de que o Estado exerce a coerção física é portanto uma simples metáfora segundo a qual os órgãos do Estado têm o poder de prescrever ou de autorizar atos de coerção. É esse poder de prescrever que se chama em definitivo de “poder de coerção”, ainda que ele não seja em si mesmo um ato de coerção física.[7]

A criação do Estado moderno - como uma entidade impessoal, abstrata, acima e distinta dos governos- é sinônima do surgimento de um soberano e portanto de um aparelho de poder indivisível, o defensor pacis, como chamou Marsílio de Padua. Mas essa invenção de estados que exercem monopólio da violência é extremamente ambígua: “Os Estados decididamente são perigosos instrumentos de pacificação.”[8] O ponto crucial desse monopólio é o equilíbrio entre suas duas funções: a função para os que controlam o Estado e para os membros da sociedade regulada pelo Estado, e, portanto, o grau de pacificação interna. A função do Estado tem portanto uma dupla face: por um lado, como detentor do monopólio da violência, o Estado deve impor limitações a seus poderes e ações; por outro lado, como guardião da ordem pública, ele deve ser o protetor e o garante de todas as liberdades. Mas como esse Estado moderno funciona como um instrumento de dominação com concentração no centro, os súditos estão sempre sob a ameaça da violência.[9]

Com o correr dos tempos, houve um afrouxamento da concentração do poder das mãos do Soberano para um exercício mais compartilhado do poder, à medida que os regimes democráticos se consolidavam. Apesar das formas democráticas de governo, muitos regimes constitucionais em todo o mundo continuaram a tolerar “áreas de terror” contra minorias étnicas, econômicas submetidas à discriminação: pensemos nos roma (como se chamam hoje os ciganos), os tutsi na República Democrática do Congo, os imigrantes turcos na Alemanha, os homossexuais assassinados em muitos países e no Brasil. Muitos Estados convivem com altos níveis de homicídio, incapazes de assegurar a segurança da população. A existência em todos países de graves violações de direitos humanos, cometidas no interior das sociedades nacionais, pelos operadores da violência, atesta que a pacificação anunciada pela concentração da violência está longe de ter sido realizada.

Os processos de consolidação democrática e a continuidade do arbítrio

Em muitos países latino-americanos, em especial naqueles países sem tradição de proteção dos direitos humanos, mesmo depois do retorno às constituições democráticas ou a promulgação de novos textos constitucionais, as instituições legais não foram alvo de reformas e as práticas arbitrárias dos agentes estatais da polícia continuam. Apesar dos avanços na sociedade civil e na governabilidade democrática, os pobres continuam a ser as vítimas preferenciais da violência ilegal do Estado, do crime e das graves violações de direitos humanos. Em contraste, o Estado na maior parte dos países da América Latina tem-se mostrado incapaz de erradicar a impunidade dos crimes dos agentes do Estado com o mesmo empenho com que pune os crimes comuns cometidos pelas classes populares.

Uma importante clarificação, feita por Jean- Paul Brodeur,[10] diretor do Centro Internacional de Criminologia Comparada, da Universidade de Montréal, que vale a pena sublinhar aqui, observa que o estado de direito não deve ser igualado apenas à imposição da lei criminal, precisamente porque uma das características da lei penal é o seu caráter discriminatório. Na verdade, a imensa maioria daqueles que são punidos ou vão para a prisão nesse continente, com exceções dos homicídios e de alguns crimes horrendos contra a pessoa, são os destituídos de poder e as não-elites cuja proteção o estado de direito democrático paradoxalmente pretende garantir. Os procedimentos jurídicos e o funcionamento da lei refletem claramente as cruéis realidades das sociedades latino-americanas e não conseguem obviamente compensar a diferença entre o imenso número de pobres e os ricos.[11]

O governo democrático não tem sido capaz durante o processo de consolidação da democracia em muitos continentes de implementar ou de propor reformas para as instituições da justiça e da lei - como o judiciário, o ministério público e especialmente a polícia. Seria talvez pueril esperar que o processo de consolidação da democracia tivesse ocorrido de forma diferente. As teorias das transições políticas muita vezes deixaram de lado que toda Constituição de um Estado funda suas raízes em seu sistema social.[12] Não se pode esperar efeitos da promulgação de uma nova Constituição ou da implementação do rule of law, do estado de direito, fazendo abstração do sistema social - tanto por um lado no que diz respeito ao que chamamos hoje de elementos do desenvolvimento humano, como concentração da renda, pobreza relativa, analfabetismo, como por outro as características próprias das relações sociais dentro desse sistema, como autoritarismo, hierarquização, exploração da mão de obra, trabalho escravo. O sistema social não se altera com a mudança do regime político, da Constituição de um Estado.

Quando as sociedades latino-americanas, para nos atermos apenas às transições políticas dos anos 1980 no continente, saíram da ditadura para o governo civil, as práticas autoritárias dos governos não foram mudadas pela mudança política ou por eleições. Por essa razão há um dramático gap entre as cartas de direitos e o mundo real dos procedimentos jurídicos e o funcionamento da lei, expresso pelas práticas incrustadas nas instituições judiciais (como a polícia, os tribunais, o ministério público) refletindo claramente as cruéis realidades da sociedades latino-americanas e brasileira. Os sistemas jurídicos são ao mesmo tempo um instrumento e um reflexo da sociedade, e portanto da desigualdade social. A análise dos processos de consolidação democrática, constatada a discrepância entre a letra da lei e as práticas no sistema jurídico, à luz dessas terríveis realidades, deve abandonar a velha mistificação que pretende que o direito se situa fora e acima da sociedade e das realidades sociais, que ele teria sua essência própria, sua lógica autônoma, sua existência independente.[13]

O mesmo ocorre com o Estado. Não na verdade uma distinção significativa entre o Estado e o governo do Estado. Não importa qual o regime, o cidadão comum estabelece uma clara equação entre os dois. Para fundamentar esse postulado Sir Moses Finley recorre a um texto de Harold Lasky, The State in Theory and Practice (1935) há muito esquecido:

o cidadão não pode ter acesso ao Estado senão pelo intermediário do aparelho de governo[...] As conclusões que ele as tira sobre [...] a natureza do Estado, ele tira-as do caráter das ações governamentais; e ele não poderia conhecer de outra maneira. Esta é a razão por que nenhuma teoria do Estado é adequada se não situa a ação governamental no centro da explicação que ela propõe. Um Estado é o que faz seu governo; o que uma teoria qualquer requer do aparelho governamental para que seja atingido o fim último do Estado [...] não é senão um critério para julgar esse estado, não um índice de sua essência real[14]

O Estado não pode pretender-se democrático se as práticas do governo e de seus agentes não respeitam os requisitos da democracia O Estado não pode pretender ser democrático se não consegue implementar o acesso efetivo da população aos direitos fundamentais.

