Michael
Freeman*
O Paradoxo dos Direitos Humanos
Ideais Morais e Realidades Políticas
Universalismo, Nações e Culturas
O
Ressurgimento de Relativismo Cultural depois da
Guerra Fria
Universalidade e Diversidade:
Expectativas para o Século XXI
O Paradoxo dos Direitos Humanos
A
idéia de direitos humanos universais é, do ponto de vista moral (em
oposição a um ponto de vista legal), paradoxal. De um lado, a idéia
parece ser obviamente moral. O caso paradigmático de violação dos
direitos humanos é o programa nazista para exterminar os judeus durante
a Segunda Guerra Mundial. Hoje em dia há plena concordância de que se
trata de um caso puro de atrocidade. Mais recentemente, o sistema de
apartheid na África do Sul e os “campos de morte” no Camboja, sob o
regime de Khmer Vermelho, têm sido condenados, quase universalmente,
como óbvias violações de direitos humanos. Toda pessoa com
conhecimento sobre os assuntos internacionais deveria ter uma lista de
tais assuntos.
Obviamente algumas pessoas não consideram essas ações uma atrocidade.
Temos evidências que alguns nazistas acreditavam que tinham o dever
moral de livrar o mundo dos judeus. Não há dúvida de que alguns
brancos sul-africanos acreditavam que o apartheid era moralmente
justificável e, para alguns ativistas do Khmer Vermelho, seus
assassinatos eram legítimos. Todavia, quando condenamos uma ação ou
uma política como uma violação dos direitos humanos, estamos
afirmando, pelo menos, duas proposições: 1) que muitas pessoas
considerariam a ação ou a política moralmente errada; e 2) a
considerariam profundamente errada. É nesse sentido que muitas pessoas
ficariam profundamente chocadas por uma ação ou política que constituísse
a ‘obviedade moral’ da idéia de direitos humanos universais.
A
outra parte do paradoxo é que a idéia de direitos humanos universais,
apesar de sua obviedade moral, é muita controversa. Podemos observar
isso se analisarmos cada uma das palavras chaves na frase ‘direitos
humanos universais’. Direitos humanos são universais.
A primeira frase do Artigo 1 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos proclama que ‘todos seres humanos nascem livres e iguais em
dignidade e direitos’. A idéia de direitos humanos universais parece
pressupor a doutrina filosófica do universalismo ético. Essa é uma
doutrina familiar no Ocidente. Tem sua origem na filosofia estóica.
Constitui a base filosófica da religião cristã. Teve a sua mais
completa articulação teórica na filosofia de Kant. Essa filosofia
influenciou fortemente os fundadores das Nações Unidas e os
idealizadores da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mas a doutrina de universalismo ético é controversa. Alguns a vêem
como uma forma de ‘imperialismo cultural’, isto é, uma expressão
da hegemonia cultural do Ocidente. Outros negam a possibilidade de uma
ética universal e sustentam que toda moralidade nasce de culturas
particulares, e desde que existem, obviamente, diversas culturas no
mundo, deve haver muitas moralidades. De acordo com esse ponto de vista de ‘relatividade
cultural’, depreende-se que a idéia de direitos humanos não é, de
todo, universal ou deve haver diferentes concepções de direitos
humanos em culturas distintas. Uma variação do tema cultural
relativista é que existem diferentes concepções nacionais
de direitos humanos.
O
conceito do ‘humano’ pode parecer menos problemático, se deixarmos
de lado controvérsias bem conhecidas sobre o aborto e os supostos
direitos do feto e a questão dos direitos dos animais. A objeção ao
conceito do ‘humano’, no entanto, é similar às reivindicações do
universalismo ético. Edmund Burke levantou essa objeção na sua crítica
clássica da doutrina dos Direitos do Homem, que foi proclamada na
Revolução Francesa. Burke disse que encontrou ingleses, franceses e
espanhóis e podia reconhecer que tinham direitos. O Homem, contudo, que
ele nunca encontrou, e o Homem poderia não ter direitos.
O ponto de vista de Burke conserva considerável força hoje em dia. Não
obstante o compromisso oficial da comunidade internacional à idéia de
direitos humanos universais, muitas nações estão ligadas a suas
concepções de direitos humanos que estão enraizadas, como Burke teria
almejado, em suas histórias particulares.
Igualmente
controversa é a idéia de ‘direitos’. A palavra ‘direitos’ na língua
inglesa está associada à palavra ‘direito’. Alguma coisa é
‘direita’ se é correta ou verdadeira. Uma ação é, moralmente
falando, direita, se for requerida, ou, pelo menos, permitida pela
moralidade. A passagem de ‘direito’ para ‘direitos’ é, contudo,
arrojada e controversa. Provavelmente, todas culturas têm uma concepção
de certo e errado, mas o conceito de ‘direitos’ é moderno e
ocidental. Ações ou políticas são certas ou erradas, mas pessoas têm
direitos. A linguagem dos direitos é possessiva.
Alguns filósofos rejeitaram esse traço possessivo do conceito de
‘direitos’. As pessoas não têm direitos no sentido do modo como têm
cabeças. Diz-se que os direitos são, portanto, místicos. Podemos,
certos opositores admitem, ter direitos legais,
mas eles derivam de sistemas
legais particulares, e não são universais. (Críticos dos direitos
humanos universais normalmente ignoram a existência do direito
internacional, mas, desde que estou aqui preocupado com o status
ético dos direitos humanos, só tomarei nota dessa estranha omissão
superficialmente). Além disso, muitas das culturas do mundo estão
firmadas em deveres e não em
direitos, e, mesmo no Ocidente, são muitos os que argumentam que a ênfase
nos direitos, e não nos deveres, conduz a uma sociedade egoísta e
desordenada. Para essas objeções, existem duas respostas simples.
Primeiro, dizer que uma pessoa tem
um direito não é reivindicar que esteja de posse de alguma ‘coisa’
metafísica estranha. É dizer que, de acordo com uma norma ética que
estamos invocando, as pessoas têm, moralmente, direito a alguma coisa,
e que alguém tem a obrigação de provê-la. Por exemplo, se dizemos
que toda criança tem o direito a cuidado físico e emocional, estamos
reivindicando que as crianças têm, moralmente, o direito àquele
cuidado, e que alguém é obrigado a provê-lo. Esse relato do que são
os direitos mostra que o debate direitos-versus-deveres
é falso. A linguagem dos direitos
nunca é um completo discurso moral, e sempre requer um relato
correspondente dos deveres. O discurso internacional dos direitos
humanos enfatiza os direitos em detrimento dos deveres, porque é endereçado
ao problema de abuso do poder, principalmente por governos. A ênfase
nos direitos do discurso pode, entretanto, ser um obstáculo ao diálogo
entre defensores dos direitos humanos e aqueles que estão acostumados
com as moralidades baseadas no
dever.
