Paulo
Sérgio Pinheiro*
Para
Celso Lafer.
O monopólio da violência física legítima
do Estado
Os processos de consolidação democrática
e a continuidade do arbítrio
A aquiescência diante da violência
ilegal
O triângulo fatal das violações
Rule of Law Policing
Quid custodiet custodies ?
Os padrões internacionais de controle do
arbítrio do Estado
Fontes
básicas
Princípios,
regras mínimas e declarações
Fontes,
sistemas e padrões na esfera regional
Transparência
e Monitoramento
A
luta pelos direitos do homem não pode jamais se efetuar senão contra o
poder, pensava René Cassin, um dos pais-fundadores da Declaração
Universal de Direitos Humanos, ao ver-se face a face com o general De
Gaulle, a quem acompanhara no exílio de Londres, agora de volta ao
governo em 1958.
Porque os direitos humanos estariam sempre em conflito com o Estado, com o
governo, enfim com o poder?
Governo,
Estado, significa poder. O poder é mais que a coerção, mas o poder do
Estado tem uma característica única porque ele está acima de todos os
outros “poderes” no interior da sociedade pelo direito que lhe é
reconhecido de recorrer à força, mesmo de matar, quando seus
representantes estimam que tal ação seja necessária (e a mais legítima,
ali onde a legalidade é respeitada).
O monopólio da violência física legítima
do Estado
Para
entendermos a natureza do Estado devemos ter em conta que ali se situa o
lugar primordial da violência, o site,
dessa grande invenção sócio- técnica, na expressão de Norbert
Elias, o monopólio da violência física do Estado, que se desenvolveu
através de várias gerações para propriamente chegar a sua forma atual,
que não é, aliás, o seu último estágio.
A
expressão “monopólio da violência legítima”, que não é própria
à linguagem jurídica, pertence à metalinguagem da teoria do direito,
teoria do Estado ou da sociologia jurídica.
Poucos autores, pelo que se saiba apenas dois, Max Weber e Hans Kelsen,
utilizaram essa expressão e em termos quase idênticos. Para Weber, força
não é o meio normal ou único do Estado, mas é o meio específico do Estado: a relação entre o Estado e a força é
bastante íntima como fica claro na sua definição: “ Nós entendemos
por Estado um ‘empreendimento político de caráter institucional’
desde que e conquanto sua direção administrativa reivindique com sucesso
a aplicação do monopólio da coerção física legítima”.
O estado portanto será uma comunidade humana que detém, com sucesso, o
monopólio do uso legítimo da força física sobre um território dado.
A violência da qual fala Weber não é cega nem ilegítima mas torna-se
legítima precisamente porque ela é organizada (podendo ser chamada de
coerção, como o fazKelsen).
Se
examinarmos a coerção exercida pelo Estado, devemos constatar que essa
tem uma particularidade : como o Estado não é um ser real, não pode
executar nenhum ato de coerção, seja física ou de outra espécie porque
ele não pode ele mesmo agir de alguma maneira. A afirmação de que o
Estado age pela coerção é somente uma forma de falar que corresponde na
realidade a muitas situações diferentes. Primeiramente ela completa e
prolonga a ficção pela qual alguns atos de coerção física cometidos
por homens/ mulheres são considerados como desempenhados pelo Estado. É
essa ficção que o direito chama de “imputação”.
O
Estado exerce assim a coerção por intermédio de homens, que são
considerados como órgãos do Estado. Mas há também atos de coerção
cometidos por indivíduos que não tem a qualidade de órgãos do Estado.
Esses atos, que não serão imputados ao Estado, mas aos próprios indivíduos,
são entretanto autorizados ou mesmo prescritos pelo Estado. No caso da
legítima defesa, os indivíduos estão autorizados a desempenhar atos de
violência física, em certas situações, em certas condições e numa
certa medida determinados pelo direito. Enfim, há numerosos atos do
Estado que não são atos de coerção física, mas que prescrevem ou
autorizam o emprego da força, por exemplo uma ordem dada à polícia.
Monopólio significa não o exercício exclusivo da violência mas o
direito exclusivo de prescrever e em conseqüência proibir ou permitir a
violência (a função ideal do monopólio é a ausência de toda violência
efetiva). Monopólio é portanto o direito exclusivo de definir e de
distinguir por meio de prescrições e de autorizações a coerção legítima
e a coerção ilegítima. A afirmativa de que o Estado exerce a coerção
física é portanto uma simples metáfora segundo a qual os órgãos do
Estado têm o poder de prescrever ou de autorizar atos de coerção. É
esse poder de prescrever que se chama em definitivo de “poder de coerção”,
ainda que ele não seja em si mesmo um ato de coerção física.
A
criação do Estado moderno - como uma entidade impessoal, abstrata, acima
e distinta dos governos- é sinônima do surgimento de um soberano e
portanto de um aparelho de poder indivisível, o defensor
pacis, como chamou Marsílio de Padua. Mas essa invenção de estados
que exercem monopólio da violência é extremamente ambígua: “Os
Estados decididamente são perigosos instrumentos de pacificação.”
O ponto crucial desse monopólio é o equilíbrio entre suas duas funções:
a função para os que controlam o Estado e para os membros da sociedade
regulada pelo Estado, e, portanto, o grau de pacificação interna. A função
do Estado tem portanto uma dupla face: por um lado, como detentor do monopólio
da violência, o Estado deve impor limitações a seus poderes e ações;
por outro lado, como guardião da ordem pública, ele deve ser o protetor
e o garante de todas as liberdades. Mas como esse Estado moderno funciona
como um instrumento de dominação com concentração no centro, os súditos
estão sempre sob a ameaça da violência.
