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CAMPANHA DA FRATERNIDADE DE 1999 


Tema: A Fraternidade e os desempregados
Lema: Sem trabalho... por quê? 

(Texto simplificado - Redação Final Aprovada).

 

Apresentação

Recebemos pedidos para que fosse publicada uma versão simplificada do Texto-base da Campanha da Fraternidade de 1999. É o que apresentamos agora, fruto de um esforço para resumir e especialmente para simplificar a linguagem. Esperamos que um número bem maior de pessoas possa ter contato direto com a riqueza do conteúdo que animará a vivência da Quaresma e da Páscoa de 1999.

Este é o terceiro e último ano da fase preparatória para a celebração do terceiro milênio do nascimento de Cristo. É o tempo dedicado a Deus Pai e à virtude teologal da caridade, na sua dupla face de amor a Deus e aos irmãos e ao sacramento da Penitência. Deverá leva-nos, por isso, a uma autêntica conversão, caracterizada pela libertação do pecado e pela escolha da prática do bem.

A CF 99 focaliza a situação dos desempregados e das desempregadas, e nos chama a examinar seus problemas nas perspectivas do ver, do julgar e do agir. É assim que procuraremos viver nossa opção preferencial pelos pobres e marginalizados, reforçando a promoção dos Direitos Econômicos, segundo a proposta do Projeto Rumo ao Novo Milênio no Brasil.

Em documentos anteriores da CF encontramos, de forma direta ou indireta, numerosos princípios e orientações válidas para a de 1999. A palavra trabalho aparece explicitamente nos lemas da CF de 1978 “Trabalho e Justiça para todos”, e na de 1991 “Solidários na dignidade do trabalho”. Este ano a ênfase está colocada na interrogação: “Sem trabalho ... por quê?”. O tema Fraternidade e Desemprego nos chama a atenção para um dos principais problemas sociais deste final de século e de milênio e nos desafia a procurar urgentes soluções.

A evangelização exige “testemunho, serviço, diálogo e anúncio”. Durante o ano de 1999 e particularmente no período da Quaresma, devemos perguntar-nos como contribuir, à luz da Doutrina Social da Igreja, para a promoção de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna, na qual todos possam ter trabalho adequado e chegar individual e coletivamente à plena realização dos ideais cristãos.

Para enfrentar o angustiante problema do desemprego que atinge tantas famílias em nosso país e em várias outras partes do mundo, a CF 99 deseja levar-nos a refletir sobre o que podemos e devemos fazer para que homens e mulheres tenham trabalho garantido. Desejamos fazer isso dentro do espírito da Quaresma, buscando ouvir a Palavra iluminadora das Sagradas Escrituras, orando a Deus-Pai-Trabalhador e agindo na defesa e promoção dos direitos dos desempregados e das desempregadas.

Invocando copiosas bênçãos do Pai Eterno, participemos, com renovado ardor e decisão, deste grande desafio da Fraternidade: trabalho condigno para todos.

 

 

                   Dom Raymundo Damasceno Assis
Secretário-Geral da CNBB

                   Pe. Francisco de Assis Wloch 
Secretário-Executivo da CF

 

VER
Primeira parte

DESEMPREGO:

causas, fatos, conseqüências;
modelo político e econômico;
o povo em busca de saídas

   

1. Desemprego e trabalho

O lema desta CF, “Sem trabalho... Por quê?”, mexe com a vida de todos nós. Nascemos e somos educados para arranjar emprego e garantir a sobrevivência. Emprego, salário, estabilidade e aposentadoria – é esta a linha normal de vida desejada pela  maioria dos trabalhadores. Profissão e ocupação fazem parte da  identidade, do objetivo e do sentido da vida para a maioria das pessoas

Na fala de todo o dia, falamos de emprego e trabalho como se tivessem sentido igual. Quando falamos de trabalho, pensamos em emprego. Por exemplo, por que se diz que uma mulher tem um "trabalho" quando ensina numa escola maternal, e que ela "não tem trabalho" quando cuida dos seus próprios filhos? Mesmo que tenha um diploma de professora para crianças, o cuidado dos filhos, aos olhos da sociedade, nunca é visto como "trabalho". Por quê? Por que a primeira é paga e a segunda não?

O "trabalho", em nossa sociedade, é entendido como uma atividade social, destinada a fazer parte do movimento de trocas em nossa sociedade. Este tipo de trabalho recebe o nome de emprego. Ele depende de um contrato com o empregador, do pagamento de um salário e entra no quadro da produção de bens e serviços mercantis. Este é o "trabalho" que está faltando para muita gente.

Mas trabalho, no sentido mais profundo, não está terminando. Ele é "poiesis", isto é, criação de uma obra. É tudo o que é feito por meio de atividades artísticas, esportivas, filosóficas etc., e sua finalidade é a criação de sentido, a criação de si, de subjetividade, a criação de conhecimento... O trabalho do criador, do pesquisador é muito importante, como o é o da mãe de família e da parteira. Assim mesmo, costuma-se dizer que eles "não trabalham", "não têm um trabalho". A idéia dominante de trabalho está ligada ao emprego ou ao trabalho útil, que é pago por dinheiro. Neste sentido, o artista "trabalha" quando dá cursos ou aulas, ou quando atende a uma encomenda.

Um pouco de história

No decorrer da história e nas diferentes regiões do mundo, muitos povos geraram vida humana digna sem usar o trabalho assalariado. É o caso, por exemplo, das sociedades tribais. A atividade dos índios do Brasil, antes da chegada dos portugueses, era trabalho. Só não era remunerado nem assumido pela economia mercantilista que, naquela época, ensaiava os primeiros passos. As nações indígenas testemunham um outro modo de se viver em sociedade: repartem o trabalho e os bens necessários à vida, sem a troca de trabalho por salário.

No Brasil Colônia, a base da economia era o trabalho escravo, não o trabalho assalariado. E nosso país foi o último do ocidente a terminar com o regime escravista, em 1888. Na época, o trabalho assalariado já despontava como a forma que mais servia à sociedade industrial. Com a entrada dos imigrantes europeus, que já  tinham alguma experiência de trabalhar em troca de salário, o Brasil abandonou os ex-escravos negros, deixando-os, geralmente, sem emprego e sem terra para trabalhar livremente.

Pouco a pouco, o capitalismo foi reduzindo o trabalho humano ao emprego, tornando quase impossível outro tipo de trabalho. O fruto disso, hoje, é uma situação terrível: grande número de pessoas não têm chance de emprego, e ficam sem trabalho remunerado. Perdem o ponto de apoio fundamental para ganhar o necessário para viver, para conviver na sociedade e para desenvolver a própria personalidade. E a maioria dos negros continua sem voz e vez, quando muito fazendo os trabalhos mais pesados e sofrendo grande exploração.

O desemprego é marca da sociedade industrial. Mas a falta de trabalho não é coisa nova no Brasil. Há muito tempo, parte da população que pode trabalhar vive desempregada. Nunca tivemos um sistema econômico que criasse oportunidades de trabalho para todos. Nosso país se desenvolveu voltado para interesses externos. Desde a extração do pau-brasil até as grandes exportações de soja, a economia foi dirigida por poucos, excluindo a muitos. O problema de hoje é o agravamento dessa história de dependência e exclusão. Isso aparece no aumento do número de desempregados e desempregadas em todas as classes sociais, de modo especial entre os pobres.

O que conhecemos como "emprego" não é a única forma possível de relação de trabalho. Por isso, quando alguns estudiosos falam de "fim do trabalho", é do fim do emprego que estão falando. É o "trabalho" típico do capitalismo industrial que está em crise: o empregado fica sem emprego. O "trabalho" que o capitalismo atual está negando para muitos é uma construção social deste tipo de sociedade. Pode, por isso, ser mudado ou até mesmo abolido. O que precisamos ver é se a crise e o quase fim do trabalho assalariado não podem abrir para novas relações sociais, novas possibilidades de realização pessoal.

Mas é muito importante não esquecer que, no momento, o trabalho assalariado é a fonte principal de sobrevivência da maior parte da humanidade. É fonte de integração social, de identidade e de sentido de vida das pessoas. Por isso, o desemprego não cria só pobreza ou miséria. Provoca também migrações de muitas pessoas, com perda de raízes culturais; mexe com a harmonia familiar e com a autoconfiança das pessoas desempregadas. São muitos os que vivem sentimentos de culpa e de perda de laços sociais. A sociedade como um todo também sofre: aumentam as tensões sociais, o clima de violência; e os desempregados/as somam-se à população que não produz economicamente - crianças, pessoas idosas etc. -, aumentando o número dos que dependem dos bens produzidos por um número cada vez menor de trabalhadores/as. 

2. O desemprego no final do século XX

Um bilhão de pessoas não têm emprego ou estão subempregadas no mundo. É isso que nos revela o relatório da Organização Internacional do Trabalho - OIT - de 1997. Este número representa, segundo o estudo "O Emprego no Mundo", cerca de 30% de todos que podem trabalhar. Vale a pena dar uma olhada nesse gráfico de fevereiro de 1998:  

Taxa de desemprego em alguns países

Fonte: Bloomberg News.

2.1. O Desemprego na América Latina

A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) mostrou, em abril de 1996, que o crescimento econômico do continente melhorou nos últimos anos. Mas isso não foi suficiente para resolver os problemas da pobreza e do desemprego. Um relatório da Organização Internacional do Trabalho, divulgado em janeiro de 1997, mostra que o desemprego aumentou em 1996 na região, e já é o mais alto da década([1]).

Segundo estudiosos, reunidos na Costa Rica em fevereiro de 1997, 56% da população latino-americana só pode encontrar ocupação no mercado informal. É onde o emprego é mais inseguro, sem garantias legais. Dos 17 milhões de empregos criados na América Latina e no Caribe, no período de 1990 a 1995, 84% estão no setor informal. Para se ter uma idéia, o setor informal é responsável por 50% do Produto Interno Bruto (PIB - que é o total de produtos e serviços gerados num ano em um país) de El Salvador e da Guatemala, e por 27% do PIB da Costa Rica ([2]).

O nível de desemprego na Argentina, em 1996, foi de 17%. Isso quer dizer que mais de 6 milhões de pessoas ou não têm emprego ou estão desempregadas. Perto de 45% da população em condições de trabalhar está sem oportunidade de emprego.

O desemprego faz aumentar “empobrecimento, deterioração social e crescimento do setor informal", nos diz o Panorama Social de 1996, elaborado pela CEPAL. E não é só o desemprego que cresce. Há sinais de que cresce também o trabalho "inseguro" e o subemprego. "A situação do mercado de trabalho é o aspecto mais negativo no panorama econômico da região (América Latina e Caribe) em 1996, já que, apesar do crescimento econômico, o desemprego ainda não começa a baixar, tendo atingido em 1995 o nível mais alto nos anos noventa".

2.2. O desemprego no Brasil

Os dados abaixo são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo eles, a taxa de desemprego dobrou de 1994 a 1998. Mas o DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Sócio-Econômicos) e o SEADE (Fundação Estadual de Análise de Dados), que pesquisam de um jeito diferente o mundo do trabalho, nos dizem que a taxa de desemprego de 1997 foi de 13,7%, e de 17,2% em março de 1998.

Taxa de desemprego no Brasil

 

 

1990

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

1998

 

Dezembro

3,93

4,15

4,50

4,39

3,42

4,44

3,82

5,66

7,0 ([3])

(% da PEA)

 

 “Eu trabalhava com Seguros. Cuidava da área técnica de seguros da empresa, a  Cooperçucar, há praticamente 20 anos. A empresa vinha vindo numa restruturação geral e a gente vinha vendo os cortes, num desses últimos cortes, eu também entrei. Já estou com 47 anos de idade, com quase 30 anos de serviço, à beira de uma aposentadoria... Comecei a bater de porta em porta, e já se vão quatro meses nesta busca incessante. Quatro meses de todo dia levantar com a pastinha na mão, bater aqui, fazer entrevista, conversar com um, conversar com outro... Tudo quanto é agência que eu vou tá lotadíssima. Tem agência que a gente chega e nem é entrevistado. Só deixa o curriculum. Se tiver vaga, talvez eles chamem para uma futura entrevista. O primeiro mês você vai, o segundo você vai, no terceiro mês é que já começa a te dar uma tensão nervosa, uma ansiedade. Já no quarto mês, realmente, eu estou me sentindo com medo de tanta coisa que a gente viu que tá acontecendo! É muita gente procurando emprego e há pouco emprego. Existe uma seleção. Praticamente a gente sente que está sendo mal entrevistado pela gama enorme de pessoas que buscam o mercado de trabalho. Eu tô sentindo que teria que recuar muito em nível de critério salarial, eu tinha um salário com determinados benefícios. Hoje eu tô reduzindo isso praticamente a 1/3. (Depoimento de Artur, recolhido pela Pastoral Operária de São Paulo).

2.2.1. O Plano Real e o desemprego

Desde a implantação do Plano Real, em 1º de julho de 1994, até o final de 1996, o Brasil já perdeu 755.379 empregos formais. As fontes desses dados são 497 mil firmas que fornecem diretamente, desde 1965, este tipo de informação ao Ministério do Trabalho.

Nesse mesmo período, 147.233 postos de trabalho foram fechados no setor financeiro. Entre 1993 e 1996, o número de bancários diminuiu 54%.

A indústria cresceu, nos três primeiros anos do Real, 12%. Assim mesmo, o Plano Real não segurou a queda de emprego também neste setor. O setor industrial teve perda de 16% no número de trabalhadores, segundo o IBGE.

O aumento da produtividade e a abertura de novas fábricas não impedirão a diminuição dos empregos. Estudos do DIEESE prevêem que, até o ano 2000, o número de empregos na indústria automobilística poderá cair entre 20 e 30%. Em 1997, trabalhavam no setor 114,1 mil. No ano 2000 o setor poderá contar com 23 a 34 mil trabalhadores a menos.

De 1996 para 1997 aumentou um pouco a área cultivada na agropecuária: de 48,635 milhões para 48 milhões e 842 mil hectares. É isso que nos mostram o IBGE e o Instituto de Economia Agrícola da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo. Mas o número de empregos no campo caiu no mesmo período: de 7 milhões e 384 mil para 7 milhões e 331 mil. O Ministério da Agricultura anunciou uma redução de 8,4 a 10,6% na produção agrícola brasileira da safra 95/96;  isto é, uma diminuição de 832 mil empregos diretos e indiretos na atividade agrícola. Isso significa menor distribuição de renda, aumento da migração do campo para as cidades médias e grandes. Segundo uma pesquisa de José Graziano da Silva, da Unicamp, na safra agrícola de 1997, 200 mil trabalhadores rurais perderam seus empregos([4]).

“Minha vida foi sempre marcada pelo sofrimento, angústia e dificuldades de todo o tipo. Trabalhava na roça quando encontrava serviço, e aquilo que eu ganhava não correspondia ao serviço que fazia. Mesmo doente tinha que trabalhar e o que eu ganhava, mal dava para comer. Vendo o sofrimento dos filhos, não agüentei mais e resolvi ir para a cidade. Aqui a situação não melhorou, só fez foi piorá. Neste mundo, não tem lugar prá gente não.” (José Luiz, 32 anos, Sem-terra de Itapeva, SP).

2.2.2. A situação dos trabalhadores

Enquanto cresce o desemprego, continua ou cresce também o chamado trabalho escravo. É muito difícil saber o número, bem como os ramos da economia e as áreas onde pessoas são submetidas ao trabalho escravo. A Comissão Pastoral da Terra conseguiu reunir alguns dados a respeito. Por exemplo, “no Mato Grosso, em 1995, noticiou-se que havia 89 pessoas em situação de trabalho escravo. Em 1996, aumentou para o total de 510 pessoas. No Pará, em 1995, tínhamos 821 pessoas. Em 96, são 690.” ([5]). Esses números são apenas um sinal da situação, pois dificilmente os trabalhadores conseguem denunciar as práticas ilegais e violentas de trabalho escravo.

O drama do desemprego atinge principalmente os mais jovens. Entre 1989 e 1996, a taxa de desemprego dos jovens entre 15 e 19 anos na grande São Paulo pulou de 18,8% para 39,8%, e a dos jovens entre 20 e 24 anos passou de 9% para 19,7%. Segundo dados do PME - IBGE, a taxa de desemprego dos jovens entre 15 e 24 anos atingiu, em 1997, mais de 11%, enquanto a taxa de desemprego das pessoas com mais de 40 anos de idade foi de 3% . ([6])

“Eu fiz colegial, normal. Acabei no ano passado. Nunca trabalhei e agora estou atrás de emprego, mas sempre eles estão exigindo experiência. Eu tenho inglês, nível avançado, tenho conhecimento em computação, mas não tenho experiência. Então fica mais difícil. O quê eu já procurei! Como nunca trabalhei, eu procurei de tudo, de recepcionista, atendente... Mesmo assim sempre a mesma resposta: “EXPERIÊNCIA!”. Como eu estou com 18 anos, desse jeito nunca vou ter experiência, porque ninguém me dá uma chance. Se me derem uma chance eu vou desenvolver um bom trabalho! A maioria dos meus amigos está na mesma situação. Alguma coisa está errada, alguma coisa tem que mudar. Se não derem chance pra gente tentar trabalhar, como é que vai ficar? Nós não somos o futuro?” (depoimento de Roberto - SP)

Enquanto muitos jovens não conseguem entrar no mercado de trabalho, muitas crianças trabalham desde cedo. Cabe-lhes complementar a renda familiar, especialmente se os pais estão desempregados. Mesmo com o Estatuto da Criança e do Adolescente, essas práticas ilegais se multiplicam, ao lado de outras aparentemente legais. Por exemplo, sob o rótulo de “aprendiz”, empresas continuam explorando o trabalho de crianças e adolescentes.

“No Brasil, o trabalho infantil, segundo estimativas oficiais, explora 3,28 milhões de crianças entre 10 e 14 anos, sendo cerca de 1,5 milhão no Nordeste. Estende-se da cultura do sisal às carvoarias e olarias, passa pela cana de açúcar e colheita de laranja, freqüenta certas indústrias e inventa dezenas de pequenos expedientes pelas ruas das grandes cidades, inclusive o tráfico de drogas”([7]).

“Eu queria estudar. Meu sonho é ser advogado”, reclama Claudionor L. Gomes, 14 anos, cortador de cana, PE, com renda de  R$ 20  por semana;

“Eu carrego madeira para queimar, sempre de manhã antes de ir para a escola”, revela  Rogério S. da Silva, 14 anos, Santa Rita do Pardo, MS; 

“Preferia caçar rolinha.” diz Jucimar de Jesus, 10 anos de idade, colhedor de sisal, na Bahia, recebendo R$ 5,00 por semana.” (cf. Revista Isto é, 30-04-97).

Com a abertura do mercado brasileiro aos produtos internacionais, diminuíram muitos empregos tradicionalmente masculinos, de modo especial na indústria. Isso aumentou a concorrência em relação aos empregos oferecidos em maior número às mulheres. Só podia dar nisso: o desemprego das mulheres aumenta com maior velocidade. Estudos da Fundação SEADE mostraram isso em relação à região da grande São Paulo: o desemprego dos homens, em 1989, foi de 7,5%, enquanto o das mulheres foi de 10,6%; sete anos depois, em 1996, o desemprego dos homens foi de 13,5%, e o das mulheres, de 17,2%.

 “Eu sou de Pernambuco e vim para São Paulo em 1971. A última firma em que fui registrada foi a Flipel. Eu trabalhava de ajudante, trabalhava em máquina. Lá fabrica guardanapos, papel toalha, aqueles guardanapos que vem em balcões. Trabalhei 6 anos nessa empresa, é uma empresa pequena... Procurei outro serviço, mas não encontrei... Foi difícil. Andava tudo que era lugar, mas não encontrava. O pessoal exigia estudo, presença, pessoas que tem boa presença, pessoas novas, com menos de 21 anos... Eu tenho 52 anos e estudei só até a 4ª série. Peguei o dinheiro que recebi da fábrica, fundo de garantia, tempo de casa, salário-desemprego. Quando terminou, eu fiquei sem dinheiro. O meu filho trabalha e me dá dinheiro, meu sobrinho também trabalha. Eu moro com a minha irmã e não me falta nada.“ (Depoimento de Janira, recolhido pela Pastoral Operária de São Paulo).

Apesar da dificuldade de emprego, o censo de 1991 mostrou que as mulheres estão trabalhando em novos tipos de trabalho. Nota-se uma forte presença em trabalhos de gerência, com nível superior. Mais da metade do crescimento da força de trabalho feminina nas cidades está ligado a atividades manuais de menor qualificação. Neste sentido, nem sempre a maior presença das mulheres na economia significa libertação feminina; pode significar também crescimento da miséria. E não somente das mulheres. Por serem contratadas como mão de obra mais barata, seu emprego termina ajudando a rebaixar a remuneração média do conjunto dos trabalhadores ([8]).

É bom relembrar que, em nossa sociedade, a identidade da pessoa é definida pelo emprego. Por isso, o fato de ser desempregado/a desorganiza tudo e mexe com a vida pessoal e familiar. Podem existir, entre trabalhadores/as envolvidos em iniciativas de produção “alternativa” de renda, uma boa organização comunitária e tentativas para que o trabalho humano não seja só trabalho assalariado. Em geral, porém, as tentativas individuais de saída e sobrevivência, os biscates... fazem com que as pessoas não tenham acesso aos direitos e ao sistema de proteção social. A insegurança das relações e as incertezas do mundo do trabalho atingem, em maior ou menor grau, a todos, e colocam em questão os próprios fundamentos da sociedade atual. 