A aquiescência diante da violência ilegal

A percepção pelas elites dos pobres como parte das “classes perigosas” está incrustada nas práticas do sistema judicial que processa e condena os crimes praticados pelos pobres como membros das “classes perigosas”: em contrapartida muitos crimes das elites continuaram até há pouco tempo fora do alvo do sistema judicial. As políticas de prevenção do crime, especialmente aquelas propostas durante períodos eleitorais (as eleições são a alta estação para a demagogia, toda vez que a violência e o crime devem ser discutidos) visam menos controlar o crime e a delinqüência do que diminuir a insegurança das classes dominantes. Quando as elites bradam contra a impunidade estão referindo-se quase sempre à repressão aos crimes cometidos pelos pobres..

Os crimes das classes médias e das elites - como a corrupção, os golpes financeiros, a evasão de impostos, a exploração de trabalho infantil ou semi-escravo por grandes proprietários de terra não são percebidos usualmente como ameaças. O mesmo vale para o jogo do bicho em quase todos os estados da federação - espinha dorsal de várias modalidades de crime organizado, o tráfico de drogas e de armas, a lavagem de dinheiro, a falsificação de medicamentos, que jamais foram o alvo de políticas de repressão consistentes.

Em algumas cidades, aqui mesmo no Rio de Janeiro, a situação das visões do crime torna-se ainda mais complicada, por parecer haver uma confluência entre a percepção do crime pelas elites e pelas não elites. Um exemplo notável dessa confluência, a meu ver, ocorreu no desfile de escolas de samba do Carnaval de 1998, quando se fez um minuto de silêncio (Nelson Rodrigues dizia que não há nada mais longo que um minuto de silêncio) em honra da memória de um dos banqueiros do jogo do bicho - patrono de escola de samba, chefe da máfia do crime organizado e do tráfico de drogas, depois de uma brevíssima estada na prisão.[15] Este comportamento é um exemplo revelador da aquiescência dos pobres, não somente ao arbítrio policial, mas também ao crime organizado que oferece proteção, serviços sociais nas favelas do Rio de Janeiro, nas comunidades pobres e na periferia de São Paulo, onde a única face do Estado (e do governo) que as populações conhecem é a polícia.

A polícia e outras instituições do sistema criminal tendem a atuar como guardas- fronteira (a comparação é de Aryeh Neir[16]), protegendo as elites dos pobres, e a violência policial e tortura continuam asseguradas pela impunidade porque justamente dirigida contra as “classes perigosas” e raramente afetando a vida das classes afluentes. Não é outro o quadro que apresentam as novas democracias latino-americanas, todas marcadas pelo arbítrio policial.

No continente latino-americano a polícia considera o estado de direito mais como um obstáculo do que como uma garantia efetiva para o controle social da violência. Essas polícias estão convencidas que seu papel é proteger as sociedades dos “elementos marginais” por quaisquer meios disponíveis. Conforme lembrou Paul Chevigny no seu mais recente livro The edge of the knife,[17] a polícia dispõe em alguns países de poderes especiais que servem para enfatizar sua independência diante das leis que governam o resto das instituições do sistema criminal. Na Argentina, por exemplo, a polícia federal pode deter alguém por trinta dias por vadiagem, embriaguez ou travestismo, cross- dressing ; na Venezuela, a polícia pode deter pessoas consideradas como uma ameaça para a sociedade por períodos de até cinco anos; no Brasil, apesar de restrições legais, a detenção provisória continua a ser uma prática comum.

O triângulo fatal das violações

Os critérios disponíveis para classificar as violações de direitos humanos não são claros. Nenhuma resolução de organização ou conferência internacional oferece um critério claro para delinear o que são violações de direitos humanos : no máximo indicam o conteúdo dessas violações. Por exemplo, os parágrafos 7 e 11 da Programação da Conferência Internacional de Direitos Humanos de Teerã, de 13 de maio de 1968, refere-se a “gross denial of human rights”. Já a Declaração e Programa de Ação de Viena, de 25 de junho de 1993, usa as expressões “massive violations of human rights”(par. I.28), “continuing human rights violations”(para.I.29), e “gross human rights violations”(para. I.30).[18].

Apesar de conscientes dessas dificuldades, para analisarmos a arbitrariedade do Estado temos de contar com um conceito operacional. Nas novas democracias nas quais os governos não coordenam ou organizam a repressão ilegal, mas violações de direitos humanos continuam a ocorrer perpetradas pelos agentes do Estado, que contam muitas vezes com a impunidade. Entre os operadores do Estado que perpetram maior número de graves violações de direitos humanos, como execuções sumárias, seqüestros e tortura, estão as polícias dos Estados modernos, falhando na sua missão orginária de construir a pacificação.