Com
o correr dos tempos, houve um afrouxamento da concentração do poder das
mãos do Soberano para um exercício mais compartilhado do poder, à
medida que os regimes democráticos se consolidavam. Apesar das formas
democráticas de governo, muitos regimes constitucionais em todo o mundo
continuaram a tolerar “áreas de terror” contra minorias étnicas,
econômicas submetidas à discriminação: pensemos nos roma
(como se chamam hoje os ciganos), os tutsi na República Democrática do
Congo, os imigrantes turcos na Alemanha, os homossexuais assassinados em
muitos países e no Brasil. Muitos Estados convivem com altos níveis de
homicídio, incapazes de assegurar a segurança da população. A existência
em todos países de graves violações de direitos humanos, cometidas no
interior das sociedades nacionais, pelos operadores da violência, atesta
que a pacificação anunciada pela concentração da violência está
longe de ter sido realizada.
Os processos de consolidação democrática
e a continuidade do arbítrio
Em
muitos países latino-americanos, em especial naqueles países sem tradição
de proteção dos direitos humanos, mesmo depois do retorno às constituições
democráticas ou a promulgação de novos textos constitucionais, as
instituições legais não foram alvo de reformas e as práticas arbitrárias
dos agentes estatais da polícia continuam. Apesar dos avanços na
sociedade civil e na governabilidade democrática, os pobres continuam a
ser as vítimas preferenciais da violência ilegal do Estado, do crime e
das graves violações de direitos humanos. Em contraste, o Estado na
maior parte dos países da América Latina tem-se mostrado incapaz de
erradicar a impunidade dos crimes dos agentes do Estado com o mesmo
empenho com que pune os crimes comuns cometidos pelas classes populares.
Uma
importante clarificação, feita por Jean- Paul Brodeur,
diretor do Centro Internacional de Criminologia Comparada, da Universidade
de Montréal, que vale a pena sublinhar aqui, observa que o estado de
direito não deve ser igualado apenas à imposição da lei criminal,
precisamente porque uma das características da lei penal é o seu caráter
discriminatório. Na verdade, a imensa maioria daqueles que são punidos
ou vão para a prisão nesse continente, com exceções dos homicídios e
de alguns crimes horrendos contra a pessoa, são os destituídos de poder
e as não-elites cuja proteção o estado de direito democrático
paradoxalmente pretende garantir. Os procedimentos jurídicos e o
funcionamento da lei refletem claramente as cruéis realidades das
sociedades latino-americanas e não conseguem obviamente compensar a
diferença entre o imenso número de pobres e os ricos.
O
governo democrático não tem sido capaz durante o processo de consolidação
da democracia em muitos continentes de implementar ou de propor reformas
para as instituições da justiça e da lei - como o judiciário, o ministério
público e especialmente a polícia. Seria talvez pueril esperar que o
processo de consolidação da democracia tivesse ocorrido de forma
diferente. As teorias das transições políticas muita vezes deixaram de
lado que toda Constituição de um Estado funda suas raízes em seu
sistema social.
Não se pode esperar efeitos da promulgação de uma nova Constituição
ou da implementação do rule of law,
do estado de direito, fazendo abstração do sistema social - tanto
por um lado no que diz respeito ao que chamamos hoje de elementos do
desenvolvimento humano, como concentração da renda, pobreza relativa,
analfabetismo, como por outro as características próprias das relações
sociais dentro desse sistema, como autoritarismo, hierarquização,
exploração da mão de obra, trabalho escravo. O sistema social não se
altera com a mudança do regime político, da Constituição de um Estado.
Quando
as sociedades latino-americanas, para nos atermos apenas às transições
políticas dos anos 1980 no continente, saíram da ditadura para o governo
civil, as práticas autoritárias dos governos não foram mudadas pela
mudança política ou por eleições. Por essa razão há um dramático gap entre as cartas de direitos e o mundo real dos procedimentos jurídicos
e o funcionamento da lei, expresso pelas práticas incrustadas nas
instituições judiciais (como a polícia, os tribunais, o ministério público)
refletindo claramente as cruéis realidades da sociedades
latino-americanas e brasileira. Os sistemas jurídicos são ao mesmo tempo
um instrumento e um reflexo da sociedade, e portanto da desigualdade
social. A análise dos processos de consolidação democrática,
constatada a discrepância entre a letra da lei e as práticas no sistema
jurídico, à luz dessas terríveis realidades, deve abandonar a velha
mistificação que pretende que o direito se situa fora e acima da
sociedade e das realidades sociais, que ele teria sua essência própria,
sua lógica autônoma, sua existência independente.