A
idéia de direitos humanos universais é controverso, portanto, porque
1) parece basear-se na doutrina filosófica controversa do universalismo
ético; 2) fixa direitos para os seres humanos abstraídos de seus
contextos sociais; e 3) enfatiza a posse de direitos em detrimento dos
deveres das pessoas. Existem dois outros traços da idéia que a tornam
controversa. O primeiro deles é seu individualismo.
O Artigo 27 da Declaração Universal, por exemplo, afirma que
‘todos’ têm ‘o direito de participar livremente na vida cultural
da comunidade’. O direito é atribuído aos indivíduos; às
comunidades como tais não são atribuídos direitos na Declaração.
Esse individualismo da idéia de direitos humanos é controversa porque
parece censurar aqueles que subscrevem um código moral mais comunitário
e porque é precisamente a ênfase
nos direitos de indivíduos que é valorizado pelos liberais ocidentais.
O segundo dos traços adicionais do conceito de direitos humanos que o
torna controverso é sua qualidade igualitária.
Todos os seres humanos, diz o Artigo 1 da Declaração, são iguais em
dignidade e direitos. Algumas interpretações de direitos iguais têm
um difundido apoio na comunidade internacional: por exemplo, a proibição
de discriminação racial. Outras interpretações - por exemplo, o status
igual do homem e da mulher - não são aceitas em muitos cenários
culturais.
A
idéia de direitos humanos universais é, portanto, moralmente forte
porque está conceitualmente ligada a noções de justiça, decência e
prosperidade humana, e estende essas noções a toda humanidade. É,
contudo, ao mesmo tempo, controversa porque parece ser culturalmente
‘imperialista’, abstrair o ser humano real do seu contexto social e
nacional, para encorajar o egoísmo e minar a ordem social, ao
marginalizar responsabilidades sociais, ao privilegiar o indivíduo às
expensas da comunidade e ao desafiar hierarquias sociais que estão
profundamente enraizadas em muitas culturas. Aqueles filósofos que
criticam a idéia dos direitos humanos por abstrair o indivíduo do seu
contexto social podem ser eles mesmo criticados por abstrair o conceito
de direitos humanos do seu contexto histórico e político.
O qüinquagésimo aniversário da Declaração Universal de Direitos
Humanos parece uma oportunidade apropriada para recordar que a idéia de
direitos humanos em si tem um contexto, e que para entender o
significado e proposta da idéia é necessário entender esse contexto.
Contextos, contudo, não são estáticos. Os cinqüenta anos de 1948 a
1998 manifestam tanto continuidade como mudança, e é provável que a
concepção de direitos humanos reflita isso. A inserção da idéia no
seu contexto mostrará que se trata de um ideal dinâmico que é
designado para servir necessidades e objetivos humanos extremamente práticos
e fundamentais. Mostrará, igualmente, porque precisa ser uma idéia
tanto política quanto moral, poderosa e controversa. Assim, o paradoxo
de direitos humanos será resolvido.
Ideais Morais e Realidades Políticas
O
conceito de direitos humanos está intrinsecamente e intimamente
associado à Organização das Nações Unidas. A Carta da Organização
das Nações Unidas declara, no segundo parágrafo de seu preâmbulo,
que um de seus principais objetivos é ‘reafirmar a fé nos direitos
humanos fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, nos
direitos iguais de homens e mulheres e de grandes e pequenas nações’,
um compromisso que é repetido em três das quatro propostas da ONU
dispostas no Artigo 1. A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi
aprovada pela Assembléia Geral em 1948.
A Declaração afirma que é ‘um padrão comum de realização para
todos povos’ pelo qual ‘todo indivíduo e
toda organização da sociedade’ deverá lutar, através do ensino e
da educação, para promover o respeito pelos direitos humanos e, através
de medidas nacionais e internacionais progressistas, assegurar seu
reconhecimento e cumprimento universal e efetivo. O preâmbulo da
Declaração sustenta que o reconhecimento dos direitos humanos ‘é a
base da liberdade, justiça e paz no mundo’, que ignorância e
desprezo pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros ‘que
ultrajaram a consciência da humanidade’, e que a Declaração é um
meio ‘para promover o desenvolvimento de relações amistosas entre as
nações’.
Cumpre
enfatizar o fato bem conhecido de que a idéia contemporânea de
direitos humanos é associada à ONU, logo, os filósofos ocidentais cépticos
com relação à idéia e os políticos e intelectuais não ocidentais,
que a questionam como ‘imperialista’, muitas vezes ignoram o fato
que, desafiando a idéia, estão desafiando a ONU em si. Por outro lado,
os defensores dos direitos humanos freqüentemente aceitam esse fato
como certo. Mas a Organização das Nações Unidas é uma instituição
social que, como todas instituições sociais, não se justifica por si
mas requer uma ideologia legitimadora convincente, se de suas declarações
é esperado um peso moral. A ONU reluta para declarar seus fundamentos
filosóficos básicos, uma vez que procura legitimidade num mundo de
diversas culturas. Tem, todavia, metas políticas e morais, e estas
requerem alguma justificação racional. Os textos da Carta e da Declaração
Universal sugerem quais são esses fundamentos ilusórios.
As
palavras de abertura da Carta da ONU afirmam que ‘nós os povos das Nações
Unidas’ estamos determinados a salvar gerações sucessivas do flagelo
da guerra, etc. Na tradição ocidental, essa abertura tem duas conotações
claras sobre os compromissos filosóficos da Organização. A primeira
é que ela reivindica legitimidade democrática.
A Carta afirma que os povos do
mundo têm os objetivos que a Carta proclama. Seus governos
são os agentes desses povos. A segunda implicação é que povos
são a unidade de justificação fundamental da nova ordem mundial que a
Carta foi designada para promover. Essa ênfase em ‘povos’ pode ser
contrastada com os estados que
têm sido os sujeitos tradicionais de direito internacional, e os indivíduos,
que, como já vimos, são os sujeitos dos direitos humanos. A
ideologia legitimadora auto-anunciada da ONU é a de soberania popular
ou nacionalismo democrático.
O
primeiro parágrafo do Artigo 1 da Carta declara que o primeiro objetivo
da ONU é a manutenção da paz internacional e, para a consecução
desse fim, a resolução de disputas internacionais ‘em conformidade
com os princípios de justiça e direito internacionais’. O segundo
parágrafo expressa que o segundo objetivo é ‘desenvolver relações
amistosas entre as nações
baseadas no respeito do princípio de direitos iguais e autodeterminação
dos povos’ (ênfase minha). O Artigo 2 diz-nos que a organização está
baseada no ‘princípio da igualdade soberana de todos seus membros’,
e os Artigos 3 e 4 revelam que os membros da ONU são estados.