Segundo psicólogos especializados, o choque do desemprego tem o mesmo efeito da morte de um parente. Existem muitos casos de depressão, e até mesmo de suicídio, por causa das demissões. Nos EUA, uma série de estudos notou uma forte ligação entre o crescimento do desemprego e aumento dos níveis de depressão e de doenças  psicológicas. Em muitos casos, o desemprego tem relação quase direta com a doença física. “Quando eu estou parada a doença pega mais. Quando eu estou trabalhando, eu não doenço."([9])

A pessoa, normalmente, recebe uma formação profissional, e aprende que o sentido da vida é dado pelo exercício de uma profissão remunerada. Quando, de repente, perde o emprego, pode perder também a orientação vital. Sente-se desligada do mundo. Muitas vezes se julga culpada,  por causa do preconceito de que o desemprego se deve à sua incompetência ou falta de adaptação.

“Então, hoje, um homem com 47 anos de idade, 30 anos de serviço, à beira de uma aposentadoria, se vê numa situação dessas. O fator emocional nele logicamente é muito forte. A pessoa começa a ficar desconectada, com medo, numa ansiedade muito grande, na busca do quê fazer. Que alternativa? Trabalhar em qualquer segmento? Qualquer coisa? Um serviço mais desqualificado? Ora isto provoca depressão muito forte. E tem que haver um equilíbrio muito forte, porque a depressão é muito forte. Eu, como desempregado, sinto dentro de mim uma tensão nervosa muito grande, medo, ansiedade, angústia... Que perspectiva? O que vai ser amanhã? Vou conseguir? E o que vai ser dos meus filhos? E a educação, a saúde, a proteção. E eu, como eu vou ficar? Como vai ficar minha família?” (Seqüência do depoimento de Artur, recolhido pela Pastoral Operária de São Paulo).

3. Desempregados... Por quê?

                As causas do grande desemprego de hoje em dia são muitas, e mudam nos diferentes países e regiões. Vejamos algumas delas.

3.1. A revolução tecnológica  

                Existe uma causa do desemprego típica dos dias de hoje: é a chamada “revolução tecnológica". Ela atinge, de alguma forma, o mundo todo. Ela torna possível um aumento muito grande da produtividade sem a necessidade do trabalho do conjunto dos(as) trabalhadores(as). Assim, a revolução tecnológica provoca um aumento significativo do desemprego. Alguns  estudiosos chegam a falar do fim do emprego, e outros acham que a sociedade baseada no salário estaria chegando ao fim.

                A revolução tecnológica junta dois processos muito fortes e rápidos: combina a moderna tecnologia de comunicações com os novos sistemas de computação. Com isso, as informações analisadas e organizadas para sua utilização prática com muita rapidez. Como já não se sabe dizer onde termina a comunicação e onde começa a computação, inventou-se um nome para dar conta desse processo: informática.

                Essa revolução parece ter uma força inovadora sem fim. Ela junta uma novidade com outra, encurtando a vida útil dos produtos num ritmo quase maluco. Na década de 70, uma novidade industrial durava dois anos; na década de 80, um ano; já nos anos 90, dura seis meses. Depois disso, ela já não é mais novidade: a concorrência já a usa também. Isso é mais visível na indústria eletrônica: uma novidade dura apenas seis semanas. No setor financeiro, a inovação pode ter a duração de um vaga-lume: algumas horas.

                Parece que o Governo brasileiro está abraçando sem reservas essa "revolução tecnológica". É isso que se nota nas políticas agrária e agrícola que vem adotando: privilegiam o modelo agro-exportador de alta tecnologia e apostam na diminuição dos trabalhadores do campo. Mas  o país tem perto de 25% da sua população nas zonas rurais, sem nenhuma chance de entrar no mercado de trabalho urbano.

3.1.1. Algumas conseqüências das inovações tecnológicas

As mudanças introduzidas pela tecnologia moderna baixaram os preços das matérias-primas tradicionais. Nos anos 90, os preços dessas matérias-primas caíram 40%, em termos reais, se comparados com os pagos nos anos 70. Um caso muito revelador é o dos cabos de cobre, em que a matéria-prima significava 80% do custo total. Estes cabos são substituídos por fibras óticas, em que a matéria-prima significa só 10% do custo total. Mas uma das mudanças maiores aconteceu com o produto-chave da nossa década, o microship (peça fundamental para os microcomputadores): tem como matéria-prima a areia, que não significa 2% do custo total do produto final.

O conhecimento tornou-se o ponto decisivo da produção. Ele é a principal fonte do valor de um bem. Vivemos numa economia que tem fundamento na produção do conhecimento, e não mais nas matérias-primas e no trabalho físico. O valor real, por exemplo, de companhias como a Compacq ou a Kodak, a Hitachi ou a Siemens, depende das idéias, das informações e das patentes (registros de conhecimentos) que essas companhias controlam, e não dos caminhões, linhas de montagem e outras construções que possam ter. Enfim, a informação é cada vez mais o combustível que alimentará os motores da economia no século XXI. Neste final de milênio, o verdadeiro ouro chama-se conhecimento.



[1]. O Estado de São Paulo, 16-01-97, B-7;
[2]. O Estado de São Paulo, 25-02-97, B-12;
[3]. Projeção da Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda
[4]. Cf. Gazeta Mercantil, 09-01-98,C-7;
[5]. CPT, Conflitos no Campo, Brasil 96, p.50;
6]. AMADEO, Edward, Mercado de Trabalho Brasileiro. Rumos, desafios e o papel do Ministério do Trabalho, Câmara dos Deputados, 14-05-98, p. 16;
[7]. CNBB, Declaração: “Alerta à Consciência da Nação”, in Comunicado Mensal n.º 515, Brasília, outubro de 1997.
[8]. “O período 1980/1990: mapeamento da questão social”, in OLIVEIRA, Jane Solto - Org. O traço da desigualdade social no Brasil. Rio de Janeiro, IBGE, 1993, pp. 20-25.)
[9] Depoimento, no Jornal Nacional, em 09/02/98.

3.2. A financeirização do mundo ([1])

A economia atual deixa de ser baseada na compra e venda de bens e serviços. Ela passa a ter seu fundamento na rápida circulação do dinheiro. Esse processo, conhecido como financeirização da economia,  passa por  todos os países do mundo. É transnacional, não tem fronteiras. As economias nacionais tornam-se secundárias frente a esta economia transnacional. O poder econômico real passa, cada vez mais, das autoridades públicas e democráticas para os mercados financeiros anônimos e não controlados.

 A grande transformação sócio-econômica do final deste século é marcada por novos caminhos de acumulação mundial. Quem define a direção é o capital privado, altamente concentrado. A parte do capital aplicada na produção de bens e serviços diminui rapidamente. Ao mesmo tempo, cresce sempre mais o capital aplicado no mercado financeiro. Esta parte financeirizada se mantém sob a forma de dinheiro, e consegue rendimento com juros, sem ser trocada por outra mercadoria ou transformada em outro produto.

Este processo de financeirização mundial, em que o dinheiro existe para gerar mais dinheiro, pode ser chamado de "mundialização do capital". Preferimos essa expressão porque a palavra “globalização”, muito usada, é vaga e imprecisa. Seria preciso, pelo menos, falar em “globalização do capital”, e não de toda a economia. Cada país continua tendo sua economia própria, mas é invadida e dominada pelo capital transnacional. É mais correto falar em “mundialização” porque o capital circula por todo o mundo conhecido, e não por uma realidade “global” que não se sabe o que é.

 Esta mundialização é marcada, cada vez mais, pelo crescimento do capital “rentista”: o dinheiro rende sempre mais, por meio de complicadas aplicações financeiras. Esta renda financeira é como um parasita. Seu funcionamento parece depender das necessidades do próprio capital-dinheiro, cada dia mais concentrado, em particular nos fundos mútuos de investimentos e nos fundos de pensão. O capital rentista  cria pouco emprego e reduz oportunidades de trabalho.

O poder desse capital-dinheiro é sustentado pelas instituições financeiras internacionais - Banco Mundial, FMI etc - e pelos Estados mais ricos e poderosos do planeta. Isso ficou muito claro na hora de juntar os 55 bilhões de dólares para o México, em 1995. Estas instituições fizeram o papel de "credores de última instância", impedindo que a bancarrota mexicana provocasse uma queda nos preços dos títulos financeiros em todo o mundo.

Hoje, a repartição e a destino da riqueza no mundo são comandados pelo capital financeiro. Ele cresceu, nos últimos quinze anos, muito mais rapidamente do que o próprio Produto Interno Bruto (PIB) dos países ricos. Por causa do seu volume, o capital financeiro dita as regras de comportamento das empresas e dos centros capitalistas de decisão: altas taxas de juros, inflação zero, aplicações de curto e curtíssimo prazo...

Um exemplo claro desse poder exagerado do capital financeiro mundial foi dado pelo presidente do Banco Central da Alemanha, na Suíça, em 1996: "os políticos estão sob o controle dos mercados financeiros"; ou seja, "o mercado governa e o governo administra"([2]). Fernando Henrique Cardoso afirma que os mercados de capitais "passaram a atuar como verdadeiros guardas das gestões nacionais". Para ele, este mercado age como um "tribunal invisível" influente, limitando a capaci­dade de ação dos governantes([3]).

O mercado financeiro não existe sem a especulação. Mais que isso, seu crescimento exige uma especulação altíssima ([4]). Ele gera pouco por si próprio. Ele representa o tipo de campo em que se joga um jogo de soma zero: o que é ganho por alguém é perdido por outro. Numa  entrevista de 1996, George Soros, um grande especulador, disse: "atualmente as finanças internacionais não obedecem a nenhuma lei. Quando uma atividade está fora do alcance da lei, o que predomina é a força, e o estado de coisas em que a força predomina é chamado de barbárie"([5]).

Chegamos a grande irracionalidade, mesmo se com aparência de modernidade. A mundialização financeira esconde o rosto dos donos e operadores mais importantes, a concentração da riqueza e do poder que eles controlam, e esconde também o papel dos próprios Estados na origem da "tirania dos mercados".

A atividade financeira não liga para as fronteiras nacionais e cresce num mundo quase sem regras. O capital se sente cada vez mais poderoso e presente em muitos lugares ao mesmo tempo. O tempo futuro entra, de maneira assustadora, no tempo presente. "A atividade bancária está se tornando, rapidamente, indiferente aos limites de tempo, de espaço e de moeda". Assim, cada vez mais, o mundo das finanças vai reunindo as qualidades “divinas” da imaterialidade, imediatez, permanência e multipresença. E isso vai dando lugar a um novo culto: a “religião do mercado”([6]).

Mas não passa de um ídolo com pés de barro. A crise experimentada pelos chamados tigres asiáticos mostra a fraqueza desse modelo. A taxa de desemprego na Coréia do Sul triplicou num ano. Na Indonésia, 20 milhões de pessoas estavam desempregadas no final de 1997, segundo o Banco Mundial. Isto é igual a 22% da população ativa. Vários desses países decidiram expulsar os estrangeiros. A Organização mundial do trabalho (OIT) está prevendo que o desemprego poderá dobrar até o final de 1998. As consequências dessa crise já estão sendo sentidas em todo o mundo.

3.1.      O Menos trabalho para mais riqueza

Hoje, o trabalho, no sentido tradicional, já não é mais tão necessário para produzir riqueza. Basta o trabalho que está nos aparelhos de tecnologia avançada, pois eles multiplicam a capacidade de produção de um número sempre menor de pessoas. Um estudo da Federação Internacional dos Metalúrgicos prevê que, dentro de 30 anos, menos de 2% da atual força de trabalho em todo o mundo "será suficiente para produzir todos os bens necessários para atender a demanda total"([7]).

A agricultura é um ótimo exemplo deste processo. Um agricultor alimentava quatro pessoas no fim da 2ª guerra mundial (1945); trinta anos mais tarde, alimentava 36. A safra agrícola de 1994/1995, no Brasil, por exemplo, foi recorde: 81,2 milhões de toneladas de grãos. Dez anos antes, foram colhidos 53,9 milhões de toneladas de grãos. Em dez anos, a produção brasileira de grãos cresceu 51%; mas a área plantada caiu quase 10%. Portanto, o aumento de produção está diretamente ligado ao aumento da produtividade das lavouras. Ela cresceu, em dez anos, 64%([8]). Hoje em dia, produzir mais não é igual a aumento da área cultivada, ou trabalhar mais. O segredo está no modo cientifico de provocar maior produtividade.

Até há pouco tempo, os estudiosos acreditavam que o setor de serviços seria capaz de dar emprego ao grande número de pessoas desempregadas pelos avanços tecnológicos. Contudo, o que se vê, hoje, são caixas automáticos, home banking, débito direto via cartão, compras via Internet, escritórios eletrônicos, "escritórios virtuais", acabando a carreira de milhares e milhares de pessoas.

Parece que a "economia global caminha rapidamente para a era da fábrica sem trabalhadores"([9]). A segurança no emprego é coisa do passado. Rompe-se a ligação mecânica entre tempo de trabalho produtivo e produção. Não é mais possível medir a produtividade do trabalho em fábricas em que a produção é comandada por computador, com apenas alguns supervisores. Para a economia, já não faz sentido continuar seguindo a lei do século passado, que ainda vale até nossos dias - a do trabalho/produção/salário. A idéia de salário, e de salário mensal, foi interessante para a civilização industrial. "A nova civilização informatizada pede que se invente um conceito novo para assegurar a redistribuição das riquezas produzidas coletivamente"([10]).

3.2.      A restruturação do Mundo do Trabalho

Com a entrada da chamada reengenharia das empresas, 40% dos empregos serão dispensados, e essa diminuição pode chegar a 75%. Poderá haver uma diminuição de até 80% dos chamados gerentes intermediários. É isso que nos diz Michael Hammer, um especialista no assunto.[11]

As empresas, sentindo-se apertadas pelo mercado financeiro, pelo aumento da competição e pela diminuição das margens de lucro, decidiram tirar proveito da parte mais fraca: o alto número de desempregados ou subempregados e a queda do poder sindical. Impõem contratos de trabalho mais instáveis. Com isso, a diminuição do emprego regular deu lugar ao aumento do uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou subcontratado.

A estrutura do mercado de trabalho vai tomando a forma de um círculo: no centro, estão os trabalhadores integrados. Eles trabalham nas empresas modernas, em tempo integral. Ocupam uma posição fundamental para o futuro de longo prazo da organização. Gozam de maior segurança no emprego, com boas chances de promoção e de reciclagem, com pensão, seguro e outras vantagens indiretas. Mas este grupo de trabalhadores deve ser adaptável, flexível e, se necessário, geograficamente móvel.

 A periferia desse círculo é formada pelos trabalhadores semi-integrados. Formam dois subgrupos diferentes:

a) O primeiro é constituído por empregados em tempo integral, mas com habilidades facilmente disponíveis no mercado de trabalho. É o pessoal do setor financeiro, secretárias, pessoas das áreas de trabalho manual menos especializado. Com menos chances de oportunidades de carreira, esse grupo vive a experiência de uma alta taxa de rotatividade.

b) O segundo grupo tem muito mais gente ainda e inclui empregados em tempo parcial, empregados casuais, pessoal com contrato por tempo determinado, temporários, subcontratatados e terceirizados. Tem ainda menos segurança de emprego do que o primeiro grupo periférico. Tudo indica que haverá um crescimento bastante significativo desta categoria de empregados.

A tendência atual do mercado de trabalho, portanto, é diminuir o número de trabalhadores "centrais" e empregar cada vez mais uma força de trabalho que pode ser demitida sem custos, quando as coisas ficam ruins para a empresa.

4. As “causas” do desemprego

  O que foi apresentado como causas do desemprego e tendências do emprego é válido também no Brasil? A resposta é sim, mas existem grandes diferenças regionais e setoriais. Muitas teorias explicativas aparecem nos meios de comunicação social. Muitas vezes, ajudam mais para mascarar a situação de desemprego do que para esclarecê-la.

4.1. Dizem que é preciso retomar o crescimento econômico 

                Economistas e políticos apontam o crescimento da economia como primeira saída para resolver a questão do desemprego. Segundo alguns, “para reduzir o desemprego, o único remédio é um forte crescimento econômico, e este exige um forte crescimento das exportações"([12]). A retomada do crescimento econômico pode ser boa coisa. Como saída para questão do desemprego, porém, é insuficiente. Basta olhar os países mais ricos do mundo. Houve crescimento econômico, mas a oferta de emprego diminuiu.

                Deve-se a ilusão de importar modelos de desenvolvimento econômico dos países ricos do Norte. O economista Ignacy Sachs, nos lembra que não teremos nenhuma melhora com esta importação. E completa: "em vez de se iludir com a existência de uma modernidade universal, é preciso que construam projetos adaptados ao contexto cultural, social, econômico e ecológico" de cada país.([13]) .

O único desenvolvimento sustentável que tem sentido é o que se fundamenta numa redistribuição do trabalho. O desafio é a construção de um projeto de sociedade que tenha como objetivo a distribuição da produtividade em benefício de todos, e não mais a produção de mercadorias. Em outras palavras, uma sociedade capaz de criar um acordo sobre a prioridade da produção dos bens necessários para todos.

4.2. Dizem que é preciso  reduzir a produtividade

Alguns apostam na diminuição da produtividade como saída para o desemprego. Não se trata, porém, de reduzir a produtividade, mas de redistribuir seus frutos. Não se trata de diminuir o pão, mas de servi-lo em todas as mesas. Tanto melhor se ele é farto: dará para todos/as, sem exclusão de ninguém.

Mas é bom questionar a idéia de querer aumento da produtividade em todas as dimensões da vida humana e social. Muitos querem aplicar a filosofia da produtividade em tudo e por tudo. Até mesmo em instituições religiosas, encantadas com a busca da “qualidade total”. Como se todas as atividades humanas, incluídas a cultura, a saúde, a educação, as relações sociais pudessem ser colonizadas pela cultura produtivista. Como se cada pessoa tivesse sido feita no molde do robô, e respondesse do mesmo jeito aos ritmos sociais. A produtividade, como no filme "Tempos Modernos", de Charles Chaplin, arrasta a pessoa humana em sua esteira. O ritmo da produtividade não é apenas o ritmo de uma máquina isolada. É o ritmo do conjunto da empresa, e é o ritmo da existência do assalariado, que corre sem parar para produzir sempre mais depressa, num ambiente em que o estresse é tomado como indicador de eficácia!

4.3. Dizem que é preciso flexibilizar as relações de trabalho

Costuma-se dizer que o desemprego cresce por causa das muitas leis que protegem o trabalho e o trabalhador. Para alguns, uma saída para enfrentar o desafio do desemprego é "tornar mais flexível o conjunto de regras relativas às relações de trabalho, de modo a preservar o número de empregos. Esta flexibilização deveria possibilitar, por exemplo, que empresas e trabalhadores negociassem livremente um leque tão vasto quanto possível de tópicos, tais como o número de horas extras etc. Deveria também resultar em menores custos para a contratação de trabalhadores"([14]). A proposta não é original. Argentina e Espanha são os países que mais desregulamentaram o seu mercado de trabalho. No entanto, em 1997, A Argentina tinha 20% e a Espanha 24% de taxa de desemprego.

Perto da metade dos trabalhadores brasileiros empregados legalmente estão há menos de dois anos no mesmo emprego. Isto quer dizer que, se fosse mantida essa velocidade, a cada quatro anos todos os trabalhadores do país teriam trocado de emprego([15]). Nas situação atual, isso é alarmante, se comparado com outros países. É um dos índices de rotatividade mais altos do mundo. Isso prova que o custo de demissão, no Brasil, não é alto. É mais barato demitir e readmitir um trabalhador do que garantir seu emprego por um tempo mais longo.

Foi assinado, em janeiro de 1997, o projeto que cria o contrato por prazo determinado. A idéia que está por trás é a de que o mercado usa melhor os recursos. A regulamentação por parte do governo seria, por isso, um atrapalho para o bom funcionamento da economia. Quem defende essa lei, afirma: o contrato temporário de trabalho gera aumento de empregos, já que a contratação seria favorecida porque a demissão do trabalhador é mais barata. "Esta proposta não tem qualquer compromisso com a melhoria da qualidade do emprego. O trabalhador que poderia estar no setor "informal" (sem encargos e sem custo de demissão) agora passa a ter um emprego "formal" (sem encargos e sem custo de demissão). Conseguiu-se consagrar na lei a segmentação do mercado de trabalho"([16]).

Como já foi demonstrado em outros países, essa medida será provavelmente um fracasso como  tentativa para aumentar o emprego ([17]). A própria Confederação Nacional da Indústria (CNI) reconhece que o contrato temporário "não vai solucionar o problema do emprego no país"([18]). Para estudiosos do tema, a nova legislação será usada pelas empresas muito mais para cortar custos do que para aumentar empregos.

Tem-se insistido muito na necessidade de requalificar os trabalhadores demitidos pelo avanço tecnológico e pela reengenharia das empresas. Ou seja, os custos sociais da economia global e do enxugamento das grandes empresas seriam compensados pelo ensino e o treinamento profissional. Os trabalhadores, melhor educados, seriam capazes de tarefas cada vez mais complexas e valorizadas. Mas o que se nota é o aumento crescente de demissões de trabalhadores qualificados. Frente a isso, estudiosos levantam a seguinte questão: retreinar para quê?  Um estudo realizado em 1993 pelo Departamento de Trabalho dos EUA mostrou que menos de 20% dos trabalhadores demitidos e retreinados pelos programas federais conseguiram novos empregos com remuneração de, pelo menos, 80% de seus salários anteriores.