O
mesmo ocorre com o Estado. Não na verdade uma distinção significativa
entre o Estado e o governo do Estado. Não importa qual o regime, o cidadão
comum estabelece uma clara equação entre os dois. Para fundamentar esse
postulado Sir Moses Finley recorre a um texto de Harold Lasky, The
State in Theory and Practice (1935) há muito esquecido:
o
cidadão não pode ter acesso ao Estado senão pelo intermediário do
aparelho de governo[...] As conclusões que ele as tira sobre [...] a
natureza do Estado, ele tira-as do caráter das ações governamentais; e
ele não poderia conhecer de outra maneira. Esta é a razão por que
nenhuma teoria do Estado é adequada se não situa a ação governamental
no centro da explicação que ela propõe. Um Estado é o que faz seu
governo; o que uma teoria qualquer requer do aparelho governamental para
que seja atingido o fim último do Estado [...] não é senão um critério
para julgar esse estado, não um índice de sua essência real
O
Estado não pode pretender-se democrático se as práticas do governo e de
seus agentes não respeitam os requisitos da democracia O Estado não pode
pretender ser democrático se não consegue implementar o acesso efetivo
da população aos direitos fundamentais.
A aquiescência diante da violência
ilegal
A
percepção pelas elites dos pobres como parte das “classes perigosas”
está incrustada nas práticas do sistema judicial que processa e condena
os crimes praticados pelos pobres como membros das “classes
perigosas”: em contrapartida muitos crimes das elites continuaram até há
pouco tempo fora do alvo do sistema judicial. As políticas de prevenção
do crime, especialmente aquelas propostas durante períodos eleitorais (as
eleições são a alta estação para a demagogia, toda vez que a violência
e o crime devem ser discutidos) visam menos controlar o crime e a delinqüência
do que diminuir a insegurança das classes dominantes. Quando as elites
bradam contra a impunidade estão referindo-se quase sempre à repressão
aos crimes cometidos pelos pobres..
Os
crimes das classes médias e das elites - como a corrupção, os golpes
financeiros, a evasão de impostos, a exploração de trabalho infantil ou
semi-escravo por grandes proprietários de terra não são percebidos
usualmente como ameaças. O mesmo vale para o jogo do bicho em quase todos
os estados da federação - espinha dorsal de várias modalidades de crime
organizado, o tráfico de drogas e de armas, a lavagem de dinheiro, a
falsificação de medicamentos, que jamais foram o alvo de políticas de
repressão consistentes.
Em
algumas cidades, aqui mesmo no Rio de Janeiro, a situação das visões do
crime torna-se ainda mais complicada, por parecer haver uma confluência
entre a percepção do crime pelas elites e pelas não elites. Um exemplo
notável dessa confluência, a meu ver, ocorreu no desfile de escolas de
samba do Carnaval de 1998, quando se fez um minuto de silêncio (Nelson
Rodrigues dizia que não há nada mais longo que um minuto de silêncio)
em honra da memória de um dos banqueiros do jogo do bicho - patrono de
escola de samba, chefe da máfia do crime organizado e do tráfico de
drogas, depois de uma brevíssima estada na prisão.
Este comportamento é um exemplo revelador da aquiescência dos pobres, não
somente ao arbítrio policial, mas também ao crime organizado que oferece
proteção, serviços sociais nas favelas do Rio de Janeiro, nas
comunidades pobres e na periferia de São Paulo, onde a única face do
Estado (e do governo) que as populações conhecem é a polícia.
A
polícia e outras instituições do sistema criminal tendem a atuar como
guardas- fronteira (a comparação é de Aryeh Neir),
protegendo as elites dos pobres, e a violência policial e tortura
continuam asseguradas pela impunidade porque justamente dirigida contra as
“classes perigosas” e raramente afetando a vida das classes afluentes.
Não é outro o quadro que apresentam as novas democracias
latino-americanas, todas marcadas pelo arbítrio policial.
No
continente latino-americano a polícia considera o estado de direito mais
como um obstáculo do que como uma garantia efetiva para o controle social
da violência. Essas polícias estão convencidas que seu papel é
proteger as sociedades dos “elementos marginais” por quaisquer meios
disponíveis. Conforme lembrou Paul Chevigny no seu mais recente livro The edge of the knife,
a polícia dispõe em alguns países de poderes especiais que servem para
enfatizar sua independência diante das leis que governam o resto das
instituições do sistema criminal. Na Argentina, por exemplo, a polícia
federal pode deter alguém por trinta dias por vadiagem, embriaguez ou
travestismo, cross- dressing ;
na Venezuela, a polícia pode deter pessoas consideradas como uma ameaça
para a sociedade por períodos de até cinco anos; no Brasil, apesar de
restrições legais, a detenção provisória continua a ser uma prática
comum.
O triângulo fatal das violações
Os
critérios disponíveis para classificar as violações de direitos
humanos não são claros. Nenhuma resolução de organização ou conferência
internacional oferece um critério claro para delinear o que são violações
de direitos humanos : no máximo indicam o conteúdo dessas violações.
Por exemplo, os parágrafos 7 e 11 da Programação da Conferência
Internacional de Direitos Humanos de Teerã, de 13 de maio de 1968,
refere-se a “gross denial of human rights”. Já a Declaração e
Programa de Ação de Viena, de 25 de junho de 1993, usa as expressões
“massive violations of human rights”(par. I.28), “continuing human
rights violations”(para.I.29), e “gross human rights violations”(para.
I.30)..
Apesar
de conscientes dessas dificuldades, para analisarmos a arbitrariedade do
Estado temos de contar com um conceito operacional. Nas novas democracias
nas quais os governos não coordenam ou organizam a repressão ilegal, mas
violações de direitos humanos continuam a ocorrer perpetradas pelos
agentes do Estado, que contam muitas vezes com a impunidade. Entre os
operadores do Estado que perpetram maior número de graves violações de
direitos humanos, como execuções sumárias, seqüestros e tortura, estão
as polícias dos Estados modernos, falhando na sua missão orginária de
construir a pacificação.