A idéia de que os membros de uma organização global dedicada à paz
no mundo, por meio do direito internacional, deveriam ser (somente)
estados se ajusta, perfeitamente, ao direito internacional tradicional.
O que menos se ajusta é que essa organização de estados deveria se
legitimar pela referência à soberania dos povos
e se comprometer com a promoção dos direitos humanos de indivíduos.
A ontologia legal da ONU reconhece um mundo de estados. Sua ontologia
política extrai a legitimidade desses estados da vontade de seus povos.
Sua ontologia moral assume um mundo de indivíduos e seus direitos. A
ONU assume que, em princípio, esses três mundos ontológicos são
mutuamente compatíveis. Na realidade não são. Com o benefício de
cinqüenta anos de compreensão tardia, sabemos que a soberania dos
estados, a autodeterminação dos povos e os direitos humanos dos indivíduos
podem colidir entre si. Esse fato encontra-se no cerne tanto da problemática
dos direitos humanos como de vários problemas da ordem mundial
contemporânea.
A
ONU está baseada em outra suposição, colocada em dúvida por aqueles
que são cépticos com relação à idéia de direitos humanos
universais. A organização chama-se Nações Unidas, embora possa ser
dito que ela não é constituída por nações (mas, antes, estados) nem
tampouco é unida. A Declaração Universal, no seu preâmbulo,
refere-se à ‘família humana’, que sugere que a humanidade
constitui um grupo pequeno, íntimo e que se apoia mutuamente. Hoje em
dia, referimo-nos usualmente à ‘comunidade internacional’. Esse
discurso de família e comunidade é refutado por aqueles que duvidam da
autoridade moral da ONU e da idéia de direitos humanos universais, e
que o fazem precisamente porque sustentam que não
existe uma comunidade internacional.
Sob esse ângulo, que é parcialmente sociológico e parcialmente ético,
comunidades genuínas são, de fato, a fonte para unir princípios e
normas morais.
Tais comunidades são, contudo, baseadas em valores e convicções
compartilhadas, que falta à chamada ‘comunidade internacional’.
Ironicamente, são precisamente os povos
do mundo que interpretam mal o conceito de comunidade internacional. A
ONU, sob esse ponto de vista, é uma associação de países de elite
que reivindica legitimidade apelando ao princípio de soberania popular,
mas que o faz em níveis variados. Assim, na realidade, de acordo com a
visão céptica, alguns estados elites da ONU não representam seus
povos, e alguns o fazem, representando povos que são indiferentes ou
mesmo hostis a algumas das idéias morais contidas na Carta e na Declaração
Universal.
Essa
crítica pode ter alguma validade ao ressaltar um grau de hipocrisia e
confusão intelectual na justificação ideológica da ONU. A crítica
é, contudo, confusa em si devido ao fracasso para distinguir
adequadamente o ideal e o real. Essa distinção é necessária para uma
defesa aguda da ONU e seus princípios. A ONU está baseada na idéia
Kantiana de que ideais morais levam a obrigações para lutar por sua
realização, por mais difícil que possa ser tal tarefa, com a única
garantia de que o objetivo não pode ser, comprovadamente, irrealizável.
O real imoral é um desafio para o ideal ético mas não uma refutação
deste.
A paz mundial foi, para Kant, tal ideal. No seu famoso ensaio sobre a
paz perpétua, Kant sustentou que os povos do mundo tinham já
‘entrado, em vários graus, numa comunidade universal’, que havia se
desenvolvido a um ponto onde uma violação de direitos em uma parte do
mundo era sentida em toda parte. A idéia de um ‘direito
cosmopolita’ (diríamos, agora, de direitos humanos universais) não
era, portanto, fantástica.
Até que ponto existe, na realidade, uma comunidade moral cosmopolita
mesmo agora é, em parte, uma questão empírica. Até mesmo comunidades
locais de pequena escala são, muitas vezes, empiricamente, mais
divididas do que aparentam ser para o observador externo e do que o
observador externo acredita que sejam.
Os processos complexos que resumimos com o conceito ‘globalização’
tornaram os povos do mundo muito mais interdependentes
do que eram no tempo de Kant. Assim, interdependência e diversidade
caracterizam comunidades em vários níveis, do local ao nacional para o
global. O conceito de ‘comunidade internacional’ deveria, portanto,
ser observado como um ideal Kantiano com uma base empírica na
interdependência global, uma quantidade considerável de cooperação
internacional, assim como diversidade cultural. Os povos do mundo
constituem uma comunidade a ponto de requererem uma ordem normativa
comum. Essa ordem - da qual a Carta da ONU é o documento fundamental
– deveria ter como seus principais objetivos a paz, o respeito pela
diversidade cultural do mundo, e a proteção dos direitos humanos. A
Declaração Universal de Direitos Humanos deveria ser vista como uma
proposta harmonizada para um código legal moral da comunidade
internacional. Aqueles que são cépticos quanto à idéia de direitos
humanos universais deveriam assumir o peso de demonstrar que o mundo
estaria melhor sem esse código. É significante que, não obstante sua
retórica de ‘imperialismo cultural’, eles raramente tentam fazer
tal demonstração.
Não
existe um ‘fundamento filosófico’ acordado de direitos humanos, e,
dados os compromissos filosóficos diversos dos diferentes povos do
mundo (e os desacordos filosóficos consideráveis que existem, até
mesmo, no âmbito de culturas nacionais únicas), não deveríamos
esperar encontrar um.
A doutrina de direitos humanos é uma moralidade com padrões mínimos,
não um sistema moral amplo. Firma-se não num sistema acordado de
verdades morais, mas num consenso sobre duas proposições morais: 1)
todos têm o direito a condições mínimas de uma vida digna de ser
vivida; 2) certas liberdades e proteções são necessárias para tal
vida. Porque os direitos humanos são fundamentalmente importantes, os
defensores dos direitos humanos são, algumas vezes, tentados a apresentá-los
como uma espécie de religião global. A idéia que a doutrina de
direitos humanos é uma moralidade mínima, não abrangente, tem,
todavia, duas vantagens poderosas. Primeiro, abre o espaço para
relacionar direitos humanos a outras partes da moralidade, tais como os
deveres e as virtudes. Segundo, deixa bastante espaço para a rica
diversidade cultural do mundo, que é um bem em si, e também refuta o
peso comum do ‘imperialismo cultural’ com o qual é confrontada a idéia
de direitos humanos. Desse modo, o universalismo dos direitos humanos
pode ser compatível com o respeito à diversidade cultural, porque os
defensores dos direitos humanos podem tolerar ou celebrar todas as
culturas, com a condição de que elas não oprimam e aviltem aqueles
que estão sob o seu poder. A moralidade que não permite crítica
externa da ‘cultura’ em referência a um respeito pela pessoa humana
está preparada para colaborar com o mal radical. A idéia de direitos
humanos universais coloca-nos a um barreira mínima a essa espécie de
colaboração.
