
A renda
mínima como um direito à cidadania
O Programa de Garantia de Renda Mínima, PGRM, ao lado da efetiva
realização da reforma agrária, constitui-se num dos instrumentos de
política econômica que mais eficazmente poderá ajudar o Brasil a
alcançar os objetivos de estabilidade de preços, de crescimento com
concomitante melhoria na distribuição de renda e, com atenção
especial, de erradicação da miséria.
A proposição da garantia de uma renda mínima acompanha a história da
humanidade. Encontra adeptos em extraordinário espectro de pensadores
em praticamente todos os países.
Thomas More, em "Utopia", em 1516, relata o diálogo entre o
viajante Rafael Hitlodeu, o cardeal arcebispo e outro personagem sobre a
ineficácia da pena de morte para diminuir os roubos: "Ao invés de
infligir estes horríveis castigos, seria muito melhor prover a todos
algum meio de sobrevivência, de tal maneira que ninguém estaria se
submetendo à terrível necessidade de se tornar primeiro um?????l???U? ladrão e
depois um cadáver". Com base nesta reflexão, um amigo de Thomas
More, Juan Luis Vives, dez anos depois, em 1526, fez a primeira proposta
de renda mínima para a cidade flamenga de Bruges, em "De
Subventione Pauperum", onde ela foi implementada.
Há 200 anos, um dos principais ideólogos das revoluções americana e
francesa, Thomas Paine, em "Agrarian Justice", num ensaio que
enviou ao Diretório Francês, expressou que "Todo indivíduo nasce
no mundo com um legítimo direito a uma certa forma de propriedade, ou
sua equivalente". Paine argumentou que "todo proprietário que
cultiva a terra deve à comunidade um aluguel pela mesma". ",
propondo a criação de um fundo nacional, o qual produziria rendimentos
que seriam pagos na forma de dividendos iguais para todos para compensar
pela perda desta herança natural.
Bertrand Russel, em "Os Caminhos da Liberdade", 1918, afirmou
que "o plano que estamos preconizando reduz-se essencialmente a
isso: que certa renda, suficiente para as necessidades, será garantida
a todos, quer trabalhem ou não, e que uma renda maior - tanto maior
quanto o permita a quantidade total de bens produzidos - deverá ser
proporcionada aos que estiverem dispostos a dedicar-se a algum trabalho
que a comunidade reconheça como valioso".
A proposição de um dividendo social igual para todos, por formas
variadas, foi defendida pelo casal E. Mabel e Dennis Milner, em 1919,
por George D. H. Cole, em 1929 e 1935, pelo Prêmio Nobel de Economia de
1977, inglês James Edward Meade, em 1935, por Oskar Lange, em 1936, por
Joan Robinson, em 1937 e por Abba P. Lerner, em 1944. A contribuição
destes economistas está bem amadurecida sobretudo na obra recente de
James E. Meade, "Liberty, Equality and Efficiency", de 1993,
em que relata as características de "Agathotopia", um bom
lugar para seres humanos imperfeitos, onde os principais arranjos
sociais, como a flexibilidade de preços e salários, a associação
entre empresários e trabalhadores e um dividendo igual para todos,
significariam a maneira de compatibilizar os ideais de liberdade,
igualdade e eficiência.
Da parte daqueles que defenderam com mais eloqüência o capitalismo,
vários laureados com o Nobel de Economia surgiram como defensores da
renda mínima e do imposto de renda negativo. Friedrich A. Von Hayek, em
1944, defendeu "a salvaguarda contra graves privações físicas, a
certeza de que um mínimo de meios de sustento será garantido a
todos". George Stigler, em 1946, mostrou que o imposto de renda
negativo seria a melhor maneira de proteger a remuneração dos que, de
outra forma, ganhariam muito pouco. Milton Friedman, popularizou a
defesa do imposto de renda negativo, em 1962, como o mais eficaz
instrumento para combater a pobreza.
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Em 1968, John Kenneth Galbraith, James Tobin e Paul A. Samuelson
lideraram um manifesto assinado por 1.200 economistas solicitando ao
Congresso Norte-Americano que aprovassem um sistema nacional de
suplementação e de garantia de renda, o que já havia sido a
recomendação expressa da Comissão Heinemann, designada pelo
presidente Lindon Johnson, para estudar as medidas que os EUA deveriam
instituir para realizar a "Guerra contra a Pobreza".
Foi em 1969 que o presidente Richard Nixon, com a cooperação de Daniel
Patrick Moynihan, ex-membro dos gabinetes Kennedy e Jonhson, apresentou
o Plano de Assistência à Família. Segundo o "Family Assistance
Plan", FAP, toda família cuja renda não atingisse pelo menos US$
3.900 por ano teria direito a um imposto de renda negativo equivalente a
50% da diferença entre aquele patamar e a sua renda. Por duas vezes o
projeto foi rejeitado pelo Senado, após ter sido aprovado na Câmara
dos Deputados.