Cremos que podemos trabalhar com um conceito operacional provisório dessas violações fundado na Declaração Universal de Direitos Humanos e no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Na Declaração estão formulados três direitos que dizem respeito especificamente aos operadores do Estado: o direito à vida, liberdade e segurança (art. 3), de não ser submetido à tortura (art.5) e de não ser preso arbitrariamente (art.9).19Quando esses direitos são violados, como Alex Schmid propôs em seu relatório Research on Gross Human Rights Violations, estamos diante de graves violações de direitos humanos reconhecidas pelo direito internacional dos direitos humanos: como essas violações geralmente ocorrem simultaneamente esses direitos correspondem a um “triângulo fatal”.20

Evidentemente para uma avaliação do alcance dessas violações, essas violações precisam ser medidas, o que pode ser feito usualmente recorrendo-se a três indicadores: o escopo das violações, grau de seriedade, sua intensidade, e seu alcance, isto é, o tamanho da população afetada.21 Uma violação isolada cometida por indivíduos privados ou grupo de pessoas, sem ligação com o Estado, obviamente não constitui violação de direitos humanos: como regra geral, o Estado não pode ser responsabilizado por ações de indivíduos (a única exceção sendo aqueles casos em que o governo impede esses indivíduos de serem responsabilizados). As graves violações de direitos humanos são aquelas cometidas por órgãos locais do governo do Estado ou seus funcionários, atuando dentro de sua autoridade:22 a responsabilidade perante o direito internacional dos direitos humanos cabe ao Estado, mesmo que as violações não tenham sido perpetradas sob sua orientação. Nas novas democracias, os principais responsáveis pelas violações dentro desse “triângulo fatal” são os operadores do Estado, as polícias.

A violência ilegal e a violência fatal das polícias

Policiais constantemente envolvem-se em tiroteios injustificáveis, espancamentos e usando força brutal desnecessária em muitas cidades. Nessas cidades, as autoridades policiais superiores, os funcionários policiais, e os órgãos superiores do governo falham em agir decididamente para restringir ou penalizar tais atos ou deixam até de registrar esses atos. Policiais repetidamente brutais - geralmente uma pequena percentagem de oficiais na força - podem ser objeto de repetidas queixas mas são freqüentemente protegidos por seus colegas e pela má qualidade das investigações. Vítimas que se queixam e demandam o respeito a seus direitos encontram obstáculos em todas as fases do processo, desde intimidação aberta até relutância da promotoria local ou federal de processar casos de brutalidade. Esses graves abusos persistem porque poderosas barreiras à accountability, à responsabilização criam condições para que os policiais que cometem graves violações de direitos humanos escapem ao castigo para poder continuar sua conduta plena de abusos.

Os maus tratos das pessoas postas em detenção provisória pela polícia são freqüentes. As alegações de sevícias praticadas por policiais são em sua maioria formuladas por pessoas de origem africana, suspeitas de posse de droga e de fazer tráfico de drogas. Os maus tratamentos assumem a forma de “ tapas, socos, pontapés e cassetadas, colocação de algemas com mãos às costas durante períodos longos”. Em alguns casos, ocorrem brutalidades ainda mais graves, confirmadas por laudos médicos. As condições materiais de detenção nas celas dos distritos não têm colchões e o estado de limpeza é precário.

Para variar, não estamos falando do Brasil, mas do comportamento da polícia em duas democracias consolidadas, os Estados Unidos, alvo de um impressionante relatório de Human Rights Watch[23], e da polícia da França, alvo deum recente relatório do Comitê europeu para a prevenção da tortura.[24] Se essas graves violações de direitos humanos na prática dos operadores do Estado, persistem em dois estados, um desde os anos 1960 com uma das legislações mais completas de direitos civis do mundo, o outro fonte inspirada dos direitos humanos e da luta contra a discriminação, pelo menos desde 1789, não é difícil imaginar, como conhecemos, o que ocorre ainda nas práticas das polícias contra os cidadãos.

Nas novas democracias da América Latina, além da prática da tortura, especialmente no interior dos distritos policiais, a polícia em muitos países tem seguido a prática de “atirar primeiro, perguntar depois”, sendo as execuções de suspeitos e criminosos a prática comum nos países da região. O abuso da violência fatal varia de país para país, mas sua característica comum é justificada como uma maneira de controlar o crime comum nas comunidades pobres, sendo as vítimas dos grupos mais vulneráveis, como os pobres, os favelados, os sem teto, os afro-descendentes, confirmando assim a noção de que a polícia primordialmente visa a controlar os pobres. Essa violência policial pode ser considerada como uma forma de vigilantismo, numa versão de que a polícia pudesse eliminar os indesejáveis. Mas o que complica aqui é a aquiescência da maioria da população, inclusive os pobres, a essas práticas. Tais mortes contam com um largo apoio tanto das elites como dos pobres, apesar de serem eles a categoria mais atingida por esse tipo de crime.

No Brasil, a constituição de 1998, talvez seguindo as características do sistema social, não havia alterado a decisão tomada pela ditadura militar segundo a qual os crimes comuns dos policiais militares passaram a ser julgados pelos conselhos e tribunais das polícias militares em cada estado. Sendo esses órgãos compostos de policiais militares e as investigações fundadas em inquéritos policiais-militares (IPMs sobrevivendo em pleno governo civil...) essas cortes na maior parte dos casos sancionavam a impunidade de lesões corporais graves e de homicídios. Em 1996, projeto de lei do governo Fernando Henrique Cardoso, na esteira do projeto apresentado pelo deputado Hélio Bicudo, (transferindo a competência para julgar homicídios dolosos dessas cortes policiais para o judiciário civil) foi aprovado pelo Congresso Nacional- fazendo que toda a extensa série de massacres cometidos pelas polícias militares estejam sendo hoje submetidas ao tribunal do júri.

Rule of Law Policing[25]

Cada cidadão entra em contato com o aparelho de governo - os legisladores, o executivo, os tribunais - através da mediação da burocracia e no caso preciso do sistema judicial através dos operadores da violência do Estado, como a polícia. Não há nenhuma dúvida que os valores democráticos devem estar refletidos no policiamento e na governabilidade. A própria noção da forma de policiamento pode ela própria contribuir para a formação de uma cultura democrática.[26]

Talvez, como indicou David Bayley[27] “perhaps no other institution is more central to the success of democratic nation- building than the police”. Clifford Shearing crê que é imperativo para toda sociedade desenvolver quadros de referências para o monitoramento constante e regulamentação das funções, poderes, desempenho e accountability da polícia. O policiamento, segundo ele, necessita tornar-se uma fonte imparcial da ordem. Para atingir a despolitização da polícia, Shearing aponta duas modalidades de intervenção. Primeiro, a polícia deve tornar-se mais sensível às demandas de segurança formuladas pela gente comum desenvolvendo articulações com esses cidadãos comuns que deverão assegurar que eles são mais dirigidos pela população do que pelo governo. A segunda estratégia seria isolá-la do controle político direto, de modo a assegurar que a polícia, nas palavras de Lord Denning, é “answerable to the law and the law alone” menos do que às autoridades políticas, de modo que o policial possa ser “not the servant of anyone, save the law itself.”[28]