4.4.  Dizem que o custo do trabalho causa o desemprego

A hora trabalhada, incluindo no cálculo todos os encargos sociais, é baixíssima, se comparada com vários países. O custo da mão-de-obra por hora trabalhada na indústria de transformação, no Brasil, é de 2,68 dólares, enquanto na Coréia chega a 4,93; na Espanha, a 11,73; nos EUA, a 16,40; e na Alemanha, a 24,87([19]). Para quem ganha salário mínimo, esta hora trabalhada tem um custo de 0,93 centavos de dólar. Se fossem descontados os salários indiretos, o salário dos domingos e a tarde de sábado, feriados, férias, auxílio-doença e aviso prévio - conforme a nova lei -, o custo cairia para 0,49 centavos de dólar.[20]

A participação dos salários no valor produzido pela indústria brasileira é uma das mais baixas do mundo. Muito abaixo, inclusive, de economias mais fracas do que a nossa. Os salários são, no Brasil, apenas 23% do valor agregado na indústria. Segundo dados da ONU, eles são 37% no Panamá, 38% na Índia, 51% na África do Sul, 69% na Itália e 71% na Noruega.[21]

Essas comparações deixam claro que a diminuição do chamado "custo Brasil" não deve ser feito com o rebaixamento dos salários ou das contribuições para a seguridade social. Isso pioraria a distribuição de renda, já desigual demais, e deixaria sem amparo os que já são pouco assistidos.

Jorge Mattoso, do Instituto de Economia da Unicamp, diz que, por enquanto, as empresas só estão mexendo no emprego para diminuir os custos de sua produção. Para ele, as causas explicativas do atual crescimento do desemprego e da ocupação precária no Brasil são três: a) a forma subordinada pela qual o país está se inserindo na economia mundial; b) a abertura econômica indiscriminada e a falta de mecanismos de combate à concorrência externa desleal; c) a política econômica atual, especialmente os juros altos e o câmbio sobrevalorizado.

5. Existem caminhos alternativos

Não é absurdo, e até mesmo perigoso, melhorar, por exemplo, a produtividade num hospital? Não seria melhor dar possibilidade às enfermeiras de permanecerem um pouco mais ao lado de cada enfermo?! É necessário jogar no olho da rua 22 mil cobradores de ônibus, com a implantação de catracas eletrônicas em grandes cidades, como, por exemplo, São Paulo? Por que não exigir dos hipermercados um número de empregados por metro quadrado, para recriar o serviço, a relação, o conselho? Alguém logo dirá que o custo destes empregos apareceria nos preços. É verdade, e os consumidores, sem dúvida, passariam a pagar, em parte, a superação do desemprego. E isto seria uma aberração?

Pelo menos nos setores que não entram na concorrência internacional, toda vez que se quer ganho de produtividade junto com diminuição de empregos, seria preciso perguntar-se: além do custo direto, qual é o custo indireto, qual é o custo social? Parece bastante racional perguntar-se sobre a necessidade e a urgência da implantação de cada ganho de produtividade que vai gerar um desempregado a mais. Afinal, estamos numa sociedade já marcada por uma alta taxa de desemprego.

O apoio ao setor que ficar com baixa produtividade pode ser financiado pelos ganhos de produtividade dos setores de alta produtividade. Manter uma economia a duas velocidades significa possibilitar à sociedade tempo para inventar novos jeitos de repartição do trabalho, de redistribuição do emprego. Esta decisão permite dar tempo às pessoas para se adaptarem à nova civilização que vai surgindo, à civilização do tempo livre.

 

5.1. A redução da jornada de trabalho

 “Meu nome é Nilma Araújo Oliveira. Sou casada, tenho 32 anos e moro em Salvador (Ba). Sou professora e sempre gostei do que faço. Porém já faz 10 meses que estou desempregada. O motivo da minha demissão foi a alegação de que houve uma redução muito grande de alunos, por isso, era necessário reduzir o quadro de professores. Já enviei muitos curriculuns, mas até agora nada de concreto. Percebo que a situação tem piorado muito e o número de desempregados está muito grande, mas tenho fé que vai melhorar. Talvez se houvesse uma redução da jornada de trabalho poderíamos resolver a problemática do desemprego, porque assim iria aumentar a oferta de emprego”.(Depoimento colhido pela Pastoral Operária da Bahia).

  A redução da jornada de trabalho está se tornando a grande bandeira do movimento sindical em todo o mundo. É uma luta importantíssima porque é uma maneira concreta de partilhar a produtividade alcançada com as novas tecnologias e os novos métodos de organização da produção. Juntamente com a reforma agrária,  a redução da jornada de trabalho é uma das mais importantes saídas para o desemprego.

a) 40 horas semanais. A CUT propõe a da redução da jornada de trabalho para 40 horas semanais sem diminuir o salário. A jornada semanal atual é de 44 horas. Se passar para 40 horas, pode criar, logo, 3 milhões e 600 mil novos empregos. A Central Única dos Trabalhadores propõe ainda dar novos passos na diminuição da jornada de trabalho: chegar a 38 horas no ano 2000, a 36 em 2003 e a 32 horas semanais no ano 2008.

b) 30 horas semanais. A Força Sindical propõe a de redução da jornada de trabalho de 44 para 30 horas, com diminuição de 10% nos salários e no lucro líquido das empresas, e de 37,3% nos impostos. Por esta proposta, os governos deixariam de arrecadar R$ 9,4 bilhões em impostos, mas a redução da jornada de trabalho criaria pelo menos 4,4 milhões de empregos. Para a Força Sindical, a perda de 10% dos salários dos trabalhadores seria compensada pelo aumento da renda familiar, com a entrada de um desempregado no mercado de trabalho, juntando mais um salário à família. Afinal, serão 4,4 milhões que passarão a ter emprego, a consumir e, claro, a pagar impostos.

c) O tempo livre. A redução do tempo de trabalho abre, também, a possibilidade de um tempo livre para a realização de atividades feitas a partir da escolha da pessoas. A criação de espaços onde as normas de vida são mais livres permite a cada pessoa viver relações diferentes e decidir com maior liberdade os seus atos. Depois de três séculos dominados pelo trabalho/emprego, esta possibilidade de uma ordem de valores diferente nas atividades humanas marca o início de um novo tempo ([22]).

5.2. Redução ou fim das horas extras

Desde 1988, quando a Constituição reduziu a jornada de trabalho para 44 horas, cresceu muito o número de trabalhadores que fazem hora extra. No caso da indústria, em 1988, 21,3% dos operários trabalharam mais do que a jornada legal. Em 1996, este índice chegou a 41,4%. No comércio, a porcentagem foi de 43,4% em 1988, chegando, em 1996, a 55,1%. O DIEESE calcula que 1,5 milhão de empregos deixaram de ser criados por causa das 265 milhões de horas extras trabalhadas entre 1985 e 1996. Por isso, sem a limitação das horas extras, o impacto da redução da jornada de trabalho sobre a geração de empregos será muito diminuído. "Controlar as horas extras é tão importante quanto reduzir a jornada de trabalho" - constata o DIEESE([23]).

 A CUT propõe a diminuição de impostos federais, estaduais e municipais para as empresas que aceitarem reduzir a jornada de trabalho e fizerem novas contratações. Junto com a redução da jornada de trabalho, a CUT apresenta a proposta de se limitar as horas extras: a quantidade deve ser negociada com os sindicatos, e nunca poderiam ir além do limite de 92 horas anuais, perto de 5% da jornada anual com base nas 40 horas semanais. As horas extras dariam direito ao pagamento extra e a um número igual de horas de descanso.

5.3. Algumas possibilidades reais de geração de emprego.

Ignacy Sachs é economista e dirige o Centro de Pesquisa sobre o Brasil Contemporâneo na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. Toda vez que perguntam a ele como enfrentar o desemprego, ele responde que é  preciso fazer que o problema do emprego seja o ponto central nas  estratégias de desenvolvimento de cada país. Para isto é preciso apostar nos seguintes setores:

"1.- a agricultura, principalmente a agricultura familiar, convenientemente modernizada;

2.- as agroindústrias, em particular as pequenas e médias empresas, que trabalham quase sempre para o mercado local;

3.- as indústrias de bens de consumo corrente (com a condição de não permitir que elas desapareçam sob o impacto da concorrência estrangeira);

4.- as bioenergias (como o álcool de cana, por exemplo) e as indústrias transformadoras da biomassa; cada vez que um barril de petróleo é substituído pela energia de biomassa, aciona-se um multiplicador de empregos para produzir esta biomassa;

5.- as atividades ligadas à redução do desperdício da energia e da água, à reciclagem de lixos e à reutilização de materiais, bem como à conservação das infra-estruturas, dos equipamentos e do parque imobiliário (uma maneira de economizar o capital de reposição); estes empregos se pagam, ao menos em parte, pela poupança das fontes que trazem;

6.- enfim, os serviços sociais, no sentido amplo do termo, cujo custo para o Estado poderia ser diminuído por meio da pesquisa de parcerias com as organizações da sociedade civil (o privado sem fim lucrativo) e os usuários"([24]).

O Pontifício Conselho “Justiça e Paz”, no documento Para Uma Melhor Distribuição da Terra - O Desafio da Reforma Agrária, alerta para o sentido de urgência ética, de sabedoria política e de justiça social de uma reforma agrária. Pois, no Brasil, ela é uma medida indispensável para enfrentar os problemas sociais imediatos e para promover um desenvolvimento econômico, político, social e cultural centrado na qualidade de vida para todas as pessoas.

“Antes da desapropriação, em geral, o proprietário, numa fazenda típica de 1 000 hectares, por exemplo, contratava de 5 a 6 empregados , sempre por menos do que o salário mínimo. Depois do assentamento, numa área desse tamanho são acomodadas em média 100 famílias. (...) Na pesquisa em âmbito nacional realizada pela FAO, ficou demostrado que, em dois anos, o trabalhador assentado acumula 350% a mais de bens do que tinha no início, quando era sem-terra”. (Depoimento de João Pedro Stédile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra-MST)

Para alguns estudiosos, a questão do desemprego pode ser resolvida também pelo apoio à microempresa. Herbert de Sousa, o Betinho, defendia com muita força esta posição. Em artigo publicado em junho de 1997 - portanto, dois meses antes de morrer -, analisando a questão do desemprego, ele afirmava:

" A microempresa é uma solução política porque tem a dimensão da possibilidade humana. A prova disso é que, de cada 10 empregos criados no Brasil, 6 são oriundos do setor. Não se trata de tornar grande a microempresa, mas de fazer milhares por todo o planeta. A grande empresa é um dinossauro com data marcada para morrer. A microempresa é a vida resistindo e renascendo a cada dia. A microempresa é uma solução econômica porque torna viável, a partir de 1, 5, 15, ou 20 pessoas, uma determinada atividade produtiva. É, portanto, generalizável. A microempresa é uma solução tecnológica porque é capaz de somar simplicidade com complexidade, por meio da inteligência. E, principalmente, por estar ao alcance de cada pessoa que toma a iniciativa e é também uma empresa-cidadã. A microempresa é uma solução humana e solidária, porque é o único caminho existente para gerar trabalho, distribuir renda e estancar o crescimento da miséria".

5.4. A Economia Solidária

A economia solidária parte da convicção de que é possível organizar a produção em larga escala sem ser pelo molde do grande capital. Para isso é preciso encontrar formas de quebrar o isolamento da pequena e da micro-empresa e oferecer a elas possibilidade de cooperação e intercâmbio. A idéia básica é garantir a cada uma um mercado para seus produtos, fontes de financiamento, e ainda a orientação técnica, legal, contábil, etc. através da solidariedade entre produtores autônomos de todos os tamanhos e tipos.

A construção da economia solidária é uma estratégia contra o desemprego e a exclusão social. Ela aproveita a mudança nas relações de produção provocada pelo grande capital para lançar novas formas de organizar a produção com uma lógica contrária à do mercado capitalista. Se a economia solidária se firmar e atingir dimensões significativas, ela competirá com o grande capital em diversos mercados. Haverá, com isso, a possibilidade de escolher entre um modo de produção movido pela concorrência capitalista, e outro, movido pela cooperação entre unidades produtivas de diferentes espécies, ligadas por laços de solidariedade. As pessoas poderão escolher e experimentar formas alter­nativas de organizar sua vida econômica e social

A questão do mercado é o desafio maior para os produtores autônomos. Eles não são conhecidos e não dispõem de uma clien­tela já formada. Diante dessas dificuldades, a solidariedade é a solução racional: produtores autônomos se organizam para trocar seus produtos entre si; isso dá a todos e a cada um a chance de colocar a produção sem ser destruído pela superioridade dos que já estão estabelecidos.

Não basta trabalhar no campo da economia para enfrentar a política recessiva e diminuir o desemprego. É preciso atuar também no plano político. Um exemplo importante, no Brasil, é a criação da Associação Nacional dos Traba­lhadores das Empresas Autogeridas - ANTEAG. Ela procura fazer uma ligação entre luta política e iniciativas das bases nas empresas geridas pelos trabalhadores. Nos EUA existe lei e incentivos fiscais para as empresas que transferem parte ou toda a empresa aos trabalhadores, favorecendo a autogestão, impedindo a perda dos empregos.



[1]. Para toda este ponto cf. Pontifícia Comissão Justiça e Paz. Cf. SALINS, Antoine de, - VILLEROY DE GALHAU, François, Il Moderno Sviluppo delle Ativittà Finanziarie alla Luce delle Exigenze Etiche del Cristianesimo, Pontificio Consiglio della Giustizia e della Pace, Libreria Editrice Vaticana, 1994;
[2]. Le Monde Diplomatique, março 1996, p. 1;   
[3]. Discurso de Fernando Henrique Cardoso, no Colégio do México, Folha de São Paulo, 21-02-96, 1-6;
[4]. SALINS, Antoine de, - VILLEROY DE GALHAU, François, Il Moderno Sviluppo..., op. cit.,  p. 28;
[5]. Revista  Veja nº. 1442, 1-05-96, p. 10;
[6]. HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna, São Paulo, Loyola, 1992;
[7]. RIFKIN, J., op.cit., p. 9;
[8]. Boletim do DESER, Conjuntura Agrícola 63/1995, p. 9-14;
[9]. RIFKIN, J., op. cit., p. 8;  
[10]. AZNAR, G., op. cit., p. 107-108;
11] . HAMMER, Michael - CHAMPY, James, Reengenharia revolucionando a empresa, Ed. Campus, Rio de Janeiro, 1994, 9ª ed., p. 7.
[12]. DELFIM NETTO, Antônio, "Ruído e Desemprego", Folha de São Paulo, 28-02-96, 1-2;
[13] Citado em AZNAR, G., Trabalhar menos...., p. 53;
[14]. Folha de São Paulo, 28-01-96, 1-8; Folha de São Paulo, 21-02-96, 1-6;
[15]. AMADEO, Edward J., "Emprego: não legalizar a precariedade", Folha de São Paulo, 11-02-96, 2-2; Os dados são da pesquisa feita por Gustavo Gonzaga, economista e professor da PUC-RJ e divulgada no Boletim Economia, Capital & Trabalho do Departamento de Economia da PUC-RJ - Gazeta Mercantil, 29-01-96, A 5;
[16]. AMADEO, Edward J., art. cit.;  
[17]. MATTOSO, José Eduardo L., "Desemprego e Relações de Trabalho", Estado de São Paulo, 15-02-96, A-2; Veja acima a citação do exemplo da Argentina e Espanha;
[18]. Flávio Castelo Branco, coordenador adjunto de política econômica da CNI - cf. CEPAT Informa nº. 36-1998, p. 8;
[19]. DIEESE, Anuário dos Trabalhadores 1996-97, p.168;
[20] FIOCCA, Demian, "A mão-de-obra custa pouco no Brasil", Folha de S. Paulo, 14-02-96, 2-2.
[21] GOMES, Ciro - UNGER, Roberto Mangabeira, O próximo passo. Uma alternativa prática ao, Topbooks, Rio de Janeiro, 1996, p. 103.
[22]. A redução da jornada de trabalho aponta para um novo tipo de sociedade. Sem esta visão mais ampla, a redução da jornada torna-se uma mera medida pontual para resolver o problema do desemprego. A redução da jornada de trabalho é muito mais do que isso. Para isto veja: AZNAR, G., op, cit; RIFKIN, J., op. cit.; Gorz, A., op. cit.; ARRUDA, Marcos, "O Fio da Navalha", Prosa & Verbo, Publicação do Sindicato dos Bancários do Vale do Rio dos Sinos, RS, agosto 1996, p. 13; Jacques Robin, Le Monde Diplomatique, mars 1997, p. 4-5, cuja tradução está em CEPAT Informa, 27/1997, p. 10-15; AZNAR, Guy, CAILLÉ, LAVILLE, Jean-Louis, ROBIN, Jacques, SUE, Roge, Vers une Économie Plurielle. Un travail, une activité, un revenu pour tous, Ed. La Découverte & Syros, Paris, 1997;  
[23]. Cf. CEPAT Informa,  nº. 27/1997, p. 7-8;
[24].- SACHS, Ignacy, "Crescimento tem que ser reorientado", Folha de São Paulo MAIS 3-03-96 5-13;

A auto ou a co-gestão não resolve todas as dificulda­des. É verdade que a produtividade aumenta quando os traba­lhadores administram a empresa. Mas é preciso ter muita criatividade e eficiência para vencer os obstáculos, entre eles a falta de experiência gerencial dos trabalhadores. O lucro não é objetivo máximo da empresa autoge­rida. Ela procura, antes, garantir o trabalho. Os trabalhadores se dispõem a fazer sacrifícios, às vezes abrindo mão de salários mais altos, para que todos pos­sam continuar trabalhando. A confiança e a ajuda mútuas são vitais neste tipo de empresa. Não há possibilidade de alguns se beneficiarem em prejuízo dos outros. Os mesmos princípios valem para cooperativas e iniciativas de comércio: para dar certo, a prática da solidariedade substitui a competição.

6. O Terceiro Setor

A sociedade atual vem reconhecendo um “Terceiro” Setor([1]), ao lado do Mercado e do Estado. São atividades que respondem a necessidades que não são rentáveis para a economia de mercado. Não podem ser confundidas com as atividades do setor terciário da economia, que é o setor de comércio e serviços (ao lado da agricultura e da indústria). O Terceiro Setor é um tipo novo de atividades econômicas. Sua característica é a proximidade com a vida e entre as pessoas. Têm o objetivo de cuidar do bem-estar da comunidade, de preservar o meio ambiente, de cuidar da educação, da formação etc. O Terceiro Setor se ocupa de setores abandonados ou pouco valorizados pela economia de mercado: os empregos de proximidade, os empregos relacionados com o meio ambiente, com pessoas que cuidam de idosos e de portadores de deficiências... 

As atividades do Terceiro Setor apontam para o seguinte: o trabalho humano não é só trabalho assalariado. Quanto mais cresce a produtividade do trabalho, mais diminuem os empregos, baixando a qualidade de vida de muitos. As novas ocupações do Terceiro Setor indicam que a sociedade pode tornar-se mais humana e capaz de apostar no futuro. Ele valoriza, inclusive financeiramente, sem que sejam trabalho assalariado, as oportunidades de sustento seguro, de contatos sociais e de desenvolvimento pessoal.

Não falta trabalho. É preciso encontrar meios e caminhos para apoiá-lo financeriramente, redistribuindo a riqueza social. Não dá para negar que nossa sociedade tem grande necessidade de trabalho no setor da preservação do meio ambiente e do território, dos serviços familiares, do cuidado das crianças, dos tóxico-dependentes, dos idosos, do cuidado das cidades, dos pequenas consertos... Precisamos valorizar este tipo de trabalho social útil, sem deixar de lutar pelo mercado de trabalho regular. É necessário valorizar o trabalho social doméstico, a educação dos filhos e outros serviços sociais.

As Igrejas Evangélica e Católica da Alemanha, no documento “Por um futuro de solidariedade e justiça”([2]), nos lembram: "no que diz respeito à solução da crise do desemprego, trata-se, definitivamente, de superar o "predomínio do trabalho assalariado", e reconhecer e sustentar outras formas de trabalho necessário às comunidades. Não se trabalha somente no âmbito das ocupações pagas, mas também em família e nas atividades, assim chamadas, voluntárias. Precisamente no âmbito das igrejas e na vida da comunidade, estas formas de trabalho ocupam um papel importante. Portanto, deve-se prestar uma atenção cada vez maior às formas intermediárias entre o trabalho pago regulado em nível de contratos salariais coletivos, o trabalho familiar e as atividades voluntárias".

É necessário um maior reconhecimento social e político do trabalho familiar - que deve, igualmente, ser reconhecido financeiramente. É prioritário o reconhecimento oficial das atividades voluntárias. Os serviços voluntários e gratuitos poderiam ser recompensados de diversas formas: o reembolso das despesas, a possibilidade de uma formação posterior etc. Os jovens que desenvolvem algum trabalho voluntário poderiam, por exemplo, ser preferidos na busca de oportunidades de estudo, de formação, ou até mesmo privilegiados no mercado de trabalho.

O Terceiro Setor traz consigo a redescoberta do "algo mais" que existe entre o Estado e o Mercado: uma relação nova entre as pessoas; um serviço que é prestado aos outros por causa do valor da  comunidade de vida, do meio ambiente.

 JULGAR

Segunda parte

  

A indignação ética e a palavra libertadora de Deus e da Igreja face ao drama dos desempregados

 Na segunda parte colocaremos frente a frente duas coisas: o que vimos da realidade social, política, econômica e cultural em que vivem os desempregados e desempregadas, e o modo de pensar a sociedade a partir da ética, da Bíblia, da teologia e da doutrina social da Igreja. O que procuramos é o anúncio da sociedade que Deus nos propõe.

Vale a pena recordar os objetivos da CF'99: a) sensibilizar as pessoas sobre a situação dos desempregados e desempregadas; b) denunciar as causas desta situação, centrando a atenção no modelo existente; c) anunciar uma sociedade segundo a proposta do Evangelho; d) buscar perspectivas para superar o desemprego.