Cremos
que podemos trabalhar com um conceito operacional provisório dessas violações
fundado na Declaração Universal de Direitos Humanos e no Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos. Na Declaração estão
formulados três direitos que dizem respeito especificamente aos
operadores do Estado: o direito à vida, liberdade e segurança (art. 3),
de não ser submetido à tortura (art.5) e de não ser preso
arbitrariamente (art.9).Quando
esses direitos são violados, como Alex Schmid propôs em seu relatório
Research on Gross Human Rights Violations, estamos diante de graves violações
de direitos humanos reconhecidas pelo direito internacional dos direitos
humanos: como essas violações geralmente ocorrem simultaneamente esses
direitos correspondem a um “triângulo fatal”.
Evidentemente
para uma avaliação do alcance dessas violações, essas violações
precisam ser medidas, o que pode ser feito usualmente recorrendo-se a três
indicadores: o escopo das violações, grau de seriedade, sua intensidade,
e seu alcance, isto é, o tamanho da população afetada.
Uma violação isolada cometida por indivíduos privados ou grupo de
pessoas, sem ligação com o Estado, obviamente não constitui violação
de direitos humanos: como regra geral, o Estado não pode ser
responsabilizado por ações de indivíduos (a única exceção sendo
aqueles casos em que o governo impede esses indivíduos de serem
responsabilizados). As graves violações de direitos humanos são aquelas
cometidas por órgãos locais do governo do Estado ou seus funcionários,
atuando dentro de sua autoridade:
a responsabilidade perante o direito internacional dos direitos humanos
cabe ao Estado, mesmo que as violações não tenham sido perpetradas sob
sua orientação. Nas novas democracias, os principais responsáveis pelas
violações dentro desse “triângulo fatal” são os operadores do
Estado, as polícias.
A violência ilegal e a violência fatal
das polícias
Policiais
constantemente envolvem-se em tiroteios injustificáveis, espancamentos e
usando força brutal desnecessária em muitas cidades. Nessas cidades, as
autoridades policiais superiores, os funcionários policiais, e os órgãos
superiores do governo falham em agir decididamente para restringir ou
penalizar tais atos ou deixam até de registrar esses atos. Policiais
repetidamente brutais - geralmente uma pequena percentagem de oficiais na
força - podem ser objeto de repetidas queixas mas são freqüentemente
protegidos por seus colegas e pela má qualidade das investigações. Vítimas
que se queixam e demandam o respeito a seus direitos encontram obstáculos
em todas as fases do processo, desde intimidação aberta até relutância
da promotoria local ou federal de processar casos de brutalidade. Esses
graves abusos persistem porque poderosas barreiras à accountability,
à responsabilização criam condições para que os policiais que cometem
graves violações de direitos humanos escapem ao castigo para poder
continuar sua conduta plena de abusos.
Os
maus tratos das pessoas postas em detenção provisória pela polícia são
freqüentes. As alegações de sevícias praticadas por policiais são em
sua maioria formuladas por pessoas de origem africana, suspeitas de posse
de droga e de fazer tráfico de drogas. Os maus tratamentos assumem a
forma de “ tapas, socos, pontapés e cassetadas, colocação de algemas
com mãos às costas durante períodos longos”. Em alguns casos, ocorrem
brutalidades ainda mais graves, confirmadas por laudos médicos. As condições
materiais de detenção nas celas dos distritos não têm colchões e o
estado de limpeza é precário.
Para
variar, não estamos falando do Brasil, mas do comportamento da polícia
em duas democracias consolidadas, os Estados Unidos, alvo de um
impressionante relatório de Human Rights Watch,
e da polícia da França, alvo deum recente relatório do Comitê europeu
para a prevenção da tortura.
Se essas graves violações de direitos humanos na prática dos operadores
do Estado, persistem em dois estados, um desde os anos 1960 com uma das
legislações mais completas de direitos civis do mundo, o outro fonte
inspirada dos direitos humanos e da luta contra a discriminação, pelo
menos desde 1789, não é difícil imaginar, como conhecemos, o que ocorre
ainda nas práticas das polícias contra os cidadãos.
Nas
novas democracias da América Latina, além da prática da tortura,
especialmente no interior dos distritos policiais, a polícia em muitos países
tem seguido a prática de “atirar primeiro, perguntar depois”, sendo
as execuções de suspeitos e criminosos a prática comum nos países da
região. O abuso da violência fatal varia de país para país, mas sua
característica comum é justificada como uma maneira de controlar o crime
comum nas comunidades pobres, sendo as vítimas dos grupos mais vulneráveis,
como os pobres, os favelados, os sem teto, os afro-descendentes,
confirmando assim a noção de que a polícia primordialmente visa a
controlar os pobres. Essa violência policial pode ser considerada como
uma forma de vigilantismo, numa versão de que a polícia pudesse eliminar
os indesejáveis. Mas o que complica aqui é a aquiescência da maioria da
população, inclusive os pobres, a essas práticas. Tais mortes contam
com um largo apoio tanto das elites como dos pobres, apesar de serem eles
a categoria mais atingida por esse tipo de crime.
