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Universalidade dos Direitos Humanos e Peculiaridades Nacionais

José Gregori*

Durante a terceira sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, de setembro a dezembro de 1948, foi examinado minuciosamente o texto de uma Declaração preparada pela Comissão de Direitos Humanos. Foram 1400 votações, nas quais foram discutidas cada palavra e cada artigo. Finalmente, no dia 10 de dezembro, foi proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, votada por 56 estados, aprovada por 48 votos e 8 abstenções, nenhum Estado tendo votado contra. Não deixava de ser uma vitória a confluência num só texto, apesar das tradições culturais tão díspares, até mesmo conflitivas[1]

“Pela primeira vez na história”, como escreverá um dos pais-fundadores da Declaração, o francês René Cassin, “uma tentativa foi feita pelos representantes do conjunto das nações emanando da humanidade, para formular juridicamente os princípios fundados sobre a ‘unidade da raça humana’ proclamada tanto pelas grandes religiões e filosofias universalistas, como pela Revolução Francesa e as doutrinas sociais marxistas”.[2]

Que dias luminosos em Paris, pano de fundo do diálogo entre aquele francês alsaciano, judeu universalista, visionário, futuro Prêmio Nobel da Paz de 1968, e um camponês católico, italiano, todo simplicidade, suave, Núncio Apostólico seguindo os trabalhos da Assembléia Geral – Monsignore Angelo Giuseppe Roncalli. Não foi por acaso que na Convocação do Concílio Vaticano II e na publicação da encíclica Pacem in Terris, em 1963, o camponês – diplomata tornado João XXIII – faz o elogio da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

O Universalismo da Declaração

Como foi possível chegar-se a uma declaração universal? A resposta creio está nos fundamentos mesmos sobre os quais se assentava a Declaração. A “dignidade inerente” a todos os seres humanos independentemente de sua nacionalidade é o eixo filosófico da Declaração. Esses direitos precedem todos os poderes, mesmo do Estado, que pode regulamentar esses direitos mas não pode derrogá-los. A dignidade da pessoa humana deve ser reconhecida sem nenhuma distinção. Logo, esses direitos são em sua essência universais, adquiridos, como diz a declaração “por todos os membros da família humana” qualquer que seja o estatuto político, jurídico ou internacional do país e do território do qual uma pessoa é originária.

A Declaração não constitui uma mera codificação dos princípios de direitos “nacionais”: ela é universal por sua expressão, por seu conteúdo, por seu campo de aplicação. Se considerarmos sua expressão, porque foi sistematicamente suprimido no texto o termo “Estado” para não se passar a noção de que o Estado é o único responsável pela garantia dos direitos humanos. Sob o ponto de vista do conteúdo, a universalidade da Declaração se manifesta pelo fato que ela não é a ampliação fotográfica de uma qualquer declaração nacional. No que diz respeito a seu campo de aplicação, ela aplica-se a todos os homens sem nenhuma distinção.

Com essa Declaração, como nos lembra Norberto Bobbio[3], um sistema de valores é – pela primeira vez – universal, não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua validade e sua capacidade para reger os destinos da comunidade futura dos homens fora tão explicitamente declarado. Somente depois da Declaração podemos estar certos de que toda a humanidade partilha alguns valores comuns: “podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no único sentido em que tal crença é historicamente legítima, ou seja, no sentido em que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido pelo universo dos homens”.

A Declaração dá início a uma fase da humanidade na qual a afirmação dos direitos humanos é ao mesmo tempo universal e positiva: ‘universal’ no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; ‘positiva’ no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado.[4]

Quero chamar a atenção para essa noção de processo, pois os direitos humanos não são apenas uma afirmação doutrinária, mas projetam no seu enunciado a necessidade da especificação progressiva desses direitos, por um lado, e sua implementação efetiva, portanto. Seria impossível sem a afirmação clara da universalidade que depois da Declaração surgissem os pactos, os tratados e todo o sistema institucional de proteção dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas. A passagem do enunciado da universalidade dos direitos humanos à universalização desses direitos foi um árduo e difícil processo, pleno de resistências.