Mesmo sem ser completa, faremos uma reflexão em três momentos. Com a luz da parábola dos frutos da árvore boa ou má, buscaremos algumas raízes estruturais que causam o desemprego. Em seguida, a parábola dos trabalhadores desocupados na praça nos ajudará a levantar critérios evangélicos para uma nova relação com o trabalho. Na terceira parte, iluminados pela cena da multiplicação dos pães e peixes, buscaremos caminhos para enfrentar os desafios do desemprego e da situação dos desempregados. Esta reflexão teológica e pastoral procura lembrar-nos de duas coisas: a necessidade da conversão para construir uma sociedade de acordo com o Evangelho e a necessidade da mobilização das energias da sociedade para construir a civilização do amor.

1. É pelos frutos que se conhece a árvore... (Mt 12,33)

               1.1. Os frutos são ruins...

“Ou a árvore é boa, e o seu fruto é bom; ou a árvore é má, e o seu fruto é mau. É pelo fruto que se conhece a árvore... Quem é bom faz sair coisas boas de seu tesouro, que é bom. Mas quem é mau faz sair coisas más de seu tesouro, que é mau!” (Mt 12, 33 e 35).

Vivemos um tempo da história com rápidas mudanças. A produção está sendo feita com tecnologias que precisam cada vez menos mão-de-obra. Muda, com isso, a realidade do emprego e do trabalho. O chamado pleno emprego, com todo mundo trabalhando, está ficando cada dia mais distante. O que essas mudanças significam e tornam possível para as pessoas e para a sociedade? Como entender o desemprego? Tudo isso preocupa a muitos e é assunto de muitos estudos.[3]

O desemprego está atingindo, hoje em dia, a dignidade da pessoa humana, as famílias e comunidades, a sociedade toda. Ele impede a solução de muitos dos problemas que a própria sociedade precisa resolver. A pessoa desempregada sente-se diminuída na sua capacidade de agir. Muitas vezes, por não encontrar trabalho, fica dependente de outros, fraca psicologicamente e cheia de medo. Ela pode até alimentar sentimentos de culpa. Atingida na sua capacidade de produzir e ganhar seu sustento e da sua família, vive dificuldades em suas relações pessoais na família e na participação na sociedade, podendo ser manipulada por pessoas sem escrúpulos.

Existem poucos casos em que o desemprego foi ocasião de criatividade, de maior tempo para ficar com a família, de mudança do tipo de trabalho produtivo. Na maioria das vezes, ele é uma perda sem volta. Chega a ser uma tentação forte para a marginalidade, para a atividade ilegal e para a corrupção social e política. É um desafio muito grande para as famílias, em todas as dimensões da vida. Cria problemas até para os serviços públicos, pois diminuindo os que podem contribuir, a seguridade social se vê sem os recursos necessários para atender a todos.

Na América Latina, o desemprego, que cresce sem parar, vai se tornando caminho quase natural para o empobrecimento, ou para a volta à pobreza. Esta situação foi definida, nos documentos da Igreja, como “desumana” (Med. 11, Puebla 29), “anti-evangélica” (P. 1159), “o mais devastador e humilhante dos flagelos vividos pelo continente latino-americano" (P 29, SD 179a).

A fé cristã vê a situação do desemprego como um dos rostos da exclusão social. Ele dificulta e, muitas vezes, impede a vida digna. Está em clara contradição com o projeto de Deus, descrito no Gênesis (1,26-28). Deus trata a mulher e o homem como sua imagem e semelhança: seres com especial dignidade, com inteligência e compreensão, afeto e amor, vontade e liberdade, responsabilidade e sede de felicidade. O desemprego contraria também o  princípio básico do Ensinamento Social da Igreja: a "destinação universal dos bens", para que todas as pessoas tenham vida digna. Deixando de ser conjuntural, passa a ser uma “situação de permanente violação da dignidade das pessoas" (cf. P. 41), e mesmo uma situação de violência institucionalizada (cf. SRS 37).

1.2. De onde vêm esses frutos?

A pobreza da maioria do nosso povo, causado especialmente pelo desemprego, desrespeita a Constituição da República Federativa do Brasil, em seu artigo 170: “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”. E entre os princípios ditados pela Constituição, no mesmo artigo, vale destacar: soberania nacional, função social da propriedade, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca do pleno emprego. [4]

O desemprego tem várias causas, como vimos na primeira parte, o VER. O que procuramos fazer agora é uma análise, à luz da ética, do sistema neoliberal exacerbado. Este sistema alimenta um tipo de sociedade que não tem como medida de tudo a vida, a dignidade da pessoa e a solidariedade. Por isso, agrava e torna permanente a situação de desemprego, pobreza e exclusão. Preconiza políticas que multiplicam o número de desempregados, aumentam o tempo de desemprego, e até dificultam encontrar um novo emprego; concentram a terra e as rendas nas mãos de poucos; excluem os pobres, considerando as multidões como "inempregáveis" e, por isso, sobrantes. O trabalho humano, que tem por finalidade criar e ampliar a vida com dignidade, é reduzido, por este sistema, a uma mercadoria de valor baixo e humilhante.

Este tipo de neoliberalismo capitalista é iníquo. Sacrifica a dignidade da pessoa humana e a integridade do meio ambiente às exigências cegas do mercado. É iníquo, ainda, porque coloca o dinheiro, na forma de capital, no centro e acima de todas as outras realidades, especialmente do trabalho humano e da própria pessoa humana. De forma astuta, usa princípios psicológicos e religiosos para se afirmar e impor como o único caminho de salvação para o mundo. Procura, com isso, justificar o sacrifício de uma multidão de excluídos como algo passageiro e necessário para se chegar a um paraíso futuro, que viria com o domínio do capital, quando haveria bens para todos. [5]

Este tipo de cultura neoliberal coloca no ringue do mercado o aumento da luta livre entre todos, deixando que os mais fortes e astutos vençam. A cultura da luta livre, sem ética e sem moral, trabalha muito com espetáculos ridículos, com a excitação dos desejos, especialmente da erótica, da sexualidade e da violência. Manipula os valores que dignificam as pessoas e o meio ambiente. Com isso, cresce a insensibilidade em relação à pessoa e a tudo que fere a dignidade humana. Uma insensibilidade importante para que as leis do livre mercado possam funcionar, dando, a qualquer custo, a vitória a quem deve vencer.

1.3. As raízes de um sistema sem coração e idolátrico

A luz da parábola de Jesus sobre os frutos da árvore boa ou má e os ensinamentos proféticos da Igreja nos ajudam a chegar à raiz do fato capitalista. Ele tem como sua raiz má a ideologia, isto é, os dogmas da eficiência e do lucro. Contestar a situação e as consequências, sem mexer com os dogmas, seria ficar no campo da ilusão, do discurso vazio. Não alcançaríamos o mais importante. É fundamental ir à raiz do capitalismo sem freios: a sua compreensão do ser humano a partir da produção e do consumo, não para a satisfação das necessidades humanas, mas da pura excitação dos desejos, que jamais podem ser saciados.

Esta ideologia exalta ao máximo o lucro financeiro, passando por cima da ética e da moral. As pessoas são valorizadas ou condenadas pela sua capacidade produtiva. Umas, ainda necessárias, porque produzem a riqueza de uns poucos. Outras, pelo dinheiro que gastam e pelo espetáculo que são na sociedade. Os incapazes ou os que perderam a capacidade de produzir, bem como a maioria dos portadores de alguma deficiência, vão sendo objeto de feroz exclusão social. Os espertalhões e os sem ética, contudo, vão faturando e consumindo cada vez mais. Os que não conseguem se encaixar no sistema, são excluídos,  desprezados.

No final do século passado, a Igreja, através da palavra do Papa Leão XIII, tomou uma posição de clamor e protesto contra a exploração dos trabalhadores. Um pequeno número de ricos estava impondo um trabalho quase servil. Diante disso, ele denuncia: “explorar a pobreza e a miséria e especular com a indigência são coisas que contrariam as leis divinas e humanas. Defraudar o preço devido ao trabalho é crime que clama ao céu por vingança. Eis que o salário roubado aos operários clama contra vocês e seu clamor chegou aos ouvidos do Deus dos exércitos” (RN n.º 12; cf. Tg 5,4).

O mundo mudou muito, e o progresso torna possível, hoje, atender às necessidades básicas de todas as pessoas da terra. Mas a realidade mostra que a situação da maioria da população mundial continua ruim. Fiel à sua missão, a Igreja precisa tomar partido em favor dos injustiçados, não se omitindo em relação ao que está acontecendo no mundo da economia e do trabalho.

Das muitas palavras da Igreja, destacamos uma condenação firme do capitalismo sem freios éticos feita pelo Papa Paulo VI, na Populorum Progressio, em 1967: ele transforma "o lucro em motor essencial do progresso econômico, a concorrência como a lei suprema da economia, a propriedade privada dos bens de produção como um direito absoluto, sem limites nem obrigações sociais correspondentes" (cf. PP 43-80). Trata-se, portanto, de “um sistema nefasto” (cf. PP 26).

O Papa João Paulo II nos diz que este  sistema econômico está a serviço da idolatria: “por detrás de certas decisões, aparentemente inspiradas só pela economia e pela política, se escondem verdadeiras formas de idolatria: do dinheiro, da ideologia, da classe e da tecnologia” (Solicitudo Rei Socialis, 1987, n.º 38, 6). Isto quer dizer que toda forma de vida e a própria vida humana, só valem alguma coisa se estiverem em função do ídolo. É por isso que crescem, nesta forma de sociedade neoliberal: o desrespeito à vida; formas de exploração e violência contra a natureza e a pessoa humana; a desvalorização do trabalho e a sua substituição pela máquina, sem critérios éticos. Cria-se, assim, uma verdadeira "cultura da morte".

1.4. Por uma indignação ética

A complexa realidade do desemprego nos desafia a pensar, inventar e criar um novo modelo de sociedade. Nesta sociedade, a pessoa humana deverá ser tratada como prioridade, e poderá realizar suas potencialidades com novas formas de ocupação do tempo e das suas energias. É preciso deixar claro, então, que o desemprego é mais do que um problema econômico, fruto dos avanços tecnológicos. É um problema político e ideológico. E não tem solução no atual modelo econômico e político. Na medida em que se reduz o político e o social ao econômico, e este ao financeiro, e este ao monetário, o mercado não só não consegue acertar os desequilíbrios, mas os aumenta e aprofunda. Os frutos desta árvore são desastrosos tanto para a pessoa humana, especialmente para as mulheres e os mais fracos, como para a convivência social e o meio ambiente.

Muitos querem uma forte diminuição do Estado, e que intervenha o mínimo possível no mundo da economia. As relações de trabalho, e do emprego, deveriam ficar nas mãos do mercado "livre", da livre negociação, acima e fora das fronteiras dos países e dos governos. O mercado seria capaz de resolver tudo e criar a justiça necessária.

A realidade, porém, nos revela exatamente o contrário. O sistema atual está se mostrando incapaz de criar empregos. Mais do que isso, está diminuindo o número de postos de trabalho. Outra coisa importante: no livre mercado, os desempregados não têm condições nem apoios para a defesa de seus direitos. É necessário, por isso, um Estado com legislação e com políticas de emprego e renda que defendam os direitos de todos, especialmente dos mais fracos, dos desempregados. A falta destes controles sociais sobre a ganância, a competitividade, o lucro e a força deixa sem proteção grandes grupos sociais. As leis devem marcar o que garante a dignidade das pessoas e das famílias nas áreas básicas da saúde, alimentação, habitação, educação, lazer, direitos humanos...

Diante desta situação social, econômica, cultural e política da sociedade, a Igreja deve aprofundar sua missão profética. Não apenas na linha da crítica, da denúncia, clamor, protesto e condenação. Cabe-lhe igualmente a missão de anúncio, ânimo, esperança, reconciliação e salvação. A mensagem evangelizadora, dada pelo Senhor, não pode ser genérica, desencarnada da realidade de hoje. Nem pode estar aliada à ideologia do mercado, ou omissa em relação a ela. Isto significa que é urgente que a Igreja insista, mais do que antes, na proclamação do Deus da Vida, contra este "deus da morte" - um deus que precisa fabricar e multiplicar os pobres, os excluídos, os desempregados, os sobrantes, os desesperados para manter-se e recompensar seus adoradores.

O eixo central das relações de trabalho e, por isso, da vida econômica e social, está na dignidade da pessoa humana. É isso que nos diz o Concílio Vaticano II: “a dignidade da pessoa humana, com sua vocação integral, bem de toda a sociedade, deve ser respeitada e promovida. O homem, com efeito, é o autor, centro e fim de toda a vida econômica e social” (GS 63). A existência de tantos desempregados e desempregadas é a prova de que estamos num caminho contrário ao desejado por Deus e  relembrado pela Igreja.



[1] .- Por alguns autores também denominado "setor quaternário", para não confundi-lo com o setor terciário que é o setor de serviços - cf. SUE, Roger, La Richesse des hommes. Vers l'économie quaternaire, Odile Jacob 1997. Outros, ainda, como Philippe van Parijs, filósofo e economista belga, o denominam de "economia solidária".
[2]. “Für eine Zukunft in Solidarität und Gerechtigkeit”, in Il Regno 9/97, p. 288 - 320; aqui p. 310;  
[3] VERVIER, Jacques Hilaire: Desemprego: alguns desafios éticos. Revista Eclesiástica Brasileira -REB - Dez 1996, fasc. 224, pp. 830-855. Ed. Vozes, 1996, Petrópolis, RJ.
[4]  O desemprego está ferindo, também, gravemente o artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o artigo 4º do Pacto Interamericano de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, ratificado pelo Brasil em 24/01/92.
[5] cf. VV AA:  Fora do Mercado não há salvação - número monográfico da Revista Concilium, nº 270/1997/2. Ed. Vozes, 1997, Petrópolis, RJ; cf Mo Sung, Jung: Desejo, mercado e religião, Ed. Vozes, 1998, Petrópolis, RJ.

1.5. Por uma sociedade com justiça e solidariedade

É urgente enfrentar esta cultura de egoísmo e consumismo com uma outra cultura. Estamos falando da cultura da solidariedade, da sobriedade e da subsidiaridade. Ela é a favor da vida e da dignidade humana, de uma sociedade justa e solidária, e a favor do meio ambiente preservado. Torna possível um projeto político democrático e solidário. Coloca em primeiro lugar a pessoa humana em suas relações fraternas, e coloca a economia e o mercado a serviço da superação da pobreza. Ela reorganiza as prioridades na geração e distribuição de renda, e cria uma nova relação com o meio ambiente. Ou seja, o que se quer é uma árvore boa que dê bons frutos.

O critério fundamental para medir a qualidade de uma sociedade é a dignidade humana. É justa uma sociedade que defende e promove a dignidade de todas as pessoas. As perguntas básicas estão ligadas com a situação dos pobres e dos mais fracos: em que medida protege os pobres, os enfermos, os mais fracos; como é útil para eles, criando possibilidades de agirem de forma responsável; em que medida cria e facilita laços de solidariedade. A justiça zela para que todas as pessoas tenham seus direitos reconhecidos e para que cumpram com seus deveres. Cuida que todos tenham o suficiente para levar uma vida autônoma, digna, responsável; participem da vida da sociedade e usufruam dos frutos do trabalho de todos; não sofram qualquer tipo de discriminação e tenham acesso à informação, à cultura, à saúde, à educação básica e continuada.

O coração da ética bíblica e cristã é a justiça com solidariedade. Por isso, não só a pobreza, mas também a riqueza deve ser preocupação ética na política e na economia. O desenvolvimento econômico que conhecemos aumenta os rendimentos do capital e prejudica o trabalho e os trabalhadores. Nesta situação, é indispensável que os mais ricos sejam solidários com os pobres, fracos e inferiorizados na hora de repartir a renda, a propriedade e os bens. Só assim estarão assumindo sua responsabilidade social. Isso deve ser feito porque não se constrói estabilidade social sem solidariedade. O abismo entre ricos e pobres gera consequências perigosas para a vida em sociedade. Todos somos muito ligados uns aos outros e com a natureza, e todos partilhamos o mesmo destino. É fundamental, por isso, que as relações entre pessoas, grupos e forças sociais, entre nações e com a natureza sejam regidas pela solidariedade. Ela qualifica profundamente a justiça.

Uma qualidade básica de uma sociedade democrática é a co-responsabilidade. Ela impede tanto independências, quanto domínios paternalistas e dependências assistencialistas. É para isso que se precisa da subsidiaridade. Ela promove a autonomia da responsabilidade pessoal e das pequenas unidades sociais, cada uma com as condições para conseguir auto-suficiência e crescimento; favorece as iniciativas pessoais e grupais; valoriza as capacidades e a criatividade social em favor do bem comum; leva a criar estruturas sociais autônomas e solidárias.

Uma cultura de justiça e solidariedade só é possível com um desenvolvimento que garanta a vida também para as futuras gerações. Precisamos insistir na co-responsabilidade pela criação como um todo. Mas precisamos acrescentar outra qualidade: a sobriedade, na produção e no consumo. Só uma forte disciplina em relação ao consumo torna possível um desenvolvimento sem agressão criminosa à terra, sem criar desertos e sem poluir a água e o ar. E ela exige que a propaganda não continue hipnotizando os consumidores com mil promessas e vantagens. Para que isso aconteça, são indispensáveis decisões jurídicas, econômicas, políticas e sociais, nascidas de um acordo ético e moral sobre os direitos humanos universais, a seguridade social e os direitos da terra.

É urgente construir um novo projeto de sociedade, uma nova árvore com raízes que garantam bons frutos. Ela terá de levar em conta as mudanças tecnológicas do nosso mundo. Não se pode voltar aos tempos da infância da humanidade. E não se pode, ao mesmo tampo, continuar construindo bases da destruição da humanidade: desertificando a natureza, poluindo ar, rios e mares e tratando as pessoas humanas como coisas e objetos descartáveis. Por isso, o objetivo primeiro da nova árvore deve ser a vida com dignidade, a pessoa respeitada e promovida, uma sociedade justa e solidária.

1.6. Globalização e solidariedade

Esta nova árvore só é possível a partir de projetos muito concretos do povo. Pequenas organizações solidárias vão nascendo e se somando, se articulando, construindo laços de fraternidade e de cooperação. Dando importância a valores éticos, elas vão forçando o Estado e as empresas a se humanizarem. É assim, por exemplo, que se deve agir no caso do desemprego: as políticas concretas, como a redução da jornada de trabalho e o trabalho na economia alternativa, devem fazer parte de um projeto maior: a construção de uma nova sociedade. Para isso é fundamental construir uma nova globalização: globalizar a justiça, a solidariedade, a subsidiaridade, as iniciativas e os sonhos que concretizam a caminhada rumo a esta nova sociedade.

Trata-se de um caminho de conversão e de vivência da missão cristã: assumir e testemunhar estes valores, levando-os a mais pessoas, à política, à economia e aos centros formadores da opinião pública. Numa sociedade com forte carga de joio, há campos de trigo crescendo e se fortalecendo; quanto mais se apoiarem e se solidarizarem uns com os outros, mais espaços conseguirão.  (cf Mt 13, 24-30)

Esta nova sociedade aponta para a partilha igualitária e solidária da produção e da renda e para a co-responsabilidade pelo bem comum. É preciso que os bens produzidos sejam repartidos entre todos, e não só entre os que produzem ou conseguem apropriar-se deles. A solidariedade se assenta sobre a dignidade da pessoa, seja ou não produtora. É por isso que é antiético que alguns acumulem capital e renda no mesmo mundo em que muitos não têm o mínimo indispensável para viver.

1.7. Por uma cultura que humanize o tempo

É preciso ter uma nova visão sobre o sentido de emprego, trabalho e tempo livre. Uma nova visão da ocupação do tempo, até agora dominado, em todos os segundos, pelo dinheiro. Esta importante dimensão humana, o tempo livre, passou a ser um sonho proibido. A cultura do dinheiro levou as pessoas a se sentirem culpadas quando não têm todo o tempo ocupado. Chegam a ficar doentes, sentindo-se desvalorizadas por estarem sem emprego ou fazendo trabalhos não remunerados, como é o caso das "donas de casa".

Precisamos aprender a valorizar o tempo livre. Ele nos ajuda a viver a vida em todas as suas dimensões. Precisamos aprender a aplicar este tempo disponível em causas que dignificam a pessoa e fazem a sociedade mais humana: viver com a família; praticar o lazer e o turismo; dedicar-se a trabalhos sociais, culturais e comunitários. Na situação atual, pouco favorável para a maioria, é importante buscar a construção de gestos ou símbolos que apontem nesta direção. O desafio maior é superar a idéia de tempo como mercadoria. É preciso apostar na criação de novos valores, capazes de apoiar um novo tipo de organização do trabalho. A discussão sobre emprego, sobre trabalho e sobre repartição social da produtividade, provocada pela grande transformação tecnológica deste final do século XX, vai ajudar muito nesta direção. E ajudará também o resgate do sentido do sétimo dia e do jubileu, na cultura judaica e cristã.