O fundamental para a compreensão do funcionamento dos operadores policiais do Estado é ter em conta que a governance é e deve ser um monopólio do Estado. Dentro dessa visão uma polity democrática é aquela onde a governance do Estado é dirigida pela vontade do povo e o policiamento democrático é o policiamento no qual o trabalho da polícia do Estado reflete essa vontade. Dentro desta concepção, conclui Shearing, “policing is conceived as the aspect of governance that is concerned with providing safety and security” o policiamento é concebido como aspecto da governance.[29]

Para David Bayley[30], a conexão entre democracia e a forma de policiamento é fraca, porque a democracia pode ser compatível com várias formas de policiamento. O policiamento também pode ser organizado e implementado tanto em países democráticos como não democráticos. Bayley alerta para o fato de que as mudanças institucionais implicando as relações da polícia com o governo ou outras estruturas sociais são as mais difíceis de serem realizadas. De qualquer modo, o papel da polícia deve ser enfatizado enquanto accountability perante a lei menos do que perante a orientação política, assim como as polícias nas democracias emergentes devem renunciar à espionagem e à contra- insurreição[31]. Não deixa de ser inquietante, no caso brasileiro, a sobrevivência no interior de cada Polícia Militar estadual de Serviços Reservados, criados para fazerem averiguações sobre os efetivos. Entretanto, esses serviços em pleno governo civil continuam espionando, a nosso ver inconstitucionalmente, a sociedade civil, sem nenhum controle externo, nem transparência sobre seus recursos, efetivos e métodos.

Lord Scarman, um membro da Câmara dos Lordes na Grã- Bretanha, no final dos anos 1970 publicou um relatório sobre os conflitos raciais num bairro de Londres, Brixton, e do alto da sua tranqüilidade deu uma resposta primorosa sobre o papel primordial da polícia : “ is to maintain the Queen’s peace”, a paz do soberano, a paz da rainha, definida como o “estado normal da sociedade”, porque numa sociedade civilizada a normalidade é um estado de tranqüilidade pública. O crime e a desordem são aberrações para essa “normalidade” e, portanto, o dever da polícia é atuar para prevenir a anormalidade. Na falta de rainha, o constitucionalismo democrático nas repúblicas define os limites dessa normalidade dentro da lei.

Esta noção de paz, como já vimos, está diretamente ligada à noção de pacificação, intrínseca desde os começos dos tempos do pensamento contratualista e jusnaturalista até `a formação do Estado moderno. Mas essa função de manter a paz em toda sociedade é plena de contradições na imposição da normalidade às elites, e especialmente às não elites (muito comumente tratadas como as classes perigosas) contribuindo com dificuldades para se construir a noção de imparcialidade, de neutralidade, acima das classes e grupos sociais que deve caracterizar a atuação da polícia

Para que a polícia seja aceita foi e é indispensável que esta se apresente como imparcial, apesar de, em conseqüência das contradições, particularmente existentes em sociedades com grande desigualdade social, ser, senão impossível, terrivelmente problemático efetivar a neutralidade.[32] O que vai legitimar a existência da polícia nesse campo de múltiplas contradições é a existência de uma confluência de expectativas implícitas expressas pelas elites e pelas não- elites em relação aos papéis que a polícia deve desempenhar. Um dos mais insidiosos mal-entendidos da análise política é fazer as “institutions and procedures appear as pieces of a machinery designed to a purpose settled in advance, instead of as manners of behaviour which are meaningless when separated of the context.[33] O comportamento efetivo da polícia não pode ser explicado fora de seu contexto preciso. Tanto entre as classes mais favorecidas como entre as classes populares, por exemplo, há uma operação mental de desumanização em relação aos desviantes e diferentes (que podem ser vadios, criminosos, nordestinos, afro-descendentes, homossexuais etc) que “autoriza” o arbítrio e gera aquiescência diante das violações.[34] As instituições policiais refletem a estrutura das relações num determinado sistema social, não só no presente como no passado. Em conseqüência, o papel da polícia flutua e evolui de forma bastante estável nas diferentes conjunturas políticas pela simples razão de que a configuração fundamental do sistema social (desigualdade, assimetria de poder, hierarquização) não se altera. O processo de consolidação democrática não conseguiu desmontar os “anéis burocráticos”, expressão cara ao então professor Fernando Henrique Cardoso, que uniam os setores mais antidemocráticos da sociedade civil com os órgãos de informação e as polícias.

Talvez as mudanças e as reformas sejam problemáticas porque sob uma aparente flexibilidade - a ilusão de que a forma de organização política democrática diluísse automaticamente o arbítrio das práticas dos operadores do Estado - há sempre uma sólida continuidade. A periodização política não afeta o arbítrio incrustado no governo, pois o funcionamento das instituições da violência física do Estado guarda uma grande autonomia em relação às mudanças na periodização política.

Quid custodiet custodies ?

Em face desse quadro sombrio das polícias, reformas urgentes são necessárias contra esses abusos, que contemplem os abusos da violência e a corrupção, ao mesmo tempo que criem condições para uma prestação de segurança pública mais eficiente para toda a população. Paul Chevigny lembra que os legislativos poderiam também aumentar a accountability, a responsabilização da polícia por todos os seus atos e reduzir a violência não apenas através de mudanças que limitassem os abusos da polícia, mas que também limitassem o próprio poder da polícia.