Universalismo, Nações e Culturas
Temos
visto que a Carta das Nações Unidas baseia-se numa ampla e otimista
pressuposição de que a soberania dos estados, a autodeterminação dos
povos e os direitos humanos dos indivíduos são compatíveis entre si.
Baseia-se, igualmente, num paradoxo, ou ambigüidade, sobre nacionalismo.
O massacre nos anos 20 e 30 pelo nacionalismo extremo de direita, na
forma de fascismo, que culminou na Segunda Guerra Mundial, desacreditou
a idéia de ‘nacionalismo’ entre muitos intelectuais ocidentais. O
nacionalismo moderno tinha sido associado com democracia na era da
Revolução francesa, e com o liberalismo em muitos países no século
dezanove. O século vinte conferiu ao ‘nacionalismo’ conotações de
xenofobia e agressão que ainda permanecem.
A Organização das Nações Unidas afirmou, porém, o valor positivo
das nações no seu próprio nome, e sua Carta baseia-se em princípios
como a autodeterminação dos povos e relações amistosas entre as nações.
A ONU faz, implicitamente, uma distinção entre nacionalismo bom e
ruim. O fascismo foi um nacionalismo ruim. Democracias liberais e
movimentos anti-coloniais e anti-racistas praticam o bom nacionalismo.
De acordo com a ideologia da ONU – e, portanto, da ‘comunidade
internacional’ - nações e nacionalismo são endossados como bens políticos
junto com os direitos humanos universais. Contudo, embora o bem das nações
e do nacionalismo possa ser um valor universal,
como pode o princípio ou direito da autodeterminação nacional - o
universalismo ético pode endossar o valor de identidades nacionais e do
direito à autodeterminação nacional - nações demandam compromissos
morais particulares (se as nações
têm um valor ético, como um cidadão do Reino Unido tenho algumas
obrigações éticas para com os meus compatriotas que eu não tenho
para com os brasileiros), e isso suscita a questão de como as obrigações
particulares produzidas pelas nações se relacionam com os direitos
universais que todos seres humanos possuem.
O
pensamento da ONU dissimula o problema do nacionalismo com o conceito,
normalmente usado, mas, não obstante ilusório, de “estado nação”.
Esse conceito assume que não existe problema na relação entre os
estados (os sujeitos tradicionais do direito internacional e os únicos
membros das Nações Unidas) e nações (cujo direito à autodeterminação
é reconhecido pela ONU) porque cada estado representa uma nação, e
cada nação é representada por um estado. Assim, a ontologia política
e legal da ONU reconhece um mundo de estados-nação. Essa ontologia
derruba a autodeterminação das
nações para a soberania dos
estados. Isso seria conveniente se a realidade não desafiasse essa
manobra lógica. Sociologicamente, estados e nações são diferentes.
Estados são instituições políticas que clamam, com maior ou menor
sucesso, o controle de um território determinado, com coerção se
necessário. Nações são comunidades culturais que podem ou não se
identificar com estados particulares.
Muitos estados contemporâneos são multinacionais (incluindo-se
democracias estabelecidas tais como o Reino Unido e o Canadá), e quase
todos são poliétnicos. O fato de que vários
estados membros da ONU não são
estados nação é reconhecido pela ênfase e avaliação positiva dada
à ‘construção da nação’ em muitas sociedades. As relações política,
cultural e moral entre estados e nações são, por conseguinte, muito
mais complexas do que o conceito de ‘estado-nação’ indica e o
direito internacional reconhece.
O
nacionalismo é, de outro modo, incômodo para o universalismo ético.
As duas grandes ideologias políticas dos tempos modernos - liberalismo
e marxismo - foram ambas universalistas. O liberalismo enfatizou o indivíduo
universal e seus direitos. O marxismo enfatizou a luta de classes
universal. Tanto o liberalismo quanto o marxismo fizeram, várias vezes,
acordos com o nacionalismo, e em vários lugares, quando as circunstâncias
forçaram-nos a isso. Quando a Guerra Fria terminou no período de
1989-1991, alguns interpretaram precipitadamente o fato como a derrota
do marxismo e o triunfo do liberalismo. O que emergiu tem sido a
persistência de identidades étnicas e nacionais como a base de
conflitos violentos, gritantes violações de direitos humanos e ameaças
à ordem internacional.
A comunidade internacional, comprometida com seu mito de estado-nação,
teve dificuldade para entender e, assim, resolver os problemas
resultantes.
Tanto
quanto é verdade que cada estado, no mundo contemporâneo, não representa uma nação, o princípio de autodeterminação
nacional é, claramente, uma ameaça ao sistema global de estados. No entanto, tanto quanto os princípios da ONU, e talvez
aqueles dos direitos humanos universais, exigem respeito pelas pessoas e
suas culturas, há o caso da autodeterminação cultural.
De acordo com certos argumentos recentes, as identidades das pessoas são
constituídas por suas culturas, das quais suas culturas nacionais são um importante, embora não exclusivo, componente e o
respeito pelas pessoas requer, portanto, a proteção política de suas culturas.
Isso suscita um problema para a idéia de direitos humanos universais.
Pois, se somos obrigados a respeitar ‘culturas’, e reconhecemos que
existem várias, diversas culturas no mundo, a idéia de direitos
humanos universais parece ainda ameaçada pelo relativismo cultural.
Esse ‘relativismo’ deve, contudo, ser analisado à luz de duas
importantes considerações. Primeiramente, os problemas de direitos
humanos geralmente surgem de alegações sobre o comportamento de governos (ou agências sociais de alguma forma associadas com
governos). Os governos freqüentemente se defendem contra a crítica
internacional apelando para o princípio legal de soberania do estado.
Misturam, freqüentemente, isso com o apelo ao relativismo cultural.
Convém a tais governos confundir esses dois princípios uma vez que
podem, desse modo, apelar, ao mesmo tempo, para o direito internacional
e para os (supostos) compromissos culturais de seu próprio povo.