1.8. Por uma revolução ética

Para construir a nova sociedade é preciso fortalecer as raízes da árvore boa, para que dê bons frutos. Para isso, precisamos:

a) uma reviravolta no modo de entender o trabalho. O trabalho não deve ser visto como castigo. Ou como mão-de-obra injustamente assalariada, algo que se vende e é humilhante para a dignidade humana. Precisamos construir uma noção de trabalho que seja concretização da visão do homem e da mulher como “imagem e semelhança com Deus” -  do Deus que “trabalha” com prazer o universo, criando-o, organizando-o, embelezando-o, tornando-o habitável. Nesta visão, é o ser humano que dignifica o trabalho, lhe dá sentido e o controla.

b) uma revisão atenta das causas do desemprego. A avareza é um pecado capital. Separa a pessoa humana de Deus. E a avareza nos leva à idolatria do dinheiro. Está comprovado que o ídolo dinheiro cria ao seu redor uma situação de pecado social e estrutural, gerador de injustiça. É fundamental, então, atacar diretamente o pecado de idolatria em relação ao dinheiro e seus seguidores. O que deve existir é a primazia da dignidade humana, da justiça e do amor.

c) uma mobilização da sociedade brasileira para definir um novo projeto de Brasil. Ele deve incluir a defesa da produção e do emprego, e um novo modelo de distribuição de renda. É urgente uma revolução nas prioridades, na linha do que foi indicado na 2ª Semana Social Brasileira([1]): não aceitar que todos os problemas da sociedade brasileira se reduzem ao econômico. Não basta estabilizar a moeda. É preciso que a estabilidade da economia sirva à prioridade das prioridades, que é a pessoa humana, garantindo-lhe a satisfação de suas necessidades básicas.

d) a promoção de uma cultura da solidariedade([2]). A resolução da crise social, em que sofrem especialmente os desempregados e as desempregadas, não será apenas obra da economia, mesmo sendo ela muito importante. Esta crise é, antes de tudo, de ordem ética e cultural. Junto com a busca de soluções válidas no campo econômico, está em jogo uma tarefa mais profunda e complicada: fazer acontecer uma revolução ética. Ela é necessária para que possa ter chance uma revolução social a serviço da superação da miséria e da pobreza, isto é, “a serviço da vida e da esperança”. A solidariedade com os pobres é o centro e pedra de toque fundamental de toda cultura.

A indignação ética e teológica diante da situação social dos desempregados e dos demais excluídos nos coloca muitos desafios. Alguns deles são bem práticos: como romper marcas escravizantes da atual  economia e como romper com a idéia de que trabalho é só o emprego. Não se pode mais aceitar que a renda dos cidadãos dependa apenas da quantidade de trabalho que a economia precisa. Não é mais aceitável que o trabalho remunerado seja a fonte principal da identidade e do sentido da vida de cada pessoa.

1.9. Alguns passos

A situação dos desempregados e das desempregadas está exigindo uma nova visão de economia social, de emprego e de trabalho. Indo agora mais ao concreto da vida, uma sociedade inspirada nos valores do Evangelho tornaria possível:

a) que cada mulher e homem, sem discriminação, possa ganhar a vida trabalhando menos, melhor e com mais prazer, o tanto que lhe for bom e conveniente, e recebendo a sua parte da riqueza produzida por toda a sociedade. Tudo o que é produzido, não importa por quem, tem uma hipoteca social, pois todos pertencemos a uma comunidade.

b) que o trabalho possa ser feito por períodos separados, sem perder a renda plena durante as pausas. Numa sociedade que valoriza a solidariedade, isso abre novos espaços para atividades sem fim econômico. São atividades com uma dignidade e um valor muito grandes, para os indivíduos e para a sociedade no seu conjunto[3]: a solidariedade, o voluntariado, a cultura, a oração, a arte...

c) que as pessoas possam trabalhar por conta própria ou em pequenas iniciativas de economia alternativa solidária, tendo garantidos todos os direitos sociais. O fato de alguém trabalhar para seu próprio sustento torna possível que outras pessoas sem estas condições sejam melhor atendidas por toda da sociedade.

d)  que todos os que têm algum tipo de deficiência tenham o apoio da sociedade e do poder público para conseguir trabalhos dignos, adequados à sua condição e sem discriminação de qualquer tipo.

e) que as crianças e jovens tenham garantia de: escola, lazer, saúde, segurança, apoio afetivo, educação em valores humanos e sociais de convivência fraterna e solidária e, em tempo oportuno, a orientação para o trabalho e o engajamento sócio-político.

Questionamentos e esperanças.

Esta reflexão ética e teológico-pastoral é ao mesmo tempo denúncia e indicação de caminhos. Ela tem, também, a tarefa de provocar mais reflexão, mais buscas de caminhos e, particularmente, estimular gestos concretos. Mas existem, é claro, muitas outras questões provocativas. Selecionamos aqui apenas algumas para o debate:

a)           Como deve ser uma sociedade na qual o trabalho de tempo integral de todos(as) os(as) cidadãos(ãs)  não é mais necessária e nem economicamente útil?

b)           Quais são as prioridades não econômicas desta sociedade?

c)           Como deve se comportar a sociedade para que o crescimento da produtividade e a diminuição do tempo de trabalho favoreçam a  todos?

d)           Como se pode redistribuir melhor todo o trabalho socialmente útil, de modo que todos possam, sim, trabalhar, mas trabalhar menos e melhor, recebendo uma parte justa das riquezas socialmente produzidas?

e)           Como canalizar as energias humanas no tempo livre para o exercício da gratuidade em favor da vida,  dos mais necessitados de libertação e amor, na prática de relações humanas construtoras da alegria de viver e em atividades de defesa e promoção do ecossistema?

2. Por quê estais aí parados?

Buscando mais critérios bíblicos e teológicos para o Julgar, procuraremos refletir sobre Jesus trabalhador, sobre a parábola dos trabalhadores desocupados na praça e sobre o sétimo dia e o Jubileu. Caberá a cada leitor e aos grupos enriquecerem os dados e aplicá-los às diferentes situações em que se dá o desemprego.

2.1. Jesus Cristo, modelo da sociedade sem exclusão

A Igreja tem sua razão de ser no seguimento de Jesus Cristo, pessoa, mensagem e missão. E seguir Jesus hoje, nos diz o Documento de Santo Domingo (nº 178), é "fazer o que Ele fez". No Documento de Puebla, os nossos pastores afirmaram que Jesus fez sua a causa dos pobres. Segui-lo, então, é aderir à sua pessoa e "continuar a luta por sua Causa, continuar o seu Caminho, comportar-se diante da história como Ele se comportou, entrar em comunhão de destino com Ele e - muito provavelmente - enfrentar consequências semelhantes às que Ele enfrentou. Seguir a Jesus, no sentido forte da expressão, exige então que se tenha uma leitura histórico-escatológica da realidade, como a dele. A Causa de Jesus - chave do seguimento de Jesus - é o Reino de Deus, e por isso, seguir Jesus é empenhar-se pelo Reino, que é Vida, Verdade, Justiça, Paz, Graça, Amor, neste mesmo mundo e depois da morte. Não se pode seguir Jesus, lutar por sua Causa e não sentir a necessidade de lutar contra a configuração de mundo que nega radical e estruturalmente a utopia de Deus para os humanos".[4]

Este seguimento de Jesus tem que levar em conta um dado importante: Jesus é o filho de Deus que se fez trabalhador, filho do carpinteiro. Antes do "trabalho" da redenção, trabalhou na oficina do pai adotivo José e nas ruas e estradas da Galiléia. Sustentando sua vida, criou condições de vida para seus concidadãos. Ao assumir, depois, a atividade de Rabi, Mestre e Pregador do Reino, continuou o trabalho de outra maneira: não remunerado, mas gratuito; não de um empregado, mas de serviço à comunidade, pregando e vivendo a misericórdia, a atenção e a ação em favor dos mais necessitados. Na escolha dos discípulos, chamou trabalhadores. Com eles e com todos falava a língua de quem conhecia muito bem tanto as várias atividades, quanto a falta delas. O ofício de trabalhador marcou sua vida, sua aparência, sua linguagem. Sua "obra" marcou suas mãos, depois perfuradas pelos cravos. A coroação de seu trabalho foi a Ressurreição: como Deus, na origens, "descansou", assumindo a plenitude da missão cumprida.

Jesus de Nazaré vem confirmar, com sua vida, mensagem e missão, o projeto de amor que a Trindade tem para com o mundo. E especialmente para com as suas criaturas queridas e preferidas, o homem e a mulher. Deus, que é Amor, doação gratuita de si, só pode ter criado a pessoa humana para o amor, para a gratuidade do amor. A mulher e o homem existem, por natureza, em função da doação gratuita de si, na experiência da amizade e do amor, que os encaminham para a comunhão com Deus, para a felicidade. A razão humana e o trabalho, os bens da natureza e os produzidos pela capacidade humana, só podem ser úteis às pessoas se estiverem a serviço do que as dignifica, ou seja, do amor.

Entre as várias parábolas de Jesus sobre a gratuidade do amor e das relações entre as pessoas, encontramos preciosidades como, por exemplo, a do Bom Samaritano e a do Filho Pródigo. Mas por causa do tema da CF-99, “a fraternidade e os desempregados", e do lema, “Sem trabalho... Por quê?!”, destacaremos a parábola dos trabalhadores desocupados na praça. Jesus propõe um novo modo de regular as relações de trabalho, junto com uma solução profundamente humana para a situação dos desempregados. Ele coloca no centro não o lucro que viria com trabalho contratado, mas a satisfação das necessidades de quem trabalha.

Uma nova sensibilidade. “O Reino dos céus é semelhante a um pai de família que, ao romper da manhã, saiu a contratar operários para a sua vinha. Acertado o preço da diária, enviou-os à sua vinha. Saiu também pelas nove horas e viu outros na praça, sem nada fazer. E lhes disse: “Ide também vós para a minha vinha e darei o que for justo”. E eles foram. Saiu de novo por volta do meio-dia e das três horas da tarde e fez o mesmo. E, saindo perto das cinco horas da tarde, encontrou outros que lá estavam e lhes disse: “Como é que estais aqui sem fazer nada o dia inteiro? Eles lhe responderam: “É porque ninguém nos contratou!” Ele lhes disse: “Ide também vós para a minha vinha!”

O critério da solidariedade. Pelo fim do dia, disse o dono da vinha a seu feitor: “Chama os operários e paga os salários a começar dos últimos até os primeiros contratados”. Chegando os das cinco horas da tarde, cada um recebeu uma diária. E quando chegaram os primeiros, pensaram que fossem receber mais e no entanto receberam também uma diária. Ao receberem, reclamavam contra o dono, dizendo: “Os últimos trabalharam somente uma hora e lhes deste tanto quanto a nós, que suportamos o peso do dia e o calor!” E ele respondeu a um deles, dizendo-lhe: “Amigo, não te faço injustiça. Não foi este o pagamento que acertaste comigo? Toma, pois, o que é teu e vai embora. Quero dar ao último o mesmo que a ti. Não posso fazer de meus bens o que desejo? Ou me olhas com inveja por eu ser bom?” Assim os últimos serão os primeiros e os primeiros, os últimos” (Mt 20, 1-15).

O objetivo primeiro de Jesus, nesta parábola, não é social, de relações de trabalho. Nem quer resolver o problema dos desempregados ou dos trabalhadores desocupados. Mesmo assim aparecem alguns critérios que merecem ser colocados em destaque para a questão social: a) do lado dos operários - Jesus faz uma constatação: estão sem trabalho. E não faz juízo de valor: não os culpa pela situação em que se encontram; b) do lado dos empregadores - Jesus também faz uma constatação: eles não contrataram os operários, e por isso estão na praça sem fazer nada. O julgamento, agora, é claro: os operários estão desocupados porque ninguém os contratou. c) Jesus indica a solução - o empregador contrata, combina o preço justo do trabalho com cada grupo, mas valoriza a todos por igual. Paga a todos a mesma diária, tanto aos que foram contratados nas primeiras horas do dia, como aos das últimas horas. Jesus propõe um novo padrão de vida social: unir justiça com misericórdia, justiça com gratuidade.

Temos aqui duas atitudes unidas: a) justiça: o pagamento do salário combinado; b) bondade, misericórdia e gratuidade: o desejo do empregador de ajudar, e de modo igual, a todos que precisam, mesmo os que tenham trabalhado menos horas. É que Jesus parte de novos critérios. Do lado do empregador, por exemplo: gratuidade, generosidade, solidariedade, amor. Ele não parte da sua necessidade de produzir mais, ter lucro, acumular bens. Ele parte da necessidade do operário sem trabalho. Do lado dos operários, Jesus não coloca no centro o mérito dos trabalhadores: uns se julgam no direito de receber mais que os outros. O que vale não é a quantidade de dinheiro por diferentes tempos de trabalho, mas a necessidade básica da pessoa. A pessoa humana não é só capacidade ou incapacidade de produzir e consumir. Ela é sujeito de relações, livre e capaz de amor. Sua dignidade, em qualquer situação em que esteja, exige um relacionamento de acolhida, compreensão, diálogo, perdão e misericórdia.

O que interessa a Jesus é fazer a vontade do Pai e ensinar aos homens e às mulheres que este é o segredo da felicidade. A vontade de Deus é a vida, com dignidade e amor, acima de qualquer outro valor. Esta é a chave de leitura, não apenas dessa parábola, mas de toda a intervenção de Deus na história da humanidade. A medida padrão do Deus bíblico para a felicidade das pessoa humanas está resumida no Mandamento maior: "Amar a Deus sobre todas as coisas” e “Amar o próximo como a si mesmo”, aperfeiçoada por Jesus no "amai-vos como Eu vos amei". Quem cumpre estes dois preceitos consegue construir-se como pessoa humana e construir uma sociedade com justiça, solidariedade, fraternidade, sobriedade, subsidiaridade, progresso e paz. Neste horizonte, o trabalho e as relações de trabalho estão em função da qualidade de vida de cada pessoa, de sua família, da comunidade e de toda a sociedade.

Este não é só o caminho bíblico. Todas as grandes religiões do mundo, e também as grandes filosofias de vida, de uma forma ou de outra, colocam o Amor como o critério absolutamente primordial para a felicidade humana.

2.2. As lições bíblicas do sétimo dia e do Jubileu

A busca da felicidade está descrita na Bíblia de muitos modos. Um deles está na lei do sétimo dia. Ele ilumina nossa meditação sobre o trabalho e o emprego, e sobre a situação dos desempregados e das desempregadas. Deus, nos diz a Bíblia, trabalhou durante seis dias. Trabalhou com sabedoria, sentindo prazer no fruto de seu trabalho: “E Deus viu que era bom!” (Gn 1, 10. 25) e “muito bom” (Gn 1, 31). No sétimo dia, Deus descansou. Durante “seis dias” o trabalho de Deus criou as condições para a vida, e isso lhe deu satisfação.

A teologia judaica lê as primeiras palavras do primeiro livro da Bíblia, “No princípio Deus criou...”, exatamente no sentido de que Deus, antes de mais nada, “cria”. Trabalhar criativamente e prazerosamente é, portanto, prática de Deus. O povo judeu compreendeu que o trabalho e o descanso são parte integrante do fato de viver, pois Deus age e descansa, cria e usufrui, cansa-se e se alegra. A cada dia alegrava-se com seu trabalho que avaliava “bom”. Ao terminar sua obra, Deus festejou, porque tudo “era muito bom”.

O festejar o resultado do trabalho veio acompanhado do descanso. Por isso os judeus passaram a dar um significado muito especial ao sétimo dia, com alguns conteúdos: a) o descanso; b) a intimidade da família (presença de todos no lar); c) o devotar-se a Deus (leitura dos livros sagrados, oração, culto). De sete em sete anos, esta lei do descanso, para as pessoas e para a terra, se estende ao ano todo. É o ano sabático, no qual a terra não pode ser cultivada e o povo e os animais se alimentam do que ela espontaneamente produz (cf. Lv 25, 1-7). A história revela que todos os grupos religiosos que vem do tronco judaico, entre os quais o cristianismo, sempre valorizaram um dia dedicado ao descanso e a Deus (sábado ou domingo), e por isso manifestam forte resistência ao trabalho neste dia.

Ao final de sete vezes sete anos, segundo as orientações do livro do Levítico, acontece o Jubileu. O ano jubilar, ano da graça do Senhor, celebrado portanto a cada 50 anos, começa com o toque da trombeta de chifre de carneiro (yóbbel, símbolo da alegria e justiça). O conteúdo deste ano jubilar, retoma e complementa o que é vivido no sétimo dia e no ano sabático: a) o descanso; b) a intimidade da família; c) o devotar-se a Deus; d) o perdão das dívidas; e) a libertação dos escravos; f) a revisão das propriedades. Esta revisão das propriedades e a reforma agrária são realizadas, segundo os textos do Levítico, com vários critérios bem precisos, tendo como base o próprio agir de Deus e a justiça. O importante é que ninguém explore seu irmão (cf. Lv 25, 8-55).



[1] Setor Pastoral Social, Brasil: Alternativas e Protagonistas. Por uma Sociedade Democrática, Ed. Vozes, Petrópolis, 2a. ed., 1994;
[2] MATTOSO, Jorge,  "Mobilização Social pode evitar desastre", Folha de São Paulo Mais 3-03-96, 5-13;
[3] GORZ, A., op. cit. p. 57: No sentido ver RIFKIN, J. quando fala da economia social capaz de dar um novo sentido ao trabalho que não visa unicamente a produção de mercadorias, mas que seja socialmente útil. RIFKIN, J., op. cit. 240 ss.;  
[4] VIGIL, JM. Seguir Jesus sob o império neoliberal na AL. Em Revista Eclesiástica Brasileira (REB), setembro de 1997, n.º 57. p. 547/548. Ed. Vozes, 1997, Petrópolis, RJ.

O descanso não é apenas a recuperação das forças para trabalhar mais. É a alegria de usufruir, de gozar o fruto do trabalho-criação. O trabalho deixa de ser visto como um castigo e um peso, isto é, como “suor do rosto” (Gn 3, 19). Mais que isso. Ele é resgatado como uma tarefa alegre de Deus ao criar o mundo, de sua Sabedoria divina que sente prazer trabalhando (cf Prov. 8, 23-31), e da situação do homem e da mulher no Éden, onde o trabalho era prazer (cf Gn 2, 4-25). O trabalho é, então, aliviado pela satisfação que causa e pelo prazer que virá no sétimo dia. É como a mulher que, entre as satisfações do amor e do sexo e a dor do trabalho de parto, tudo supera ao ver e ter nos braços a alegria maior, o filho nascido (cf. Jo 16, 21).

A relação do homem e da mulher com a terra, através do trabalho, não é a de dono absoluto e escravizador. O mandato bíblico: “multiplicai, crescei, dominai a terra” (cf. Gn 1, 28) deve ser lido a partir do dono primeiro e maior, que é o próprio Deus. A Sagrada Escritura é insistente sobre este senhorio de Deus: “a terra é minha”, diz o Senhor em Lv 25, 23; “ao Senhor pertence a terra e tudo o que ela encerra!”, rezamos no Salmo 24, 1. É a Deus que o ser humano presta contas de como a trata. Isaías denuncia duramente os que acumulam bens, terra e querem ser donos de tudo (cf Is 5,8). Colocada a serviço do homem e da mulher, a terra não pode ser nem idolatrada, nem demonizada e nem escravizada. O próprio Deus colocou no coração humano um “religioso respeito pela integridade da criação”, conforme o Catecismo da Igreja Católica, n.º 2415. E, além disso, o homem e a mulher encontram na natureza motivação, ajuda e estímulo para a sua relação de intimidade com Deus. É isso que mostram, por exemplo, os Salmos.

Assim, o trabalho é intimidade de amor entre o ser humano e a natureza. Reduzi-lo a uma mercadoria, superexplorá-lo, em nome do capital financeiro, significa romper esta intimidade quase sagrada. Faz do “dominai a terra” um abusar, um destruir. Ou seja, um pecado. Portanto, uma reforma agrária e uma política agrícola, segundo a justiça, e o devido cuidado com o meio-ambiente resgatam as relações do homem com a terra e são, hoje,  importante meio para diminuir o grave problema do desemprego. São, por isso, uma urgência ética.

Temos outro aspecto do Jubileu que é importante para a situação atual de desemprego e exclusão social (cf. Lv 25, 23-55). É o conjunto de leis e orientações sobre o resgate, para diferentes formas de dívida. A questão é tratada através de casos muito concretos, para os quais o direito do resgate tem de ser reconhecido e executado. Assim, por exemplo, deve ser resgatado o irmão ou parente empobrecido que fica devendo; a terra ou casa penhorada; o judeu escravo de estrangeiro; os parentes pobres forçados a se tornarem escravos de outros parentes melhor situados, mas que não podem ser tratados como escravos. E se não houver nenhum jeito de resgatar alguém, Deus obriga que essa pessoa fique livre de todas as suas dívidas no ano jubilar (cf. Lv 25,54). Percebemos que há, portanto, um limite de tolerância por parte de Deus frente situações injustas praticadas pelas pessoas, em sua condição de pecadoras.

 

* Que significa “resgate das dívidas sociais”, no caso concreto dos desempregados e das desempregadas?

* Como a sociedade e o estado devem agir com a dívida que contraem com eles e elas, por não criar oportunidades de  emprego?

* Como ficam os desempregados e as desempregadas com as suas dívidas pessoais, se não têm como pagá-las?

* Como rezar, no Pai Nosso, “perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, se não assumimos realmente a luta pela justiça social?

O fundamento e a motivação para estas leis e orientações é o próprio Javé e a sua justiça: “Porque eu sou o Senhor, vosso Deus, que vos libertou (resgatou) do Egito” (cf. Lv. 25, 38); “Porque a terra é minha e por isso não pode ser vendida” (cf. Lv. 25, 23); c); “O teu irmão empobrecido não pode ser vendido e nem tratado como escravo porque são meus servidores e eu os libertei do Egito” (cf. Lv. 25, 42, cf Lv 8-55); d); “Porque é a mim que os israelitas estão servindo e são meus servidores porque os libertei do Egito” (cf. Lv. 25, 55). Quem luta para encontrar solução para esta terrível crise do desemprego se assemelha a Deus, que resgata, liberta, salva.