Como não temos condições aqui de examinarmos todas as estratégias possíveis para controlar a violência da polícia, a título de ilustração, mencionamos o controle civil independente da polícia, hoje em vigor em inúmeros países. Uma das experiências mais consistentes desse controle civil tem sido o da província de Ontário no Canadá, implantado em 1985. As autoridades locais optaram por um sistema balanceado no qual a polícia assume a responsabilidade pelas ações de seus funcionários mas sob o controle de uma agência civil independente. Através desse sistema, a investigação inicial é realizada por um juiz encarregado de ouvir as queixas (exceto nos casos de violência fatal) que monitora as investigações, recebe relatórios mensais, ouve testemunhas, examina documentos e tem autoridade para rever as decisões tomadas a respeito das queixas.[35]

O controle civil deve ser totalmente independente da polícia e de toda a direção policial e deve ter por objetivo lidar com a conduta policial. Essa independência também deve dizer respeito ao processo político e sua estrutura deve reforçar essa autonomia. O sistema deve ser aberto e transparente para as partes envolvidas e deve ser acessível ao público, podendo as denúncias serem respondidas por meios variados.[36]

É altamente aconselhável, para que a transparência seja assegurada, que relatórios sejam publicados regularmente, como aliás o faz a Ouvidoria da Polícia de São Paulo, que pode ser considerada um embrião do controle civil independente. Esses relatórios devem apresentar estatísticas detalhadas e informações relativas às queixas, às ações disciplinares que foram tomadas e recomendações. As estatísticas devem desagregar os dados por gênero e raça dos queixosos e dos oficiais envolvidos. Os relatórios, para que não fiquem reduzidos a quadros e números, devem incluir exemplos dos tipos de abuso a respeito dos quais foram recebidas queixas. As polícias devem procurar eliminar todo o segredo com que investigam as queixas de abuso, desde que essa providência não ponha patentemente em risco o direito ao devido processo do policial em questão. As polícias devem convencer-se que são servidores do públicos e que precisam demonstrar que suas práticas e políticas estão conformes aos padrões de direitos humanos que o Estado se obrigou a respeitar e o governo deve por em prática.[37]

Os padrões internacionais de controle do arbítrio do Estado

Os controles internos para manter o monopólio da violência sob limites que respeitem a integridade dos cidadãos articulam-se e ao mesmo tempo são completados pelos padrões internacionais do direito internacional dos direitos humanos. Além dos padrões, a maquinaria do sistema internacional de proteção de direitos humanos, construída a partir de 1948, oferece inúmeras modalidades de ações que compõem o monitoramento do respeito aos direitos humanos.

Os padrões internacionais

Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, como já vimos ao examinarmos as violações dentro do triângulo fatal, a definição das normas do direito internacional dos direitos humanos e a construção do sistema internacional de proteção tem dado grande atenção ao controle da violência do Estado. Nós estamos convencidos que nesse processo, que vai da Declaração até a recente instituição do Tribunal Internacional, os direitos humanos têm sido um instrumento importante de controle do arbítrio do Estado, tanto em regimes de exceção como em regimes democráticos. Muito brevemente, nos limites desse trabalho, apontaremos algumas das normas internacionais mais relevantes para o controle da polícia e indicaremos um dos mecanismos mais relevantes do sistema internacional de proteção dos direitos humanos para uma afirmação de accountability na ordem internacional, além das barreiras nacionais de cada Estado.

Os padrões internacionais[38] relativos aos direitos humanos no policiamento foram promulgados por uma série de órgãos no sistema das Nações Unidas. Entre esses órgãos estão a Comissão de Direitos Humanos, a Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, e os diversos congressos sobre a Prevenção do Crime e do Tratamento de Prisioneiros. A adoção desses padrões pela Assembléia Geral e pelo Conselho Econômico e Social deu-lhes um caráter de universalidade, isto é, esses padrões são aceitos pela comunidade internacional como regras mínimas para o policiamento, quaisquer que sejam os sistemas legais do Estado Membro.

Lembre-se que depois da Declaração e Programa de Viena, adotada consensualmente em Plenário pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho de 1993, afirmando com grande clareza logo no seu primeiro artigo que “a natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas”[39]. A Declaração de Viena ultrapassou, assim, tanto o dilema tradicional entre universalismo e relativismo, como as alegações de euro-centrismo dos direitos humanos por consenso entre todos os Estados membros da ONU presentes na conferência[40]. Em conseqüência, nenhum Estado pode alegar tradições locais que possam sustentar graves violações de direitos humanos praticadas por suas polícias.

Devemos ainda levar em conta que o conteúdo normativo desses padrões, e detalhes de sua implementação apropriada na esfera nacional, podem ser encontrados na jurisprudência do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas, o órgão do tratado que monitora o cumprimento do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.

O conjunto desses padrões se estende por um largo espectro da autoridade legal internacional, desde a imposição de obrigações definidas em tratados e convenções até princípios gerais de moral, oferecidos através de declarações, regras mínimas e corpos de princípios. Juntos, esses instrumentos oferecem um quadro de referência legal internacional para assegurar o respeito aos direitos humanos, à liberdade e à dignidade no contexto da justiça criminal.

Fontes básicas

As primeiras das fontes básicas, que apenas indicamos, são obviamente a Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além dessas, trazem normas e princípios decisivos para o controle do arbítrio os dois Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e o de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Queria ressaltar que a proteção contra a privação arbitrária da vida presente no artigo 6 do Pacto de Direitos Civis e Políticos tem grande importância para o controle das práticas ilegais dos operadores: “os Estados partes devem tomar medidas não apenas para prevenir e punir a privação da vida por atos criminosos, mas devem também prevenir as execuções arbitrárias por suas próprias forças de segurança. A privação da vida por autoridades do Estado é uma questão da mais alta gravidade. Portanto a lei deve estritamente controlar e limitar as circunstâncias nas quais uma pessoa pode ser privada da vida por tais autoridades”.[41]

Além dessas normas do direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitário tem-se mostrado de grande utilidade, especialmente os preceitos do Protocolo II, que diz respeito aos conflitos internos, para o treinamento das polícias militares no Brasil, em cooperação com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. São de grande valia princípios do direito internacional humanitário que proíbem em todas as situações o assassinato, a tortura, o castigo corporal, castigos coletivos, execuções sem julgamento regular e tratamentos cruéis e degradantes.