Todavia, os princípios não são somente diferentes; eles
são mutuamente inconsistentes, pois a soberania dos estados é um
princípio legal universal, e,
como tal, é minado por um apelo ao relativismo cultural. Segundo, é fácil
exagerar o quanto a diversidade cultural realmente ameaça a idéia dos
direitos humanos universais: existem, provavelmente, poucas culturas,
por exemplo, que endossam o assassinato político de civis, prisões
arbitrárias, detenções sem julgamento, julgamentos injustos ou o
abuso de crianças. Mesmo onde a cultura local (como distinta da política
governamental) apoia violações de direitos humanos (por exemplo,
discriminação contra as mulheres), a cultura deveria ser examinada
para se verificar se a intervenção, que é informada pelos princípios
dos direitos humanos já sensíveis aos compromissos culturais genuínos
do povo envolvido, poderia levar a melhorias de longo prazo e estáveis
no seu bem estar. A doutrina do relativismo cultural não oferece uma
proteção imparcial para a ‘cultura’; privilegia os interesses dos
poderosos sobre os dos fracos, que podem não ter alternativa (através
de falta de recursos materiais e educacionais) para a aceitação das
normas culturais dominantes.
O Ressurgimento de Relativismo Cultural
depois da Guerra Fria
A
idéia de direitos humanos universais recebeu a aprovação oficial da
‘comunidade internacional’ em conseqüência do fascismo e no período
pré-Guerra Fria. A Declaração Universal foi adotada pela Assembléia
Geral da ONU, com abstenções do bloco soviético, Arábia Saudita e África
do Sul. Essas abstenções prenunciaram três tipos de desafio para o
princípio da universalidade: conflito ideológico levando a diferentes
interpretações ideológicas e manipulação política cínica da idéia
de direitos humanos; objeção à idéia de direitos humanos universais
de perspectivas culturais não ocidentais intrinsecamente misturada com
os interesses de elites governamentais;
e o desprezo de ‘estados desonestos’. Dessas abstenções, a última
suscita problemas práticos
muito difíceis de execução da lei para a ONU e outras agências
internacionais, mas poucas de questões de princípio. O fim da Guerra
Fria eliminou uma grande barreira ideológica para a promoção dos
direitos humanos, exceto num pequeno número de ‘países
dinossauros’, tais como Cuba e Coréia do Norte. Isso deixa a
diversidade cultural e, especialmente, diferenças entre culturas
ocidentais e não ocidentais como o principal problema teórico
confrontando a implementação global dos direitos humanos na véspera
do século vinte e um. A abstenção da Arábia Saudita na votação da
Declaração Universal e muitos relatórios de imprensa recentes podem
sugerir que o Islã é agora o principal inimigo dos direitos humanos.
Trata-se, porém, quando muito, de uma perigosa simplificação. Existe
o apoio aos direitos humanos no âmbito da comunidade islâmica, e esse
fato deveria ser apoiado ao invés de ignorado ou antagonizado. O
desafio não-ocidental à universalidade dos direitos humanos não vem só
do Islã.
Em
abril de 1993, representantes de estados asiáticos, no final de uma
reunião realizada em Bangkok para preparar a Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos da ONU, prevista para acontecer em Viena, em junho de
1993, emitiram uma declaração na qual reafirmaram seu compromisso com
os princípios contidos na Declaração Universal de Direitos Humanos
‘assim como a completa realização de todos os direitos humanos no
mundo inteiro’. Eles avançaram, contudo, em ‘[r]econhecer que,
enquanto os direitos humanos são universais por natureza, precisam ser
considerados no contexto de um dinâmico e envolvente processo de definição
de normas internacionais, tendo-se em mente o significado de
particularidades regionais e nacionais e várias experiências históricas,
culturais e religiosas’. A própria Declaração
de Viena reafirmou o princípio de que todos direitos humanos são
universais, mas repetiu a qualificação de Bangkok de que ‘o
significado de particularidades nacionais e regionais e várias experiências
históricas, culturais e religiosas deve ser considerado’.
A Declaração de Bangkok tem sido amplamente interpretada, tanto na Ásia
quanto no Ocidente, como um desafio por parte dos asiáticos ao princípio
da universalidade dos direitos humanos. Um artigo no Foreign Policy,
por exemplo, intitulado ‘Asia’s different standard’ - ‘o padrão
diferente da Ásia’, declarou que a Declaração de Bangkok fixou
‘um ponto de vista asiático distinto sobre direitos humanos’.
Joseph Chan, um filósofo político da Universidade de Hong Kong,
escreveu sobre o ‘desafio asiático para os direitos humanos
universais’.
O debate sobre a suposta concepção asiática de direitos humanos foi
mesmo interpretado com base na tese de Huntington sobre o choque de
civilizações. James Tang, um acadêmico na área de relações
internacionais da Universidade de Hong Kong, escreveu que ‘valores
ocidentais parecem ser estabelecidos num curso de colisão com tradições
asiáticas e prioridades econômicas na forma de um “choque de
civilizações”.
O
tão conhecido desafio dos ‘valores asiáticos’ à universalidade
dos direitos humanos foi interpretado por muitos ativistas de direitos
humanos e alguns acadêmicos, tanto na Ásia quanto no Ocidente, como
uma defesa ideológica de regimes
autoritários mais do que uma expressão de preocupação pela cultura
asiática. A própria idéia de
‘valores asiáticos’ foi contestada com base no fato de que a Ásia
é, em si, muito diversa culturalmente, contendo muitas das ideologias
políticas e religiões mais importantes do mundo.
As questões foram mais tarde confundidas pela afirmação do Senhor Ali
Alatas, Ministro dos Negócios Estrangeiros da Indonésia, na conferência
de Viena, de que o relativismo cultural não tinha nenhuma aplicação
para os direitos humanos universais, e pela afirmação do Dr.
Mahathir Mohamad, Primeiro Ministro da Malásia e um dos defensores mais
sinceros da doutrina dos ‘valores asiáticos’, de que os chamados
‘valores asiáticos’ eram valores que foram outrora muito defendidos
no Ocidente; em outras palavras, os ‘valores asiáticos’ eram muito
similares aos valores conservadores
ocidentais, ao enfatizarem a autoridade e deveres mais do que a
liberdade e direitos.
Seria
um erro, todavia, descartar o ‘desafio asiático’ à
universalidade dos direitos humanos como sendo, meramente, uma
defesa ideológica de regimes autoritários ou como sendo
intelectualmente confusa, embora fosse ambos. Existem duas razões
particularmente fortes para considerar tal desafio mais seriamente.
A primeira é que o desafio é parte do que tem sido chamado ‘a
revolta contra o Ocidente’, ou seja, a resistência de povos não
ocidentais ao imperialismo político, econômico e cultural e
hegemonia pós-colonial do Ocidente.