No
Brasil, a constituição de 1998, talvez seguindo as características do
sistema social, não havia alterado a decisão tomada pela ditadura
militar segundo a qual os crimes comuns dos policiais militares passaram a
ser julgados pelos conselhos e tribunais das polícias militares em cada
estado. Sendo esses órgãos compostos de policiais militares e as
investigações fundadas em inquéritos policiais-militares (IPMs
sobrevivendo em pleno governo civil...) essas cortes na maior parte dos
casos sancionavam a impunidade de lesões corporais graves e de homicídios.
Em 1996, projeto de lei do governo Fernando Henrique Cardoso, na esteira
do projeto apresentado pelo deputado Hélio Bicudo, (transferindo a competência
para julgar homicídios dolosos dessas cortes policiais para o judiciário
civil) foi aprovado pelo Congresso Nacional- fazendo que toda a extensa série
de massacres cometidos pelas polícias militares estejam sendo hoje
submetidas ao tribunal do júri.
Rule of Law Policing[25]
Cada
cidadão entra em contato com o aparelho de governo - os legisladores, o
executivo, os tribunais - através da mediação da burocracia e no caso
preciso do sistema judicial através dos operadores da violência do
Estado, como a polícia. Não há nenhuma dúvida que os valores democráticos
devem estar refletidos no policiamento e na governabilidade. A própria noção
da forma de policiamento pode ela própria contribuir para a formação de
uma cultura democrática.
Talvez,
como indicou David Bayley
“perhaps no other institution is more central to the success of
democratic nation- building than the police”. Clifford Shearing crê que
é imperativo para toda sociedade desenvolver quadros de referências para
o monitoramento constante e regulamentação das funções, poderes,
desempenho e accountability da
polícia. O policiamento, segundo ele, necessita tornar-se uma fonte
imparcial da ordem. Para atingir a despolitização da polícia, Shearing
aponta duas modalidades de intervenção. Primeiro, a polícia deve
tornar-se mais sensível às demandas de segurança formuladas pela gente
comum desenvolvendo articulações com esses cidadãos comuns que deverão
assegurar que eles são mais dirigidos pela população do que pelo
governo. A segunda estratégia seria isolá-la do controle político
direto, de modo a assegurar que a polícia, nas palavras de Lord Denning,
é “answerable to the law and the law alone” menos do que às
autoridades políticas, de modo que o policial possa ser “not the
servant of anyone, save the law itself.”
O
fundamental para a compreensão do funcionamento dos operadores policiais
do Estado é ter em conta que a governance
é e deve ser um monopólio do Estado. Dentro dessa visão uma polity democrática é aquela onde a governance do Estado é dirigida pela vontade do povo e o
policiamento democrático é o policiamento no qual o trabalho da polícia
do Estado reflete essa vontade. Dentro desta concepção, conclui Shearing,
“policing is conceived as the aspect of governance that is concerned
with providing safety and security” o policiamento é concebido como
aspecto da governance.
Para
David Bayley,
a conexão entre democracia e a forma de policiamento é fraca, porque a
democracia pode ser compatível com várias formas de policiamento. O
policiamento também pode ser organizado e implementado tanto em países
democráticos como não democráticos. Bayley alerta para o fato de que as
mudanças institucionais implicando as relações da polícia com o
governo ou outras estruturas sociais são as mais difíceis de serem
realizadas. De qualquer modo, o papel da polícia deve ser enfatizado
enquanto accountability perante a lei menos do que perante a orientação política,
assim como as polícias nas democracias emergentes devem renunciar à
espionagem e à contra- insurreição.
Não deixa de ser inquietante, no caso brasileiro, a sobrevivência no
interior de cada Polícia Militar estadual de Serviços Reservados,
criados para fazerem averiguações sobre os efetivos. Entretanto, esses
serviços em pleno governo civil continuam espionando, a nosso ver
inconstitucionalmente, a sociedade civil, sem nenhum controle externo, nem
transparência sobre seus recursos, efetivos e métodos.
Lord
Scarman, um membro da Câmara dos Lordes na Grã- Bretanha, no final dos
anos 1970 publicou um relatório sobre os conflitos raciais num bairro de
Londres, Brixton, e do alto da sua tranqüilidade deu uma resposta
primorosa sobre o papel primordial da polícia : “ is
to maintain the Queen’s peace”, a paz do soberano, a paz da
rainha, definida como o “estado normal da sociedade”, porque numa
sociedade civilizada a normalidade é um estado de tranqüilidade pública.
O crime e a desordem são aberrações para essa “normalidade” e,
portanto, o dever da polícia é atuar para prevenir a anormalidade. Na
falta de rainha, o constitucionalismo democrático nas repúblicas define
os limites dessa normalidade dentro da lei.
Esta
noção de paz, como já vimos, está diretamente ligada à noção de
pacificação, intrínseca desde os começos dos tempos do pensamento
contratualista e jusnaturalista até `a formação do Estado moderno. Mas
essa função de manter a paz em toda sociedade é plena de contradições
na imposição da normalidade às elites, e especialmente às não elites
(muito comumente tratadas como as classes perigosas) contribuindo com
dificuldades para se construir a noção de imparcialidade, de
neutralidade, acima das classes e grupos sociais que deve caracterizar a
atuação da polícia
Para
que a polícia seja aceita foi e é indispensável que esta se apresente
como imparcial, apesar de, em conseqüência das contradições,
particularmente existentes em sociedades com grande desigualdade social,
ser, senão impossível, terrivelmente problemático efetivar a
neutralidade.