Princípios, regras mínimas e declarações

Geralmente menos conhecidos e circulados esses documentos contêm orientação precisa para o domínio do arbítrio policial:

- Código de Conduta para Policiais. Em dezembro de 1979, a Assembléia Geral adotou o Código de Conduta para Policiais. O Código, composto de outros artigos fundamentais, define as responsabilidades específicas da polícia em relação ao serviço à comunidade; proteção dos direitos humanos; uso da força, tratamento de informação confidencial; proibição da tortura e de tratamento cruel e degradante; proteção da saúde dos detentos; corrupção e respeito da lei e do Código. O Código é em sua essência, o padrão básico pelo qual o comportamento da polícia - civil ou militar, uniformizada ou não - deve ser avaliado pela comunidade internacional.

- Princípios Básicos para o uso de força e de armas de fogo por policiais

Foram adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e Tratamento de Infratores, em 1990. Os Princípios levam em consideração a natureza perigosa do policiamento, lembrando que uma ameaça à vida ou à segurança de policiais é uma ameaça à estabilidade da sociedade como um todo. Ao mesmo tempo, padrões estritos são definidos para o uso da força e de armas de fogo pela polícia. Os Princípios deixam claro que a força deve ser usada quando estritamente necessária, e somente para o desempenho das funções de polícia. Os Princípios apresentam um cuidadoso equilíbrio entre o dever do policial manter a ordem pública e a segurança, e seu dever de proteger o direito à vida, à liberdade e à segurança da pessoa.[42]

Fontes, sistemas e padrões na esfera regional

Os Direitos Humanos na esfera regional do continente americano são definidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que entrou em vigor em julho de 1978. No sistema interamericano, a Comissão Interamericana de direitos humanos recebe queixas, investiga, decide sobre os casos e faz recomendações non-binding para os governos. Petições podem ser encaminhadas pela Comissão contra um Estado parte à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Nos outros continentes, temos o sistema europeu sob o Conselho da Europa e o sistema africano sob a Organização da Unidade Africana.[43]

Transparência e Monitoramento

As Nações Unidas estabeleceram uma complexa rede de mecanismos para a promulgação dos padrões de direitos humanos e para sua implementação e monitoramento. O Alto Comissariado de Direitos Humanos desde 1994 é o ponto focal para o tratamento de todas as questões de direitos humanos e Crime Preventivo Nd Criminal Justice Branca serve como o ponto focal para questões de crime e justiça.

Os mecanismos de implementação e monitoramento podem ser divididos em dois tipos básicos, dependendo de seus mandatos: a) mecanismos convencionais baseados em tratados, que compreendem seis organismos.[44] O trabalho desses organismos examina queixas, revê os relatórios apresentados pelos países e elabora comentários e sugestões para a melhor implementação dos direitos. b) os mecanismos extra-convencionais (baseados na Carta da ONU). Esses são os vários relatores especiais e grupos de trabalho estabelecidos pela Comissão de Direitos Humanos para monitorar a situação em países específicos, certas violações específicas como a tortura, a detenção arbitrária e os desaparecimentos. Eles não são baseados num tratado específico de direitos humanos mas ligados ao ECOSOC e suas comissões funcionais, sob a carta das Nações Unidas. Entre os grupos de trabalho estão aquele sobre os Desaparecimentos Forçados ou Involuntários, criado em 1.980 pela Comissão de Direitos Humanos e aquele sobre Detenção Arbitrária, criado pela mesma Comissão em 1991.

Deve ser mencionada ainda a Regra de Procedimento 1503(XLVII) de 27 de maio de 1970. Do ECOSOC, que atribuiu à Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção das Minorias, um grupo de experts em direitos humanos, através de seu grupo de trabalho de Comunicações, de examinar anualmente comunicações recebidas de indivíduos e grupos alegando a violação sistemática de direitos humanos. Caso a comunicação seja aceita, essa é examinada pela Subcomissão, que pode decidir encaminhá-la à Comissão de Direitos Humanos, que poderá determinar um estudo da situação ou mesmo indicação de um relator especial.

Os governos estão obrigados a prepararem relatórios regulares em respeito às obrigações internacionais que assumiram, obrigando-se a disseminar informações a seus funcionários a respeito das obrigações de cada governo perante o direito internacional dos direitos humanos. Quando os relatores especiais conduzem missões nos países, o governo deve assisti-los fornecendo as informações requeridas.

O que fica claro desses padrões internacionais é que os direitos humanos e o controle da violência arbitrária não são uma questão que deva ser decidida dentro da jurisdição exclusiva e dos seus agentes. Durante meio século a comunidade internacional, na definição de padrões, criou mecanismos de implementação e monitoramento. Os operadores da violência do Estado que não respeitam esses padrões trazem desonra não só a si mesmos mas também aos governos que servem, que responderão por seus atos perante a comunidade internacional.

***

Que largo caminho fez o Leviatã nascido da concentração do monopólio da violência física legítima no Estado, esse lugar onde se afrontam interesses em conflito. Da antigüidade aos dias que correm os pensadores, os políticos, os partidos buscaram atingir um modelo ideal, um Estado onde se pudesse transferir os conflitos de modo que todos os cidadãos pudessem atingir uma vida verdadeiramente digna. Mas, a constatação é fácil, nenhum Estado, hoje ou outrora, atingiu esse fim ou mesmo aproximou-se dele.[45] Do Estado a busca se transferiu, faz cinqüenta anos, para padrões universais que pudessem funcionar como uma contenção da barbárie. Os grandes perigos da enorme concentração de violência nos Estados encontram-se hoje, no final do século XX, delimitados pela crescente normatização e pelas inesperadas possibilidades de monitoramento que o sistema internacional de direitos humanos tornou realidade, abrindo possibilidade para que as vítimas, os cidadãos pudessem queixar-se das violações. Chegamos ao começo do próximo milênio com a montagem acabada de uma formidável maquinaria para a proteção dos direitos do homem. No começo do próximo milênio que se inicia, cada vez mais a transparência e a prestação de contas à comunidade internacional será uma exigência para todos os Estados. A luta pelos direitos humanos, como dizia René Cassin, continua a ser uma luta contra o poder, enquanto arbítrio e violência ilegal, mas a luta dos cidadãos contra o Leviatã tende a ficar mais equilibrada em razão da soberania não mais poder ser invocada em termos absolutos quando estiverem em causa os direitos humanos. Se nosso curto século XX foi a era dos extremos, como Eric Hobsbawm propôs, paradoxalmente essa era também ficará na memória dos tempos, lembra Norberto Bobbio como a era dos direitos.



* Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo, Relator Especial das Nações Unidas para o Burundi. (Núcleo de Estudos da Violência / Center for the Study of Violence, Universidade de São Paulo, Rua do Anfiteatro, 181 s. 11, Colmeia- Cidade Universitária, SP 05508-900 São Paulo Brasil, tel. 55 11 818 3577, fax 55 11 818 3158, e-mail psdmspin@usp.br).

[1] Ver o excelente Marc Agi. René Cassin Prix Nobel de La Paix (1887- 1976). Paris, Perrin, 1998, p. 286. Agradeo a Celso Lafer ter-me chamado a atenção para esse livro.

[2] Finley, Sir Moses. “État, Classe et Pouvoir”, in L’ínvention de la Politique. Paris, Flammarion, p.31.

[3] Tropper, Michel. “Le monopole de la contrainte légitime”(Legitimité et légalité dans l’État moderne”. Lignes, [ Violence et Politique (Colloque de Cerisy, 1994) ] 25, mai 1995:34-47.

[4] Ver Max Weber, “Politics as vocation”[ “Politik als Beruf”, in Max Weber, Gesammelte Politische Schriften, Munique, 1921, publicada em 1919 por Dunker & Humboldt, Munique] in H.H. Gerth and C. Wright Mills, From Max Weber: essays in sociology. Nova York, Oxford University Press, 1968, p. 77-79, cit. Pinheiro, P.S., ”Estado e Terror” in Adauto Novaes, org.Ética. São Paulo, Companhia das Letras, 1993, p.191- 204.

[5] A definição de Kelsen é quase idêntica, apenas com a diferença de que não é utilizado ao adjetivo legítimo empregado por Weber. Com efeito na expressão “monopólio da violência legítima”, a palavra legítima não designa outra coisa senão o monopólio, que identifica-se à legalidade. Kelsen não a menciona porque a idéia de legitimidade já está presente no monopólio da coerção, que corresponde ao princípio de legalidade, ela não é necessária para definir o Estado.

[6] Tropper, op.cit., p.36.

[7] idem.

[8] Valho-me aqui de John Keane, Reflections on Violence.London, Verso, 1996, p. 26.

[9] idem, p. 27- 28.

[10] Ver Mendez, Juan; O’Donnell, Guillermo and Pinheiro, P.S., editors. The (un)rule of law in Latin America and the Underprivileged. Notre Dame, Notre Dame University Press, forthcoming 1999.

[11] Inspiro-me aqui em Finley, op.cit., p. 28.

[12] Observação já feita por Aristóteles, ver Newman, W.D,, The Politics of Aristotle, 4 vol. Oxford (1887- 1902) I, 223 cit. Finley, op. cit. p.21.

[13] Inspiro-me também aqui em Finley, op. cit., p.28.

[14] O texto foi traduzido da citação em francês cit. Finley, op. cit., p. 30.

[15] Registre-se que foi a primeira vez na história da República que banqueiros do bicho foram condenados e presos, graças a nunca suficientemente louvada juíza Denise Frossard, do judiciário do Rio de Janeiro.

[16] Em conferência feita no lançamento do relatório de Americas Watch, Violência policial no Brasil na OAB-SP, em 1987.

[17] Chevigny, Paul. The Edge of the Knife.

[18] Valho-me aqui de Unite Nations, ECOSOC, “ Recognition of gross and massive violations of human rights human rights perpetrated on the orders of Governments or sanctioned by them as an international crime. Expanded working paper submitted by Mr. Stalislav Chernichenko in accordance with decision 1996/ 116 of 29 August 1996 of the Sub-Commission on Prevention of Discrimination and Protection of Minorities” E/CN.4/Sub.2/ 1997/29, 28 May 1997, p. 16.

 [19] Conforme o texto oficial em inglês da Declaração:article 3: “Everyone has the right to life, liberty and security of person; article 5: “No one shal be subjected to torture or to cruel, inhuman or degrading treatment and punishment; article 9: “No one should be subjected to arbitrary arrest, detention or exile” These rights are complemented by other rights included at the International Covenant on Civil and Political Rights which make clear the role of the State not only in the repression of GHRV but also in preventing those violations: article 6: “Every human being has the inherent right to life. This right shall be protected by law. No one shall be arbitrarily deprived of his life”. Article 7: “No one shall be subjected to torture or to cruel inhuman or degrading treatment. In particular, no one shall be subjected without his free consent to medical or scientific experimentation”; Article 9: “Every human being has the inherent right to life. This right shall be protected by law. No one shall be arbitrarily deprived of his life”

[20] Ver Schmid, Alex.

[21] Stohl, M., Carelton, D, Lopez, G., Samuels, S. “State Violations of Human Rights: Issues and Problems of Measurement, Human Rights Quarterly, vol 8., no4, p. 599 - 603, cit. “Recognition...”, p. 17

[22] id.p. 18

[23] Para o caso norte-americano valho-me aqui extensamente do formidável relatório de Human Rights Watch. Shielded from Justice. Police Brutality and Accountability in the United States. New York, Human Rights Watch, 1998, passim.

[24] Marcel Scotto, “La police française inflige toujours de mauvais traitements aux personnes....Le Monde lacées en garde à vue”. Le Monde, 15 mai 1998, p. 10

[25] A expressão é de Paul Chevigny, cit. Smith, Michael. “Reflections on Day One: Strategic Implications”, in Policing, op.cit.56

[26] “Workshop Overview and Highlights”, Policing op.cit, p.5 Valemo-nos largamente nessa parte dos papers reunidos in Policing, op. cit., que indicaremos à medida que forem sendo citados.