O relativismo cultural

Entre essas resistências estão as objeções levantadas pelo relativismo cultural: podem as normas de direitos humanos terem um sentido universal ou são culturalmente relativas?[5] Para os relativistas, os direitos estão estritamente relacionados ao sistema político, econômico, social e cultural vigente numa determinada sociedade. Cada sociedade possuiria assim seu próprio discurso acerca dos direitos fundamentais. O pluralismo cultural impediria a formação de uma noção de direitos universal. Na análise dos relativistas, a pretensão da universalidade dos instrumentos de direitos humanos simboliza a arrogância do imperialismo cultural do mundo ocidental. As principais expressões do relativismo cultural em relação aos direitos humanos emergem da África, da China e do Islão.

Em 1981, na 18º Assembléia de Chefes de estados africanos, em Banjul, foi aprovada Carta de Direitos Humanos e dos Povos, dedicando 18 artigos aos direitos dos indivíduos e oito aos direitos dos povos. É justamente essa idéia de que os direitos das coletividades, como “povos”, devem gozar ao menos uma dignidade igual Àquela dos indivíduos, que constitui a característica da abordagem africana dos direitos humanos. Se tivesse de ser estabelecida uma prioridade entre direitos individuais e coletivos, essa deveria caber aos segundos. Ser uma pessoa na sociedade tradicional africana é ser incorporado dessa forma num grupo e, como os valores do grupo predominam, a linguagem de dever é mais corrente que a de direitos. Os direitos coletivos têm uma primordial importância, seguidos pelos direitos econômicos e sociais e, apenas depois, pelos direitos civis e políticos.[6]

Na China, como no África, a comunidade e as obrigações tradicionalmente têm precedência diante do indivíduo e do direito. Nas cinco principais relações do ensinamento de Confúcio – aquelas entre governantes e súditos, pais e filhos, marido e mulher, filho mais velho e mais novo, amigo e amigo – a conexão é mais de obrigação mútua do que de direitos e deveres recíprocos. Em todos esses pares de relações (exceto talvez naquela entre amigos) a natureza da relação é hierárquica mais do que igualitária, implicando a existência de deveres desiguais em vez de direitos iguais.

Os direitos, quando eles aparecem, teriam sido uma importação do Ocidente através do Japão, e a idéia de direitos é expressada na língua chinesa pela combinação da palavra poder com a de interesse. Mas essa adição artificial não teria mudado a concepção chinesa mais orgânica da lei como desempenhando a função de manter a harmonia social, o que contrasta com a concepção ocidental da lei como uma arbitragem entre dois interesses em choque. Além disso, para a China o indivíduo vem muito depois do próprio lugar que a África lhe atribui.[7]

No Islão, também, a comunidade, aqui a comunidade religiosa dos muçulmanos, tem precedência sobre o indivíduo. A imagem da comunidade Islâmica seria a de uma parede compacta onde os tijolos sustentam-se uns aos outros. E a parede precisa ficar de pé sem qualquer “cimento” ideológico externo. O papel do indivíduo nessa comunidade não é meramente agir para assegurar a preservação da comunidade, mas também reconhecer que é a comunidade que provém para a integração da personalidade humana realizada através da abnegação do indivíduo e da ação pelo bem da comunidade.

Assim, no Islã, como nas duas outras perspectivas, a linguagem dos deveres parece ser mais natural que a dos direitos e a obrigação está consolidada porque ela é devida a Deus. As regras de conduta para todos os muçulmanos teriam sido definidas por Alá e comunicadas a Maomé, e os muçulmanos prestam serviço a Deus através da obediência a essas regras. Essa natureza fundamental da idéia da obediência a Deus molda no Islã a discussão sobre direitos humanos, sempre tendendo a considerá-los mais como deveres. A verdadeira liberdade consiste em submeter-se a Deus mais do que uma separação da comunidade de Deus. Direitos continuam subordinados e determinados pelos deveres. [8]