A interessante lição mostrada por Moynihan é que os
"liberais", pretendendo obter mais do que Nixon havia
proposto, acabaram nada obtendo. Alguns, por exemplo, queriam que a
renda familiar mínima anual fosse de US$ 5.500, o que levaria a um
estouro do orçamento da época. Na segunda votação no Senado, os
conservadores realizaram brilhante manobra utilizando as contradições
dos "liberais" para derrotar diferentes versões do FAP.
Mais adiante, por iniciativa do Senador Russell Long, democrata de
Lousiana, foi criado o "Earned Income Tax Credit", EITC
(Crédito Fiscal por Remuneração Recebida), uma forma de imposto de
renda negativo para famílias com renda anual inferior a US$ 26.673, que
se tornou lei em 1975 no Governo Geraldo Ford. Com apoio de democratas e
de republicanos, o EITC foi aumentado por iniciativa dos presidentes
Ronald Reagan, em 1986, George Bush, em 1990, e, mais
significativamente, Bill Clinton, em 1993.
Neste ano de 1995, prevê-se que 18.425.000 famílias receberão um
total de US$ 23,3 bilhões, representando um crédito fiscal, em média,
de US$ 1.265 por família. Trata-se, portanto, de um programa que
beneficia cerca de 45 milhões de pessoas nos EUA. O professor Albert
Hirschman, por ocasião de sua visita ao Brasil para a posse do
presidente Fernando Henrique Cardoso, contou-me que considerava a
ampliação do EITC a maior realização do presidente Clinton.
Na Europa, quase todos os países, como a Grã-Bretanha, Alemanha,
Suécia, Bélgica, entre outros, proporcionam o benefício à criança
até que complete seus estudos fundamentais, como um direito à
cidadania. A França instituiu a Renda Mínima de Inserção, em 1988. A
iniciativa do presidente François Mitterand e do primeiro ministro
Michel Rocard foi aprovada consensualmente pela Assembléia ?????l???U?Nacional e
beneficia toda pessoa de 25 anos ou mais cuja renda mensal não atinge
pelo menos 2.600 francos. Na Guiania, território ultramar da França, a
RMI é vigente com valores 20% menores. Também a Espanha, a partir de
1988, com leis para cada província, instituiu a Renda Mínima de
Inserção, a partir da preocupação dos sindicatos junto ao governo
que algo deveria ser criado para proteger os trabalhadores menos
qualificados e organizados.
Em 1986, foi criada a Rede Européia da Renda Básica, "Basic
Income European Network", BIEN, com o propósito de se tornar um
fórum para debater intensamente todas as experiências de renda de
mínima, básica ou de cidadania, nos mais diversos países. Esta
entidade tem propugnado pela instituição de uma renda pequena, porém,
incondicional a todas as pessoas numa sociedade, independente de sua
origem, raça, sexo, situação civil, de emprego ou econômica. Para os
que desejam conhecer bem os fundamentos, é bom ler as obras de um dos
principais fundadores da BIEN, Philippe Van Parijs.
Há um lugar do mundo em que se instituiu uma renda básica. Em 1976 o
estado americano do Alasca passou a destinar pelo menos 25% de todos os
"royalties" provenientes da exploração de minérios, como o
petróleo, ao Fundo Permanente do Alasca. O patrimônio do Fundo passou
de US$ 1 bilhão, em 1980, para US$ 17 bilhões, em 1995. A partir de
1982, cada habitante do Alasca, com a única condição de estar morando
lá há pelo menos um an?????l???U?o, vem recebendo um dividendo que, em 1995,
atingiu US$ 990.
Aqui no Brasil os primeiros economistas a propor uma renda mínima
através de um imposto de renda negativo foram Antonio Maria da
Silveira, em 1975, e Edmar Bacha, em 1978. Mais recentemente, muitos
economistas têm de alguma forma apoiado a proposta. O PGRM, tal como
aprovado pelo Senado, prevê um imposto de renda negativo da ordem de
30% a 50% da diferença entre R$ 210 (novembro 1995) e a renda da pessoa
de 25 anos ou mais cuja renda não atinja aquele patamar.
O PGRM está sendo aplicado regionalmente com uma variante interessante.
Durante o debate havido em 1991 entre economistas do PT, José Márcio
Camargo propôs que devesse ser implementado prioritariamente para as
famílias que tivessem filhos em idade escolar, até 14 anos, desde que
fossem efetivamente à escola pública. No Uruguai e na Argentina, há
décadas foi instituída a "Asignacion Familiar", que prove
uma renda às famílias para que suas crianças frequentem a escola.