Na revelação e realização do Projeto de Deus para as pessoas e a sociedade, impressiona o realismo com que os profetas defendem a pessoa humana, especialmente o empobrecido, escravizado e excluído. É o caso do Profeta Isaías. Ele denuncia, a um povo marcado pela religião, que a oração é falsa se não vem acompanhada da justiça para com o pobre. Isaías diz que Javé detesta as festas sagradas, o culto religioso, os cânticos e as ofertas, quando as mãos dos que dele se aproximam estão manchadas de sangue, corrupção e desprezo para com os pobres (cf. 1,11ss). O jejum que agrada a Deus é soltar as algemas injustas, desatar as amarras das cangas, dar liberdade aos oprimidos, despedaçar todo e qualquer jugo, repartir o pão com o faminto, acolher em casa os pobres sem teto... (cf. 58, 1ss) Denúncias desse tipo são repetidas por quase todos os profetas.

À luz desta Palavra, portanto, não pode ser considerada religiosa a pessoa que não cumpre a justiça; não promove os Direitos Humanos; é corrupta; é omissa frente o sofrimento de qualquer pessoa; não colabora para que todos tenham o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas e para uma vida digna.

O Verbo divino, que se fez carne e armou a sua tenda entre nós (cf.  Jo 1,14), não usou  para si o fato de ser igual a Deus, mas aniquilou-se, esvaziou-se a si mesmo. Assumiu a condição humana, apresentando-se como um simples homem e, mais ainda, como um escravo. Ele humilhou-se a tal ponto que se fez obediente até à morte, morte de cruz (cf. Flp 2, 6-8). Nascido em família pobre, na gruta de Belém, Jesus de Nazaré trabalhou com suas próprias mãos, desde pequenino, para conseguir, como todo ser humano, o pão de cada dia. O duro trabalho em casa, na carpintaria, no plantio, na colheita e na pesca lhe deram um grande conhecimento dos usos e costumes de seu povo. E Ele utilizou-se deles para cumprir sua missão de comunicador do Plano do Pai para a salvação da humanidade.

Como todo judeu fiel, Jesus, além do trabalho, dedica tempo à família, a Deus e à comunidade. Está no meio do povo, participa das festas, visita amigos, vai à Sinagoga e ao Templo. Observa e analisa as situações e delas tira lições de vida. Em várias de suas parábolas Jesus inclui trabalhadores, operários, desempregados, e por diversas vezes se refere à conflitiva relação de trabalho. Aos poucos confronta a realidade, que vê e observa, com a vontade de Deus, seu Pai. Descobre e denuncia os desvios que o pecado causou no coração do homem e da mulher, nas relações humanas primárias, nas relações sociais, no uso dos bens e do poder. Repropõe o projeto do Pai. Oferece o caminho da conversão. Encontra resistência. É coerente face ao perigo da morte. Oferece-se, doa-se como resgate, como libertação.

Jesus se encontra no meio de um povo profundamente religioso, mas dominado por líderes religiosos que manipulam a religião para interesses próprios. O processo de comunhão com Deus tinha sido desfigurado. Em nome do próprio Deus pessoas eram desprezadas, caluniadas, perseguidas, torturadas, escravizadas e mortas. Jesus se defronta todo o tempo com esta dolorosa situação. E evidentemente reage, criando fortes conflitos.

No caso do trabalho, algumas interpretações dos líderes religiosos não favoreciam a defesa da vida e da dignidade humana, essenciais no projeto do Pai. Além do pagamento fiel da diária ao operário, pois dela depende para sobrevier, Jesus condena que o sábado seja usado em prejuízo do bem a uma pessoa. Fica assim condenada qualquer lei, costume, tradição e ato religioso que não coloque em primeiro lugar o Senhor, a vida, a dignidade humana, os direitos da pessoa, a justiça, a solidariedade e o amor. Não basta dizer “Senhor, Senhor!”. É essencial fazer a vontade do Pai, que exige para todos os seus filhos e filhas “vida e vida em abundância”.

2.3. Os critérios do Reino de Deus para a nova sociedade

Jesus dá o nome de Reino de Deus ao projeto do Pai sobre a pessoa humana, a sociedade e o mundo. Ele o propõe de muitas formas, como na parábola dos trabalhadores desocupados na praça. É assim que Ele cumpre o seu projeto messiânico, assumido na sinagoga de Nazaré através da leitura de Isaías 61,1-2 (Lc 4, 16-21). O Reino do Pai, anunciado por Jesus, pelo qual ele dá a vida, tem uma dimensão espiritual, mas acontece “hoje” e aqui na terra, na vida concreta das pessoas, na vida do povo. Sua realização total acontecerá na eternidade feliz.

Segundo o evangelista Mateus, o Messias-Cristo reina aqui na terra e governa um povo que existe, cresce e atua nesta terra. As parábolas mostram que a presença do Messias no meio do seu povo significa o Reino de Deus acontecendo. Jesus é o Reino em pessoa. Os milagres são sinais da vitória de Deus, por meio de Jesus, sobre o pecado e sobre todas as suas conseqüências. Em especial, vitória sobre o tratamento indigno dado à pessoa humana, sobre a corrupção religiosa e política, a fome, as doenças, a injustiça e a morte.

O Reino de Deus não é, segundo Mateus, algo apenas mental, intelectual, interior à alma humana. Os judeus não entendem essa separação entre alma e corpo. Os bens prometidos por Jesus ao novo Israel do Messias são de natureza material e visível: “herdarão a terra” (Mt 5,5); “serão saciados” (Mt 5,6). E os bens, dados pelos Messias, referem-se, também, a realidades visíveis, materiais (Mt 11,4-5; 12, 18-21). A CF-99, sobre desempregados e sobre trabalho, nos ajuda a dar o devido destaque à missão de construir o Reino de Deus, já aqui na terra. A busca de solução para a situação dos desempregados é parte integrante desta missão.

O Sermão da Montanha (cf Mt 5, 1-26) retoma e aperfeiçoa a Lei apresentada por Moisés no Monte Sinai e defendida em sua pureza pelos profetas. Jesus não vem abolir a Lei e os Profetas. Vem levá-los à perfeição (cf. Mt 5, 17-19). E esta perfeição, marca registrada do seu povo, é o cumprimento da justiça: “bem-aventurados os famintos e sedentos de justiça, porque serão saciados” (Mt 5, 6); “se a vossa justiça não for maior do que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus!” (Mt 5, 20).

A justiça, segundo Jesus, é essencialmente misericórdia. Ele, o Messias, declara: “quero misericórdia e não sacrifício” (Mt 9.13). E misericórdia, na visão bíblica, é uma atitude maternal, de acolhida, aconchego, vida. É isso que Jesus testemunha quando, olhando para o povo, exclama: “Tenho compaixão deste povo, pois parece ovelhas sem pastor!” (Mt 9, 36). Ele compartilha da dor do povo, da sua perda de vida e de sentido da vida, e procura meios para ajudá-lo a encontrar saídas para esta situação dolorosa. Não é possível ser cristão e não se sensibilizar e se organizar para praticar esta compaixão evangélica pelo povo sofrido, e nesta CF, pelos desempregados.

A misericórdia inclui perdão, até 77 vezes (cf. Mt 18, 21-22). Como o Pai perdoa, os discípulos devem perdoar. A medida do perdão de Deus é a mesma que usamos para com outros: “perdoai as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores” (Mt 6, 11; cf Lc 11,4) e “se perdoardes, Deus vos perdoará também” (Mt 6, 14-15). Mateus usa as palavras gregas “dívida” e “devedores”, ligados à dimensão econômica da vida (Mt 6, 12). Lucas usa, primeiro, a palavra "pecado", com um sentido moral, e depois a palavra "dívida", com sentido econômico (Lc 11, 4). Pedir perdão das dívidas, na oração do Pai Nosso, é pedir condições para manter a vida e a dignidade. Se não perdoarmos, Deus nos fará pagar até o último centavo que lhe devemos. É isso que ensina Jesus na parábola do empregado cruel, que foi perdoado de uma dívida muito grande, mas não quis perdoar uma dívida pequena de um colega (Mt 18, 23-35). E o perdão que Jesus exige é "de coração", com a gratuidade do amor (cf. Mt 18, 35).

No tempo de Jesus, ter uma dívida significava o risco de tornar-se escravo, ou de vender os próprios bens e até parentes. Portanto, ao rezar o Pai Nosso pedimos a Deus a graça de não cairmos na escravidão por causa das dívidas; e para isso garantimos que não escravizaremos ninguém que nos deve algo.

 É muito importante aplicar critérios éticos e teológicos em relação à dívida internacional e interna, que tanto mal está fazendo aos países endividados

* Quais os critérios que devem comandar a discussão e a busca de solução para este grave problema que é a dívida  internacional, que torna alguns povos escravos não declarados de outros?

* Como o povo deve tratar esta questão da dívida interna, para que não haja setores da população escravos de outros?

A prática concreta de amor aos pobres é o critério-chave para o julgamento final de cada pessoa, feito por Deus: “Porque eu estive com fome, com sede, sem roupa, sem onde ficar, enfermo e você de mim cuidou... ou... e você de mim não cuidou!” (Mt 25, 31- 46) Para nós, que temos o privilégio e a responsabilidade da fé, é claro que as vítimas do sistema idolátrico e injusto de hoje devem ser os alvos primeiros de nossa missão. Estas vítimas, e entre elas estão os desempregados, serão nossos juizes no Julgamento Final.

Maria foi elogiada por Jesus quando disse que ela é sua mãe porque faz a vontade do Pai. E ela nos faz o convite: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (cf. Jo 2, 5). Segundo Maria, isso se torna realidade quando, ao louvar com alegria ao Deus da vida pelas suas maravilhas na história pessoal e social, derrubamos os poderosos e elevamos os humildes, despedimos os ricos de mãos vazias e saciamos de bens os famintos. Isso acontece ainda no gesto concreto do vinho para a festa, de modo especial para os mais pobres. É o vinho novo da alegria que vem da presença libertadora de Jesus. Uma presença que se realiza no gesto concreto da partilha do pão, da água e da roupa, do acolhimento e da visita (cf. Mt 25, 31-46). No “fazei o que ele vos disser” está a construção de uma nova sociedade segundo o projeto do Pai, proposto por Jesus Cristo e sempre lembrado pelo Espírito Santo à Igreja e ao mundo, por muitos e variados sinais. E isso exige, então, que seja construído um sistema econômico-socia que garanta vida digna para todos.

Maria, no seu canto Magnificat, repropõe o Projeto do Pai, com profunda mudança interior das pessoas e nas relações sociais. Por exemplo: a) no mundo da política e de economia - ao dizer que Deus realizará a justiça derrubando dos tronos os poderosos e elevando os humilhados, despedindo de mãos vazias os ricos e saciando de bens os famintos (cf. Lc 1, 51-53); b) no mundo da ideologia - ao dizer que Deus “dispersa os orgulhosos pelos pensamentos de seus corações” (cf. Lc 1, 51); c) no conceito de história - ao dizer que Deus cumpre sua promessa “conforme prometera aos nossos pais, a Abraão e à sua descendência para sempre” (cf. Lc 1, 55), que “sua bondade se estende de geração em geração sobre aqueles que o temem” (cf. Lc 1, 50), e que Deus “se lembra de sua bondade” e por isso “vem em socorro de Israel” (cf. Lc 1, 54).

Nosso Deus assume o dia a dia da história e é presença providente e misericordiosa nela. Ele a torna história de salvação, e quer que seja tecida de relações humanas de justiça e solidariedade; relações que não permitam a ninguém explorar outras pessoas, e nem que exista qualquer espécie de exclusão. Para que isto aconteça, Deus não admite pensamento orgulhoso. Ou seja, não admite a ideologia do egoísmo idolátrico, individual ou de todo o sistema.

3. Dai-lhes vós mesmos de comer! (Mt 14, 14-21)

                Continuando a busca de critérios para um julgamento ético e teológico sobre a realidade geradora de desemprego, pobreza, exclusão, meditaremos agora sobre as atitudes de Jesus, a opção preferencial pelos pobres e a Doutrina Social da Igreja. A proposta é a civilização do amor, seguindo o exemplo das comunidades cristãs primitivas e da Trindade Santíssima. Este terceiro momento já nos encaminha para as pistas de ação.

  3.1. O critério da misericórdia libertadora

                A prática e a palavra de Jesus nos ensinam a aproximar-nos da realidade com o coração aberto às situações humanas. Isso nos ajuda a captar as necessidades e o clamor das pessoas que ali se encontram. E podemos tomar diversas atitudes. Podemos reagir: dando resposta a uma grande provocação. Podemos ser acomodados: quando nos adaptamos, nos acomodamos à situação, e deixamos estar para ver como fica. Podemos fugir: fazendo questão de não se dar conta do que está acontecendo, ficamos insensíveis, renunciamos a um possível compromisso. Mas podemos ser pró-ativos: tomando iniciativa antes que algo ruim aconteça, ou fazendo acontecer algo bom.

                Tomemos apenas um exemplo concreto. Lemos no Evangelho segundo São Mateus: “Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e, sentindo compaixão, curou seus enfermos. Chegada a tarde os discípulos se aproximaram dele e lhe disseram: “Este lugar é deserto e já passou da hora. Despede o povo para que possa ir às aldeias comprar alimentos”. Jesus, porém, lhes respondeu: “Não há necessidade de irem embora. Dai-lhes vós mesmos de comer!” Os discípulos disseram: “Mestre, aqui nós só temos cinco pães e dois peixes!” Jesus lhes disse: “Trazei-os para cá!”. E mandando a multidão sentar-se na relva, tomou os cinco pães e dois peixes, levantou os olhos para o céu, deu graças e partiu os pães e os deu aos discípulos e estes à multidão. Todos comeram e mataram a fome. Depois recolheram as sobras, doze cestos cheios de pedaços de pães. Os que comeram eram cinco mil homens sem contar as mulheres e as crianças”.

                O texto de São Marcos sobre a mesma cena introduz dois detalhes interessantes: a quantidade de dinheiro que seria necessário para comprar pães para a multidão e a formação de grupos de cinqüenta ou cem pessoas para a partilha dos pães e peixes[1].

                Por que esta prática de Jesus em nosso texto sobe a situação dos desempregados e das desempregadas numa economia de livre mercado? Porque a globalização da economia de mercado nos faz viver também na globalização dos problemas sociais e na globalização da insensibilidade. O Evangelho da multiplicação dos pães ilumina nosso esforço para enfrentar este grave problema. Jesus vê a realidade da multidão e se deixa sensibilizar: “ficou tomado de compaixão porque eram como ovelhas sem pastor” (Mc), “teve compaixão” (Mt).

                Jesus não fica só no sentimento. Ele age e passa a ensinar (Mc) e a curar os enfermos (Mt). Este fato aconteceu em dia de semana. Portanto, muitas pessoas da multidão deviam estar sem emprego, e por isso podiam estar com Jesus. É interessante notar que os evangelistas fazem questão de distinguir mulheres, crianças e homens. Os homens, que na cultura da época deviam estar trabalhando para sustentar a família, são cinco mil. Aquela multidão de desocupados e sem rumo, fere a sensibilidade de Jesus e dos seus discípulos.



[1] cf. MO SUNG, Jung: Desejo, mercado e religião - Ed. Vozes, 1998, Petrópolis, RJ.

Ao perceberem a hora avançada e a fome aumentando, os discípulos procuram Jesus e pedem que despeça a multidão. Sabem, por experiência própria, que poucos têm condições de comprar comida. É preferível mandá-los todos embora. Que cada um se vire. Longe dos olhos dos discípulos, para que não sintam culpa pela impotência de resolver os problemas. A atitude de Jesus, porém, é bem outra. Ele não aceita a omissão e a fuga. Interpela diretamente os discípulos sobrea solução do problema. Jesus mobiliza a solidariedade e a partilha, e o milagre acontece. Todos matam a fome e, sob orientação de Jesus, recolhem os pedaços, pois a alimentação é sempre sagrada.

                A Igreja primitiva colocou a solidariedade e a partilha como o modo prático de viver a fé cristã, o seguimento de Jesus. São Lucas apresenta, em Atos 2, 42-47 e 4, 32-37, uma síntese de como viviam as primeira comunidades cristãs: o amor levava a uma tal partilha dos bens que entre eles não havia nenhum necessitado (Lc 4, 34). Esta prática acompanhou fortemente os primeiros séculos da Igreja. Além da prática, temos ensinamentos muito ricos dos Padres da Igreja, primeiros teólogos do cristianismo. Na fidelidade ao Evangelho, falaram palavras duras contra todo e qualquer tipo de egoísmo, acumulação de bens, exploração do outro, injustiça. Assim, por exemplo, na questão das relações de trabalho eles condenam as diferenças de classe, que fazem os ricos explorarem os mais pobres através de salários iníquos.

                Dos muitos Padres da Igreja, citamos São João Crisóstomo. Ao comentar o Salmo 18, refere-se ao rico que morre e deixa casa de luxo: “Com quantas lágrimas não se edificou esta casa! Quantos órfãos não terão ficado nus! Quantas viúvas não terão sofrido iniqüidades e quantos operários não terão sido lesados em seus salários!” (Migne em Grego - MG 55,517). Em seu comentário sobre o Evangelho de S. Mateus, ao falar dos donos de terra, este santo diz: “E quanto aos que possuem campos e tiram de lá a sua riqueza? Pode haver alguém mais iníquo do que estes homens? Se analisarmos como tratam os míseros e esforçados lavradores, concluiremos que são mais cruéis que os bárbaros. Impõem exigências contínuas e insuportáveis aos que estão consumidos pela fome e passam a vida trabalhando, sendo obrigados a suportar os mais penosos trabalhos...” (MG 58, 591). Um pouco mais adiante, acrescenta: “Espetáculo miserável! Depois de trabalhar durante todo o inverno, depois do gelo, das chuvas e das vigílias, os trabalhadores são mandados embora, com as mãos vazias e, ainda por cima, cheios de dívidas...Quem poderá descrever os negócios que se fazem com eles, enquanto seus patrões enchem seus celeiros à custa do trabalho e do suor daqueles infelizes? Todo o fruto se destina a encher seus tonéis de iniqüidade!...” (MG 58, 592).

                A história nos mostra que a Igreja é santa e pecadora. Uma parte bem significativa chegou a aliar-se aos poderosos e cometeu injustiças - das quais, agora, no Jubileu do Ano 2.000, ela pede perdão. Uma outra parte, também significativa, liderada por santos e mártires, se colocou ao lado dos pobres, oprimidos e injustiçados de todos os tipos. Mas é a partir do final do século passado, com o Papa Leão XIII, que a Igreja retoma os ensinamentos e as atitudes dos profetas, de Jesus, dos santos e mártires frente aos problemas sociais. Cresceu a consciência da importância da economia e das relações de trabalho na sociedade. E com isso foi sendo aprofundado, no século XX, o Ensinamento (Doutrina) Social da Igreja, com ricos pronunciamentos oficiais em forma de Encíclicas, cartas e outros documentos.

                A Igreja reconhece que, como seres humanos, necessitamos da economia. Os progressos nos sistemas de produção e na troca de bens e serviços tornaram a economia um instrumento capaz de responder às necessidades de toda a humanidade. Mas, a situação de gritante injustiça aumentou muito, principalmente em nosso século. Isso levou a Igreja a concluir que há motivos de sobra para uma forte inquietação e indignação ética e profética, e para propostas muito precisas.

                No documento Gaudium et Spes, o Concílio Vaticano II, em 1965, nos diz: “Não poucos homens... parecem como que dominados pela realidade econômica, de tal modo que toda a sua vida pessoal e social é impregnada de um certo espírito de lucro... No momento em que o progresso da vida econômica, dirigido e coordenado de maneira racional e humana, poderia diminuir as desigualdades sociais, com muita freqüência ele se torna agravamento das desigualdades sociais ou também, cá e lá, fator de piora da condição social dos fracos e de desprezo dos pobres. Enquanto uma enorme multidão tem ainda falta de coisas absolutamente necessárias, alguns, mesmo em regiões menos desenvolvidas, vivem na opulência... O luxo e a miséria existem simultaneamente. Enquanto poucos gozam do máximo poder de decisão, muitos carecem de quase toda a possibilidade de iniciativa pessoal e de responsabilidade de ação, encontrando-se muitas vezes a pessoa humana em condições indignas de vida e de trabalho” (GS 63).

                A Igreja da América Latina procurou aproximar-se, como Moisés (cf Ex. 3 e 4), da sarça ardente da realidade de seus povos. Em 1968, em Medellin, iluminada pela luz da Sagrada Escritura e dos ensinamentos do Concílio Vaticano II, ela ouviu “um surdo clamor que brota de milhões de homens, que pedem aos seus pastores uma libertação que não lhes vem de parte alguma” (Medellin, Pobreza, 2). Este clamor é sentido, dez anos depois, em Puebla, como: ”um clamor que sobe ao céu, irrefreável e ameaçador” (Puebla, 87-89).

                Sensibilizada, mas com  tentações de resistência e fuga, assumiu a mesma decisão de Javé, frente a escravidão que o povo vivia: “Eu vi a opressão de meu povo no Egito. Eu ouvi os gritos de aflição diante dos opressores. Eu tomei conhecimento de seus sofrimentos. Desci para libertá-los das mãos dos egípcios e fazê-los sair desse país para uma terra boa e espaçosa, uma terra onde corre leite e mel... O clamor dos israelitas chegou até mim. Eu vi a opressão... E agora vai, que eu te envio para que libertes o meu povo!” (Ex 3, 7-10) Aos poucos, a Igreja foi redescobrindo na prática, na sua experiência libertadora, o Projeto Messiânico de Jesus (cfr. Lc 4, 12-25) e o conteúdo do Julgamento Final (Mt 25, 31-46). Isso foi dando firmeza à sua evangélica opção preferencial pelos pobres, convencida que sem esta opção ela não é fiel a Jesus. Uma convicção, porém, que se expressa e cresce por meio de práticas concretas.