Outra forma de apresentar o relativismo cultural, numa abordagem mais política, muito em curso antes da queda de Berlim, era dizer que haveria três “mundos” de direitos humanos. O “primeiro” seria o Ocidental, enfatizando os direitos civis e políticos e o direitos à propriedade privada. O segundo o “socialista” que enfatizaria os direitos sociais e econômicos. O “terceiro mundo” daria relevo à auto-determinação e ao desenvolvimento. Com a queda do bloco soviético e as ondas de democratização por todo o mundo, essa apresentação quase caricata do mundo dos direitos passou a deixar de ter sentido. O que não quer dizer que histórias políticas, legados culturais, condições econômicas e problemas de direitos humanos certamente diferem nas sociedades e nos continentes. Não há como negar a relatividade cultural: ela é um fato, pois as instituições culturais e os valores variaram na história da humanidade e vão continuar a variar. Apesar disso não é difícil constatar que os direitos humanos, apesar da relatividade cultural, são hoje essencialmente universais, requerendo evidentemente ajustes para poderem levar em conta a diversidade cultural. [9]

Como operarmos diante do relativismo cultural

É necessário sempre levarmos em conta, como disse uma vez o filósofo Paul Ricoeur, ao falar sobre a razão ocidental, que não devemos tomar por universal a vontade de afirmar a universalidade. Por mais que os direitos humanos estejam difundidos no mundo, e como nós veremos adiante, reconhecidos por todos os Estados depois da Declaração de Viena, em 1993, continuam a haver resistências e oposições, mais ou menos expressas, à sua expansão. A queda do sistema comunista que durante muito tempo encarnou a recusa mais intratável oposta aos direitos humanos não nos devem fazer criar ilusões: os direitos humanos inegavelmente ganharam num espaço de apenas cinqüenta anos muito terreno, mas a universalidade ainda não está plenamente realizada.

O crescimento dos integrismos e do fundamentalismo nas mais diferentes culturas (pensemos um instante no paroxismo do regime dos talebãs no Afeganistão e sua recusa militante dos princípios universais dos direitos humanos). Os direitos humanos, portanto, são uma clara expressão e realização em vastos territórios do planeta, mas ainda não são universais[10]. Não há como negar que diante do Islão e do hinduísmo estamos face a face com blocos do imaginário para os quais a estruturação religiosa do mundo, como já apontamos, é fundamental. Eles resistem aos princípios, julgados como de origem ocidental, dos direitos humanos universais. O desafio que está colocado é saber como operar com essas culturas, sem as destruir, a laicização do domínio público inerente ao direitos internacional dos direitos humanos, essencial à autonomia do político[11].

Não há propriamente uma incompatibilidade entre uma adesão religiosa e o respeito aos direitos humanos: foi em nome da universalidade dos direitos humanos que muitas pessoas e grupos se engajaram na luta contra o nazismo, contra o totalitarismo comunista e contra os regimes autoritários da Europa Ibérica e da América Latina. A laicidade dos direitos humanos implica que as convicções religiosas de cada um relevam da esfera privada e que não devem ser integradas ao nível da política. Em conseqüência, em particular, a adesão aos direitos humanos pode fazer abstração de uma tomada de posição sobre o fundamento dos direitos humanos. Esse será transcendente para o crente ou para aquele que acredita que existam valores eternos (a justiça, a verdade) dos quais procedem os direitos humanos, e não será transcendente para o céptico ou para o pragmático que se contentarão de constatar que somente os direitos humanos permitem uma sociabilidade aceitável. A filosofia implícita dos direitos humanos é leiga – embora, repita-se, não seja incompatível com a fé religiosa – porque ela não implica nenhuma fé numa transcendência (a tolerância e a liberdade religiosas são essenciais) e que ela procede antes de mais nada da convicção que os direitos humanos são o único anteparo contra o horror[12].

Talvez a melhor forma de fazer essa operação seja reconhecer que os direitos humanos internacionalmente reconhecidos nesse processo de cinqüenta anos (não podemos esquecer que a construção da universalidade é um processo, como afirmava René Cassin) representam uma aproximação primordial das garantias necessárias para a dignidade da vida no mundo contemporâneo de Estados e mercados modernos.