[27] Bayley, David. “A Foreign Policy for Democratic Policing”, Policing and Society, 5(1995): 79 A citação é de Shearing, Clifford with the assistance of Jennifer Wood, “Toward Democratica Policing: Rethinking Strategies of Transformation”, in Policing..., p.42

[28] All England Report 763, at 760, citado in Johnston, Les. The Rebirth of Private Policing. New York, Routledge, 1992, cit. Shearing, op. cit p.43

[29] Shearing, op.cit., p.44

[30] Bayley, D. “Who are kidding? Or developing democracy trhough police reform”, in Policing, op.cit., p.81

[31] id. p. 85

[32] P.S. Pinheiro, “Polícia e Consolidação Democrática”: o caso brasileiro” in P.S.Pinheiro et al. São Paulo sem medo. Um diagnóstico da Violência Urbana. Rio de Janeiro, Garamond, 1998, p. 182-183.

[33] Oakshott, Micheal. Rationalism in Politics and Other Essays. New York, Basci Books, 1962, cit. Bayley, David. “Who are we kidding ? Or developing democracy through police reform” “Workshop Overview and Highlights ”, Bureau of International Narcotic and Law Enforcement Affairs, Policing in Energing Democracies: Workshop Papers and Higlights [ US Department of Stare] NIJ Research Report, Washignton, October 1995 [ doravante chamado de Policing ], p.82

[34] O delegado Hélio Luz, ex- chefe da polícia civil do estado do Rio de Janeiro, uma das melhores revelações na polícia desde o final da ditadura, dizia com razão que a polícia civil é muitas vezes corrupta e brutal porque esse comportamento serve às expectativas das elites e das classes médias. Somente completaríamos : e das classes populares.

[35] Ver Lapkin, Gerald S. “Elementos essenciais para o controle civil da conduta policial : uma experiência canadense”, in Pinheiro, P.S. et al. São Paulo sem Medo. Rio de Janeiro, Garamond, 1998, p.200 - 201.

[36] Id. p. 202-203.

[37] Ver a respeito das sugestões desse parágrafo o excelente Human Rights Watch, Shielded from Justice...op.cit.., p. 21- 24.

[38] Valho-me aqui também extensivamente do High Commissioner for Human Rights, Center for Human Rights. Professional Training Series no. 5. Human Rights and Law Enforcement. New York, United Nations, 1997, p. 25.

[39] Utilizo-me aqui da tradução não- oficial para o português da versão original em inglês de J.A. Londgren Alvel, Os direitos humanos como problema global. São Paulo, Perspectiva, 1994, p.152.

[40] Ver J.A. Lindgren Alves, “The United Nations, Postmodernity and Human Rights”. University of San Francisco Law Review, vol. 32, Spring 1998, number 3, p. 500- 501.

[41] Fausto Pocar, “The International Covenant on Civil and Political Rights”, in United Nations Centre for Human Rights/United Nations Institute for Training and Research(UNITAR), Manual on Human Rights Reporting. New York, United Nations, 1991, p.89. São ainda relevantes o Primeiro Protocolo Optativo a esse Pacto que permite o Comitê de Direitos Humanos a receber e considerar comunicações de indivíduos que alegam ter sido vítimas de violações dos direitos garantidos pelo Pacto, o Segundo Protocolo Optativo que impõe sérias limitações ao recurso à pena de morte por razões que desconheço até hoje o Brasil não ratificou esse Protocolo Optativo, ver Jean- Bernard Marie, “International Instruments Relating to Human Rights”[ Classification and status of ratifications as of 1 January 1998]. Human Rights Law Journal, vol.19, no.2-4, 1 Jan. 1998, p. 123; a Convenção contra o Genocídio; a Convenção contra a Tortura, que também obriga os Estados Membros a tomarem medidas legislativas, administrativas e judiciais para impedir atos de tortura ; a Convenção sobre a eliminação da Discriminação Racial; a Convenção sobre a eliminação de discriminação contra a mulher; a Convenção sobre os Direitos da Criança, que já conta com mais de 100 estados partes. Essa convenção provê certos direitos especiais.

[42] High Commissioner for Human Rights, Center for Human Rights. Professional Training Series no. 5 op.cit., p.28-29. Devem ser indicados ainda o Corpo de Princípios para a Proteção de todas as Pessoas sob qualquer forma de Detenção ou Prisão, adotada pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1988; Padrões Mínimos de Regras para o Tratamento de Prisioneiros, adotados pelo Primeiro Congresso da Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Infratores, em Genebra, 1955 e mais tarde aprovados pelo ECOSOC; Princípios Básicos para o Tratamento de Prisioneiros. Adotados pela Assembléia Geral da ONU, em dezembro de 1990; Declaração de Princípios Básicos de Justiça para Vítimas do Crime e Abuso de Poder, adotada pela Assembléia Geral, em novembro de 1985; Salvaguardas garantindo a proteção dos direitos das pessoas condenadas à morte, aprovado pelo ECOSOC em maio de 1984; Padrão Mínimo de Regras para Medidas de Prisão Aberta (Regras de Tóquio), aprovadas pela Assembléia Geral em Dezembro de 1990; Guidelines das Nações Unidas para a Prevenção da Delinqüência Juvenil (Ryadh Guidelines), Padrões Mínimos de Regras para a Administração da Justiça Juvenil (Beijing Rules), e as Regras das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade, adotados respectivamente pela Assembléia Geral da ONU em dezembro de 1990, novembro de 1985 e dezembro de 1990, que com a Convenção sobre os Direitos da Criança, formam os padrões básicos para a administração da justiça para jovens; Declaração sobre a Proteção de Todas as Pessoas quanto a Desaparições Forçadas, adotada pela Assembléia Geral em dezembro de 1992; Princípios sobre a Prevenção Efetiva e a Investigação de Execuções Extralegais, Arbitrárias e Sumárias foram recomendados aos Estados pelo ECOSOC em maio de 1989, idem p. 28-30

[43] Ver idem, 33-34

[44] O International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights com o Committee on Economic, Social and Cultural Rights(CESCR); o International Covenant on Civil and Political Rights com o Human Rights Committe(HRC); A International Convention on the Elimination of All Forms of Racial Discrimination com o Committe on the Elimination of Racial Discrimination (CERD); Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women com o Committee on the Elimination of Discrimination against Women (CDEDAW); Convention Against Torture and Other Cruel, In human or Degrading Treatment or Punishment com o Committe against Torture(CAT); Convention on the Rights of the Child com o Committee on the Rights of the Child, idem, p. 31-32

[45] Finley, op. cit., p. 23

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