  3.2. O critério da "opção preferencial pelos pobres"

                Estamos chegando ao Jubileu dos 2.000 anos do nascimento de Jesus Cristo. Isso leva a Igreja a se sentir provocada em sua fidelidade ao Senhor Jesus e ao seu Evangelho. Na carta em que em que convoca para este Grande Jubileu, o Papa João Paulo II dá prioridade à questão social e assim fala da preparação ao ano 2.000: “Nesta perspectiva e recordando que Jesus veio “evangelizar os pobres” (Mt 11,5; Lc 7, 22), como não sublinhar com maior decisão a opção preferencial da Igreja pelos pobres e os marginalizados? Antes, deve-se afirmar que o empenho pela justiça e pela paz, num mundo como o nosso, marcado por tantos conflitos e por intoleráveis desigualdades sociais e econômicas, é um aspecto qualificante da preparação e da celebração do Jubileu. Assim, no espírito do livro do Levítico (25, 8-12), os cristãos deverão fazer-se voz de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como um tempo oportuno para pensar, além do mais, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações” (TMA 51).

                O Projeto de Evangelização Rumo ao Novo Milênio (PRNM) aplica ao Brasil a carta do Papa João Paulo II, Tertio Millennio Adveniente. Coloca em destaque a luta pelos direitos humanos, assim distribuídos: os civis em 1997, os sociais em 1998 e os direitos econômicos em 1999. Portanto a CF-99 é uma prática mobilizadora de todo um processo de luta pelos direitos econômicos, por uma sociedade justa e solidária. Esta luta é parte essencial do projeto de evangelização deste final de milênio e da avaliação da fidelidade da Igreja ao Senhor Jesus.

                A solução do gravíssimo problema da divida externa dos países pobres é, para a Igreja, um dos pontos fundamentais dos direitos econômicos. Cancelada a dívida, os recursos que não mais serão enviados aos credores devem ser aplicados pelos países devedores diretamente na área social: educação, saúde, moradia, alimentação, transporte, geração de emprego, etc. Para garantir essas políticas sociais, é necessário realizar mudanças profundas no modelo político, econômico e social. Só assim será possível mudar as relações de trabalho, gerar mais postos de trabalho remunerado e ocupar o tempo livre no crescimento pessoal e na  pesquisa, em cultura e lazer, em serviços comunitários, principalmente em benefício dos mais pobres etc. Em todos os trabalhos sociais, a solidariedade e a participação são valores e meios fundamentais para a construção de uma sociedade assentada na justiça.

                O drama dos pobres vem se agravando muito rapidamente neste final de milênio. Junto com o aumento do desenvolvimento tecnológico e da riqueza material a favor de alguns, aumenta o empobrecimento de muitos. Isso é causado também pelo esquecimento ou pela marginalização de Deus, e pela busca quase doentia de alguma expressão religiosa (cf. TMA 52). O interesse religioso é crescente também entre os pobres. Isso se deve ao sofrimento em que se encontram e às injustiças que os atingem. Está provado que os efeitos dessa situação religiosa caem, de modo particular, sobre os mais pobres. Além de serem explorados econômica, política e socialmente, passam a ser explorados religiosamente. E isso é feito tanto por grupos que atraem e prometem soluções aos problemas sociais através de milagres, como por grupos que injetam nos pobres a mística do sofrimento, que seria necessário para não piorar a situação do mundo atual e para preparar dias melhores, que viriam com o crescimento econômico. É a idéia do bolo, que um dia seria repartido. Esta religiosidade alienada e alienante é mais um crime contra o povo, pois o torna passivo, resignado, dependente, dominado e sem esperança.

                A CF-99 encontra mais um forte apoio na Tertio Millennio Adveniente, do Papa João Paulo II: “Cristo, na própria revelação do mistério do Pai e do seu amor, revela o homem a si mesmo e descobre-lhe a sua vocação sublime” (GS 22), que é a de construir “a civilização do amor, fundada sobre valores universais de paz, solidariedade, justiça e liberdade, que encontram em Cristo a sua plena atuação” (TMA 52). Esta Civilização do Amor nasce e cresce na força da fraternidade e da solidariedade. E exige a acolhida do outro, seja quem for, o diálogo interpessoal e com grupos diferentes, o diálogo com religiões e culturas diferentes, e o serviço a favor da vida, da justiça e da paz (cf. TME 53). Não existe possibilidade de civilização do amor sem uma teologia, uma espiritualidade e uma pastoral que nos comprometam profeticamente na libertação integral das pessoas, e nos apontem um novo modelo de civilização, fundado no testemunho, na palavra e no exemplo radical de Jesus.

                Os três anos de preparação do Jubileu do Ano 2.000, e o próprio Jubileu, estão centrados na celebração da Trindade Santíssima. A vida e o agir das pessoas têm seu começo, razão de ser e fim na felicidade infinita, eterna e total da Santíssima Trindade. S. João a define como Amor: “Deus é Amor” (1Jo 4, 8). Sem a mínima sombra de egoísmo, a Trindade Santíssima é o exemplo pleno do amor criador, providente, cuidadoso, misericordioso, libertador. É comunidade perfeita e, por isso, reciprocidade, doação. O Pai criador, o Filho redentor e o Espírito santificador agem para tornar os homens e as mulheres participantes de sua felicidade. Não há entre eles subordinação, conflito de liberdades, anulação de identidades, e um não escraviza e nem explora o outro.

Segundo Jesus, as relações humanas devem inspirar-se nas relações da Trindade Santíssima. Seguir Jesus é, portanto, relacionar-se filial e confiantemente com o Pai; deixar-se ungir e conduzir pelo sopro amoroso do Espírito Santo; e colocar-se ao lado de Jesus, com a sua comunidade, na construção do Reino do Pai. Nesta visão teológica, as relações de trabalho devem colocar em prioridade o ser humano. O trabalho serve para que o ser humano se construa como gente e ajude o mundo a caminhar segundo o coração do Senhor.

  3.3. O critério da convesão

                Diante da realidade cruel de injustiça, o Conselho da Igreja Evangélica da Alemanha e a Conferência Episcopal Alemã nos dizem[1]:  “As igrejas pedem que seja reconhecida a validade da solidariedade e da justiça como regras decisivas de uma política econômica e social com capacidade de futuro e durável” (...) “A solidariedade e a justiça constituem de fato o coração de toda ética bíblica e cristã” (cf. op. cit., n.º 2). Para se chegar a isso é urgente fazer um processo de conversão por amor à vida, ao futuro da humanidade, ao futuro do planeta terra. E a solidariedade e a justiça, que devem existir nas famílias, na vizinhança, na pequena comunidade local, produzirão maiores frutos se atingirem o mundo todo. Serão fonte da globalização positiva das relações sociais, políticas, econômicas, culturais e ecológicas. “É uma autêntica heresia crer que uma economia de mercado sem tais deveres, uma economia de mercado por assim dizer sem adjetivos, possa responder melhor aos desafios terríveis da realidade atual” (cf. op. cit. n.º 11).

                A própria Igreja, que propõe esta mudança social, precisa passar por um processo de conversão. A conversão possibilitará o testemunho, prática indispensável na evangelização. Ela é criadora de postos de trabalho e tem patrimônios. Deve, por isso, em suas instituições, promover relações de trabalho a partir dos critérios do Evangelho. Mas é igualmente necessário que não apoie e denuncie modelos de economia e políticas que ferem a dignidade humana e não promovem os direitos sociais.

Cabe à Igreja ainda dar apoio direto a todos os que buscam uma sociedade assentada sobre a justiça. Deve abrir diálogo com eles, fazer parcerias, num serviço ou diaconia que tenha sempre como alvo principal os mais marginalizados. Junto com atividades concretas e locais, necessárias e urgentes, cabe à Igreja trabalhar politicamente, em pareceria com outros, por uma real transformação evangélica da sociedade como um todo. Evidentemente, a Igreja deve fazer isso a partir de sua identidade, reforçada por intensa oração, leitura bíblica, celebração e diálogo, ligando sempre a fé e a luta social.

 A diminuição do ritmo nas duas rodas do progresso atual - produzir e consumir - exige equilíbrio, que só pode vir de uma cultura de justiça, solidariedade, sobriedade e subsidiaridade. A terceira parte deste texto base nos ajudará na busca de ações concretas para colocar o machado nas raízes da árvore má e para buscar os meios necessários para plantarmos e cultivarmos a árvore que produz bons frutos - a nova sociedade que Deus quer para todos nós e que, com Ele, ansiosamente esperamos e queremos construir. 



[1] “Für eine Zukunft in Solidarität und Gerechtigkeit”, Bonn, Alemanha, 1997, publicado também em “Il Regno” 9/97, Bologna, Itália, com o título “Per un futuro di solidarietà e giustizia”.

 

AGIR

Terceira parte

 

a evangelização exige ação,
pois a fé sem obras é morta.

 

                A partir da análise e da reflexão sobre a realidade do desemprego, buscaremos, na terceira parte, sugestões e motivações para um agir que provoque mudanças. É importante que elas aconteçam em cada pessoa e na comunidade, atinjam a política e a economia. Só assim possibilitarão transformar a injusta situação em que se encontram os desempregados, e que ameaça também os que ainda têm emprego.

1.     O agir cristão

Como vimos no VER e no JULGAR, a solidariedade é o critério-chave para uma sociedade verdadeiramente humana. Ela se enraíza na necessidade que todo ser humano tem de relacionar-se com as outras pessoas. É condição indispensável para sermos gente. É uma atitude que modifica tanto quem recebe como quem é o autor dos gestos de solidariedade. Portanto, é um caminho de mão dupla: dignifica a pessoa que recebe e a que pratica gestos solidários.

A partir da fé, o que nos leva a agir para dignificar a pessoa do desempregado é o exemplo de Jesus. Ele não se limitava a ver e sensibilizar-se com as situações das pessoas, sobretudo dos sofredores. Ele falava e agia. Sua vida está cheia de exemplos que mostram isso. Basta olharmos suas atitudes com os doentes, cegos, aleijados, leprosos e principalmente com os mais excluídos, como as mulheres e as crianças. Em relação aos desempregados, a parábola dos trabalhadores da vinha nos mostra que todos os trabalhadores devem ser considerados como pessoas, com necessidades iguais. Jesus coloca em destaque a dimensão da generosidade que deve estar presente em todas as relações humanas.

“A fé sem obras é morta, nos diz São Tiago (Tg 2,17). A situação dos desempregados é um clamor que exige a mobilização de nossa fé em obras, em ações concretas. Falamos de três tipos de ação, que precisamos realizar ao mesmo tempo: a) atenção direta às pessoas desempregadas de nossa comunidade; b) ações mais amplas e articuladas, que visem melhorar as condições de vida da grande massa de desempregados/as; c) ações políticas, que apontem para um projeto de Brasil para todos, em que todos tenham vida e vida em abundância (Jo 10,10).

2. A missão da Igreja é libertadora

                Vale a pena recordar o ensinamento do Papa Paulo VI, na carta Evangelii Nuntiandi, sobre a missão profética da Igreja, que vai além da palavra: “A Igreja tem o dever de anunciar a libertação de milhões de seres humanos, entre os quais há muitos filhos seus; o dever de ajudar a nascer esta libertação, de dar testemunho da mesma, de fazer que seja total. Nada disso é estranho à evangelização” (EN 82). O compromisso da Igreja em relação ao trabalho, ao emprego e à situação dos desempregados, dos empobrecidos, é parte integrante da sua missão evangélico-libertadora.

                Esta Campanha da Fraternidade está ligada ao “Projeto de Evangelização Rumo ao Novo Milênio”. O tema e o lema para as CFs de 1997, 1998 e 1999 foram escolhidos tendo presente o sentido bíblico de Jubileu: “o objetivo dos Jubileus bíblicos é o perdão das dívidas e a restauração do projeto inicial de um país onde todos possam viver com dignidade” (PRNM, n.º 127). “As atividades ligadas à Dimensão do Serviço deverão incentivar atos concretos de solidariedade, visando garantir os meios básicos de sobrevivência (trabalho, alimentação, moradia) a todos,  começando pelos  mais necessitados” (PRNM,  nº 165). Lembramos ainda que o planejamento do PRNM para 1999 marca uma atenção aos Direitos Econômicos.

                A CF-99, “A fraternidade e os desempregados”, está intimamente relacionada com a do ano passado, com seu lema “educação a serviço da vida e da esperança”. Em 1998, deu-se atenção especial a duas dimensões da vida: à dignidade da pessoa humana, frente o aumento do desrespeito à vida; à cidadania, frente o aumento da desesperança do povo. Sempre numa visão ética e teológica, a educação foi apresentada como o grande meio para dar maior importância aos valores humanos capazes de garantir a dignidade humana e a construção de relações fraternas numa sociedade justa e solidária. Para isso, a educação deve estar presente na família, na escola, nos MCS, na sociedade em geral. Foi dado um destaque muito especial à educação de jovens e adultos (iniciando-se pelo mutirão de alfabetização) e ao apoio aos que estão na economia solidária. Viu-se a importância da escola numa sociedade cada vez mais informatizada.

3. Experiências que apontam caminhos

                 Apesar do aumento do número de desempregados, há muitas experiências em andamento que ajudam a manter viva a esperança do povo. Elas ajudam, ao mesmo tempo, na sobrevivência das famílias e na qualificação das pessoas. Estas iniciativas não resolvem o problema do desemprego. Mas é a partir delas que pode crescer a organização e a busca de saídas que ataquem as causas profundas e estruturais do desemprego. Entre muitas outras, citamos duas bem inspiradoras.

a) No município de Lagoa Salgada, RN, iniciou-se um projeto de beneficiamento de castanha de caju, através da Cooperativa Mista Agrícola de Lagoa Salgada. Até então a castanha era vendida “in natura”, e os agricultores recebiam só R$ 0,42 ao quilo. Por meio de organização em cooperativa, as famílias passaram a receber R$ 2,42 ao quilo. As famílias, que antes não tinham quase nenhuma renda, começaram a receber mais de três salários mínimos por mês. A experiência conta com apoio e suporte da Arquidiocese de Natal, através do SEAPAC, e financiamento do Programa de Apoio ao Pequeno Produtor (PAPP).

b) A “Escola Família Agrícola” tem mostrado importantes resultados. Ajuda na formação dos filhos dos agricultores, e consegue mantê-los no campo, melhorando a produtividade e a qualidade dos produtos. Além disso, forma lideranças que participam de sindicatos, associações, movimentos populares e partidos políticos. Este tipo de escola teve origem na França. A maior parte das cem escolas hoje existentes no Brasil continuam mantendo essa ligação inicial.

4. Solidários com os desempregados

                A CF deste ano nos chama, em primeiro lugar, a uma indignação ética diante da realidade atual: o aumento do desemprego estrutural e a situação dos desempregados são inaceitáveis! A quaresma nos faz um apelo radical à conversão pessoal e comunitária e nos dá força para trabalharmos em favor da mudança desta situação. Que a partir deste tempo quaresmal nossas atitudes sejam de misericórdia ativa. Como Jesus, que sejamos capazes de ir ao encontro dos caídos à beira do caminho, dos famintos, dos que estão na praça a espera de uma chance de trabalho; e que apontemos e denunciemos, profeticamente e com firmeza, as causas que geram as principais chagas de hoje, como a situação dos desempregados.

                A CF deverá fazer nascer ações de socorro imediato aos desempregados e suas famílias, que muitas vezes passam fome, estão com problemas de saúde etc.. Mas ela deve fazer nascer principalmente ações mais amplas, na linha da 3ª Semana Social Brasileira. São ações que reforçam a construção de um novo modelo de desenvolvimento, em que a vida e as pessoas estejam em primeiro lugar. O que se quer é uma sociedade em que a economia, regulada pela ética, esteja a serviço do atendimento das necessidades básicas de todas as pessoas, prioritariamente das mais necessitadas.

                A grande missão da CF é levar o Brasil a refletir e a agir sobre as causas do desemprego, e a não aceitar que a situação econômica atual é inevitável. À luz dos princípios éticos e da palavra de Deus, a Igreja oferece elementos para uma análise da organização social em que vivemos e denuncia o que contradiz o bem comum. Além disso, ela incentiva a todos para que, como cidadãos, apresentem propostas de ação ao Governo e à sociedade, e acompanhem seu andamento e concretização.

5.  Iniciativas e esperanças

                O problema do desemprego é estrutural e atinge todo o mundo. Um solução definitiva só virá com a mudança das estruturas da sociedade. Assim mesmo, é importante provocar o surgimento e apoiar iniciativas que possam amenizar o problema, ajudar na sobrevivência e manter viva a esperança e a organização do povo. Citamos algumas das iniciativas que vão nessa direção:

a) criar áreas nas cidades para favorecer a localização estratégica de feiras de pequenos vendedores;

b) conseguir o aumento da taxa de isenção para importação, de 150 para 500 dólares, para pequenos vendedores; afinal, qualquer turista que viaja para o exterior já tem a isenção sobre 500 dólares.

c) o poder público local pode criar frentes de trabalho para construção de casas populares, saneamento básico, açudes, limpeza e conservação de praças, jardins e parques, criando empregos. E os desempregados podem ser favorecidos, por meio de leis municipais, com o não pagamento das taxas e impostos relativos à água, luz, limpeza da rua. Além disso, pode ser favorecida sua alimentação por meio de ticket refeição e de cestas básicas, bem como sua locomoção com vales-transporte. Outras formas de manutenção das famílias dos desempregados são o seguro desemprego e “bolsa escola”, em dinheiro;

d) favorecer pequenas iniciativas locais, cooperativas, produções artesanais e caseiras, apoiando-as por meio de crédito, tipo Banco do Povo;

e) promover cursos de formação e de requalificação profissional no campo da gerência e consultoria pública, especialmente para os que fazem pequenos investimentos. O processo de reciclagem serve para melhorar o aproveitamento de certos produtos e, ao mesmo tempo, como possibilidade de geração de renda e de novos empregos;

f) favorecer e incentivar a participação da população nas decisões das administrações e das câmaras municipais e no controle de sua atuação. Isso vale especialmente em relação ao processo do orçamento participativo e às iniciativas de geração de emprego;

g) exigir a criação e o funcionamento dos conselhos paritários municipais do trabalho, da saúde, educação, criança e adolescente, das prisões etc. Esses órgãos são instrumentos importantes para o povo exigir recursos e para fiscalizar sua aplicação;

h) apoiar a revisão da lei que permite o trabalho no domingo. Ela beneficia as grandes redes de supermercados e shoppings, mas sacrifica os trabalhadores, pois não lhes permite estar com a família e ter tempo de lazer. Além disso, ela descaracteriza, para a maioria dos brasileiros, o Dia do Senhor.

6. Políticas de geração de emprego e renda

                É preciso mudar o rumo da economia, fazendo que ela não vise apenas o aumento da produtividade e do lucro. Para isso, são necessárias políticas de geração de emprego, diminuição do tempo de trabalho e valorização de outras formas de trabalho social. Como já vimos no VER, existem algumas propostas dos sindicatos e movimentos dos trabalhadores para criar empregos e para colocar as vantagens do aumento da produtividade a serviço de todos. Vale a pena recordá-las: a) a redução da jornada de trabalho, sem diminuir o salário, já que o aumento da produtividade permite isto;  b) a redução ou o fim das horas extras, o que poderia criar milhares de empregos; c) a realização de uma profunda reforma agrária. Quanto à esta última, é sabido que um novo emprego no campo custa três vezes menos do que na indústria. Como o Brasil tem grande quantidade de terras disponíveis e muitas famílias dispostas ao trabalho agrícola, é um país privilegiado. O que falta é vontade política para efetivar uma reforma agrária integral e um política agrícola adequada à produção familiar.

                Um caminho prático e de muitos resultados na luta contra o desemprego é a implementação de uma política voltada para o mercado interno. Para isso é fundamental a distribuição de renda, e o salário mínimo é um ponto importante desta estratégia. A economia passa a ser orientada no sentido de resolver os reais problemas da população brasileira: moradia, alimentação, transporte, saúde, educação e infra-estrutura urbana e rural. É necessário, para isso:

a) abrir linhas de crédito destinadas à promoção das atividades econômicas próprias de cada região, sobretudo nas mais pobres;                

b) abrir linhas de subvenção para obras públicas, equipamentos sociais, mutirões e frentes de trabalho a partir dos Municípios;

c) fornecer assistência técnica para os pequenos produtores urbanos e rurais e para o desenvolvimento de políticas de geração de renda.

                Bangladesh, um dos países mais pobres do mundo, criou, em 1983, o Banco de Aldeia. É um banco social que faz empréstimos de até 160 dólares para as pessoas pobres. 94% dos usuários deste banco são mulheres. Este dinheiro é exclusivamente para criação de empregos, na sua maioria na área de serviços, locação de material ou criação de animais. Funciona em 50% das aldeias do país e 97% dos empréstimos são regularmente devolvidos. Algo semelhante pode ser criado no Brasil, como apoio a milhares e milhares de pessoas que teriam assim garantidos seus trabalhos de subsistência básica.

                Para vencer o desemprego, é preciso pressionar os políticos para melhorarem a legislação trabalhista em favor dos direitos do povo. Eis algumas medidas, entre outras: a) o auxílio desemprego, para garantir ao trabalhador condições de sobrevivência durante o tempo em que estiver sem trabalho remunerado; b) leis que proíbam iniciativas que aumentam o desemprego, principalmente nos setores em que a concorrência do mercado globalizado não se faz presente; c) leis que favoreçam todas as iniciativas que geram trabalho e estão voltadas para o atendimento das necessidades básicas da população da região, através da isenção de impostos e outros incentivos; d) leis que regulamentem o uso das inovações tecnológicas. Em relação a esse último ponto, o fato de impedir que se introduza irresponsavelmente postos de auto-atendimento de combustível e catracas eletrônicas nos coletivos urbanos pode ser uma forma de evitar o aumento do desemprego. Serviços como estes não são pressionados pela concorrência do mercado globalizado.