A crescente especificação dos direitos

Em todo o mundo basta seguir anualmente os relatórios da Comissão de Direitos Humanos, em todos os países, o arbítrio do poder do Estado ameaça indivíduos, famílias, grupos, comunidades. Da mesma forma, mercados econômicos nacionais e internacionais, livres ou controlados, de comércio ou financeiros, ameaçam com exploração da mão de obra barata, com repercussões na dignidade humana em todos os países do mundo contemporâneo. Como disse uma vez o antigo Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, José Ayala Lasso, nenhum Estado na comunidade internacional pode considerar-se plenamente saudável no que diz respeito aos direitos humanos: todos os países estão doente ou foram.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, os dois Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção contra a Tortura, a Convenção contra o Racismo e outros textos fornecem uma abordagem sólida para a proteção do indivíduo contra aquelas ameaças. Seria inimaginável hoje que Estados ou governantes possam encontrar argumentos defensáveis para negar o direito à vida, liberdade, segurança da pessoa, ou proteção contra a escravidão, trabalho forçado, tortura, discriminação racial. Os direitos à alimentação, saúde, trabalho e seguridade social são igualmente básicos para qualquer concepção plausível de uma dignidade humana igualitária. A universalidade é, portanto, uma presunção inicial em que se fundam os direitos humanos.

A possibilidade de haver modificações na formulação dos direitos humanos, na medida em que hoje estão especificados em grande detalhe, pode haver legitimidade para alguma variedade cultural. Essa possibilidade pode ser melhor contemplada se considerarmos três níveis nos quais os direitos humanos podem ser especificados[13]. Num primeiro nível dos direitos humanos universais encontramos o que poderíamos chamar de “conceitos”, formulações de grande generalidade tais como o direito de participar na política ou o direito ao trabalho. Depois dessas, haveria o que poderia ser chamado de “interpretações”: por exemplo a garantia do trabalho e ao seguro desemprego, que poderiam ser considerados como duas interpretações do direito do trabalho. E num terceiro nível, há uma variação considerável na forma particular pela qual uma interpretação pode ser justificada, podendo admitir adaptações em cada sociedade.

Levando em conta esses três níveis, pode ser encontrada uma solução para a afirmação incontestável dos direitos humanos como universais num mundo culturalmente plural: além do requisito de todas as sociedades reconhecerem os direitos humanos fica, aberta a possibilidade de definir esses direitos em termos dos valores de uma sociedade particular. O gozo dos direitos humanos, a cada dia deve resultar da participação numa comunidade real, concreta, e não apenas apresentar-se como uma conexão com a sociedade humana como um todo. Na verdade essa abordagem é facilitada porque existe um núcleo essencial que é comum a todas as culturas, apesar de teorias aparentemente divergentes. A realização dos direitos humanos deve ser buscada na dinâmica de várias culturas no mundo[14]. Os valores da dignidade e da igualdade entre todos os membros da raça humana, como muitos outros princípios básicos que fundamentam o que hoje chamamos de direitos humanos, podem ser encontrados virtualmente em toda cultura, religião e tradição filosófica[15].

Foi preciso esperar até o ano de 1993, quando foi realizada a Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos, em Viena, para que a comunidade dos Estados desse um passo decisivo desse século, que Norberto Bobbio chama de “A Era dos Direitos”, para a universalização efetiva da aceitação universalista dos direitos humanos[16]. Assim, a Conferência de Viena deve ser considerada como um ponto alto desse longo processo, abrindo uma nova fase para a promoção dos direitos humanos. Logo nos seu primeiro parágrafo, a Declaração reitera repetidamente o caráter universal dos direitos humanos:

1. A conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma o compromisso solene de todos os Estados de promover o respeito universal e a observância e proteção de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais de todos, em conformidade com a Carta das Nações Unidas, outros instrumentos relacionados aos direitos humanos e ao direito internacional. A natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas. [17]

Como lembrou José Augusto Lindgren, a principal conquista conceptual trazida pela Conferência de Viena foi justamente o reconhecimento por uma comunidade internacional representada pela integralidade dos Estados soberanos, da universalidade dos direitos humanos definidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Os direitos de primeira geração (civis e políticos), os de segunda geração (econômicos, sociais e culturais) e os de terceira (coletivos) já faz muito tempo deixaram de ser eurocêntricos. Lembre-se, por exemplo, a respeito dos direitos civis e políticos, que não foram os países ocidentais os líderes da luta por seu estabelecimento na África do Sul[18]. Vários mecanismos do sistema internacional de proteção, como aquele de relator especial da Comissão de Direitos Humanos, foi primeiro utilizado para um país da América Latina, o Chile.