Essa resistência tem sido encorajada pelo notável sucesso econômico
de várias sociedades do Leste asiático nos últimos anos, embora
tenha sido, de algum modo, abafada pela corrente crise financeira
(1997-98). Essa resistência está completa de complexidades que
precisam ser claramente analisadas, pois os sucessos econômicos do
Leste Asiático têm sido, em grande medida, produzidos pela sua
participação na economia capitalista global com suas tecnologias
normas e valores associados. Isso não significa que essas
sociedades devam, seja de um ponto de vista sociológico seja ético,
abandonar suas próprias culturas e incorporar, por completo, as do
Ocidente. Certamente não existe nada na doutrina de direitos
humanos que lhes demande fazer isso. Parece, no entanto,
inconsistente reivindicar as vantagens diplomáticas e econômicas
de se pertencer à comunidade internacional enquanto, ao mesmo
tempo, se esconde sob o slogan de ‘valores asiáticos’ com
objetivo de evitar as obrigações de tal adesão em relação à
proteção dos direitos humanos de seus próprios povos. É, de
qualquer modo, irônico que líderes políticos asiáticos, que nos
informam que suas culturas enfatizam deveres mais do que direitos,
devam afirmar seus direitos na comunidade internacional e ser
relutantes no cumprimento de seus deveres. Na realidade, as posições
dos governos asiáticos, como as declarações do Senhores Alatas e
Mahathir mostram, estão longe da rejeição, em princípio, da idéia
de direitos humanos universais. Não há dúvida de que sua postura
é influenciada pelo ressentimento pós-colonial contra a dominação
ocidental (e especialmente a dominação americana), mas entre
dominação e resistência há um espaço para o diálogo
intergovernamental e intercultural. Isso é reconhecido, em princípio,
tanto no Ocidente quanto no Oriente, e a questão real é como pode
ser cumprido de um modo que seja, ao mesmo tempo, sensível e
efetivo culturalmente em termos de proteção dos direitos humanos.
A
segunda razão para considerar seriamente o desafio asiático é o
intenso debate entre acadêmicos e ativistas de direitos humanos que
tem acontecido desde que a Conferência de Viena deu lugar a uma
versão, de ‘segunda geração’ mais cuidadosa, da tese dos
‘valores asiáticos’. Alguns acadêmicos asiáticos discutiram
que a causa dos direitos humanos não pode ser promovida em
sociedades com tradições culturais fortes e arraigadas, tais como
o Confucionismo na China ou o Islamismo na Malásia, apelando, num
primeiro momento, a princípios supostamente universais, que são
percebidos, por muitos naquelas sociedades, como valores ocidentais
‘estrangeiros’. A causa dos direitos humanos tem de ser feita
mostrando-se que tradições culturais nativas são fundamentalmente
compatíveis com direitos humanos e elas deveriam ser interpretadas
de modo a harmonizar com os direitos humanos, a fim de reconciliar
seus compromissos morais mais profundos com as realidades políticas,
sociais e econômicas do mundo contemporâneo. Essa luta tem que ser
travada, originalmente, não pela ‘comunidade internacional’(que
é percebida, por muitos, como sendo os EUA num leve disfarce), nem
por ativistas ocidentais de direitos humanos, mas por ativistas asiáticos
nativos que terão de conduzir um diálogo
interno com intérpretes conservadores de suas próprias
culturas.
Essa estratégia tem várias vantagens. Primeiro, os argumentos
pelos direitos humanos terão maiores chances de sucesso se firmados
na cultura à qual a maioria dos povos já está profundamente
ligada. Segundo, os defensores dos direitos humanos, ao adotarem
esse enfoque, não podem ser acusados de ser agentes intromissores
ou agentes de tais intromissores. Terceiro, ativistas nativos
conhecem suas próprias culturas e, desse modo, sabem como conceber
os argumentos de direitos humanos para aqueles que estão
comprometidos com aquelas culturas. Quarto, e de nenhum modo menos
importante, a luta pelos direitos humanos dos nativos será um ato
de auto-emancipação e não de benevolência caridosa de poderosos
estrangeiros. Como tal, tanto tem um maior valor moral quanto
provavelmente terá um efeito mais duradouro.
Neste
enfoque “internalista” da promoção dos direitos humanos, há
muito o que merece apoio, em termos de princípio e de estratégia
pragmática. O princípio do respeito à dignidade humana e
autonomia, que é o fundamento da doutrina dos direitos humanos em
si, apoia a preferência pela autodeterminação ao invés da
intervenção externa.
De modo pragmático, os nacionais são mais propensos a mudar a
cultura e desafiar governos autoritários (como eventos recentes na
Indonésia demonstraram) do que estrangeiros. O enfoque suscita, porém,
alguns problemas. O primeiro é que confunde a psicologia da persuasão
com a ética dos direitos humanos. O caso internalista repousa,
primariamente, na sua força persuasiva. Teorias éticas deveriam,
porém, ter dois componentes: 1) um conjunto de princípios
justificadores; 2) uma psicologia moral que mostre que as pessoas
poderiam ser motivadas a agir de acordo com aqueles princípios. A
justificativa precisa anteceder a motivação, pois, do contrário,
podemos ser bem sucedidos em motivar as pessoas a implementar os
princípios errados. Assim, é preciso que haja algum caso pré-cultural
para que os direitos humanos façam sentido e para justificar a
estratégia internalista de promoção dos direitos humanos.
A
segunda razão para preocupação acerca do enfoque internalista da
promoção dos direitos humanos é que ele repousa em pressuposições
muito otimistas acerca das possibilidades racionais e psicológicas
de reconciliação de culturas tradicionais com a idéia e implicações
de direitos humanos universais. Enquanto o enfoque pode apresentar
algum mérito acadêmico e ser plausível psicologicamente, pode ser
um tanto vulnerável para contra-atacar tradicionalistas em ambas
frentes. Apelos a princípios supostamente universais não
constituem nenhuma garantia contra o sucesso de tais contra-ataques,
mas o princípio do respeito pela dignidade da pessoa humana,
independente de raça, nacionalidade, religião, gênero, crenças
políticas, etc, é moralmente potente em si mesmo, e possui a
vantagem de ter sido reafirmado várias vezes pela “comunidade
internacional”. Isso sugere que distinção interna/externa um
tanto clara que os internalistas adotam pode não ser a base mais útil
para a defesa dos direitos humanos, e que os argumentos internalista
e externalista deveriam ser combinados.
A
terceira objeção a um enfoque puramente internalista da promoção
dos direitos humanos é a mais séria para aqueles preocupados com a
implementação universal dos princípios dos direitos humanos.