                Os avanços tecnológicos, sobretudo no campo da informática, exigem cada vez mais conhecimento. Um conhecimento que exige atualização e renovação todo o tempo. Daí a importância da formação permanente para requalificar e preparar profissionalmente os trabalhadores. É por isso que é preciso melhorar a qualidade da escola pública e aumentar os anos de escolaridade para a população de baixa renda.

                Como vão desaparecendo postos de trabalho na indústria, outros setores da economia deveriam crescer e ser valorizados. Temos o costume de chamar trabalho produtivo só aquele que gera bens econômico-financeiros, e não o que contribui para construir uma sociedade mais humana. A crise do emprego está valorizando o trabalho social, contrabalançando a importância exagerada dada ao trabalho produtivo. As sociedades mais avançadas gratificam de algum modo este novo tipo de ocupação das pessoas. É uma nova cultura a ser incentivada. Citamos alguns casos:

a) o trabalho familiar, como o das mães de família: valorizar este tipo de atividade como uma das formas de geração de novos postos de trabalho, com algum tipo de gratificação financeira por meio do poder público;

b) o trabalho social, como cuidar de doentes, idosos, prisioneiros, deficientes e outros sofredores. Além do serviço dos técnicos profissionais, estas pessoas melhoram, e muito, quando são atendidas por voluntários que lhes oferecem presença, companhia, conforto, apoio afetivo;

c) o trabalho ecológico, como a  preservação da natureza e do meio ambiente, zelo por praças, jardins, parques, nascentes, promoção de turismo ecológico etc. Além do cuidado com o meio ambiente e da garantia dos direitos das futuras gerações, novas oportunidades de trabalho são criadas.

                Para que tudo isso aconteça, é fundamental buscar sempre a conversão para o amor e a justiça. Só assim se conseguirá que todos tenham oportunidade de vida em nossa sociedade. Faz parte desta conversão a opção por um estilo de vida mais sóbrio, módico, simples, não consumista, que torne possível que todos tenham as necessidades básicas atendidas.

7. Por uma economia solidária

                A construção de uma economia solidária exige a busca firme de um novo padrão de civilização. Ele deverá ter como base a justiça, a solidariedade, a valorização da vida e a dignidade humana. É com estes objetivos que nascem diversas iniciativas no campo e na cidade, que nos servem como exemplo: organização de processos comunitários em favor da qualidade de vida do bairro (segurança, recreação infantil, festas, reuniões formativas, reivindicações junto às autoridades); organização de mini-empresas autogeridas, cooperativas para produtos caseiros (roupas, doces, salgadinhos, pães, artesanatos), pequenas fábricas de blocos, mutirões para construção de casa própria na cidade, transporte solidário e, no campo, cooperativas de produção e de comercialização de produtos agrícolas [1].

8. Por uma economia eticamente regulada 

                No espírito da quaresma, a CF nos chama a lutar para que a economia seja regulada pela ética. Só assim a pessoa será o centro de todos os projetos, haverá lugar para todos e as questões sociais terão primazia. Para esta mudança é fundamental que os valores éticos dignidade humana, justiça social, solidariedade e caridade entrem no lugar da concorrência, da competitividade e do lucro. É com eles que se criará um novo modelo econômico, em que se priorizará o direito à vida digna, aos demais direitos humanos e ao meio ambiente.

                A política atual é comandada pela racionalidade econômica, confunde progresso material com avanço técnico e deixa em segundo plano os objetivos sociais. De acordo com a 2ª Semana Social Brasileira (1993-94), “é preciso uma inversão de prioridades capaz de enfrentar as exigências da ruptura com a crença de que o mero crescimento econômico seja capaz de arrancar da miséria as grandes maiorias excluídas do processo de modernização brasileira”([2]). No caso dos desempregados, por exemplo, não basta distribuir melhor o que se produz entre os integrados; é preciso integrar a todos, no mercado de trabalho e na distribuição dos bens.

                Gigantescos problemas dificultam a criação de um novo modelo social. Um deles é a dívida externa. E o cancelamento da dívida externa, conforme sugere o Papa João Paulo II na Tertio Millennio Adveniente (TMA n.º 51), pode ser um dos caminhos para gerar novos postos de trabalho. Para isto, a sociedade civil terá tarefa importantes: a) participar do debate sobre o assunto, lutando pelo cancelamento; b) cancelada a dívida, fiscalizar a aplicação dos recursos provenientes do não pagamento, garantindo que sejam aplicados no resgate das dívidas sociais, a serviço de um programa social sério. Há diversas organizações civis e Igrejas trabalhando nesse sentido, articuladas na campanha internacional “Jubileu 2000”. Já há adesões e mobilizações na Europa, no Canadá e nos Estados Unidos. O Brasil está dando um passo importante por meio dos eventos da 3ª Semana Social Brasileira sobre o resgate das dívidas sociais e com o Simpósio Dívida Externa: Implicações e Perspectivas. É preciso, agora, dar continuidade às iniciativas que brotam destes dois eventos.

                Representantes de 40 Igrejas cristãs norte-americanas, reunidos em Denver nos dias 20 e 21 de junho de 1997, lançaram um forte apelo em favor do cancelamento da dívida internacional como uma das formas de melhorar a vida dos habitantes dos países pobres. “Estamos conscientes de que o pagamento de uma dívida que não pára de crescer tira recursos que os países pobres poderiam empregar para a melhoria da saúde, para a água potável, para a educação e para uma produção que traga renovação para as comunidades locais” ([3])

                Cresce, na Europa, uma iniciativa chamada "bancos éticos". Consiste no seguinte: os pequenos e médios poupadores só investem em bancos que aplicam os seus recursos de forma ética. Eles retiram suas poupanças do banco ao descobrirem que ele está aplicando recursos na fabricação de armas ou em negócios que destroem ou estragam o meio ambiente: grandes barragens, madeireiras, indústrias poluidoras. Esta é um jeito de os cidadãos e cidadãs exercerem o direito de controlar o capital e o mercado financeiro. Neste sentido, as instituições religiosas (Paróquias, Dioceses, Congregações Religiosas, Pastorais e Movimentos) poderiam cuidar muito mais de seus investimentos, exigindo dos bancos informações sobre as aplicações do dinheiro depositado. Com isso, podem retirá-lo quando estivesse sendo aplicado de maneira antiética, aplicando-o em bancos éticos, ou em bancos públicos, que têm por obrigação mostrar seus balancetes à sociedade.

                Outra frente importante é "tornar pública e conhecida a proposta de taxar em 0,5% ou, pelo menos, em 0,1%, todas as transações financeiras internacionais. Com os recursos provindos deste mecanismo, criar um fundo internacional para enfrentar os problemas da fome e da miséria. Além de divulgar, é urgente pressionar os poderes públicos, legislativos, executivos e os formuladores da política exterior para que trabalhem em favor desta proposta, elaborada por J. Tobim, Prêmio Nobel de Economia, e já assumida por muitas entidades civis de países desenvolvidos” ( [4])

                Pressionar para que o sigilo bancário seja submetido ao bem comum é uma frente de luta fundamental para combater a corrupção e contribuir para a criação de uma verdadeira política fiscal progressiva, fundada sobe a justiça social e a solidariedade. Esta medida valeria nos casos de corrupção ou de suspeitas fundamentadas.

9. Exigências da consciência cristã

                O Projeto Rumo ao Novo Milênio prevê que o ano de 1999 seja dedicado à caridade e à reconciliação. As duas exigem gestos concretos de solidariedade para com os mais necessitados e atenção às exigências éticas de qualquer modelo econômico. Assim, são necessárias mudanças profundas para que aconteça de fato reconciliação. É isso que aprendemos com as práticas do ano do Jubileu, no Antigo Testamento, como foi apresentado no JULGAR: a) devolução das terras; b) libertação dos escravos; c) perdão das dívidas. A caridade, hoje, não pode limitar-se a gestos diretos de solidariedade para com os desempregados; ela exige a conversão pessoal e o empenhopor mudanças estruturais, chegando às raízes que provocam o desemprego e jogam tantos trabalhadores no olho da rua. A caridade é libertadora e atua, por isso, na conquista dos direitos econômicos relativos ao trabalho, à terra, à alimentação e à moradia.

                        A CF-99 convida a enfrentar a pesada realidade vivida por desempregados e desempregadas. É, por isso, um tempo oportuno para que a Igreja toda e cada um dos seus membros revejam sua posição face ao atual modelo de desenvolvimento. É um tempo para dinamizar o dom da profecia. É hora de refletir seriamente, à luz da palavra de Deus, sobre as conseqüências que este modelo produz na vida dos trabalhadores, e de passar de uma postura de silêncio para a corajosa denúncia evangélica e para propostas que ajudem a transformar a sociedade.

                Na luta pela construção de um modelo de desenvolvimento onde caibam todos, é indispensável apoiar os movimentos populares e com eles fazer parceria. “Parcerias com outras organizações da sociedade civil e instituições públicas devem ser promovidas com a finalidade de concretizar as propostas na linha dos direitos civis, sociais e econômicos, bem como a realização do Jubileu do ano 2000, como o perdão das dívidas e o resgate da dívida social no Brasil. Participar dos conselhos paritários, contribuir na elaboração de políticas públicas, realizar fóruns e seminários e marcar presença efetiva nos momentos-chave das lutas populares”, é o que prevê o Projeto Rumo ao Novo Milênio (nº 131).

                A exemplo de experiências de geração de renda espalhadas pelo País, é necessário ser criativo e descobrir iniciativas que podem ser assumidas em cada local. Iniciativas que possibilitem, além da sobrevivência de grupos de desempregados, manter viva a esperança na construção de uma sociedade justa, solidária e igualitária.

                É preciso que as comunidades e movimentos  eclesiais se comprometam com a causa da reforma agrária. Ela é um dos campos fundamentais para resolver o problema do desemprego. Para isso, que sejam solidários com os Movimentos Sociais que lutam contra a injustiça social e pela reforma agrária, acompanhando-os nas diversas fases de sua organização; que estimulem e apoiem organizações autônomas dos assalariados rurais e dos setores informais de trabalhadores do campo. É necessária uma política agrícola que favoreça o trabalhador rural por meio de infra-estruturas adequadas, financiamentos, garantia de preços mínimos e escoamento dos produtos. Merece todo o apoio a agricultura familiar, que produz alimentos para o mercado interno e que gera muito mais empregos do que a lavoura mecanizada e tecnicamente avançada ([5]).

                Vivendo a virtude teologal da caridade, as comunidades eclesiais ajudem a aprofundar a interligação e a solidariedade efetiva entre os trabalhadores do campo e da cidade. Valorizem, também, iniciativas que aprofundam relações de solidariedade nas comunidades, como a participação em mutirões, ajuda em momentos difíceis e apoio às lutas concretas locais. É necessário incrementar, nas diversas instâncias da vida comunitária, nas pastorais, nos grupos, nos movimentos e na catequese, bem como nas celebrações, uma educação que ajude a caminhar para uma sociedade fraterna, reconciliada e solidária.

                A questão do desemprego e o drama dos desempregados/as não pode, evidentemente, ficar limitada a uma Campanha da Fraternidade. É um problema que atinge a milhões de brasileiros e a toda a sociedade. É fundamental que os MCS - TV, Rádio, jornais e revistas -, os políticos, as associações, os sindicatos, as Igrejas, as escolas, enfim todos os segmentos sociais, sejam envolvidos no debate e na busca de caminhos. No caso da Igreja católica, a CF-99, que teve dois anos de preparação e terá seu momento nacional nos 40 dias da quaresma, tem seus desdobramentos. Como parte da opção preferencial pelos pobres, é claro que a situação dos/as desempregados/as faz parte da vida e missão da Igreja.

10. Algumas sugestões práticas

                Os dados apresentados neste texto são de 1996 até meados de 1998. É preciso, por isso, que as comunidades e movimentos atualizem estes dados. É uma ação concreta importante para fundamentar as denúncias que fazem parte da missão profética da Igreja.

                É preciso conhecer para criar laços de amor. Conhecemos quem está desempregado(a) em nossa comunidade? É importante, portanto, fazer um levantamento do número e do nome dos desempregados/as, vendo quais são suas necessidades imediatas. Feito o levantamento, motivar a comunidade e trabalhar uma dupla articulação: dos desempregados entre si, para formar grupos de apoio mútuo e busca de caminhos; e da comunidade local com os grupos de desempregados, para apoiá-los.

                Como já vimos, incentivar a caridade assistencial é importante, pois mobiliza a comunidade para a ajuda imediata aos desempregados em necessidade. Mas é preciso atingir a estrutura social, mudar o modo de as autoridades governarem e administrarem os recursos públicos, aplicando-os prioritariamente em favor dos pobres. Junto com a luta pela criação de empregos, é bom que os desempregados/as sejam alvo de políticas especiais: isenção de alguns impostos, da tarifa de água e luz, fornecimento de vale transporte gratuito em suas andanças diárias em busca de emprego etc.

                Neste contexto de crescente desemprego, a sociedade precisa dar atenção especial às categorias sociais mais frágeis. É o caso dos que são alvo de discriminação: idosos, mulheres, negros/as, estrangeiros/as pobres, os portadores de deficiência e outros. É importante incentivá-los e apoiá-los para que entrem em suas organizações e tomem a dianteira na luta contra preconceitos e discriminações de todos os tipos.  



[1] VVAA: Uma Economia de Comunhão - Projetos, reflexões e propostas para uma Cultura da Partilha - experiências dos Focolares -  Ed. Cidade Nova, 1998, São Paulo, SP.
[2] CNBB: Brasil: Alternativas e Protagonistas, pág. 109, Ed. Vozes, 1996, Petrópolis, RJ.
[3] “Cancelemos a Dívida Internacional”,  in Il Regno, n.º 17, ano XLII, nº 800, 1º de outubro de 1997, p. 554, Bologna, Itália.
[4] Cfr. NEUTZLING, Inácio.) - Algumas considerações sobre a mundialização do capital, in Convergência, nº 298, dezembro de 1996, p. 635-646).
[5]  Cf. “Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do Campo” , todo um processo que está sendo conduzido pela CNBB, MST, UNICEF e UNESCO e que luta por uma nova política publica para o campo, priorizando a agricultura familiar e a educação escolar específica inserida na realidade do campo.

Mesmo sabendo que só se atenua o problema, exigir do poder público local que forneça cestas básicas aos desempregados e fazer campanhas para que as empresas também contribuam com esta ajuda emergencial.

                Avaliar a formação que está sendo dada. É impensável uma formação cristã alienada das realidades políticas, econômicas, sociais e culturais. É indispensável, portanto, que se inclua logo no processo de formação de seminaristas, religiosas(os), padres, bispos e de todos os(as) leigos(as), uma mística que integre evangelicamente fé e vida, fé e política, fé e realidade. No caso da CF-99, a realidade desemprego e da globalização econômica e financeira, bem como as transformações que acontecem atualmente nas relações de produção precisam fazer parte da formação dos cristãos.

                A reflexão sobre temas sociais não pode ficar só com as pastorais sociais. Se a fé sem obras é morta (cf. Tg 2,17), é claro que a temática social deve fazer parte da teologia, da vida da comunidade (Associações, Grupos, Congregações, CEBs, Movimentos...), da liturgia, celebrações, catequese e de outros encontros ou reuniões nas comunidades. O fato de algum grupo ter maior responsabilidade sobre determinadas situações, sobretudo sociais, não libera os demais de se interessarem e envolverem nelas.

                É importante retomar a proposta da renda mínima. Trata-se de uma quantia a ser repassada pelo Governo a toda pessoa que não disponha de uma fonte de recursos para viver dignamente. Vem daí a denominação “renda mínima” ou “mínimos vitais”. Diversos países já adotam esta medida, de diferentes formas. Há no Brasil algumas experiências. É importante conhecer a proposta e as experiências, e criar outras, se for o caso; mas é preciso mobilizar uma iniciativa popular para que seja aprovada em lei específica. E para isso é necessário criar opinião pública favorável, realizar um mutirão de coleta de assinaturas e envolver políticos na causa.

                A solidariedade dos cristãos deve vir acompanhada de possíveis compromissos efetivos. Eis algumas exemplos: apoiar as organizações e as lutas dos/as desempregados/as; formar grupos de famílias solidárias, que apóiam ou adotam uma de desempregados; comprometer as Igrejas com as crianças e adolescentes que sustentam a família, com os migrantes que ajudam suas famílias na região de origem, e com os trabalhadores da economia informal para que tenham seu trabalho reconhecido. Os movimentos sociais, como de empregadas domésticas, sem-teto, desempregados, sem-terra, trabalhadores da construção civil e outros, necessitam do apoio da Igreja, das Organizações Não Governamentais (ONGs) e de outras instâncias sociais.

                Todo este esforço por um mundo justo e solidário exige da Igreja católica abertura ao diálogo com o maior número possível de pessoas e instituições, como por exemplo, Universidades, ONGs, outras Igrejas. Por isso, que as comunidades promovam momentos de encontro para diálogo, oração e busca de caminhos com estes grupos a partir da realidade dos desempregados. É preciso ainda incentivar a participação política de cidadãos comprometidos com a luta pela justiça em instâncias como câmaras municipais, conselhos e fóruns. É assim que se pode lutar por leis que defendam os direitos dos pobres e exigir respostas urgentes do Governo para a difícil situação dos desempregados.

                Graças a Deus, temos muitas pastorais sociais no Brasil. A CF-99 é uma preciosa oportunidade para que as comunidades eclesiais reconheçam, apóiem e estimulem a criação e/ou dinamização do maior número possível de pastorais sociais e movimentos especializados. Esta é uma forma de desenvolver um trabalho voltado para a realidade específica do mundo do trabalho, em particular com os desempregados. Merecem todo o apoio pastorais que lidam diretamente com trabalhadores, como a Pastoral Operária, da Terra, dos Pescadores, da Criança e Adolescente, da Mulher Marginalizada, dos Migrantes etc. Estas e outras Pastorais assumem, há anos, o tema da CF. Alguns exemplos: a Semana do Migrante, em 99, terá subsídios que retomarão o tema da CF e o aprofundarão na perspectiva das migrações.  O mesmo ocorre com a Pastoral da Juventude, com a Dimensão Missionária etc.

  11. Mutirão Nacional CF-99

                Gesto específico.  A CF-99 propõe que cada diocese ou paróquia assuma um Projeto de Geração de Emprego e/ou Renda, em favor e junto com desempregados/as. A comunidade apóia e sustenta e as Pastorais Sociais orientam, assessoram.

                Coleta da Solidariedade.  Colocando em prática a decisão da Assembléia Geral da CNBB de 1998, a tradicional Coleta da Campanha da Fraternidade de 1999 passa a ter uma destinação exclusivamente social. A totalidade desta Coleta da Solidariedade será destinada ao apoio a iniciativas em favor dos mais empobrecidos. Neste ano, em coerência com o tema da CF, o resultado da Coleta será aplicado nas iniciativas que tenham como objetivo enfrentar o grave problema do desemprego e da falta de oportunidades de trabalho.

                Fundo Diocesano de Solidariedade. Dos recursos doados, 60% ficarão em cada Diocese, para apoiar iniciativas da Diocese como um todo ou das paróquias e comunidades que a constituem. Cada Arqui/Dioce098ew      7870 encarregará a Cáritas Diocesana, ou uma Comissão de Pastoral Social, de realizar quatro tarefas:

1) determinar concretamente as iniciativas que serão apoiadas;

2) administrar a destinação desse Fundo Diocesano de Solidariedade;

3) acompanhar as iniciativas apoiadas;

4) elaborar um relatório, no final de cada ano, dando conta dos frutos alcançados.

                Fundo Nacional de Solidariedade.  Os outros 40% dos recursos irão para o Fundo Nacional de Solidariedade, somando-se à Campanha Permanente de Solidariedade da Cáritas Brasileira. A política de aplicação é definida e acompanhada por um Conselho organizado pela CNBB. Estes recursos servem, de modo especial, para reforçar as regiões mais empobrecidas e para apoiar os grupos sociais em estado de urgência/emergência social. No final de cada ano, será publicado em relatório dando conta dos frutos produzidos pela aplicação, em nível nacional, desses recursos.

                Com boa motivação, nosso povo é generoso. São muitas as provas, como as coletas em favor de R[*/´t5689-/oraima, do Nordeste e outras. Mas é fundamental organizar bem a coleta para que alcance seus objetivos. Sozinhos, nossa colaboração, mesmo com boa vontade, ajuda pouco, nestes problemas tão complexos como o desemprego. Mas se juntamos o pouco que cada um tem num Fundo de Solidariedade, estaremos criando a possibilidade de apoiar e animar muitas iniciativas dos empobrecidos para melhorar suas condições de vida, para crescer na prática da cidadania e para viver com dignidade e alegria de filhas e filhos de Deus. A Coleta da Solidariedade é, sem dúvida, uma das melhores formas de vivermos a caridade libertadora. Seremos coletivamente bons samaritanos, assumindo como nosso próximo os milhões de brasileiros que vivem em situação de pobreza e miséria, ajudando a milhares e milhares de irmãs e de irmãos em situação de desemprego. Coletivamente, estaremos apoiando, também, um imenso trabalho de cidadania para construirmos o Brasil que a gente quer no Novo Milênio, isto é, um país sem exclusão social, e portanto, bem mais próximo do Evangelho.

 

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