Constantemente, desde a Declaração, polêmicas estiveram sempre abertas sobre a ascendência deste ou daquele tipo de direito dependendo de condições culturais (como o Islã), opções religiosas (o hinduísmo), modelos políticos (o comunismo soviético) e regiões do mundo (o Terceiro Mundo, o Sul). Em Viena, a universalidade dos direitos humanos foi reconhecida por consenso pelos mais de 180 estados membros da ONU presentes – e assim declarada por todos os governos que participaram da conferência de forma inquestionável, beyond question, como está dito no artigo 1. Os direitos humanos, em conseqüência não podem mais ser entendidos como uma imposição unilateral sobre a cultura de outros. Ao reconciliar a universalidade com particularidades históricas, culturais, religiosas, econômicas e políticas, a Conferência de Viena contribuiu eficientemente para superar o tradicional dilema entre universalismo e relativismo[19].

Foi particularmente oportuno que a Conferência de Viena indicasse com uma firmeza especial que “os direitos humanos são universais, indissociáveis, interdependentes e intimamente ligados”[20]. Os direitos civis, econômicos, culturais, políticos e sociais devem, em conseqüência, ser tratados de maneira eqüitativa e equilibrada, acordando-lhes a mesma importância. Decorre dessa afirmação, mesmo se convém não perder de vista a importância dos particularismos nacionais e regionais, assim como a diversidade histórica, cultural e religiosa, ser dever de cada Estado promover e proteger os direitos humanos e todas as liberdades fundamentais. Como corolário dessa afirmação, é não menos importante afirmar que o exame das questões relativas aos direitos humanos seja efetuado num espírito de universalidade, objetividade e não seletividade.

Indivisibilidade e pluralidade articulada

A afirmação clara da universalidade dos direitos que está contida no parágrafo 5 da declaração de Viena é um dos pilares da nova arquitetura do sistema internacional de proteção dos direitos humanos[21]. Ela remete à unidade de pensamento que caracterizou a adoção da Declaração Universal, mas que não havia perdurado quando dos trabalhos que conduziram à adoção dos dois Pactos Internacionais, por um lado, dos direitos econômicos, sociais e culturais e, por outro lado, dos direitos civis e políticos. Enquanto a Declaração Universal levou dezoito meses para ser redigida, os Pactos levaram 18 anos para serem elaborados. Sua preparação foi, na realidade, mais difícil, pois essa consistia em tomar os artigos da Declaração e a definir para os Estados obrigações jurídicas prevendo medidas efetivas de aplicação. Mas esses Pactos eles mesmos não tinham nenhuma utilidade enquanto não fossem ratificados pelos Estados[22].

Vale a pena lembrar que levando em conta as duas categorias de direitos e o fato de que cada uma delas seja ardentemente defendida por um dos dois blocos da guerra fria (os direitos individuais pelos ocidentais, os coletivos pelos soviéticos), o problema que se colocava nesse período de exacerbação da guerra fria, era o de saber se haveria um só pacto geral dos direitos humanos ou vários pactos particulares. A solução proposta por René Cassin foi a “pluralidade articulada” seriam elaborados dois pactos, cada um relativo a um dos dois conjuntos de direitos, solução que preservava a idéia da unidade ao mesmo tempo que permitia a pluralidade.

Aproveito aqui para lembrar que foi justamente com base nesse princípio de “pluralidade articulada”, que presidiu a redação dos dois Pactos Internacionais, que o Programa Nacional de Direitos Humanos do Brasil foi elaborado, na sua formulação inicial. No seu processo de implantação, tornou-se mais abrangente aos direitos civis, aqueles que ferem mais diretamente a integridade física e a cidadania. Mesmo assim, essa prioridade dada ao conteúdo de um dos Pactos não impediu o Programa Nacional de contemplar um largo elenco de medidas que têm conseqüências decisivas para a promoção dos direitos econômicos, sociais e culturais, como por exemplo, a implementação de convenções internacionais dos direitos das crianças, das mulheres e dos trabalhadores.