Embora os internalistas pareçam caminhar, em algum sentido, para a
reconciliação dos três princípios da ONU dos direitos humanos,
auto-determinação nacional e soberania estatal, cuja
compatibilidade mútua é tão problemática, eles o fazem somente
confundindo as categorias de “cultura”, “nação” e
“estado”. Pois, mesmo que seja verdade que o Confucionismo é a
cultura dominante na China e o Islã na Malásia, certamente não são
as únicas culturas daquelas sociedades poliétnicas e muitos
problemas de direitos humanos surgem da dominação de uma cultura
sobre as outras na mesma sociedade. Internalistas culturais pressupõem
o mito do estado-nação. Ao fazê-lo, estão, ironicamente,
correndo o risco de cometer o mesmo erro que os relativistas
culturais freqüentemente atribuem aos defensores dos direitos
humanos – aquele do “imperialismo cultural” – pois estão
ignorando a verdadeira diversidade cultural dos estados-nação contemporâneos.
Ignorar a diversidade cultural dos estados-nação na teoria cria o
risco da supressão de culturas minoritárias na prática. Assim,
embora nem todas culturas sejam compatíveis com o respeito aos
direitos humanos, e, portanto, choques entre culturas atuais e princípios
universais de direitos humanos sejam possíveis, a idéia de
direitos humanos universais, ao se enfatizar o imperativo do
respeito pela dignidade de todos
seres humanos, se coloca em oposição a todas formas de opressão
pelos estados, nações dominantes ou culturas hegemônicas.
Universalidade e Diversidade:
Expectativas para o Século XXI
Agora
que a Guerra Fria foi superada, três processos tornaram-se
especialmente salientes na política e economia globais: 1) a
introdução ou re-introdução da democracia e um compromisso
oficial com os direitos humanos em muitas sociedades nacionais nas
quais regimes autoritários cometeram severas violações aos
direitos humanos; 2) o progresso continuado, embora um tanto
inconstante, do capitalismo global; e 3) a explosão de várias
formas de fundamentalismo religioso e fanatismo étnico-nacionalista.
O último desses processos, que é onipresente e aparece nas
democracias por longo tempo estabelecidas, constitui um grave perigo
à proteção estável dos direitos humanos. As implicações do
capitalismo global aos direitos humanos são, sem dúvida, complexas
e não bem compreendidas de modo suficiente. O capitalismo favorece
uma ordem legal estável, que é uma condição necessária para a
proteção dos direitos humanos, mas sabemos que é propenso a
colaborar com regimes autoritários estáveis que criarão o
ambiente para lucrarem. Dada a aparente derrota da versão soviética
do socialismo, o futuro dos direitos humanos pode depender, em larga
medida, da habilidade do capitalismo de garantir uma distribuição
razoavelmente justa de oportunidades de vida tanto no âmbito das
sociedades nacionais específicas quanto entre sociedades espalhadas
pelo globo. Se o socialismo, pelo menos no momento, está se
retraindo, a demanda por justiça social não está, e certamente
existem elos conceituais entre a justiça social e direitos humanos
(especialmente com relação aos direitos sociais e econômicos), e
provavelmente existem também elos empíricos,
pois o extremismo político se alimenta de desigualdades extremas,
sejam culturais sejam materiais.
A
luta da Guerra-Fria entre o capitalismo e o comunismo sobre os
direitos humanos foi substituída por um embate sobre “cultura”
entre democracia liberal, autoritarismo e fanatismo. O fanatismo tem
uma força política na sua capacidade de apelar a emoções e
ressentimentos profundos. O autoritarismo político tem a vantagem
de que, algumas vezes, pode manter a ordem e garantir os bens econômicos,
embora sua habilidade de fazer qualquer dos dois é freqüentemente
exagerada. A causa dos direitos humanos não pode ser defendida com
sucesso se for abstraída de preocupações econômicas e culturais.
A importância inquestionável dos direitos civis e políticos não
deveria nos conduzir a negligenciar os direitos econômicos, sociais
e culturais. O slogan da ONU de que todos os direitos humanos são
“divisíveis” deveria ser levado a sério. Por muitas razões
isso é mais facilmente falado do que praticado. Em primeiro lugar,
os direitos humanos, empiricamente, são
indivisíveis, uma vez que certos direitos econômicos, sociais e
culturais podem ser alcançados às expensas de direitos civis e políticos.
Em segundo lugar, muitos estados e suas classes dominantes têm
estado relutantes para considerar seriamente direitos econômicos e
sociais no âmbito de suas próprias sociedades, e muitas nações
ricas têm sido relutantes para considerar a questão da justiça
social seriamente. A atual ideologia econômica neo-liberal da moda
pode trazer benefícios, mas não a todos indivíduos nem a todos os
povos. Em terceiro lugar, o problema da justiça global é difícil
de ser solucionado, econômica e politicamente. Aqui a linguagem dos
direitos humanos alcança seus limites. Edmund Burke, um crítico
sensível da idéia de direitos, nos lembrou que não podemos comer
os Direitos do Homem.
A proclamação dos direitos não deveria ser um substituto do
trabalho árduo de se encontrar as melhores políticas políticas e
econômicas para eliminar as piores formas de tirania social e econômica
do mundo.
O
mundo dos estados, nações e indivíduos não desaparecerá no
futuro próximo, e não há nenhuma boa razão para se desejar que
tal aconteça. Embora estados despóticos constituam os piores
inimigos dos direitos humanos, estados governados pelo respeito às
leis são ainda os defensores primeiros dos direitos humanos. O
nacionalismo, também, pode ser a fonte de severas violações aos
direitos humanos, mas as chamadas “nações éticas” podem
mobilizar seus povos na causa dos direitos humanos.
Os indivíduos são os principais, se não os únicos portadores dos
direitos humanos, e, embora o individual e o coletivo sejam vistos
de modo diferentes em diferentes culturas, o abandono da base
individual dos direitos humanos (por exemplo, pela causa dos
direitos da minoria, da comunidade ou culturais) é igualmente
perigoso e tende a levar à tirania de algumas coletividades sobre
alguns indivíduos. As forças da globalização estão
constantemente cruzando as fronteiras dos estados e nações. Essas
forças são difíceis de se submeterem ao controle democrático, e
estão consequentemente ameaçando a proteção dos direitos humanos. A globalização
beneficia alguns e exclui outros, não somente de benefícios
materiais mas também da cidadania social, lhes negando, assim, seus
direitos humanos básicos e encorajando respostas extremistas, que,
por seu turno, podem levar a soluções governamentais autoritárias.
A ideologia neo-liberal que acompanha a globalização econômica
também está, de acordo com alguns comentaristas, esvaziando o
estado, e enfraquecendo, assim, a capacidade do estado tanto de
proteger diretamente os direitos humanos (especialmente direitos
sociais e econômicos) quanto de controlar os poderes privados (por
exemplo, corporações multinacionais o esquadrões da morte) que
podem estar violando os direitos humanos mais ou menos fora da
jurisdição do estado.