O que vai legitimar a existência da polícia nesse campo de múltiplas
contradições é a existência de uma confluência de expectativas implícitas
expressas pelas elites e pelas não- elites em relação aos papéis que a
polícia deve desempenhar. Um dos mais insidiosos mal-entendidos da análise
política é fazer as “institutions
and procedures appear as pieces of a machinery designed to a purpose
settled in advance, instead of as manners of behaviour which are
meaningless when separated of the context. O comportamento
efetivo da polícia não pode ser explicado fora de seu contexto preciso.
Tanto entre as classes mais favorecidas como entre as classes populares,
por exemplo, há uma operação mental de desumanização em relação aos
desviantes e diferentes (que podem ser vadios, criminosos, nordestinos,
afro-descendentes, homossexuais etc) que “autoriza” o arbítrio e gera
aquiescência diante das violações.
As instituições policiais refletem a estrutura das relações num
determinado sistema social, não só no presente como no passado. Em
conseqüência, o papel da polícia flutua e evolui de forma bastante estável
nas diferentes conjunturas políticas pela simples razão de que a
configuração fundamental do sistema social (desigualdade, assimetria de
poder, hierarquização) não se altera. O processo de consolidação
democrática não conseguiu desmontar os “anéis burocráticos”,
expressão cara ao então professor Fernando Henrique Cardoso, que uniam
os setores mais antidemocráticos da sociedade civil com os órgãos de
informação e as polícias.
Talvez
as mudanças e as reformas sejam problemáticas porque sob uma aparente
flexibilidade - a ilusão de que a forma de organização política democrática
diluísse automaticamente o arbítrio das práticas dos operadores do
Estado - há sempre uma sólida continuidade. A periodização política não
afeta o arbítrio incrustado no governo, pois o funcionamento das instituições
da violência física do Estado guarda uma grande autonomia em relação
às mudanças na periodização política.
Quid custodiet custodies ?
Em
face desse quadro sombrio das polícias, reformas urgentes são necessárias
contra esses abusos, que contemplem os abusos da violência e a corrupção,
ao mesmo tempo que criem condições para uma prestação de segurança pública
mais eficiente para toda a população. Paul Chevigny lembra que os
legislativos poderiam também aumentar a accountability,
a responsabilização da polícia por todos os seus atos e reduzir a
violência não apenas através de mudanças que limitassem os abusos da
polícia, mas que também limitassem o próprio poder da polícia.
Como
não temos condições aqui de examinarmos todas as estratégias possíveis
para controlar a violência da polícia, a título de ilustração,
mencionamos o controle civil independente da polícia, hoje em vigor em inúmeros
países. Uma das experiências mais consistentes desse controle civil tem
sido o da província de Ontário no Canadá, implantado em 1985. As
autoridades locais optaram por um sistema balanceado no qual a polícia
assume a responsabilidade pelas ações de seus funcionários mas sob o
controle de uma agência civil independente. Através desse sistema, a
investigação inicial é realizada por um juiz encarregado de ouvir as
queixas (exceto nos casos de violência fatal) que monitora as investigações,
recebe relatórios mensais, ouve testemunhas, examina documentos e tem
autoridade para rever as decisões tomadas a respeito das queixas.
O
controle civil deve ser totalmente independente da polícia e de toda a
direção policial e deve ter por objetivo lidar com a conduta policial.
Essa independência também deve dizer respeito ao processo político e
sua estrutura deve reforçar essa autonomia. O sistema deve ser aberto e
transparente para as partes envolvidas e deve ser acessível ao público,
podendo as denúncias serem respondidas por meios variados.
É
altamente aconselhável, para que a transparência seja assegurada, que
relatórios sejam publicados regularmente, como aliás o faz a Ouvidoria
da Polícia de São Paulo, que pode ser considerada um embrião do
controle civil independente. Esses relatórios devem apresentar estatísticas
detalhadas e informações relativas às queixas, às ações
disciplinares que foram tomadas e recomendações. As estatísticas devem
desagregar os dados por gênero e raça dos queixosos e dos oficiais
envolvidos. Os relatórios, para que não fiquem reduzidos a quadros e números,
devem incluir exemplos dos tipos de abuso a respeito dos quais foram
recebidas queixas. As polícias devem procurar eliminar todo o segredo com
que investigam as queixas de abuso, desde que essa providência não ponha
patentemente em risco o direito ao devido processo do policial em questão.
As polícias devem convencer-se que são servidores do públicos e que
precisam demonstrar que suas práticas e políticas estão conformes aos
padrões de direitos humanos que o Estado se obrigou a respeitar e o
governo deve por em prática.
Os padrões internacionais de controle do
arbítrio do Estado
Os
controles internos para manter o monopólio da violência sob limites que
respeitem a integridade dos cidadãos articulam-se e ao mesmo tempo são
completados pelos padrões internacionais do direito internacional dos
direitos humanos. Além dos padrões, a maquinaria do sistema
internacional de proteção de direitos humanos, construída a partir de
1948, oferece inúmeras modalidades de ações que compõem o
monitoramento do respeito aos direitos humanos.