Em 1995, os Governo Cristovam Buarque (PT) e José Roberto Magalhães
Teixeira (PSDB), no Distrito Federal e em Campinas, iniciaram programas
de renda mínima relacionados à educação. Projetos de natureza
semelhante foram recentemente sancionados em Salvador, Ribeirão Preto,
Sertãozinho, Londrina e Campo Grande. Out?????l???U?ros projetos nesta direção
estão em vias de ser aprovados nas câmaras municipais de São Paulo,
São José dos Campos, Jundiaí, Piracicaba, Rio de Janeiro, Curitiba,
Angra dos Reis, Ipatinga, Belo Horizonte, Goiânia, Fortaleza e nas
assembléias legislativas de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Bahia,
Rio Grande do Norte, Pernambuco, Piauí, Sergipe etc.
No Senado, quando pela primeira vez apresentei o projeto, houve quem
dissesse, como o senador Pedro Simon, que de início lhe parecia
tratar-se de uma idéia estranha. Depois que a compreendeu, entretanto,
votou com entusiasmo a favor. O próprio presidente Fernando Henrique
Cardoso, então líder do PSDB no Senado, encaminhou favoravelmente a
votação, qualificando o PGRM de "Uma utopia realista, com os pés
no chão... tendo o Senado colocado os pingos nos iis para torná-lo
factível." Em dezembro de 1991, o projeto foi aprovado por todos
os partidos.
O projeto encontra-se hoje tramitando na Câmara dos Deputados, na
Comissão de Finanças e Tributação, onde obteve o parecer favorável
do Deputado Germano Rigotto (PMDB-RS). A sua discussão em tantos
municípios brasileiros tem levado a um interesse crescente pela
matéria, prevendo-se para breve a sua votação de forma bastante
amadurecida e consciente. Enquanto que o Ministro da Fazenda, Pedro
Malan, já expressou, no Senado, a sua simpatia pelo PGRM, o Ministro do
Planejamento, José Serra, tem mostrado resistência à idéia, seja
pelo que pode custar, ou por pre?????l???U?ferir, segundo expressou no Congresso,
programas setoriais específicos como o seguro-desemprego e o funrural.
Serra poderia refletir sobre as palavras de Galbraith na décima
conferência anual do "Journal of Law and Society":
"Existe, primeiro, o inescapável requerimento de que toda pessoa
em uma boa, ao menos decente, sociedade deveria ter uma fonte básica de
renda. E se isto não for possível através do sistema de mercado, como
assim é hoje chamado, então é preciso que venha do Estado. Não vamos
nos esquecer que nada determina um limite mais forte à liberdade do
cidadão do que a total ausência de dinheiro".
Como será possível financiar um programa que poderá custar cerca de
3% do Produto Interno Bruto? Desde que venhamos a considerar a
erradicação da miséria como um dos objetivos fundamentais da Nação,
conforme expresso no Artigo 3, Inciso III da Constituição, e que
estejamos dispostos a substituir programas menos eficazes do que este,
certamente encontraremos meios de remanejar despesas e criar receitas
nos orçamentos dos três níveis de governo, de forma coordenada, para
o implementarmos em todo o país. A princípio, devemos analisar o
nível de isenções e incentivos fiscais concedidos anualmente. No
projeto de lei orçamentário de 1996 consta estimativa que estabelece
os benefícios tributários em 3,22% do PIB.
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No âmbito das ações sociais, a substituição de programas de
distribuição de cestas básicas, por exemplo, pela transferência
monetária diretamente às pessoas, na forma do PGRM, altera o seu
caráter na direção de um direito universal à cidadania. Ao mesmo
tempo, gera atividade econômica local e, portanto, uma base tributável
que permitirá sua estruturação orçamentária dos municípios e a
redução de sua dependência financeira.
As experiências locais do PGRM demonstram a sua viabilidade. Na medida
em que o direito se universalizar, nenhum brasileiro ficará propenso a
migrar de sua região por falta total de meio de subsistência. Conforme
indicam estudos, os efeitos do PGRM sobre o crescimento da economia e do
emprego, sobretudo para os setores de bens de consumo popular seriam
altamente estimulantes. Para financiar a renda mínima como um direito
à cidadania poderemos instituir um Fundo Brasil de Cidadania. Assim
como o Alasca criou um fundo baseado em sua principal riqueza natural, o
petróleo, poderíamos criar um fundo que se baseasse em toda a riqueza
gerada no País. Para chegarmos ao Século XXI como exemplo de equidade,
a garantia de renda mínima deve ser vista como imperativa.
Data de publicação:
jan/fev 1996
Veículo: Revista Esquerda
Informações
fornecidas pelo Gabinete do Senador Eduardo Suplicy |