A
idéia de direitos humanos universais tem sua origem na teoria política
proposta por John Locke no final do século dezoito, na Inglaterra.
Locke estava preocupado em defender o interesse que todo indivíduo
tinha em levar uma vida de dignidade contra o abuso do poder pelos governos.
Em 1948, as Nações Unidas, em conseqüência da guerra contra o
fascismo, também estava preocupada, primordialmente, em proclamar,
promover e proteger os direitos humanos dos indivíduos
contra a perseguição por parte dos governos.
Existia, portanto, uma forte continuidade entre as preocupações
fundamentais de Locke e da ONU em 1948. O período entre esses dois
marcos testemunhou, porém, o surgimento do capitalismo industrial e
dos movimentos socialistas e dos trabalhadores. Os anos 30 também
foram tempos de depressão econômica e extrema privação em muitos
países. A Declaração Universal incluiu, conseqüentemente, alguns
direitos econômicos, sociais e culturais básicos, que são reforçados
pela Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais de 1966. Havia a proposta de inclusão de direitos
minoritários na Declaração
Universal, mas foi rejeitada. No período 1948-1991, o
discurso internacional dos direitos humanos foi dominado tanto pelo
confronto da Guerra Fria entre capitalismo liberal-democrático e
socialismo totalitário quanto pelo movimento mundial em favor da
libertação anticolonial. Depois da Guerra Fria, na era
prematuramente denominada “a nova ordem mundial”, encontramos um
mundo complexo: democratização e compromisso oficial com a proteção
dos direitos humanos em muitas sociedades nacionais; derrocada do
estado, conflitos étnico-nacionallistas e severas violações dos
direitos humanos em outros; disputas entre a idéia de direitos
humanos universais e a resistência de particularidades nacionais e
étnicas; globalização e demandas crescentes por autonomia local
(nacional ou regional). A Guerra Fria foi superada e a política
global tornou-se fluida. Conseqüentemente, são fortes, e sem
precedentes, as razões para otimismo e medo.
Filósofos
políticos propõem ideais pelos quais somos convidados a nos
empenhar. A Declaração Universal dos Direitos Humanos propôs, em
1948, um conjunto de princípios morais, políticos e legais como
“um padrão comum de resultado” para todos os povos. Os governos
do mundo reafirmaram os princípios da Declaração Universal na
Conferência Mundial das Nações Unidas de 1993, em Viena, mas
qualificaram essa reafirmação exigindo que particularidades históricas,
culturais, religiosas, nacionais e regionais sejam consideradas. Ao
mesmo tempo, porém, que o compromisso com o universalismo corria o
risco de ser diluído por alguma forma de relativismo, vários novos
direitos foram reconhecidos: os direitos ao desenvolvimento, à paz
e a um ambiente limpo e seguro, os direitos das mulheres, crianças,
deficientes físicos, trabalhadores migrantes, minorias e povos indígenas.
Existe o risco de que reivindicações pelos direitos e aspirações
pelos direitos em muito se sobreponham às capacidades de governos
nacionais e da comunidade internacional atendê-los, e isso pode
incendiar o cinismo e o relativismo, já difundidos, com relação
à idéia dos direitos humanos universais.
Podemos combater o cinismo, que é amigo da tirania, e enfrentar o
desafio do relativismo, que é mais complexo porque suscita questões
legítimas de como princípios universais deveriam ser articulados
com particularidades nacionais, ao lembrar a distinção essencial
entre ideais, que deveria nos dar coragem de não sermos cínicos, e
as realidades duras e complexas do mundo, que exigem soluções práticas.
Ideais sem realismo prático são, quando muito, fúteis e, no pior
dos casos, perigosos. Realismo sem ideais deixará muito da
humanidade sem esperança daquela vida de dignidade que a idéia dos
direitos humanos prometeu desde o tempo de Locke.
A
Declaração de Viena de 1993 exigiu da comunidade internacional
“ter em mente” particularidades históricas, culturais,
religiosas, nacionais e regionais na implementação dos direitos
humanos universais. Lida de modo literal, essa ordem não é
excepcional. Todo indivíduo humano, todo grupo humano, toda nação,
todo estado é particular,
e possui uma história particular e um caráter particular. O
imperativo do respeito pela pessoa humana, que é a base da doutrina
dos direitos humanos universais, exige de nós “ter em mente”
que todo indivíduo humano vive em grupos sociais e nações, e
dentro da jurisdição dos estados, quando as soluções para os
problemas práticos de
implementação dos princípios dos direitos humanos em circunstâncias
sociais reais são trabalhadas. O estado-nação reconheceu o
direito internacional e estarão imbuídas da responsabilidade
primordial pela proteção dos direitos humanos no futuro próximo.
Cada um fará sua parte no seu modo particular: julgamentos podem
ser justos no Reino Unido e na França sem que os procedimentos do
julgamento sejam os mesmos nessas duas sociedades nacionais. De modo
similar, a solução para problemas suscitados por minorias
culturais pode ser diferenciada em distintos estados-nações porque
o termo geral “minorias culturais” oculta problemas diversos de
relacionar, de modo justo, os interesses legítimos de minorias com
aqueles da sociedade mais ampla. Particularidade nacional, que pode
ser celebrada tanto como uma contribuição ao tesouro cultural do
mundo e um recurso poderoso para a proteção dos direitos humanos,
também pode ser uma desculpa para um governo autoritário e
perseguição cultural. A luta para harmonizar a promoção dos
direitos humanos universais com os valores positivos das culturas
nacionais será uma campanha dura e prática a ser levada a cabo
pelos movimentos e organizações da sociedade civil, por líderes e
oficiais governamentais esclarecidos, e por alianças transnacionais
complexas, que serão intergovernamentais, não-governamentais e,
crescentemente, uma combinação das duas. A causa dos direitos
humanos é uma causa de princípios, instituições e povos. O século
XX tem sido, de diferentes maneiras, uma desgraça à raça humana.
Está culminando numa mistura de confusão e esperança. A causa dos
direitos humanos exige pensamento claro, sabedoria e coragem. A vocação
do teórico político é tentar prover o pensamento claro. A
sabedoria nós pedimos, acima de tudo, aos líderes políticos
mundiais. Mas o destino dos direitos humanos no século XXI dependerá,
talvez, em sua grande parte, da coragem dos povos do mundo. Os últimos
eventos do século XX sugerem que a situação justifica, no mínimo,
um otimismo cauteloso de nossa parte.
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