Os
padrões internacionais
Desde
a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, como já vimos ao
examinarmos as violações dentro do triângulo
fatal, a definição das normas do direito internacional dos direitos
humanos e a construção do sistema internacional de proteção tem dado
grande atenção ao controle da violência do Estado. Nós estamos
convencidos que nesse processo, que vai da Declaração até a recente
instituição do Tribunal Internacional, os direitos humanos têm sido um
instrumento importante de controle do arbítrio do Estado, tanto em
regimes de exceção como em regimes democráticos. Muito brevemente, nos
limites desse trabalho, apontaremos algumas das normas internacionais mais
relevantes para o controle da polícia e indicaremos um dos mecanismos
mais relevantes do sistema internacional de proteção dos direitos
humanos para uma afirmação de accountability
na ordem internacional, além das barreiras nacionais de cada Estado.
Os
padrões internacionais relativos aos direitos
humanos no policiamento foram promulgados por uma série de órgãos no
sistema das Nações Unidas. Entre esses órgãos estão a Comissão de
Direitos Humanos, a Subcomissão de Prevenção da Discriminação e Proteção
das Minorias, e os diversos congressos sobre a Prevenção do Crime e do
Tratamento de Prisioneiros. A adoção desses padrões pela Assembléia
Geral e pelo Conselho Econômico e Social deu-lhes um caráter de universalidade,
isto é, esses padrões são aceitos pela comunidade internacional
como regras mínimas para o policiamento, quaisquer que sejam os sistemas
legais do Estado Membro.
Lembre-se
que depois da Declaração e Programa de Viena, adotada consensualmente em
Plenário pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos, em 25 de junho
de 1993, afirmando com grande clareza logo no seu primeiro artigo que “a
natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas”.
A Declaração de Viena ultrapassou, assim, tanto o dilema tradicional
entre universalismo e relativismo, como as alegações de euro-centrismo
dos direitos humanos por consenso entre todos os Estados membros da ONU
presentes na conferência. Em conseqüência,
nenhum Estado pode alegar tradições locais que possam sustentar graves
violações de direitos humanos praticadas por suas polícias.
Devemos
ainda levar em conta que o conteúdo normativo desses padrões, e detalhes
de sua implementação apropriada na esfera nacional, podem ser
encontrados na jurisprudência do Comitê de Direitos Humanos das Nações
Unidas, o órgão do tratado que monitora o cumprimento do Pacto
Internacional de Direitos Civis e Políticos.
O
conjunto desses padrões se estende por um largo espectro da autoridade
legal internacional, desde a imposição de obrigações definidas em
tratados e convenções até princípios gerais de moral, oferecidos através
de declarações, regras mínimas e corpos de princípios. Juntos, esses
instrumentos oferecem um quadro de referência legal internacional para
assegurar o respeito aos direitos humanos, à liberdade e à dignidade no
contexto da justiça criminal.
Fontes
básicas
As
primeiras das fontes básicas, que apenas indicamos, são obviamente a
Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Além dessas, trazem normas e princípios decisivos para o controle do arbítrio
os dois Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e o de
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Queria ressaltar que a proteção
contra a privação arbitrária da vida presente no artigo 6 do Pacto de
Direitos Civis e Políticos tem grande importância para o controle das práticas
ilegais dos operadores: “os
Estados partes devem tomar medidas não apenas para prevenir e punir a
privação da vida por atos criminosos, mas devem também prevenir as
execuções arbitrárias por suas próprias forças de segurança. A privação
da vida por autoridades do Estado é uma questão da mais alta gravidade.
Portanto a lei deve estritamente controlar e limitar as circunstâncias
nas quais uma pessoa pode ser privada da vida por tais autoridades”.
Além
dessas normas do direito internacional dos direitos humanos, o direito
internacional humanitário tem-se mostrado de grande utilidade,
especialmente os preceitos do Protocolo II, que diz respeito aos conflitos
internos, para o treinamento das polícias militares no Brasil, em cooperação
com o Comitê Internacional da Cruz Vermelha. São de grande valia princípios
do direito internacional humanitário que proíbem em todas as situações
o assassinato, a tortura, o castigo corporal, castigos coletivos, execuções
sem julgamento regular e tratamentos cruéis e degradantes.
Princípios,
regras mínimas e declarações
Geralmente
menos conhecidos e circulados esses documentos contêm orientação
precisa para o domínio do arbítrio policial:
- Código de Conduta para Policiais.
Em dezembro de 1979, a Assembléia Geral adotou o Código de Conduta para
Policiais. O Código, composto de outros artigos fundamentais, define as
responsabilidades específicas da polícia em relação ao serviço à
comunidade; proteção dos direitos humanos; uso da força, tratamento de
informação confidencial; proibição da tortura e de tratamento cruel e
degradante; proteção da saúde dos detentos; corrupção e respeito da
lei e do Código. O Código é em sua essência, o padrão básico pelo
qual o comportamento da polícia - civil ou militar, uniformizada ou não
- deve ser avaliado pela comunidade internacional.
- Princípios Básicos
para o uso de força e de armas de fogo por policiais
Foram
adotados pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do
Crime e Tratamento de Infratores, em 1990. Os Princípios levam em
consideração a natureza perigosa do policiamento, lembrando que uma ameaça
à vida ou à segurança de policiais é uma ameaça à estabilidade da
sociedade como um todo. Ao mesmo tempo, padrões estritos são definidos
para o uso da força e de armas de fogo pela polícia. Os Princípios
deixam claro que a força deve ser usada quando estritamente necessária,
e somente para o desempenho das funções de polícia. Os Princípios
apresentam um cuidadoso equilíbrio entre o dever do policial manter a
ordem pública e a segurança, e seu dever de proteger o direito à vida,
à liberdade e à segurança da pessoa.