Numa sociedade ainda injusta como é a do Brasil, com graves desigualdades de renda e acesso aos recursos sociais e culturais, promover os direitos humanos exige equacionar os problemas que muitos chamam de violência estrutural – como o desemprego, fome, dificuldades de acesso à terra, à saúde, à educação, ao lazer – através de políticas governamentais. Mas, para que a população possa assumir que os direitos humanos são direitos de todos, e as organizações da sociedade civil – cito aqui apenas um dos mais importantes parceiros nacionais, como as entidades do Movimento Nacional de Direitos Humanos – possam lutar por esses direitos e organizar-se para lutar em parceria com o governo e o Estado, é fundamental que seus direitos civis sejam plenamente garantidos[23].

Os Pactos serviram para transformar em engajamentos jurídicos claros a proclamação feita pelos Estados de princípios de direitos reconhecidos como o “ideal comum”[24]. Entretanto, entre a abertura dos Pactos e a assinatura e a ratificação foi mais lenta do que se esperava – por exemplo, os Estados Unidos, o Brasil e a China somente ratificam o Pacto Internacional de Direitos Humanos na presente década, mais de um quarto de século depois. A Declaração de Viena de certa forma ultrapassa a decisão contingente – para vencer um impasse aparentemente irremediável – dos direitos humanos terem sido traduzidos em dois pactos diferentes, reafirmando com enorme clareza os princípios da indivisibilidade.

A universalidade dos direitos humanos, agora retomada, implica que a comunidade internacional se engaja de forma clara e vigorosa pela adoção, sem equívoco, do conjunto de instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos. Decorre do documento de Viena que os Estados devem esforçar-se por aderir, se ainda não fizerem, ao conjunto dos tratados evitando tanto quanto possível a expressão de reservas ao texto[25]. É preciso evitar os perigos que implicam tais reservas ou declarações dos Estados para a unidade e a universalidade dos direitos humanos. Depois da Declaração e do Programa de Ação de Viena não se pode acusar de etnocêntricos os direitos proclamados em 1948, nem recorrer ao relativismo cultural como justificativa para não respeitá-los. Como o parágrafo 1 da Declaração de Viena afirma que “A natureza universal desses direitos e liberdades não admite dúvidas” o máximo que se permite são diferenças nas formas de aplicação[26].

Apesar dessa flexibilização cultural permitida pela Declaração de Viena, se assim pudermos expressar-nos, os padrões internacionais dos direitos humanos continuam a ser fundados sobre o princípio da universalidade, sob a premissa fundamental de que todos eles aplicam-se a todas as nações sem exceção. Apesar disso, mesmo depois de 1993, alguns governos continuam a invocar razões particulares para violar direitos humanos: para silenciar um crítico incômodo ou dar mais poderes às forças armadas. Exceções ao princípio da universalidade continuaram a ameaçar o sistema inteiro dos direitos humanos. Como mostra Human Rights Watch, no seu relatório anual de 1998, a universalidade dos direitos humanos esteve sob ataque intenso durante o ano passado. Muitos governos que procuraram justificar sua conduta autoritária acharam mais conveniente contestar a universalidade[27].

Em contraste com essa contestação da universalidade, através da afirmação de concepções regionais de direitos humanos, por inesperadas vias os direitos econômicos e sociais ganham uma universalidade incontestada. A globalização aparece hoje como uma característica incontestável da vida econômica e social contemporânea. Não há dúvida de que a sociedade civil está também tornando-se crescentemente globalizada. As organizações sociais, os movimentos sociais e a vida política e social também estão se tornando cada vez mais globalizados. Os líderes indígenas freqüentemente encontram-se como faz pouco mais de um mês no grupo de trabalho sobre populações autóctones da ONU, onde se reuniram 400 lideranças do mundo todo. As mulheres formam redes internacionais para a defesa de seus direitos. As entidades de meio ambiente hoje já lutam pelos problemas que afetam a “ecologia planetária”.

Ao lado desses avanços positivos, estamos assistindo também a uma “globalização da pobreza”, provocada pelas extraordinárias modificações nos mercados e fluxos financeiros, gerando desemprego e inesperadas instabilidades que a globalização dos mercados por si mesma não pode resolver. É esse contexto que cria as condições para uma “globalização dos direitos”. É justamente essa natureza contraditória que abre a possibilidade para que os direitos sociais, econômicos e culturais passem a ser considerados como direitos intrínsecos em todas as partes do mundo. De certa forma eles passarão a constituir um conjunto de direitos fundamentais que irão determinar os limites da globalização, daí emergindo a necessidade de proteção contra suas violações[28].

Estranhas e inesperadas vias percorreu a construção da universalidade. Mas, temos certeza que iremos transpor o fim desse século com os direitos humanos reconhecidos como universais, convivendo com formas de aplicação que se enriquecem na diversidade cultural da humanidade. Depois de cinqüenta anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, não podemos afirmar que as graves violações de direitos humanos foram varridas da face da terra. Mas podemos constatar que, cada vez mais, estão assegurados aos homens e mulheres da terra os instrumentos para lutar contra o arbítrio e a exclusão social, fazer valer os direitos humanos como direitos de todos, e que devem ser acatados em toda parte. Porque como todos nós sabemos, a luta pelos direitos humanos é como a viagem da política para Plutarco: não há nunca um porto final.



* Secretário Nacional dos Direitos Humanos, Ministério da Justiça.

[1] Ver Boutros Boutros-Ghali, “Introduction” in Nations Unies, Les Nations Unies et Les Droits de l’Homme. New York, Nations Unies, 1995.

[2] Ver Agi, Marc. Renê Cassin. Paris, Perrin, 1998, p. 117

[3] Bobbio, Norberto. A Era dos Direitos. São Paulo, Campus 1992, p. 28-29

[4] idem p. 30

[5] Piovesan, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo, Max Limonad, 1996, p. 167

[6] Vincent, R.J.. Human Rights and International Relations. Cambridge, Cambridge University Press, 1991, 39-41

[7] id.p.41-42

[8] id. p. 42-44

[9] Donnely, Jack. International Human Rights. Boulder, Westview Press, 1993, p. 35-36

[10] Wachsmann, Patrick. Les droits de l’homme. Paris, Dalloz, 1995, p.44-45

[11] [Entrevista], Le Monde, 30.11.90

[12] Wachsmann, op. cit. p. 48-49

[13] Donnely, op. cit. p.37

[14] Vincent, op. cit. p. 48-52

[15] Levin, Leah. Human Rights. Paris, Unesco, 1996, p. 15

[16] Bobbio, op. cit. p. 33

[17] Valemo-nos aqui da tradução não oficial para o português da versão original em inglês in Alves, José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo, Perspectiva, 1994, 151-152

[18] Alves, op. cit., p.138-139 e 147

[19] Ver Alves, J.A. Lindgren. “The United Nations, Postmodernety and Human Rights”. University of San Francisco Law Review, vol. 32. Spring 1998, n. 3, p. 499-500

[20]. Valho-me aqui de Boutros-Ghali, op. cit, 103 - 104

[21] 5. Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. As particularidades nacionais e regionais devem ser levadas em consideração, assim como os diversos contextos históricos, culturais e religiosos, mas é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais. Valemo-nos aqui da tradução não oficial em português da versão original inglês in Alves, opcit p. 153

 

[22] Agi, op. cit., p. 301-302

[23] Ver “Introdução”, Brasil, Presidência da República, Programa Nacional de Direitos Humanos. Brasília, Presidência da República, Secretaria de Comunicação Social, Ministério da Justiça, 1996, p. 11-12

[24] Agi, op.cit. p. 275-277

[25] Boutros-Ghali, op. cit, 104

[26] Alves, op. cit., p.139

[27] Valemo-nos aqui de “Introduction”, Human Rights Watch. World Report 1998. New York, Human Rights Watch, 1998, p. XIII

[28] Ver Bangoa, José. “The relationship between the enjoyment of human rights, in particular economic, social and cultural rights, and income distribution. Poverty, income distribution and globalization: a challenge for human rights. Addenduin to the final report prepared by José Bengoa, Special Rapporteur”. UN, ECOSOC, E/CN.4/Sub.2/1998/8 I O June 1998, p. 4-5

 

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