Fontes,
sistemas e padrões na esfera regional
Os
Direitos Humanos na esfera regional do continente americano são definidos
pela Convenção Americana de Direitos Humanos, que entrou em vigor em
julho de 1978. No sistema interamericano, a Comissão Interamericana de
direitos humanos recebe queixas, investiga, decide sobre os casos e faz
recomendações non-binding para os governos. Petições podem ser encaminhadas pela
Comissão contra um Estado parte à Corte Interamericana de Direitos
Humanos. Nos outros continentes, temos o sistema europeu sob o Conselho da
Europa e o sistema africano sob a Organização da Unidade Africana.
Transparência
e Monitoramento
As
Nações Unidas estabeleceram uma complexa rede de mecanismos para a
promulgação dos padrões de direitos humanos e para sua implementação
e monitoramento. O Alto Comissariado de Direitos Humanos desde 1994 é o
ponto focal para o tratamento de todas as questões de direitos humanos e
Crime Preventivo Nd Criminal Justice Branca serve como o ponto focal para
questões de crime e justiça.
Os
mecanismos de implementação e monitoramento podem ser divididos em dois
tipos básicos, dependendo de seus mandatos: a) mecanismos convencionais
baseados em tratados, que compreendem seis organismos.
O trabalho desses organismos examina queixas, revê os relatórios
apresentados pelos países e elabora comentários e sugestões para a
melhor implementação dos direitos. b) os mecanismos extra-convencionais
(baseados na Carta da ONU). Esses são os vários relatores especiais e
grupos de trabalho estabelecidos pela Comissão de Direitos Humanos para
monitorar a situação em países específicos, certas violações específicas
como a tortura, a detenção arbitrária e os desaparecimentos. Eles não
são baseados num tratado específico de direitos humanos mas ligados ao
ECOSOC e suas comissões funcionais, sob a carta das Nações Unidas.
Entre os grupos de trabalho estão aquele sobre os Desaparecimentos Forçados
ou Involuntários, criado em 1.980 pela Comissão de Direitos Humanos e
aquele sobre Detenção Arbitrária, criado pela mesma Comissão em 1991.
Deve
ser mencionada ainda a Regra de Procedimento 1503(XLVII) de 27 de maio de
1970. Do ECOSOC, que atribuiu à Subcomissão de Prevenção da Discriminação
e Proteção das Minorias, um grupo de experts
em direitos humanos, através de seu grupo de trabalho de Comunicações,
de examinar anualmente comunicações recebidas de indivíduos e grupos
alegando a violação sistemática de direitos humanos. Caso a comunicação
seja aceita, essa é examinada pela Subcomissão, que pode decidir
encaminhá-la à Comissão de Direitos Humanos, que poderá determinar um
estudo da situação ou mesmo indicação de um relator especial.
Os
governos estão obrigados a prepararem relatórios regulares em respeito
às obrigações internacionais que assumiram, obrigando-se a disseminar
informações a seus funcionários a respeito das obrigações de cada
governo perante o direito internacional dos direitos humanos. Quando os
relatores especiais conduzem missões nos países, o governo deve
assisti-los fornecendo as informações requeridas.
O
que fica claro desses padrões internacionais é que os direitos humanos e
o controle da violência arbitrária não são uma questão que deva ser
decidida dentro da jurisdição exclusiva e dos seus agentes. Durante meio
século a comunidade internacional, na definição de padrões, criou
mecanismos de implementação e monitoramento. Os operadores da violência
do Estado que não respeitam esses padrões trazem desonra não só a si
mesmos mas também aos governos que servem, que responderão por seus atos
perante a comunidade internacional.
***
Que
largo caminho fez o Leviatã nascido da concentração do monopólio da
violência física legítima no Estado, esse lugar onde se afrontam
interesses em conflito. Da antigüidade aos dias que correm os pensadores,
os políticos, os partidos buscaram atingir um modelo ideal, um Estado
onde se pudesse transferir os conflitos de modo que todos os cidadãos
pudessem atingir uma vida verdadeiramente digna. Mas, a constatação é fácil,
nenhum Estado, hoje ou outrora, atingiu esse fim ou mesmo aproximou-se
dele.
Do Estado a busca se transferiu, faz cinqüenta anos, para padrões
universais que pudessem funcionar como uma contenção da barbárie. Os
grandes perigos da enorme concentração de violência nos Estados
encontram-se hoje, no final do século XX, delimitados pela crescente
normatização e pelas inesperadas possibilidades de monitoramento que o
sistema internacional de direitos humanos tornou realidade, abrindo
possibilidade para que as vítimas, os cidadãos pudessem queixar-se das
violações. Chegamos ao começo do próximo milênio com a montagem
acabada de uma formidável maquinaria para a proteção dos direitos do
homem. No começo do próximo milênio que se inicia, cada vez mais a
transparência e a prestação de contas à comunidade internacional será
uma exigência para todos os Estados. A luta pelos direitos humanos, como
dizia René Cassin, continua a ser uma luta contra o poder, enquanto arbítrio
e violência ilegal, mas a luta dos cidadãos contra o Leviatã tende a
ficar mais equilibrada em razão da soberania não mais poder ser invocada
em termos absolutos quando estiverem em causa os direitos humanos. Se
nosso curto século XX foi a era dos extremos, como Eric Hobsbawm propôs,
paradoxalmente essa era também ficará na memória dos tempos, lembra
Norberto Bobbio como a era dos direitos.
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